Apelação criminal. Crime contra a liberdade sexual. Atentado violento ao pudor em continuidade delitiva
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul - TJRS
Apelação Criminal (Réu Preso) n. 2010.006285-0, de Rio do Sul
Relator: Des. Alexandre d'Ivanenko
APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A LIBERDADE SEXUAL. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR EM CONTINUIDADE DELITIVA (ART. 214 C/C ART. 71, AMBOS DO CÓDIGO PENAL). DELITO COMETIDO CONTRA VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS. PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA (ART. 224, "A", DO CP).
PRELIMINARES. ALEGADAS DILIGÊNCIAS IMPRESCINDÍVEIS. REQUERIMENTO DE DESENTRANHAMENTO DE DOCUMENTOS. PEDIDO DESCABIDO E FORMULADO INTEMPESTIVAMENTE (ART. 402 DO CPP).
LEVANTADA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 222, § 2º, DO CPP. NORMA QUE AUTORIZA A REALIZAÇÃO DO INTERROGATÓRIO ANTES DA OITIVA DE TESTEMUNHA, EM CASO DE EXPEDIÇÃO DE PRECATÓRIA. INEXISTÊNCIA DE AFRONTA A DISPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL.
ARGUIDA SUSPEIÇÃO DE DOIS MEMBROS DA MAGISTRATURA, DE REPRESENTANTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DE TRÊS TESTEMUNHAS. EXTEMPORANEIDADE. FORMULAÇÃO DA EXCEÇÃO INADEQUADA. PRECLUSÃO. ADEMAIS, ARGUMENTAÇÃO QUE NÃO SE PRESTA A AFASTAR O EXERCÍCIO DOS MAGISTRADOS OU DO PROMOTOR DE JUSTIÇA.
IRRESIGNAÇÃO DEVIDO A PUBLICAÇÃO EQUIVOCADA DE DESPACHO. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. MATÉRIA JÁ DEBATIDA EM MANDADO DE SEGURANÇA.
NULIDADE DO FLAGRANTE. PRETENSA CONTRADIÇÃO ENTRE DEPOIMENTOS DE POLICIAIS. INOCORRÊNCIA. DECLARAÇÕES FIRMES E CONSONANTES. EIVA INEXISTENTE.
ILEGALIDADE DA PRISÃO PELA NÃO CONFIGURAÇÃO DE FLAGRANTE E PELA HOMOLOGAÇÃO TARDIA. MATÉRIA JÁ DEBATIDA EM HABEAS CORPUS. ADEMAIS, PRESENÇA DE ELEMENTOS SUFICIENTES PARA CONFIGURAR A SITUAÇÃO DO ART. 302, INC. I, DO CPP, E HOMOLOGAÇÃO FEITA A TEMPO E MODO ADEQUADOS.
PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA EM RAZÃO DA NÃO REALIZAÇÃO DE EXAME DE INSANIDADE MENTAL NO ACUSADO. INEXISTÊNCIA DE DÚVIDA ACERCA DE SUA LUCIDEZ. DESNECESSIDADE DA PROVA PERICIAL.
SUSTENTADA NULIDADE DO INQUÉRITO POLICIAL EM RAZÃO DE VÍCIOS QUANTO À SUA ELABORAÇÃO. MATÉRIA JÁ DEBATIDA EM HABEAS CORPUS. DILIGÊNCIAS POLICIAIS QUE OBSERVARAM OS DITAMES LEGAIS. INOCORRÊNCIA DE EIVA.
INSURGÊNCIA CONTRA O AUTO DE TRANSCRIÇÃO TELEFÔNICA. DOCUMENTAÇÃO QUE ATENDEU OS DISPOSITIVOS DA LEI N. 9.296/96. NULIDADE INEXISTENTE.
PEDIDO DE DESENTRANHAMENTO DE LAUDO PERICIAL FORMULADO A DESTEMPO. PROVA NÃO UTILIZADA NA SENTENÇA. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. DESNECESSIDADE DA EXTRAÇÃO DO DOCUMENTO.
PRELIMINARES AFASTADAS.
MÉRITO. MATERIALIDADE E AUTORIA DEVIDAMENTE COMPROVADAS PELA CONFISSÃO PARCIAL DO ACUSADO, PELO DEPOIMENTO DA VÍTIMA E PELO MATERIAL OBTIDO COM A INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. PRETENSÃO DE ABSOLVIÇÃO POR CARÊNCIA DE ELEMENTOS PROBATÓRIOS INVIÁVEL.
QUESTIONADA A VALIDADE DO DEPOIMENTO DA VÍTIMA. DECLARAÇÕES EM CONSONÂNCIA COM OS DEMAIS ELEMENTOS PROBATÓRIOS. ADEMAIS, PROVA RELEVANTE EM CRIMES DESSE JAEZ, COMETIDOS NA CLANDESTINIDADE.
ATIPICIDADE DA CONDUTA EM RAZÃO NA NÃO CONFIGURAÇÃO DE ELEMENTO ESSENCIAL DO TIPO ("ATO LIBIDINOSO DIVERSO DA CONJUNÇÃO CARNAL"). ACUSADO QUE BEIJOU A VÍTIMA NA BOCA E PASSOU A MÃO EM SEUS SEIOS. COMPORTAMENTO EVIDENTEMENTE DESTINADO A SATISFAÇÃO DA LASCÍVIA. TIPO PENAL PREENCHIDO. PRECEDENTES.
RECURSO DESPROVIDO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal (Réu Preso) n. 2010.006285-0, da comarca de Rio do Sul (Vara Criminal e da Infância e Juventude), em que é apelante A. C., e apelada A Justiça, por seu Promotor:
ACORDAM, em Terceira Câmara Criminal, por votação unânime, afastar as preliminares e negar provimento ao recurso. Custas de lei.
RELATÓRIO
Na Comarca de Rio do Sul, o Ministério Público ofereceu denúncia contra Angelo Chiarelli, qualificado nos autos, dando-o como incurso nas sanções do art. 214, caput, c/c art. 224, "a", na forma do art. 71, todos do CP, pelos fatos assim narrados na exordial acusatória (fls. II-V):
Entre os meses de abril e junho de 2009, a polícia civil da Delegacia de Proteção à Mulher, à Criança e ao Adolescente realizou investigação, inclusive por interceptação telefônica e telemática, conforme se observa dos termos de fls. 150-198 e 281-411, sobre possível violência física, psicológica e exploração sexual infanto-juvenil realizada pelo denunciado Angelo Chiarelli em vista das integrantes do grupo "Infância e Adolescência Missionária" por ele coordenado.
Apurou-se que o denunciado, valendo-se da condição de sacerdote, constrangia as participantes do aludido grupo, ameaçando-as de tirá-las do Projeto e do Coral. A propósito, colhe-se a seguinte fala intimidatória proferida pelo denunciado: "vou marcar. Se tu não vier, tá fora do grupo de cantoras, tá fora de tudo!!!" (fl. 295).
Ademais, cerceava [sic] as integrantes do Grupo de "infância e Adolescência Missionária" com promessas de serem as cantoras principais, bem como de gravar um CD e, ainda, elogiando frequentemente o corpo delas e as presenteando com pirulitos, chocolates e celulares, tudo com o propósito libidinoso por ele alimentado.
Importante salientar que o denunciado aliciava e constrangia as vítimas, muitas vezes utilizando-se de mensagens enviadas por telefone ou via e-mail, com uso de palavras codificadas, pra não ser identificado por terceiros. Citam-se alguns dos códigos veiculados: ouro ime = eu te amo; bjda = beijo de amor; te d. = te desejo; vc cc e sc ss e at fa = você com calcinha e sem calcinha e até fazendo amor; tk ss. scp. sn. = te quero sem sutian, sem calcinha preta, sem nada; F A = Frei Angelo.
Dando continuidade às investigações, no dia 19 de junho de 2009, por volta das 17h, em cumprimento à mandado de busca me apreensão nas dependências da Paróquia do Divino Espírito Santo, localizada na Rua José Bonifácio, bairro Canoas, Rio do Sul (SC), os policiais civis arrombaram a porta do quarto do denunciado, deparando-se com a vítima deitada sobre a cama, já sem jaqueta, e o acusado atrás da porta, com o zíper da calça aberto, autuando-o em flagrante delito.
Nessa ocasião, constatou-se que Angelo Chiarelli constrangeu a vítima A. M., com apenas 13 anos de idade (documento de fl. 26), mediante ameaças de tirá-la do Projeto e do Coral, a praticar e permitir que com ela se praticasse atos libidinosos diversos da conjunção carnal, consistentes em beijá-la na boca e passar as mãos na barriga e nos seios da infante para satisfazer sua lascívia.
Exsurge ainda, do cognitivo caderno indiciário, que a violência sexual experimentada por A. datava de aproximadamente 2 (dois) anos, quando ela ingressou no grupo acima aludido. Em diferentes oportunidades, o denunciado Angelo levava a vítima para o quarto dele na Paróquia e lá a constrangia a praticar atos libidinosos diversos da conjunção carnal, consistentes em beijá-la na boca e apalpar-lhe o corpo lascivamente, por vezes, colocava a mão dentro de sua blusa, passando a mão em seu seio, por cima do sutian.
Nessa senda criminosa, apurou-se que no curso de 2007, quando a vítima contava com apenas 11 anos de idade, em data e horário que a instrução irá precisar, Angelo Chiarelli, aproveitando-se de uma situação em que a vítima desentendeu-se com outra adolescente missionária, para satisfazer a lascívia, passou a mão no rosto de A., beijou-a no canto da boca e, na sequência, beijou-a na boca, perguntando-a se já havia "ficado" com algum menino, e como ela respondeu que não, afirmou que a boca da criança seria só dele.
De igual modo, no dia 14 de junho de 2009, domingo que antecedeu a prisão em flagrante, em horário que a instrução irá precisar, nas dependências da Paróquia do Divino Espírito Santo, localizada na Rua José Bonifácio, bairro Canoas, Rio do Sul (SC), Angelo Chiarelli levou A. para o quarto dele e lá a constrangeu a praticar e permitir que com ela se praticasse atos diversos da conjunção carnal, mediante apalpações lascívias na vagina da vítima, acariciando-a por cima da calça e, após, começou a passar as mãos no seio dela.
Importante salientar que o repugnante instinto pedófilo do denunciado é evidenciado, igualmente, com o material apreendido em seu quarto: 1 (um) telefone celular da marca Motorola, utilizado para constranger vítimas; 1 (um) notebook, marca Acer; (uma) máquina fotográfica digital, marca Sony Cyber-Shot; 21 (vinte e um) CDs e DVDs, contendo fotos e vídeos com aparecimento de adolescentes (grande parte do sexo feminino), a maioria em trajes de banho, inclusive uma criança com os seios à mostra; diversos papéis manuscritos e digitados (cartas de amor), recebidos e enviados pelo denunciado; fotografias de várias adolescentes em trajes de banho; 6 (seis) pares de brinco de cor dourada, da marca L'acqua di Fiori; 1 (um) chaveiro prateado, com a inscrição em um dos lados "Frei Angelo" com a fotografia de duas adolescentes; uma carteira de couro preta contendo a quantia de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) com a fotografia de duas adolescentes, conforme termo de fls. 16 e 120.
Finda a instrução criminal, o Juiz sentenciante julgou procedente o pedido formulado na denúncia, e condenou Angelo Chiarelli à pena de 8 (oito) anos e 9 (nove) meses de reclusão, em regime inicialmente fechado, por infração ao disposto no art. 214, caput, c/c art. 224, "a", na forma do art. 71, todos do CP (fls. 1307-1339).
Irresignado, o réu interpôs recurso de apelação e, em suas razões (fls. 1374-1379), reiterou as arguições feitas em alegações finais, ou seja, aduziu quatorze preliminares ("diligências imprescindíveis"; inconstitucionalidade do art. 222, § 2º, do CPP; suspeição da Juíza Cínthia Beatriz da Silva Bittencourt; suspeição da Juíza Cristina Lerch Lunardi; ausência de imparcialidade da Juíza Cristina; nulidade dos atos praticados pela Juíza Cristina; suspeição do Promotor de Justiça André Otávio de Mello; nulidade do flagrante; cerceamento de defesa; suspeição de testemunhas; nulidade do Inquérito Policial; nulidade do auto de transcrição; nulidade dos atos processuais; e "lesa Constituição") e, no mérito, questionou a validade do depoimento da vítima, suscitou a atipicidade da conduta em razão da não configuração de elemento essencial do tipo ("ato libidinoso diverso da conjunção carnal"), e pugnou pela absolvição, em razão da carência de provas aptas a sustentar o decreto condenatório.
Apresentadas as contrarrazões (fls. 1401-1437), os autos foram encaminhados à Procuradoria Geral de Justiça que, em parecer da lavra do Dr. Robinson Westphal (fls. 1440-1455), manifestou-se pelo conhecimento e desprovimento do recurso.
VOTO
Presentes os pressupostos de admissibilidade, o recurso há de ser conhecido.
Antes de ingressar na análise do mérito, é necessário o exame das preliminares suscitadas em alegações finais e reiteradas nas razões recursais.
1. "Diligências imprescindíveis":
O acusado requer, neste momento processual, que sejam atendidos requerimentos anteriormente formulados, consistentes no desentranhamento de todas as fotografias - exceto aquelas em que A. se faz presente -; dos documentos de fls. 36-42, por se tratar de peças alheias à denúncia; fls. 51-53, por tratar de pessoa que "não figura no pólo passivo"; fls. 106-108, juntados sem protocolo e por existir peça original às fls. 639-641 dos autos de n. 054.09.005720-5; fl. 128, por ser "representação de pessoa que não figura no pólo passivo da ação"; fls. 131-133 e 142-143, por ser cópia de fax e por "não apresentar representação por parte da declarante e por ela não figurar no pólo passivo da ação"; fls. 134-137, por se tratar de documentos produzidos à revelia das normas legais; fls. 150-198, pela ausência de identificação dos elaboradores, bem como em razão de inserções indevidas feitas pela autoridade policial; e fls. 252-277, por se tratar de "documentos sem identificação dos elaboradores", outros por apontarem menores "que não figuram no pólo passivo da presente ação" e outros por apresentarem "injustificáveis destaques" (fls. 1114-1116).
Nenhum destes documentos merece ser retirado do processo. As fotos e os documentos de fls. 36-42, 51-53, 128, 131-133, 142-143 e 252-277 foram juntados aos autos na fase do inquérito, antes mesmo do oferecimento da inicial acusatória. A instauração da Investigação Policial, conforme se verifica à fl. 35, ocorreu em função de denúncia de "possível caso de violência física, psicológica e exploração sexual infanto-juvenil" e da solicitação de que fosse apurado "o que efetivamente vem ocorrendo com as crianças e adolescentes envolvidos".
Ou seja, a autoridade policial foi notificada da ocorrência do delito contra vítimas indefinidas. Aliás, a investigação inteira pautou-se na possibilidade da existência de mais de um ofendido. E, de mais a mais, os investigadores da Polícia Judiciária não são capazes - nem obrigados - a prever os termos da denúncia; devem reunir o máximo de elementos que indiquem a ocorrência do delito (ex vi art. 6º, inc. III, do CPP), e deixar a acusação a encargo do representante ministerial.
Além disso, a tríade processual em feitos criminais é composta pela acusação (no caso, o Ministério Público), que figura no pólo ativo - o que promove a querela -, pela defesa (o acusado), no pólo passivo - pois é aquele que vê a prestação jurisdicional invocada contra si -, e pelo Estado julgador, representado pelo juiz. Assim, a alegação de que os documentos de fls. 51-53, 128, 131-133, 142-143 e 252-277 tratam de "menores que não figuram no pólo passivo da ação" é processualmente correta, mas não surte o efeito desejado pela defesa.
Os documentos de fls. 106-108 não foram "juntados sem protocolo", pois integram o caderno investigatório. E o fato de existirem originais às fls. 639-641 dos autos de n. 054.09.005720-5 não impede sua presença neste feito. Na verdade, a cópia da representação pela busca domiciliar no quarto do réu permite que este Tribunal averigúe a regularidade de tal diligência, beneficiando, portanto, a defesa.
Por outro lado, a pretensa "entrevista" de fls. 134-137 trata de declarações que, ao que tudo indica, foram prestadas pelo próprio réu e não foram utilizadas em nenhum momento processual para fundamentar a acusação ou qualquer decisão. Desta forma, eventual irregularidade na obtenção de tal meio de prova não tem o condão de contaminar o processo.
Ocorre o mesmo com os destaques das cartas de fls. 252-277 e com as inserções indevidas nos documentos de fls. 150-198. Uma vez que o meio de obtenção da prova foi idôneo - autorização judicial fundamentada e obediente aos ditames legais -, eventuais irregularidades formais sobrepostas ao seu teor não são capazes de minar ação penal. Além do mais, parte das interpretações feitas pela delegada Karla (conforme depoimento de Claudia Stedile dos Santos, fls. 711-712) vem do depoimento prestado pela vítima A. quando da ocorrência da prisão (fls. 23-25).
E, como bem apontado pelo juiz sentenciante, pelo Ministério Público em suas contrarrazões e pelo Procurador de Justiça em seu parecer, o pedido é extemporâneo, pois não foi formulado ao fim da instrução (ordem do art. 402 do CPP).
2. Inconstitucionalidade do art. 222, § 2º, do CPP:
A defesa alega que referido artigo afronta diretamente o disposto no art. 400 do CPP, "gerando posição antagônica" (fl. 1116).
Primeiramente, ressalto que não há qualquer choque entre as normas: este último artigo determina que "na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado" (grifei).
Se o texto legal faz as ressalvas necessárias, evidentemente não há confronto.
Por outro lado, só ocorreria inconstitucionalidade se o art. 222, § 2º, do CPP fizesse afronta direta ou reflexa à norma constitucional ou a princípio que, ainda que não consagrado na Carta Magna, seja por ela protegido e acolhido.
A defesa somente sustenta como inconstitucional tal dispositivo legal, sem informar qual preceito fundamental é subjugado pela eficácia da norma. E, mesmo que se considere a ampla defesa como a garantia lesada - como fez o Procurador de Justiça, a título argumentativo -, continua inexistindo afronta, pois se trata de privilegiar a celeridade processual - especialmente benéfica quando se trata de réu preso -, desapegando-se do rigorismo formal que, não raras vezes, impede o processamento em tempo razoável do feito.
Além do mais, a disposição do art. 2º do CP, ao contrário do que alega a defesa, não se estende ao direito processual penal. O ordenamento jurídico brasileiro, em se tratando de norma processual - excetuando-se a situação de regra processual penal material -, é balizado pelo princípio tempus regit actum, consagrado no art. 2º do CPP.
3. Suspeição da Juíza Cínthia Beatriz da Silva Bittencourt:
A defesa suscita ainda a suspeição da Juíza acima nominada, e requer a declaração da nulidade de todos os atos por ela praticados. Afirma que a magistrada ofendeu o réu na Delegacia de Polícia, e declarou que "se pegasse essa causa [o réu] ficaria mofando na cadeia" (fl. 1118).
A alegação de suspeição, nesta fase, é intempestiva, pois deve ser arguida na primeira oportunidade em que a parte interessada tem conhecimento da possível imparcialidade (conforme Exceção de Suspeição n. 2008.002999-4, rel. Des. Sérgio Paladino; Exceção de Suspeição n. 2006.008710-3, rel. Des. Souza Varella; e Exceção de Suspeição n. 1998.010061-5, rel. Des. Amaral e Silva).
Nucci complementa:
Se o motivo da recusa é conhecido da parte, antes mesmo da ação penal ter início, deve o promotor/querelante fazê-lo por ocasião do oferecimento da denúncia/queixa e o réu, quando for interrogado, no prazo para a defesa prévia, sob pena de preclusão (Código de processo penal comentado. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 285).
É, além disso, formulada de forma incorreta, não obedecendo os ditames do art. 98 do CPP ("em petição assinada por ela própria ou por procurador com poderes especiais, aduzindo as suas razões acompanhadas de prova documental ou do rol de testemunhas").
4. Suspeição da Juíza Cristina Lerch Lunardi:
A defesa suscita ainda a suspeição de aludida magistrada pelas seguintes razões: a divergência entre o despacho publicado no Diário Oficial da Justiça (fls. 661-662) e aquele que ela assinou (fls. 643-647) - e que se faz presente nos autos -; o fato de o laudo de fls. 686-689 ter sido elaborado sem a quesitação formulada tempestivamente pelo causídico; e por ter indeferido as perguntas por este formuladas a B. F., na audiência do dia 16.9.2009 (fls. 727-728).
Inicialmente, ressalto que essa matéria já foi debatida nos autos da Exceção de Suspeição n. 2009.054973-6, liminarmente rejeitada, dispensando maiores divagações acerca do tema.
E mesmo que a preliminar não tratasse de suspeição, mas sim da nulidade dos atos processuais pelas razões apontadas, ela deveria ser afastada.
A publicação equivocada de despacho não macula o processo, e não se pode levar a efeito a decisão disponibilizada no Diário da Justiça quando esta não condiz com aquela exarada nos autos.
Isso porque as decisões são manifestações do poder estatal, e não se pode admitir a existência de tal ato processual sem que este contenha a assinatura do juiz que o proferiu. A firma do magistrado nas decisões se presta para conferir forma autêntica ao julgado (Cf. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado, 2008, p. 661), sendo ato inexistente aquele que desobedeça tal regra.
Neste sentido:
AGRAVO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. Execução. Despacho denegatório do recurso de revista apócrifo. O despacho denegatório do recurso de revista não se encontra assinado pela juíza prolatora da decisão, e, nessas condições, está apócrifo. Considera-se apócrifa a decisão cuja autenticidade não pode ser comprovada em razão da falta de assinatura, equivalendo- se a decisão inexistente. Agravo a que se nega provimento. (TST, A-AIRR 1431/1995-002-07-40.2, 5ª Turma, Rela. Mina. Kátia Magalhães Arruda, j. 5.6.2009)
Não se pode olvidar de que quod non est in actis non est in mundo. E, se a decisão publicada no Diário da Justiça fosse completamente estranha aos autos, não se admitiria que fosse aplicada ao feito somente em razão da publicação.
Ademais, na audiência do dia 16.9.2009, a magistrada informou o defensor do equívoco, e o intimou da decisão correta, evitando qualquer prejuízo à defesa.
Além disso, tal matéria já foi analisada nos autos do Mandado de Segurança n. 2009.051952-0, dispensando-se maiores digressões sobre o tema.
A ausência de prejuízo também obsta a declaração de nulidade do feito em razão da confecção imperfeita do laudo psicológico de fls. 686-689, pois sua complementação (fls. 752-754) atendeu aos quesitos formulados pela defesa. Uma vez que o art. 563 do CPP traz em seu texto que "nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa" - positivação da orientação francesa cunhada pelo brocardo pas de nullité sans grief -, melhor sorte não socorre a defesa.
E, por fim, é lícito ao juiz indeferir perguntas formuladas pelas partes na audiência, se configurada alguma das hipóteses da parte final do art. 212 do CPP.
É o ensinamento de Magalhães Noronha:
Ao juiz é lícito indeferir a pergunta da parte em dois casos: quando não tiver relação com o processo e quando for repetição de pergunta já respondida. Em caso de indeferimento, qualquer que seja a razão, cremos que deve ficar consignada a pergunta e a recusa do juiz, com o respectivo fundamento, para apreciação ulterior, em caso de recurso (MAGALHÃES NORONHA, Edgar. Curso de Direito Processual Penal, 26. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 156).
Seja como for, nenhuma das alegações - ainda que procedentes - teriam relação com a suspeição da magistrada que atuou no feito, pois não se enquadram nas situações do art. 254 do CPP.
5. Ausência de imparcialidade da Juíza Cristina Lerch Lunardi:
As razões que fundamentam tal prefacial foram assim descritas, ipsis litteris (fl. 1123):
Deferia a Magistrada, no mínimo, quando tomou conhecimento da "representação" deflagrada contra si junto a Corregedoria, pelo Acusado se dar por impedida, não o fazendo, denotado, inegavelmente que tal postura, caracteriza AUSÊNCIA DE IMPARCIALIDADE, pois estava emocionalmente comprometida.
Reafirmo que tal matéria já foi discutida (Exceção de Suspeição n. 2009.054973-6). De qualquer modo, não se configura ausência de imparcialidade a simples representação administrativa junto à Corregedoria contra magistrado. Se assim fosse, a marcha processual poderia ser obstada perpetuamente, através de reiteradas representações infundadas contra os togados que atuassem no feito.
6. Nulidade dos atos praticados pela Juíza Cristina Lerch Lunardi:
Esta preliminar é fundamentada em razão de ter a irmã biológica da magistrada atuado como representante ministerial na audiência realizada em 8.10.2009, na Comarca de Rio do Oeste.
Novamente, a irresignação é intempestiva, pois o causídico se fez presente no ato e nada mencionou (fl. 890), além de formulada do modo incorreto - em desacordo com os ditames dos arts. 98 e 112 do CPP.
Em caso análogo, também referente a laços consanguíneos de magistrado, este Tribunal já decidiu:
EXCEÇÃO DE SUSPEIÇÃO - Argüição intempestiva - Não conhecimento. O artigo 407, do CPPM fixa o prazo para a argüição de suspeição do magistrado, deixando claro que "...a exceção deve ser formulada na primeira oportunidade em que a parte interessada intervier nos autos, e não quando lhe aprouver" (RT 564/365). Assim se a parte faz "...qualquer alegação perante o juiz suspeito, estará, implicitamente, reconhecendo a sua capacidade moral para conhecer da causa, e perderá, assim, o direito de invocar, contra ele, a suspeição" (JC 64/341) (Exceção de suspeição n. 76, da Capital, rel. Des. Wladimir d'Ivanenko, j. 11.11.1991).
Além disso, a magistrada já tinha atuado no feito; se alguém devesse se abster de nele participar, seria a Promotora de Justiça.
Outrossim, tal representante do Ministério Público se fez presente somente em uma audiência (fl. 890), e não se depreende nenhuma imparcialidade de sua conduta capaz de comprometer sua atuação e gerar prejuízo à defesa.
Inexistindo dano, a mera suspeição - se fosse o caso - não seria o suficiente para acarretar a nulidade dos atos. Já sedimentou o Superior Tribunal de Justiça:
EXCEÇÃO DE SUSPEIÇÃO DE MEMBRO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. [...] III - A declaração de suspeição de membro do Ministério Público não tem o poder de anular os atos já praticados, inclusive, a denúncia (STJ, REsp 170.137/MT, rel. Min. Gilson Dipp, j. 28.5.2002).
7. Suspeição do Promotor de Justiça André Otávio de Mello:
Novamente, o pedido é extemporâneo, inadequadamente formulado, e a narração fática feita em alegações finais pela defesa não configura nenhuma das hipóteses de suspeição previstas no Código de Processo Penal.
A tentativa de comprometer os agentes públicos que atuaram no feito através de representações encaminhadas à Corregedoria - neste caso, do Ministério Público catarinense - é indigna de ser respaldada por esta Corte. Se não se fazem presentes as hipóteses de suspeição (art. 254 do CPP), não há como dar guarida ao pleito.
8. Nulidade do flagrante:
Afirma o apelante, em síntese, que não restou caracterizada qualquer situação de flagrância, conforme dispõe o art. 302 do CPP, pelos seguintes motivos: existência de contradições entre os policiais no que se refere ao estado zíper no momento da diligência; a filmagem da operação policial presente nos autos é editada e incompleta, e não mostra a menor deitada; a prisão se deu em 19.6.2009 e a homologação do flagrante somente em 23.6.2009.
Ressalto que a preliminar já foi suscitada e afastada nos autos do Habeas Corpus n. 2009.035718-8. Porém, ad argumentandum tantum, e em razão do pré-questionamento aduzido em razões recursais, faz-se os seguintes esclarecimentos:
Ao contrário do que alega a defesa, restou suficientemente caracterizada a situação de flagrância. As circunstâncias em que a conduta se desenvolveu - evidenciadas pela interceptação operada no aparelho telefônico do réu - contribuem para que a disposição dos envolvidos, por ocasião da entrada dos milicianos no quarto do acusado, seja forte indicativo da prática criminosa. E também, no momento da abordagem policial, a menor e o próprio apelante confirmaram a prática de beijos e carícias (fls. 8-9 e 23-25).
Do depoimento da vítima A. M., extrai-se (fls. 23-25):
[...] que o Frei deitou a informante na cama dele e se deitou ao lado; Que o Frei começou a beijá-la e passar a mão em sua barriga e seus seios; Que quando estavam há alguns minutos dentro quarto, o Frei ouviu um barulho e se assustou, sendo que se levantou rapidamente da cama e pediu para que a informante se sentasse, mas antes que conseguisse se levantar a porta foi arrombada por uma policial; [...].
E do próprio acusado (fls. 8-9):
[...] que o declarante admite que dava "beijos de amor" em A., só que em forma de "selinho"; que o declarante reconhece que no dia de hoje "escorregou" suas mãos nos seios de A.; [...] que por volta das 16h30 da tarde A. adentrou em seu quarto repentinamente, onde o declarante encontrava-se fazendo um trabalho; que então o declarante decidiu trancar a porta do quarto para não ser mais incomodado e terminar o seu trabalho, embora, A. já se encontrasse sentada na sua cama; que então o declarante sentou-se na cama e fez "uns carinhos", em A.; que o declarante descreve os carinhos como sendo: passar a mão no rosto, dar um selinho, e "escorregou" as mãos nos seios de A.; que neste momento a polícia bateu em sua porta e adentrou no quarto; [...].
Considerando que a operação policial deu-se no momento subsequente ao que o acusado teria iniciado e consumado a infração, evidente a configuração da situação prevista no art. 302, inc. I, do CPP.
E não se sugere que deixar o zíper da calça aberto seja crime. Trata-se apenas de fato que a autoridade policial percebeu quando da entrada nos aposentos do réu. O crime foi evidenciado pelas demais circunstâncias e pelos relatos indicando as práticas libidinosas que ocorreram no local.
Quanto à alegação de haver divergências entre as versões dos policias no que se refere ao zíper da calça do acusado, elas sequer existem. Com efeito, não há contradição entre declarar que "o zíper estava aberto" e "a calça estava aberta", visto que as expressões têm exatamente o mesmo significado (pois o meio normal de se abrir uma calça é através do fecho ecler).
Ademais, mesmo que se configurasse tal contradição, ela não teria o condão de ocasionar a nulidade do Auto de Prisão em Flagrante, por não viciá-lo em absoluto, e também porque eventual irregularidade da prisão em flagrante não contamina ação penal (cf. Ap. Crim. n. 2008.058701-8, rel. Des. Roberto Lucas Pacheco).
No tocante à irresignação referente às "parcas imagens em raros minutos" (fl. 1126) do CD que traz a filmagem da operação policial, melhor sorte não socorre o apelante. Os demais elementos probatórios demonstram as circunstâncias em que a entrada forçada se deu, e o fazem de forma uníssona. De qualquer modo, tal fato também não é capaz de implicar nulidade da peça informativa.
Não ignorando que "a finalidade da prova é convencer o juiz a respeito de um fato litigioso" (NUCCI, 2008, p. 343). Se a prova não se presta para tanto, é dispensável, e sua ausência não se traduz em vício processual.
E não houve comunicação tardia ao juiz: à fl. 429, verifica-se que o magistrado plantonista se encarregou de conferir se o auto de prisão em flagrante era formalmente irrepreensível, e o fez em 19.6.2009.
Inocorrendo qualquer ofensa a preceito constitucional ou legal, o Auto de Prisão em Flagrante é livre de erros, e não há fundamento para que seja declarado nulo.
9. Cerceamento de defesa:
Tal prefacial é aduzida, inicialmente, nos seguintes termos (fl. 1130):
Honorável Togado, diante da gravidade do evento, considerando que a MATERIALIDADE do ilícito foi e é contestável desde o nascimento da ação, assim como, a AUTORIA sempre foi e continuará sendo NEGADA, melhor dizendo, não se trata de negatividade, mas sim de NÃO ocorrência, é que jamais poderia ser negada avaliação da higidez mental do Acusado.
[...] E assim, considerando que indevidamente a Autoridade Policial proporcionou um lamentável espetáculo de julgamento popular, anunciado milhares de fotografias que ensejavam ser o aprisionado ANGELO "pedófilo", considerando que a Defesa tinha por objetivo provar NÃO ser o Acusado portador de desvio de conduta, desmerecendo o doentio rótulo produzido pela Autoridade repressiva, é que jamais poderia ser afastado o pleito de perícia mental (sic - sem grifo no original).
Adiante, a defesa reitera sua irresignação referente à divergência entre a decisão publicada no Diário da Justiça e a constante dos autos (fls. 661-662 e 643-647) e à audiência realizada no dia 16.9.2009 (fls. 727-728), oportunidade em que a magistrada indeferiu as perguntas formuladas pelo causídico dirigidas a B. F., e conclui requerendo a declaração de nulidade de todo o feito, seguida da absolvição do acusado.
Estas duas últimas insurgências já foram analisadas no item 4 acima, quando se tratou da suspeição da Juíza Cristina Lerch Lunardi, além de terem sido objeto do Mandado de Segurança n. 2009.051952-0. Por estes motivos, deixo de repetir seu exame.
De outro lado, o indeferimento do exame de apuração da insanidade mental do acusado não implica cerceamento de defesa.
O exame médico-legal, previsto nos arts. 149 e seguintes do CPP, deverá ser instaurado quando houver dúvida acerca da integridade mental do acusado.
A dúvida, segundo Nucci, precisa ser "razoável, demonstrativa de efetivo comprometimento da capacidade de entender o ilícito ou determinar-se conforme esse entendimento. Crimes graves, réus reincidentes ou com antecedentes, ausência de motivo para o cometimento da infração, narrativas genéricas de testemunhas sobre a insanidade do réu, entre outras situações correlatas, não são motivos suficientes para a instauração do incidente" (Código de processo penal comentado, 2008, p. 337).
Idêntica é a lição de Fernando Capez:
"O incidente é instaurado quando há duvidas acerca da integridade mental do autor de um crime" (Curso de Processo Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 419).
E, para Damásio E. de Jesus, "havendo dúvida a respeito da imputabilidade do réu, é necessário exame pericial, tratando-se de meio legal de prova que não pode ser substituído pela inspeção pessoal do juiz" (Código de processo penal anotado. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 147).
Imprescindível, portanto, para que seja determinada a realização de exame pericial, a dúvida acerca da integridade mental do acusado. Inexistindo elementos que maculem sua higidez psíquica, ele é considerado imputável.
É o entendimento do Supremo Tribunal Federal:
HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. INDEFERIMENTO DE PRODUÇÃO DE PROVA. INCIDENTE DE INSANIDADE MENTAL (ART. 149, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL). CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. PRECEDENTES. Nos termos do art. 149 do Código de Processo Penal, para o incidente de insanidade mental, é necessária a existência de 'dúvida sobre a integridade mental do acusado'. O fundamentado indeferimento de diligência probatória tida por desnecessária pelo juízo a quo não viola os princípios do contraditório e da ampla defesa (STF, HC 97.098-2/GO, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 28.4.2009).
Em igual sentido já decidiu esta Corte:
APELAÇÃO CRIMINAL. PRETENDIDA REALIZAÇÃO DO EXAME MÉDICO PREVISTO NO ART. 149 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. INDEFERIMENTO À MÍNGUA DE DÚVIDAS A RESPEITO DA HIGIDEZ MENTAL DO RÉU. Inexistindo dúvida razoável acerca da higidez mental do acusado, não há ensejo à instauração do incidente de insanidade (Ap. Crim. n. 2007.051686-5, da Capital, rel. Des. Sérgio Paladino, j. 11.12.2007).
E também:
APELAÇÃO CRIMINAL - TRIBUNAL DO JÚRI - PRELIMINARES - NULIDADE OCORRIDA APÓS SENTENÇA DE PRONÚNCIA - AUSÊNCIA DE EXAME DE INSANIDADE MENTAL - PRESCINDIBILIDADE - AGENTE QUE NÃO DEIXOU SUSPEITA SOBRE SUA HIGIDEZ MENTAL NO CURSO DA AÇÃO - VÍCIO INEXISTENTE - EIVA RECHAÇADA (Ap. Crim. n. 2008.040941-5, da Capital, rel. Des. Moacyr de Moraes Lima Filho, j. 4.11.2008).
De fato, a imputabilidade penal é a regra quando presentes a maturidade e a higidez biopsíquica (Cf. NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 9. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 275). Prescinde-se da realização de perícia para se apurar a sanidade para confirmação da possibilidade de responsabilização criminal.
Portanto, não houve cerceamento de defesa no indeferimento do exame.
10. Suspeição de testemunhas:
O apelante argúi a suspeição de três testemunhas, nos seguintes termos:
SUELI KEMPER, policial civil, que concedeu entrevista ao jornal FOLHA DO ALTO VALE, narrando possuir sentimento de nojo, com relação a pessoa do Acusado;
CLÁUDIA STEDILE DOS SANTOS, policial civil, que no curso da instrução restou demonstrado ter atuado, quando do inquérito, ao arrepio da lei, o que levou o Acusado a representá-la perante a Corregedoria da Policial Civil, juntamente com SUELI KEMPER e outros membros da Polícia, bem como, pelos mesmos motivos foram "noticiados criminalmente" - autos nº 054.09.011036-0.
B. F., figura no pólo passivo dos autos nº 054.09.013229-0, e o Acusado no pólo ativo. O depoimento desta menor deve ser riscado dos autos (sic).
Novamente, há a confusão entre os pólos que integram o processo penal, e a tentativa de afastar funcionários públicos do feito através de representações às respectivas Corregedorias.
Quanto à suspeição das testemunhas, ela foi formulada extemporaneamente, uma vez que não obedeceu o prazo do art. 214 do CPP - "antes de iniciado o depoimento".
Além disso, das três pessoas indicadas como suspeitas pela defesa, apenas a segunda - Cláudia Stedile dos Santos - foi devidamente compromissada (fl. 711). Sueli Kemper e B. F. foram dispensadas do compromisso legal (fls. 713 e 727).
A arguição de suspeição, além de intempestiva, é incabível nestes dois casos. E, de qualquer modo, não há o que se falar em "riscar depoimento": Nucci, citando Cabral Netto, explica que "a contradita, em si, não dá causa à não audiência da testemunha. Ao juiz cabe consignar a contradita e a resposta da testemunha, compromissando-a e inquirindo-a a seguir. O valor de seu testemunho será, então, verificado quando da sentença de mérito, em face da prova carreada para o processo e dos termos da contradita (instituições de processo penal, p. 128)" (Código de processo penal comentado, 2008, p. 483).
11. Nulidade do inquérito policial:
Após severa crítica às práticas nefastas de autoridades policiais, a defesa requer a anulação do feito em virtude da ocorrência de "vícios insanáveis que recheiam o processo" (fl. 1132). Aponta tais nulidades como sendo: a) o Auto de Prisão em Flagrante foi lavrado a partir das 19h30min (fl. 2), enquanto a representação da vítima foi firmada às 20h10min (fl. 20); b) o documento de fl. 16 não foi firmado; c) só um policial assinou os registros de fls. 17-19; d) o termo de representação não vem acompanhado de atestado de incapacidade financeira e de prova da menoridade; e) as declarações de fls. 21-22, 23-25, 29-34, 110-111, 117-118, 122-127, 129-130, 140-141 e 504-505 não demonstram a presença de testemunhas de leitura; f) as representações de fls. 128 e 503 foram feitas por quem "não figura no pólo passivo da presente ação" (fl. 1134); g) os documentos de fls. 37-42, 132-133, 142-143 e 497-502 se prestam apenas para "enfear a pessoa do acusado" e tratam de "matéria preclusa", caracterizando-se como prova ilícita" (fl. 1134); h) transcrições de fls. 51-53 não registram responsável pela elaboração, não estão firmados, e referem-se a adolescente que "não figura no pólo passivo", tornando-se "prova ilícita" (fl. 1134); i) a juntada das entrevistas de fls. 134-137; j) as inserções indevidas e adulterações feitas às fls. 150-198, 506-507 e 529-568; k) ter a vítima prestado depoimento perante a autoridade policial (fls. 23-25) desacompanhada de sua genitora (fls. 705-707 e 708-710); l) a afirmação de que o teor do depoimento de J. de F. R. prestado na Delegacia (fls. 11-12) é falso (fls. 733-734); m) a Juíza Cínthia Bittencourt ofendeu o acusado quando efetuada a prisão; e n) as imagens contidas nos discos de fl. 703 demonstram que o acusado, por ocasião do flagrante, foi "bombardeado, instigado e ofendido, pura tortura psicológica nos moldes dos porões da ditadura" (fl. 1137).
Reafirma-se, inicialmente, que eventuais irregularidades da peça indiciária não contaminam a ação penal (Ap. Crim. n. 2008.058701-8, rel. Des. Roberto Lucas Pacheco).
A título argumentativo, porém, esclarece-se: a diferença de horários entre a confecção do Auto de Prisão em Flagrante e a representação feita por A. não mancha o feito, pois esta última é condição de procedibilidade para o processamento da Ação Penal, e não autorização para que a força policial possa agir. Como já mencionei, houve denúncia anônima sobre possível prática criminosa, e os milicianos tomaram as atitudes necessárias para investigá-la e suprimi-la, conforme determina o art. 6º do CPP.
A ausência de firma no termo de apreensão de fl. 16 também é incapaz de gerar nulidade, pois trata de mera irregularidade. Outrossim, a propriedade dos bens ali apreendidos foi confirmada como sendo do acusado em seu interrogatório (fls. 959-963), tendo a defesa, inclusive antes da instauração da Ação Penal, requerido a restituição dos objetos (fls. 570-571).
O mesmo acontece com os documentos de fls. 17-19; apesar da irregularidade formal, não há prejuízo, e foi assegurado, em mais de uma oportunidade (fls. 708-710, 711 e 819), que as fotografias retratam os aposentos do réu.
Melhor sorte não socorre o apelante quanto à ausência de atestado de hipossuficiência e de comprovante da menoridade. Este se encontra à fl. 26, pois não se exige que o documento público seja certidão de nascimento (ver Ap./ECA n. 2008.070891-1, rela. Desa. Salete Silva Sommariva; e Ap./ECA n. 2008.026714-7, rel. Des. Solon d'Eça Neves). E quanto ao atestado de pobreza na acepção jurídica do termo, não se exige forma prescrita em lei.
Neste sentido:
Estupro. Miserabilidade da vítima: a pobreza pode ser demonstrada pelos meios de prova em geral. Conceito de pobreza no sentido legal. Representação feita pela mãe da ofendida: não se exige a observância de formalidades, importando, apenas, que se caracterize a manifestação de vontade do ofendido, ou de seu representante legal (STF, HC n. 70.184/RJ, rel. Min. Marco Aurélio, j. 8.10.1999).
E, da leitura atenta do documento de fl. 20, verifica-se que a representante legal de A. M. declarou não dispor de condições financeiras para custear o processo. A representação preenche os requisitos normativos, e é legalmente perfeita.
A ausência de testemunhas de leitura nos depoimentos de fls. 21-22 (Zeni Marzani), 23-25 (A. M.), 29-30 (Manoel Fronza), 31-32 (B. F.), 33-34 (Nelson Kleine), 110-111 (M. M.), 117-118 (J. de F. R.), 122-123 (B. P.), 124-125 (I. P.) 126-127 (L. G. M.), 129-130 (B. F.), 140-141 (Nelson Kleine) e 504-505 (L. W.) não redunda em nulidade, pois se trata de declarações de testigos ou envolvidos em outros fatos, não se fazendo necessário que a leitura de cada termo seja acompanhada por duas pessoas.
Essa situação só é aplicável ao réu, e somente nos casos do art. 6º, inc. V, e do art. 304, § 3º, ambos do CPP. Como a prisão foi em flagrante e o acusado não se recusou a assinar o termo de suas declarações, não se faz necessária a presença de testemunhas de leitura, como leciona Nucci:
No caso do auto de prisão em flagrante, prevê o art. 304, § 3º, que somente haverá a participação de testemunhas de leitura, quando o acusado não quiser ou não puder, por qualquer razão, assinar (Código de processo penal comentado, 2008, p. 93).
As representações de fls. 128 e 503, como já aduzi (quando tratei da preliminar denominada "diligências imprescindíveis", item 1 acima), não são descabidas, pois a autoridade policial procedeu da maneira que ordena o art. 6º, inc. III, do CPP. De qualquer forma, ainda que fossem estranhas ao processo, não acarretariam nulidade ao feito, pois sua presença não viola garantia constitucional ou legal, e não há a configuração de prejuízo para a defesa.
O que também não merece guarida é a alegação de que os documentos de fls. 37-42, 132-133, 142-143 e 497-502 só se prestam a manchar a imagem do apelante. As declarações foram colhidas pela autoridade policial durante a investigação, em consonância com o já referido art. 6º, inc. III, do CPP. Como também já mencionei, a autoridade policial, no momento da colheita de provas que servirem para a elucidação dos fatos, não tem conhecimento acerca dos termos da possível acusação que o Ministério Público pode formular; seu dever é colher todos os elementos que se relacionem com a infração.
Já tratei da descabida alegação de preclusão no Habeas Corpus n. 2009.035718-8, mas reafirmo: tal elemento é uma ficção jurídica, e representa uma figura processual que se traduz na perda da possibilidade de agir nos autos em consequência da inação em determinado prazo. Em nada se comunica com a situação aqui presente - ainda mais porque certas declarações que só "enfeam o acusado" (sic) referem-se a fatos recentes, como o depoimento de A. G. (fl. 38).
E o destaque à expressão "prova ilícita" (fl. 1134) é desnecessário, uma vez que os documentos apontados pela defesa não se trata de elementos probatórios vedados (art. 5º, inc. LVI, da CF).
O art. 157 do CPP, com a redação dada pela Lei n. 11.690/08, dispõe que "são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais". Sobre o assunto, extrai-se da obra de Ada Pellegrini Grinover:
O tema, assim colocado, é limitado em seu conteúdo pelo momento a que diz respeito o ato ilegal.
O momento é aquele da operação através da qual a prova é obtida para ser produzida no processo: momento normalmente anterior, e de qualquer modo externo com relação àqueles em que se decompõe o próprio procedimento probatório.
O problema das provas ilícitas, assim delimitado, está circunscrito à ilegalidade própria de um ato anterior ou não coincidente com aquele da produção em juízo; por outro lado, não concerne ao problema do conteúdo e da veracidade da prova, o qual se projeta no âmbito de sua valoração (GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 160-161).
Não houve violação a norma constitucional ou legal quando da confecção dos termos, e ela não foi procedida de modo criminoso, sendo impossível, portanto, falar em prova ilícita.
Já o documento de fls. 51-53 trata de supostas mensagens enviadas pelo acusado a B. F., através do sistema SMS de seu aparelho celular, e o relatório de fl. 48-50 explica que tais transcrições foram apresentadas pelo pai da adolescente em momento anterior ao da denúncia registrada junto à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.
Afere-se que tais elementos - aliados àqueles de fls. 36-47 - foram utilizados pelo Delegado de Polícia para formular o requerimento de interceptação telefônica e telemática (fls. 54-55). Sua origem não é ilícita, pois a simples denúncia feita por cidadão à autoridade policial para averiguação de crime - e eventuais objetos que o particular apresente - não necessita do mesmo revestimento de garantias que se exige na produção de provas (tanto no inquérito quanto em juízo).
Além do mais, como o próprio causídico aduziu - ainda fazendo confusão entre os pólos da tríade processual -, os documentos tratam de pessoa diversa da vítima, e não foram usados como fundamentação da sentença ou da inicial acusatória. Sua simples presença nos autos é incapaz de gerar nulidade.
É impossível responsabilizar a autoridade policial pela presença, nos autos, da pretensa entrevista de fls. 134-137. Como já reiteradamente mencionei, sua obrigação é de colher todas as provas relativas ao fato.
Não foi um miliciano que entrevistou o acusado, e sim um repórter (fl. 136). Impossível a defesa agora querer anular o processo por violação ao direito de imagem do réu quando foi o próprio quem concedeu a entrevista.
E como não se pode afirmar que a imprensa local tomou conhecimento do processo através da polícia, não houve desrespeito à determinação de segredo de justiça.
Aliás, a decisão que determinou a tramitação do processo em sigilo só ocorreu na sentença (fl. 1311), e o juiz assim decidiu para resguardar os interesses da vítima, pois menor de idade. Até então, a marcha processual que ocorria em segredo era apenas a da interceptação telefônica, por força do disposto no art. 1º, caput, da Lei n. 9.296/96.
As inserções indevidas dos documentos de fls. 150-198, 506-507 e 529-568 já foram debatidas no item 1 acima, o que dispensa nova argumentação.
A alegação de que a mãe de A. M. não acompanhou seu depoimento na Delegacia também não é capaz de implicar na anulação do processo.
Primeiramente, porque a interpretação de fl. 1135 é sofisma de falsa analogia: a menor afirma que "não lembra quem estava na sala quando prestou depoimento da Delegacia nem lembra o horário", não sendo possível dessumir daí que sua mãe não se fazia presente. Ora, a adolescente também não se recorda do horário em que foi ouvida, mas isso não é o suficiente para sugerir que ela não prestou declarações.
Outrossim, a vítima ratificou, sob o crivo do contraditório, o depoimento prestado na Delegacia, em sua integralidade. Não desponta, do fato indicado pela defesa, qualquer vício ou irregularidade insanável, uma vez que a presença de representante legal ou conselheiro tutelar quando realizada a oitiva de menor é prescindível.
Neste sentido, colhe-se da jurisprudência:
PROCESSO PENAL. TRIBUNAL DO JÚRI. DEPOIMENTO DE MENOR COMO TESTEMUNHA. JURISDIÇÃO PENAL. VEDAÇÃO INEXISTENTE. PRESENÇA DOS PAIS OU DE CURADOR ESPECIAL. INEXIGIBILIDADE. [...] 1) ex vi do disposto nos arts. 202 e 208, do código de processo penal, o infante, com quinze anos de idade, pode ser ouvido validamente como testemunha, inclusive sob compromisso, ainda que ausentes os pais ou curador especial, cujas presenças são exigíveis somente no caso de depoimento do menor como parte - 2) na jurisdição penal, ao contrário do que ocorre na civil, o incapaz pode depor como testemunha, inclusive sob compromisso, se maior de catorze anos (TJAP, Ap. Crim. 2097/05, rel. Des. Mário Gurtyev de Queiroz, j. 20.9.2005).
E também, mutatis mutandis:
É de se dar provimento ao recurso da acusação para reformar o decisum e condenar o recorrido por tráfico de drogas quando restar inconteste a efetiva mercancia de entorpecentes por parte deste, especialmente, em decorrência da certeza visual do flagrante, sendo que a instauração do inquérito por portaria derivada de requisição ministerial e diligências policiais aumenta a credibilidade da acusação. Pretensa nulidade de depoimento prestado por menor na ausência de sua representante, não tem o condão de negar a realidade dos fatos, quando o depoente é flagrado adquirindo drogas do acusado e pagando por ela determinado valor, da exata forma como descrevera em suas declarações (TJMT, Ap. Crim. 123487/2008, rel. Des. Carlos Roberto C. Pinheiro, j. 30.9.2009 - sem grifo no original).
E as divergências entre os depoimentos prestados nas duas fases por J. de F. R. e por Lucimar Guekert Ribeiro também são incapazes de macular o feito. Afinal, a meu ver, se fosse absolutamente certo que as duas declarações - a da fase policial e da fase judicial - seriam idênticas, o processo judicial perde seu sentido. A reinquirição de testemunhas em juízo, com a manifestação do contraditório e em obediência ao devido processo legal não é realizada apenas para confirmar o que havia sido dito durante a investigação, mas sim para que a prova seja produzida amparada pelas garantias constitucionais que se exigem.
Já me manifestei acerca do argumento sobre a suposta má postura da Juíza Cinthia Bittencourt em face do acusado, na Delegacia de Polícia, no item 3 acima, e por essa razão deixo de abordá-lo novamente.
E, por fim, quanto à rude abordagem policial, ocasião em que o apelante afirma ter sido "bombardeado, instigado e ofendido, pura tortura psicológica bem nos moldes dos porões da ditadura", não há a configuração de eiva capaz de ensejar a nulidade do feito.
A conduta dos milicianos, pelo que pode se aferir das imagens gravadas no disco de fl. 703, ainda que impolida, não pode ser entendida como "tortura psicológica", pois não se vê o emprego de violência ou grave ameaça. As perguntas e colocações feitas pelos policiais, ainda que incisivas, não atingiram nível de abuso ou configuraram conduta delitiva que teria o condão conferir ilicitude ao meio de obtenção da prova.
12. Nulidades do auto de transcrição:
A defesa aponta ainda as seguintes nulidades no auto de transcrição representado pelos documentos de fls. 282-411 e 508-517: a) não há registro do tempo das gravações interceptadas, ou da duração das degravações; b) as transcrições foram dirigidas; c) há discrepância entre as conversas telefônicas e o modo como foram reduzidas a termo; d) os "peritos ad hoc" não são habilitados para realizarem a tarefa; e) os documentos foram firmados por uma só testemunha de leitura, e não há "autêntica de voz" (fl. 1140); f) as escutas não foram realizadas por serviço técnico especializado das concessionárias de serviço público; e g) a degravação e a interceptação constituem prova ilícita.
Primeiramente, a Lei n. 9.296/96, que regulamenta a interceptação telefônica no âmbito criminal, não exige que o auto de transcrição indique a duração da chamada. Ademais, os documentos de fls. 282-411 trazem, em seu cabeçalho, a data completa do início da interceptação; e nos CDs de fls. 412-413 verifica-se a existência de diretório denominado "transcrições", que traz um arquivo para cada chamada interceptada, dando conta de dados como início e término da ligação.
O argumento de que as degravações foram dirigidas também não merece prosperar. Não é demais lembrar que foram interceptados dois terminais telefônicos diferentes, que poderiam ser exasperadamente utilizados pelo acusado para diversos fins. O disco de fl. 412, que contém todas as gravações interceptadas, tem um total de 6h35min06s de tempo de gravação somente relacionado ao terminal n. (47) 9919-9042, além de mais 9h58min40s referentes ao terminal n. (47) 3521-6616. Evidentemente, efetuar a transcrição de todo esse material seria penalmente irrelevante, e aumentaria desnecessariamente a exposição do acusado.
E mais: às fls. 414 e 415 encontram-se dois CDs que contêm uma miríade de mensagens eletrônicas enviadas e recebidas pelo acusado, e nenhuma delas foi incorporada aos autos pelo mesmo motivo que a transcrição foi parcial: a irrelevância de seu teor.
Não falta fidelidade ao auto de transcrição. As frases escritas representam as conversas travadas em sua integralidade, reproduzindo interjeições e repetições involuntárias de palavras (vide documento de fls. 355-357 comparado com o arquivo 4799899042_20090612141038_1_21032315, presente no disco com a inscrição "dias 11 a 19 de junho" de fl. 413, por exemplo).
Também não gera nulidade o fato de que os responsáveis pela degravação não são peritos oficiais, ou de que não foi realizada prova de identificação de vozes, pois a lei que regula a matéria não exige que tal ato seja realizado por experts.
Nesse sentido:
HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE E ASSOCIAÇÃO AO TRÁFICO. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. DEGRAVAÇÃO. PERITO OFICIAL. DESNECESSIDADE. [...] 1. A Lei nº 9.296/96 não faz exigência de que a escuta seja submetida à perícia para a identificação de vozes, nem que seja feita por peritos oficiais, cabendo à defesa o ônus da realização de exame pericial, se por ela requerido (STJ, HC 91.717/PR, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 18.12.2008).
E desta Câmara:
APELAÇÕES CRIMINAIS. TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. PRELIMINAR DE NULIDADE FRENTE À NÃO REALIZAÇÃO DE PERÍCIA NAS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS E POR NÃO ESTAREM JUNTADAS AOS AUTOS AS MÍDIAS EM QUE FORAM GRAVADAS AS CONVERSAS. PROVA OBTIDA LICITAMENTE. LEI N. 9.296/96 QUE NÃO EXIGE LAUDO PERICIAL PARA A IDENTIFICAÇÃO DAS VOZES. AUTOS INSTRUÍDOS COM AS TRANSCRIÇÕES DOS DIÁLOGOS. AUSÊNCIA DE VÍCIO. PREFACIAIS AFASTADAS (Ap. Crim. n. 2009.008179-1, de Blumenau, rel. Des. Torres Marques, j. 24.6.2009).
E o número de "testemunhas de leitura" que firmaram os documentos é absolutamente irrelevante. Já aduzi em quais ocasiões tal elemento se mostra indispensável (art. 6º, inc. V, e art. 304, § 3º, ambos do CPP), e a degravação do áudio não é uma delas.
Quanto às ressalvas feitas pela defesa no que concerne à realização das escutas ("a interceptação NÃO PODE SER REALIZADA POR QUALQUER PESSOA", fl. 1140), observa-se que não houve irregularidade. Na decisão de fls. 63-66 a magistrada determinou a diligência, e às fls. 67 e seguintes tem-se cópia dos mandados e ofícios dirigidos às empresas de telecomunicação solicitando a interferência e o redirecionamento dos dados à autoridade policial.
Por derradeiro, também já explicitei o significado de prova ilícita (itens 11 e 1), e, neste caso, nem a interceptação telefônica tampouco a transcrição de seu teor foram efetuados de modo contrário ao direito. A autorização da escuta e sua prorrogação, a propósito, foram devidamente fundamentadas e obedeceram os preceitos da Lei n. 9.296/96.
13. Nulidade dos atos processuais:
Trata-se de preliminar que contém a irresignação da defesa no que tange à confecção dos laudos psicológicos da vítima.
Aduz que após o deferimento da prova, fora concedido prazo de cinco dias para a formulação de quesitos (fl. 678). A defesa protocolou-os tempestivamente (fls. 657-658), mas a realização do exame se deu sem que a quesitação fosse efetuada (fls. 686-689). Além disso, irresigna-se o apelante com relação ao laudo psicológico complementar juntado às fls. 952-954.
Nenhuma nulidade se configura. Na audiência do dia 16.9.2009 (fl. 725), ainda que tardiamente, a juíza intimou as partes da juntada do laudo psicológico, e deferiu prazo para se manifestarem acerca de seu teor. A complementação do exame, com a quesitação formulada pela defesa, foi juntada às fls. 752-754. Em nova solenidade (dia 24.9.2009, fl. 818), as partes foram intimadas, e o réu dispôs de tempo hábil para impugnar o laudo (e o fez).
A simples discordância não nulifica o exame psicológico, que se prestou para atingir seus objetivos. E, com a complementação do laudo, foi assegurada participação da defesa na produção da prova, inexistindo qualquer vício.
Quanto ao laudo de fls. 952-954 (confeccionado a pedido da autoridade policial), ainda que não tenha sido respeitado o devido processo legal - pois as partes não foram intimadas de sua juntada, tampouco lhes foi oportunizada a quesitação -, não há razão para seu desentranhamento.
Com efeito, o juiz sentenciante, ao analisar esta preliminar, esclareceu que a prova não seria utilizada como fundamentação da decisão. Não houve, portanto, prejuízo para a defesa.
Neste sentido, mutatis mutandis:
PRELIMINAR DE NULIDADE. CERCEAMENTO DE DEFESA. LAUDO PERICIAL APRESENTADO APÓS AS ALEGAÇÕES FINAIS. INTIMAÇÃO DA DEFESA E REABERTURA DE NOVO PRAZO PARA MANIFESTAÇÃO. PROVA MATERIAL QUE NÃO COMPORTAVA CONTRADITÓRIO, RESUMINDO-SE À MERA EDIÇÃO DE IMAGENS, E QUE SEQUER FOI MENCIONADA NA SENTENÇA. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO AO RÉU. EIVA AFASTADA (Ap. Crim. n. 2009.007754-1, da Capital, rel. Des. Irineu João da Silva, j. 12.5.2009 - grifei).
Ressalto não se tratar do caso previsto no art. 157 do CPP: a norma é categórica ao determinar que "são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais". O laudo pericial não se trata de prova ilícita, cujo vício - representado por ação criminosa ou contrária a preceitos legais ou constitucionais - se encontra em sua origem. Desnecessária, portanto, sua retirada dos autos.
14. Lesa Constituição:
Esta última prefacial é, como já mencionaram o Ministério Público em suas contrarrazões, o juiz a quo na sentença, e o Procurador de Justiça em seu parecer, mera tautologia - pois repete as demais alegações já analisadas. Por tal motivo, evito aqui repetir as já despendidas argumentações.
Afastadas as preliminares, passa-se à análise do mérito.
Trata-se de Apelação Criminal interposta pelo réu Ângelo Chiarelli em face de sentença que o condenou à pena de 8 (oito) anos e 9 (nove) meses de reclusão, em regime inicialmente fechado, por infração ao disposto no art. 214, caput, c/c art. 224, "a", na forma do art. 71, todos do CP (fls. 1307-1339).
Considerando que a conduta foi perpetrada antes da vigência da Lei n. 12.015/09, que revogou o art. 214 do CP para que o ato criminoso nele descrito, in casu, passasse a integrar o caput do art. 217-A, aumentando inclusive a pena cominada ao delito, o exame do processo será pautado na redação anterior, por ser, neste caso, mais favorável ao réu, em consonância com o princípio da irretroatividade da lei penal (art. 5º, inc. XL, da CF).
A materialidade da conduta foi configurada mormente pelas palavras da vítima e do réu, que asseguraram a ocorrência de "selinhos" e carícias.
Ainda que não tenha sido alegado nestes termos, ressalto a prescindibilidade de exame de corpo de delito para a configuração da materialidade do crime previsto no art. 214 do CP.
Depreende-se da obra de Nucci:
Como afirmamos anteriormente, na nota 19 ao art. 213, pode-se provar a ocorrência tanto do estupro quanto do atentado violento ao pudor de variadas maneiras (por exemplo: prova testemunhal), pois não constituem crimes que, necessariamente, deixam vestígios materiais (Código penal comentado, 2008, p. 869).
Este Tribunal já sedimentou tal entendimento:
Em se tratando de crimes de atentado violento ao pudor, notadamente aqueles praticados mediante violência presumida, geralmente não resultam vestígios no corpo da vítima, em que se tem admitido a dispensa de laudo pericial conclusivo, em especial quando existem nos autos outros elementos aptos a comprovar a materialidade delitiva, tais quais a certidão de nascimento indicando ser a vítima menor de 14 (catorze) anos e as declarações firmes e uníssonas desta e dos testigos, que servem, ainda, como fundamento bastante ao apontamento da autoria do crime (Ap. Crim. n. 2009.006224-1, de Gaspar, rela. Desa. Salete Silva Sommariva, j. 2.9.2009).
Do depoimento prestado pela ofendida à autoridade judicial (fls. 708-710), extrai-se que "no dia da prisão o acusado chegou a passar a mão em seus seios e corpo, 'mais pra baixo', acredita que cinco vezes".
E no interrogatório (fls. 959-963), o réu "admite que deu 'selinho' nos lábios da vítima" e que chegou a passar a mão nos seios de A., porém, alega que isso não se deu de forma voluntária.
Ainda no campo da materialidade, os arquivos de áudio dos discos acostados à fl. 413, cuja transcrição se encontra às fls. 283-411, também são aptos a demonstrar a ocorrência do delito.
Quanto ao elemento volitivo e à violência ou grave ameaça, por serem integrantes da tipicidade da norma, esclareço que sua análise será feita em conjunto com as demais alegações da defesa.
A autoria, por sua vez, é confessa. No interrogatório (fls. 959-963), o réu declarou:
[...] que admite que deu "selinho" nos lábios da vítima; [...] que não chegou a passar de forma voluntária as mãos nos seios da vítima A.; [...] que chegou a dar alguns "selinhos" em A., nos últimos 15 dias antes de ser preso; que no dia em que foi preso também chegou a dar um "selinho" na vítima A.; [...] que melhor dizendo, o réu, pelo que se recorda, deu um "selinho" na vítima só no dia em que foi preso; [...].
A versão sustentada é a mesma fornecida à autoridade policial (fls. 7-8):
[...] que o declarante admite que dava "beijos de amor" em A., só que em forma de "selinho"; que o declarante reconhece que no dia de hoje "escorregou" suas mãos nos seios de A.; [...] que então o declarante sentou-se na cama e fez "uns carinhos" em A.; que o declarante descreve os carinhos como sendo passar a mão no rosto, dar um selinho, e "escorregou" as mãos nos seios de A.; [...].
E ainda, na ocasião da prisão, oportunidade em que os agentes policiais filmaram a diligência, o acusado afirma ter passado a mão nos seios de A. por cima da roupa (00:14, 00:24 e 01:57) e tê-la beijado na boca (01:48, 01:54 e 02:55) (CD de fl. 703 denominado "confissão do frei"), derrubando, assim, o argumento defensivo de que "não houve nenhum contato entre a pessoa do acusado e a vítima naquele dia" (fl. 1147).
A. M., vítima, quando ouvida em Juízo (fls. 708-710), também assegurou:
[...] que em determinada ocasião a depoente brigou com outra integrante do grupo, de nome J., e ficou emburrada na escada; que nisso o réu quis conversar com a informante na sala dele, dando-lhe um beijo no canto da boca e perguntando se não iria dar um beijo nele, no que disse que não; que após esse "meio beijo", o réu deu-lhe um beijo na boca toda; [...] que isso se deu quando a informante tinha 11 anos de idade; [...] que quando a beijou no canto da boca o réu disse "que aquele cantinho seria só dele"; [...] que antes da prisão o acusado chegou a passsar a mão em seus seis e corpo, "mais pra baixo", acredita que cinco vezes, sempre por cima da roupa, porque quando ele tentava passar por dentro dela a informante "não deixava"; que o acusado a convidava, nos dias das reuniões, para ajudar-lhe a montar o som e nisso a levava para o quarto dele; que o acusado dava-lhe beijos na boca e no rosto; [...] que acredita que por duas vezes o acusado tenha proposta à informante que esta "se entregasse para ele", referindo-se a manter relações sexuais com ele, no que sempre negou; [...] que o acusado disse que se a informante contasse "as coisas de amor" de que "a amava, de que estava apaixonado por mim", ele a tiraria do posto de cantora e do grupo porque sabia que a informante gostava muito disso; [...] que esteve na casa do acusado muitas vezes, ma no quarto por cinco vezes, onde se deram os toques em seu seio; [...] que apenas uma única vez o acusado, no quarto dele, passou a mão na vagina da informante, por cima da roupa; [...] que [no dia da prisão] a informante foi até lá e quando chegou o acusado a levou para o quarto dele, colocou-a em sua cama, apagou as luzes e trancou a porta do quarto; que então passou a mão nos seus seios por cima da roupa, sendo que apesar de ter tentado passar por dentro dela a informante não deixou; que ainda o acusado a beijou na boca; [...] que os beijos que recebia do acusado eram "selinho", sem língua; [...].
Não destoam as declarações prestadas pela menor na Delegacia (fls. 23-25):
[...] que quando a informante tinha ainda onze anos, em uma certa oportunidade teve um desentendimento com outra adolescente que participava do grupo, que o Frei Ângelo naquele dia chamou a informante para conversar com ele a respeito de tal desentendimento, e começou a passar a mão em seu rosto, a beijou [sic] no canto da boca e após lhe beijou na boca; que inicialmente a declarante ficou assustada, sendo que o Frei começou a lhe acalmar e perguntou se a informante já havia "ficado" com algum menino, sendo que ao responder a ele que não, o mesmo disse que então sua boca seria só dele; [...] que em algumas oportunidades a informante esteve no quarto do Frei, quando este lhe beijava e passava a mão em seu corpo; [...] que no domingo passado, quando a informante esteve no quarto do frei, foi a primeira vez que ele passou a mão em sua vagina, acariciando por cima da calça e após começou a passar a mão em seus seios; [...] que [no dia da prisão] o Frei começou a beijá-la e passar a mão em sua barriga e seus seios; [...].
E no momento da prisão, A. confirmou a ocorrência dos beijos (00:29) e das carícias (00:46) (CD de fls. 703 com a inscrição "A. falando").
Crimes sexuais desta espécie são geralmente perpetrados longe dos olhares de testemunhas, o que faz com que a declaração do ofendido, quando harmônica com os demais elementos de prova, assuma importante destaque para a formação do juízo de convicção.
A orientação parte do Supremo Tribunal Federal:
Nos crimes sexuais, a palavra da vítima, quando em harmonia com os demais elementos de certeza dos autos, reveste-se de valor probante e autoriza a conclusão quanto à autoria e às circunstâncias do crime. Precedente. (STF, HC n. 79.850-1, rel. Min. Maurício Corrêa, j. 28.3.2000)
E do Superior Tribunal de Justiça:
HABEAS CORPUS. ARTIGOS 213, 214 E 157, § 2º, INCISO I, NA FORMA DO ART. 69, TODOS DO CÓDIGO PENAL. NEGATIVA DE AUTORIA. PALAVRA DA VÍTIMA. ORDEM DENEGADA. 1 - Nos crimes sexuais, normalmente praticados sem a presença de testemunhas, a jurisprudência tem dado especial relevo aos depoimentos das vítimas, mormente quando confirmados pelo contexto probatório. 2 - Ordem denegada (STJ, HC 53.877/PE, rel. Min. Paulo Benjamin Fragoso Gallotti, j. 18.12.2006).
Ainda, desta Corte estadual:
APELAÇÃO CRIMINAL - CRIME CONTRA A LIBERDADE SEXUAL - ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR EM CONTINUIDADE DELITIVA COMETIDO CONTRA ENTEADA MENOR DE CATORZE ANOS (CP, ART. 214 C/C ART. 224, "A", ART. 226, II E ART. 71, CAPUT) E ESTUPRO EM CONTINUIDADE DELITIVA COMETIDO CONTRA ENTEADA (CP, ART. 213 C/C ART. ART. 226, II E ART. 71, CAPUT) - MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS - DECLARAÇÕES FIRMES E UNÍSSONAS DA VÍTIMA QUE ENCONTRAM AMPARO NAS DEMAIS PROVAS ORAIS COLHIDAS. [...] É cediço que, com relação aos crimes contra a liberdade sexual, via de regra, a imputação da responsabilidade é insuscetível de demonstração com base em vestígios ou mediante declarações de testemunha ocular, dada a peculiaridade de que são praticados na clandestinidade (qui clam comittit solent), revestindo-se, assim, a palavra da vítima, em casos tais, de relevância preponderante, sobretudo se suas assertivas estiverem associadas com a realidade dos autos e demais elementos de prova (Ap. Crim. n. 2008.073062-6, de Indaial, rela. Desa. Salete Silva Sommariva, j. 16.11.2009).
Os depoimentos são reforçados pelas palavras dos policiais que acompanharam a diligência; todos confirmaram ter ouvido o Frei asseverar que havia beijado A. na boca e acariciado seus seios (Sueli Kemper às fls. 3-4 e 713-714; Cláudia Stedile dos Santos às fls. 5 e 711-712; e Ruan Marcos Cipriani, fl. 6).
E no que tange os telefonemas ocorridos entre réu e vítima (degravações de fls. 283-411 e CDs de áudio de fl. 413), verifico que algumas passagens são merecedoras de destaque:
Diálogo iniciado às 15h22min do dia 14.6.2009 (fls. 364-368, arquivo de áudio denominado 4799899042_20090614152258_1_21060233 do CD com a inscrição "dia 11 a 19 - junho - áudio"):
Interlocutora - Frei?
Alvo - Oi.
Interlocutora - Onde é que o frei tá?
Alvo - Eu tô na casa da minha irmã.
Interlocutora - Ah, tá. Não, eu só liguei pra dizer que eu tô com saudade do frei.
Alvo - Hum, eu também estou com saudade. Tô com saudade do teu beijo gostoso. Nossa, que beijo, meu Deus, que gostoso! Mais gostoso que chocolate.
[...]
Interlocutora - Mas o frei não vai começar com aquela estória de terminar de novo, né?
Alvo - Olha, mas, as vezes você fala, mas é, as vezes, quando eu ganho um beijo como o que você me deu ontem, aí me dá um pouco de paz. Aí, aí eu sinto que você me ama, senão eu fico pensando.
Diálogo iniciado no mesmo dia, às 16h13min (fls. 372-380, arquivo de áudio denominado 4799899042_20090614161346_1_21060664 do CD com a inscrição "dia 11 a 19 - junho"):
Interlocutora - Sabe o que eu tô fazendo?
Alvo - O quê?
Interlocutora - Eu tô comento mais um daquele brigadeiro.
Alvo - Ai meu Deus do Céu.
Interlocutora - Pensando no beijo do frei.
[...]
Alvo - Beijo, te amo, amor, tá?
Interlocutora - Eu também.
Alvo - Agora você, depois daquele beijo de ontem, ai! Você penetrou dentro de mim e foi até no coração.
Interlocutora - Hum!
Alvo - Ai, eu te amo. Tchau, amor (sussurrando).
Diálogo travado ainda no dia 14, iniciado às 16h53min (fls. 381-384, arquivo de áudio denominado 4799899042_20090614165358_1_21061042 do CD com a inscrição "dia 11 a 19 - junho"):
Interlocutora - Frei?
Alvo - Oi.
Interlocutora - Eu tô comendo mais um negocinho daqueles.
Alvo - Ai meu Deus do céu.
Interlocutora - Mas é porque eu tô com vontade de beijar o frei. Daí eu tô lembrando do beijo do frei.
Alvo - Ah, sim. Daí teu beijo vai ficar mais doce ainda, né?
Interlocutora - Hahãm.
Alvo - Quando é que, quando é que vou, quando é que vou sentir de novo o gosto dele?
Interlocutora - Não sei. Quando eu for aí.
Alvo - Ah, então tá bom.
Interlocutora - Onde é que o frei tá?
Alvo - Agora eu tô saindo. Acabei de arrumar tudo, agora eu tô saindo pra ir lá, porque eu tenho que chegar lá e ver a igreja. Não tem ninguém, eu vou ter que ficar sozinho até a turma chegar, né?
Interlocutora - Humhum.
Alvo - Tá bom.
Interlocutora - Então tá.
Alvo - Então aquele doce que você tá comendo, sente também o meu beijo?
Interlocutora - Hum?
Alvo - Quando você encostar no, naquele docinho gostoso, sou eu que estou te beijando, tá?
Interlocutora - Tá bom.
Alvo - Apesar de que você não falou se gostou do meu beijo. Mas tá bom.
Interlocutora - Quê?
Alvo - Você gostou do meu beijo?
Interlocutora - Adorei.
Alvo - Se eu não, se eu não souber, se eu não sei beijar, então você vai ter que me ensinar, então.
Interlocutora - Ah é frei.
Alvo - Na próxima vez você vai me dar mais uma aula.
[...]
Alvo - Beijos de amor (sussurrando), tá?
Interlocutora - Não entendi.
Alvo - Beijos de amor.
Interlocutora - Ah.
Alvo - É como aquele que você me deu ontem. Aquele de ontem foi beijo de amor (destaquei).
As demais testemunhas, tanto de defesa quanto de acusação, pouco puderam esclarecer acerca dos fatos ou da conduta criminosa imputada ao réu, e prestaram declarações irrelevantes, além de eventualmente conflitantes (Lucimar Guekert Ribeiro, às fls. 735-737, por exemplo, afirmou que era J. quem costumava tirar fotografias de crianças, e não o apelante; Tarcílio Nicolletti, à fl. 741, depõe de modo contrário, assegurando que "o acusado fotografava todas as crianças da infância missionária").
Configuradas a materialidade e a autoria, passa-se à análise das teses defensivas e da tipicidade da conduta.
O art. 214 do CP, antes do advento da Lei n. 12.015/09, tinha a seguinte redação:
Art. 214. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
Já o art. 224, "a", do CP, prescrevia o seguinte:
"Art. 224. Presume-se a violência, se a vítima:
a) não é maior de 14 (catorze) anos;".
Sobre a conduta nuclear do tipo, Celso Delmanto discorre:
O constranger, mediante violência ou grave ameaça, é igual ao anotado no crime anterior (vide comentário ao art. 213 do CP). Aqui, porém, o constrangimento não visa à cópula vagínica, mas a coagir o ofendido a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal. [...] Ato libidinoso é o ato lascivo, voluptuoso, que visa ao prazer sexual. Para a tipificação do crime deste art. 214, costuma-se considerar necessário que haja contato corporal no ato libidinoso (DELMANTO, Celso et al. Código penal comentado. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 593).
A cópia da certidão de nascimento (fl. 1009) e da carteira de identidade de A. (fl. 26) comprovam documentalmente sua menoridade, e, além disso, como bem apontou o juiz sentenciante, a vítima "estava sob o domínio reverencial do réu, ficando praticamente impossibilitada de oferecer resistência" (fl. 1136).
Segundo Nucci, "a tutela penal no campo sexual estende-se, com maior zelo, em relação às pessoas incapazes de externar seu consentimento racional e seguro de forma plena. [...] Afinal, as pessoas incapazes podem relacionar-se sexualmente sem qualquer coação física, porém teria ocorrido uma coação psicológica, diante do estado natural de impossibilidade de compreensão do ato realizado" (Crimes contra a dignidade sexual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 33-34).
Os elementos probatórios evidenciam os métodos utilizados pelo acusado para envolver a vítima, reduzindo sua - já inferior - capacidade de orientação.
O réu presenteava a ofendida (fl. 24), ameaçava tirar-lhe do projeto caso não correspondesse a seus intuitos, ou ainda fazia com que a menor se sentisse culpada por não compartilhar de seus sentimentos.
Veja-se o depoimento de Zeni Marzani, genitora da vítima, às fls. 705-707:
"[...] que segundo soube pela vítima, o réu a ameaçava muito dizendo que iria tirá-la do coro se contasse para alguém e que iria preso se o fizesse; [...]".
Idêntica foi sua versão na fase investigatória (fls. 21-22):
"[...] que salienta que A. relatou-lhe que o frei ameaçava-lhe de tirar do projeto e do coral acaso não fosse visitar o frei; [...]".
A alegação foi confirmada pela vítima em juízo, quando informou que "o acusado disse que se a informante contasse as 'coisas de amor' de que 'a amava, de que estava apaixonado por mim', ele a tiraria do posto de cantora e do grupo porque sabia que a informante gostava muito disso" (fl. 708).
Não olvidando do costumeiro tom de pedido de desculpas nas cartas dirigidas ao acusado, com passagens como "não estou te escrevendo para pedir desculpas, pois não mereço perdão" (fl. 256), "me arrependo de ter perdido tantos dias com as nossas brigas" (fl. 258), "me desculpe, se te magoei foi sem querer, mesmo" (fl. 265), e "sei que errei, mas não fiz pra te magoar" (fl. 266, esta última inclusive assinada por A.).
As interceptações telefônicas também se prestaram a comprovar tal artimanha, dentre as quais merece destaque o diálogo travado dia 5.6.2009, iniciado às 14h39min (fls. 291-293, arquivo de áudio denominado 4799899042_20090605143916_1_20931162 do CD com a inscrição "dia 01 a 06 - junho"):
Interlocutora - Onde é que o frei tá?
Alvo - Eu tô em casa.
Interlocutora - Sozinho?
Alvo - Sozinho.
Interlocutora - Ah tá.
Alvo - Ah, está, né? É, você não vem aqui, você, você tá me perdendo. Tô te falando, mas pra você não interessa né?
Interlocutora - É.
Alvo - É né? Por que você não vem aqui?
Interlocutora - Porque não tem como. Porque eu disse só quando dá.
Alvo - Como é que um dia você disse pra mãe que vinha aqui na casa da, da, da, Ida, no Jardim Alexander, e você veio aqui?
Interlocutora - Ah, porque aquele dia tinha ensaio ali no Jardim Alexander da missa do dia das mães daí (não termina a frase).
Alvo - E você nunca arruma motivo pra vir aqui, meu Deus do céu. É, mas eu acho que você só fala que me ama e eu já, eu já até percebi isso daí, porque quem ama, quem ama faz algo mais, tá bom?
Interlocutora - Hum.
Alvo - Você me ama?
Interlocutora - Claro né.
Alvo - Claro né. E eu fico aqui, sempre aqui tá?
Interlocutora - Tá, então tá.
Alvo - Mas (interrompido pela A.) hã?
Interlocutora - Nada.
Alvo - Nada né? Então vamo, vamo, é, você lembra uma vez, uma vez que eu falei pra você que, que eu ia terminar tudo?
Interlocutora - Ãham.
Alvo - E você quer, quer terminar tudo?
Interlocutora - Não.
Alvo - Então faça alguma coisa.
Interlocutora - Ah, meu Deus!
A conversa foi interrompida, e nova ligação, iniciada às 14h42min (fls. 294-296, arquivo de áudio presente no disco com a inscrição "dias 01 a 06 - junho - áudio" denominado 4799899042_20090605144245_1_20931197), seguiu-se:
Interlocutora - Eu não quero perder o frei, o frei já sabe disso.
Alvo - Então faça alguma coisa. Você.
Interlocutora - Hum.
Alvo - É?
Interlocutora - O quê?
Alvo - Então faça alguma coisa.
Interlocutora - Então tá.
Alvo - Então tá. Ah! Se você quiser, você faz sim, você pode. Pode ou não pode?
Interlocutora - Po (não terminou a palavra) não sei.
Alvo - Ah, diz que não sabe né, aí, aí quem fica, quem fica amarrado aqui sou eu. Vou te dar mais uma semana. Vou te dar mais uma semana de tempo.
Interlocutora - Ah é frei?
Alvo - Você quer duas, tudo bem, eu te dou duas.
[...]
Alvo - Humhum. Mas eu tenho que tomar uma decisão, porque senão vai ser assim até o final do ano.
Interlocutora - Ah!
Alvo - De vez em quando eu tenho uma missa pra ir pra cá, pra lá, que nem ontem né? Eu tenho que pegar outras pessoas. Então não adianta se você ser uma das cantoras, você ser, não adianta. Se tiver uma missa assim, se eu convidar, você vem?
Interlocutora - Vou.
Alvo - Vou marcar. Se tu não vier, tá fora do grupo das cantoras, tá fora de tudo. Te amo (sussurrando)
Interlocutora - Tá (chorando) (grifei).
As interceptações colaboraram ainda para a elucidação do elemento subjetivo do tipo, asseverando a inequívoca intenção libidinosa do acusado dirigida à vítima.
Veja-se, por exemplo, o teor da ligação que teve início às 12h31min do dia 6.6.2009 (fls. 300-304, arquivo de áudio presente no disco "dia 01 a 06 - junho", denominado 4799899042_20090606123158_1_20944491):
Alvo - Hum, tá deitada ainda?
Interlocutora - Tô.
Alvo - E você vai fazer o que hoje a tarde?
Interlocutora - Eu? Não vou fazer nada.
Alvo - Vai ficar aí deitadinha?
Interlocutora - Não a tarde inteira.
Alvo - Hum, tá frio aí?
Interlocutora - Mais ou menos.
Alvo - Hum, quer eu eu vou aí pra te esquentar.
Interlocutora - Quero.
Alvo - Hum.
Interlocutora - E o frei tá onde?
Alvo - Também estou deitado.
Interlocutora - É?
Alvo - Você não quer vir aqui pra me esquentar?
Interlocutora - (risos) Não posso.
Alvo - Quando será que você vai poder?
Interlocutora - Hum, se eu ir, eu vou quarta-feira.
Alvo - Quero ver que hora. Não vem aqui quatro, cinco horas, tá? Tem que vir antes.
Interlocutora - Tá bom, então.
Alvo - E eu vou começar a te esperar desde hoje.
Interlocutora - Tá.
Alvo - Você, você vai ter surpresa, você vai ver.
Interlocutora - O frei não pode falar?
Alvo - A surpresa?
Interlocutora - É.
Alvo - Se eu falar, daí você não vem.
Interlocutora - (risos) Não, eu vou. O que que é?
Alvo - Por que você quer, quando você souber a surpresa, daí você não vem mais, porque você só quer ver a surpresa.
Interlocutora - Ah não né.
Alvo - Eu vou te pegar, vou te jogar no chão.
Interlocutora - (risos).
Alvo - Vou te ba, vou te bater.
Interlocutora - (risos) Nossa!
Alvo - É, vou tirar tua roupa.
Cumpre dar ênfase também a outra parte do já mencionado colóquio do dia 14.6.2009, a partir das 16h13min (fls. 372-380) - que inclusive tem o condão de derrubar a alegação da defesa de que "S" pode ser entendido como "sonhos" (fl. 1135):
Alvo - Se a outra vez que você vier aqui eu tiro a tua roupa, tá bom?
Interlocutora - (risos).
Alvo - Aí você vai morrer de frio, viu?
Interlocutora - Humhum.
Alvo - Não, morrer de frio, eu não deixo, daí eu te encho de carinho, daí você se esquenta.
Interlocutora - (risos).
[...]
Alvo - Eu te amo (sussurrando).
Interlocutora - Eu também, e bastante.
Alvo - Dei um banho gostoso em você, nossa senhora.
Interlocutora - (risos).
Alvo - Quando chega ali pertinho dos teus Ss.
Interlocutora - Da onde?
Alvo - Dos S.
Interlocutora - Quê?
Alvo - Não sabe onde fica os S?
Interlocutora - Não.
Alvo - Ah, mas você não tem dois S na parte da frente?
Interlocutora - Ah, sei.
Alvo - Ali demora bastante, eu vou passando sabão.
Interlocutora - (risos).
Alvo - Fazendo carinho.
Interlocutora - Nossa!
Alvo - Não pode?
Interlocutora - Pode.
[...]
Alvo - Ai, eu te amo, Tchau, amor (sussurrando).
Interlocutora - Eu também. Tchau.
Alvo - Obrigado, obrigado. Boa festa pra você, tá.
Interlocutora - Boa festa? Tá horrível.
Alvo - Não, não, só não, só não me esquece, tá bom.
Interlocutora - Ah tá. Eu também tô pensando no frei toda hora. O frei só ficou um pouquinho aqui.
Alvo - Eu fiquei pouco, mas eu fico só te olhando, te olhando, te olhando e as pessoas percebem.
Interlocutora - Ah.
Alvo - E eu me controlei, você, onde você ia eu tava de olho em você. Procurava disfarçar, mas tava te olhando. Olhava pra tua bundinha sempre dançando (grifei).
Por fim, cabe ressaltar a conversação entre acusado e vítima ocorrida no dia 18.6.2009, com início às 21h50min (fls. 397-403, disco "dias 11 a 18 - junho", arquivo 4799899042_20090618215038_1_21125164):
Interlocutora - Acabou de me dar banho?
Alvo - Oi? Ih, agora tô peladinho.
Interlocutora - (risos).
Alvo - Quando você tocou, eu tava debaixo da água, tava te lavando.
Interlocutora - Nossa, ainda?
Alvo - (inaudível) lavar tudo né?
Interlocutora - Hum.
Alvo - Não só as torres gêmeas.
Interlocutora - Ah.
Alvo - E agora eu tô aqui no meu quarto, aí tudo bem, se você tivesse aqui, eu não ia, ia me vestir assim com vergonha. Aí eu ficava assim mesmo como é que eu estou.
[...]
Alvo - Ai que vontade colocar você aqui pertinho de mim.
Interlocutora - Também tô com vontade de ir aí.
Alvo - É, mas se você viesse agora, você ia me encontrar, eu não ia colocar roupa, não. Eu só ia colocar um roupão por cima e ia te pegar.
[...]
Alvo - Ah, eu tô sentado, sentado na cama, mas tô sem roupa. Ainda não coloquei meu pijama de dormir.
Interlocutora - (risos).
Alvo - Vai ver que um dia você, você me telefona: frei, eu estou nua no meu quarto, quer ver? Olha na janela.
Interlocutora - Ah, não (risos).
Alvo - Ah, então ali no espelho. Mas eu vou emprestar minha máquina, você bate fotografia de você sem roupa, daí você me passa as fotografias e pronto (destaquei).
Não há como se admitir que o palavrório era proferido por "bobeira". A contumácia do réu em compartilhar suas fantasias de dar banho e lavar os seios da vítima, aliada à sua curiosidade pela cor das peças de roupa íntima que a adolescente trajava, são suficientemente eloquentes ao demonstrar o desejo censurável do acusado.
E razão não assiste a defesa em sua alegação de que a conduta é atípica, em virtude da não configuração do elemento essencial do tipo (ato libidinoso diverso da conjunção carnal).
Para Fernando Capez, "também ocorre atentado violento ao pudor quando o agente, mediante o emprego de violência ou grave ameaça, beija a vítima de forma lasciva, ou apalpa seus seios ou nádegas, ou acaricia suas partes íntimas, ainda que esteja vestida" (Curso de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, v. 3, p. 26).
No mesmo sentido posiciona-se Nucci:
Tendo em vista que a conjunção carnal é a cópula vagínica, todos os demais atos que servem à satisfação do prazer sexual são considerados libidinosos, tais como o sexo oral ou anal, o toque em partes íntimas, a masturbação, o beijo lascivo, a introdução na vagina dos dedos ou de outros objetos, dentre outros (NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado, 2008, p. 868 - destaquei).
Também neste norte a lição de Chrysolito de Gusmão:
[...] enquanto no atentado ao pudor trata-se duma variedade de atos de libidinagem, os quais, quer pela intenção do agente, quer pelo efeito produzido, diferem do estupro e integralizam o atentado ao pudor desde que sejam praticados sem o consentimento da vítima, pois com tal se lhe ofende o pudor (Dos crimes sexuais. 6. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001, p. 165)
Já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
RECURSO ESPECIAL. PENAL. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. OCORRÊNCIA DE BEIJOS LASCIVOS E CARÍCIAS NOS SEIOS DA VÍTIMA. AFASTAMENTO DA TENTATIVA. DELITO CONSUMADO. CRIME HEDIONDO. IMPOSIÇÃO DE REGIME INTEGRALMENTE FECHADO. Considera-se consumado o crime de atentado violento ao pudor, quando evidenciada a existência de contato físico entre o agressor e sua vítima, durante a prática de ato lascivo distinto da conjunção carnal (STJ, REsp 751036/RS, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 28.9.2005).
E deste Tribunal, colaciona-se:
Basta para consumação do atentado violento ao pudor que o agente acaricie as partes íntimas da vítima, pouco importando se tais toques sejam, ou não, praticados sobre as vestes (Ap. Crim. 2007.024517-9, de Criciúma, rel. Des. Amaral e Silva, j. 11.9.2007).
Ressalto ainda que a própria defesa, à fl. 1150, afirma que "são considerados atos libidinosos aqueles que impliquem em contato da boca com o pênis, com a vagina, com os seios, com o ânus, ou a manipulação erótica destes órgãos com a mão ou dedo".
E não merece prosperar a alegação de que "selinho" não constitui atentado violento ao pudor. Se o beijo foi dado com a intenção libidinosa de satisfação da lascívia, e o agente tiver feito uso de violência ou grave ameaça - o que, neste caso, se presume - para atingir seu objetivo, há a ofensa ao bem jurídico - a liberdade sexual da vítima.
Chamo a atenção inclusive para o fato de que o acusado afirmou ter disfunção erétil (parecer neurológico de fl. 483 e interrogatório de fl. 961); a lição de Chrysolito de Gusmão, ao parafrasear Puglia, é ainda mais apurada para se adequar ao caso:
O beijo, pondera Puglia, "se considerarmos a realidade das coisas, pode, segundo as circunstâncias, ser um ato impudico e pode não o ser. Sê-lo-á, sem dúvida, quando fim do agente foi o de satisfazer, de qualquer modo, porque doutra forma lhe fosse impossível, os seus desejos libidinosos". E Calogero, ponderando que a Natureza dotou o homem de uma particular conformação dos lábios de modo que possa veicular, por tal meio, a mais pura manifestação do amor, diversa do brutal contato dos animais, sustenta, também, o se dever admitir a possibilidade de ser o beijo um ato punível, uma vez que ofende a pudicícia de quem o recebe; do mesmo sentir sendo Manzini e Tuozzi (GUSMÃO, 2001, p. 178).
Os demais Tribunais pátrios têm assim decidido. Veja-se, por exemplo:
APELAÇÃO CRIMINAL. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. ARTIGO 214 C/C ARTIGO 224, ALÍNEA "A", DO CÓDIGO PENAL. ABSOLVIÇÃO. FRAGILIDADE PROBATÓRIA PARA FUNDAMENTAR A CONDENAÇÃO. INOCORRÊNCIA. COMPROVADAS A AUTORIA E A MATERIALIDADE. DEPOIMENTO DA VÍTIMA CORROBORADO POR OUTROS ELEMENTOS PROBATÓRIOS DOS AUTOS. CONCLUSÃO DO LAUDO TÉCNICO PARA A COMPROVAÇÃO DA MATERIALIDADE DO DELITO. IRRELEVÂNCIA. CONDUTA IMPUTADA QUE NÃO DEIXA VESTÍGIOS. DEMONSTRAÇÃO ATRAVÉS DA PROVA ORAL COLHIDA NOS AUTOS. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. [...] Não é sempre que o delito de atentado violento ao pudor, tipificado no artigo 214 do Código Penal, deixa vestígios que podem ser aferidos por laudo técnico, tendo em vista que o ato libidinoso diverso da conjunção carnal pode ser caracterizado por qualquer ato de satisfação da libido, ou seja, qualquer ato humano realizado com o fim de satisfazer o desejo sexual do agente ativo que seja capaz de violar a liberdade sexual da pessoa atacada. Além disso, o crime foi praticado mediante violência presumida, conforme disposição prevista no art. 224, alínea "a", do Código Penal. (TJES, Ap. Crim. 12080078970, rel. Des. Sérgio Bizzotto Pessoa de Mendonça, j. 27.5.2009 - grifei).
Também neste norte:
ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR PRATICADO CONTRA MENOR DE 6 ANOS. OCORRÊNCIA DE CARÍCIAS NOS ÓRGÃOS GENITAIS E NOS SEIOS DA PEQUENA VÍTIMA. AFASTAMENTO DA TENTATIVA. DELITO CONSUMADO. [...] Considera-se consumado o crime de atentado violento ao pudor, quando evidenciada a existência de contato físico entre o agressor e sua vítima, durante a prática de ato lascivo distinto da conjunção carnal. Precedentes jurisprudenciais. Regime prisional, o da Lei nº 8072/90. Desprovimento do apelo defensivo. Expedição de mandado de prisão (TJRJ, Ap. Crim. 2005.050.04584, rela. Desa. Nilza Bitar, j. 6.6.2006).
A conduta do acusado é, portanto, típica, não merecendo guarida a pretensão defensiva.
De outra banda, a tentativa de desmerecer as declarações prestadas por A. não podem prosperar. Ao contrário do que afirma a defesa, a menor não disse ter medo do acusado em Juízo.
E as cartas de fls. 1275-1277 não evidenciam contradição na postura da menor. É impossível de apurar a data em que tais documentos foram confeccionados, mas é notório que a fase de transição da infância para a adolescência é conturbada, e, não raramente, vem acompanhada de revolta e rebeldia desnecessárias. Ademais, o simples fato de A. ter escrito que "odiava" seus avós (àquele tempo) não significa que tal desafeto deva ser perpétuo, a ponto de por em risco a validade de suas declarações às fls. 752-754, mais especificamente no item 8.
Já aduzi a prestabilidade do depoimento da menor quando tratei da autoria delitiva, e repito que inexiste motivo para não lhe dar crédito. Nesse sentido, veja-se: Apelação Criminal n. 2007.052298-5, rel. Des. Amaral e Silva; Apelação Criminal n. 2008.030949-0, rela. Desa. Salete Silva Sommariva; Apelação Criminal n. 2008.002371-0, de minha relatoria; Apelação Criminal n. 2007.000867-4, rel. Des. Subst. Tulio Pinheiro, entre outros.
Por fim, o réu tinha pleno conhecimento do caráter ilícito de sua conduta, pois impedia que a menor falasse sobre o dito "relacionamento", fazia com que as cartas por ele escritas fossem lidas em sua presença, e vez ou outra comentava com A. que ela "podia pegar tudo isso e o colocar na cadeia" (fls. 316 e 399, por exemplo). Não olvidando do "código" que desenvolvera para camuflar expressões comprometedoras (v. g. "ceticei", "ilgone" e "ouroime", além dos famigerados "S.S", "Bjda" e afins).
Inexistindo qualquer excludente que socorra o réu, e configuradas a materialidade e autoria do delito, não há como acolher o pleito defensivo.
A dosimetria da pena é impassível de reparos.
A culpabilidade, entendida como grau de reprovabilidade da conduta (NUCCI, Código penal comentado, 2009, p. 275), foi em grau mais elevado que o normal à espécie, em virtude da relevante posição social que ocupava, da confiança que a comunidade local nele depositava e de seu ofício como religioso.
Não registra antecedentes criminais conhecidos, e sua conduta social lhe é favorável.
Sua personalidade também milita contra si. As referências sexuais que fazia à vítima, bem como as fotografias de meninas com poucos trajes (fls. 219-230 e 240-250) e em poses de cunho duvidoso (fls. 231-236) que armazenava em seu computador, evidenciam sua depravação moral.
Os motivos são próprios da infração. As circunstâncias, como bem assinalou o magistrado sentenciante, extrapolam o natural ao delito, pois o acusado se valia de sua posição de tutor - no sentido vulgar da palavra - e da reverência a ele dirigida pela menor para alcançar seu desiderato criminoso.
O mesmo ocorre com as consequências. Conforme o teor do laudo de fls. 686-689, a psicóloga avaliou necessária a submissão da menor "a tratamento psicoterápico, com o intuito de evitar que repercussões psicológicas graves possam vir a comprometer seu desenvolvimento". Neste sentido, vide Apelação Criminal n. 2009.006224-1, rela. Desa. Salete Silva Sommariva, j. 2.9.2009.
Por fim, o comportamento da vítima em nada contribuiu para o cometimento do delito, pois em razão de sua pouca idade e capacidade de discernimento reduzida, além da dominação que o réu sobre ela exercia, não teria condições de ter cooperado conscientemente para a satisfação da lascívia do apelante.
Diante deste quadro, correta a fixação da pena-base em 8 (oito) anos de reclusão.
Na segunda fase, há somente a incidência da atenuante da confissão que, ainda que parcial, foi utilizada para fundamentação desta decisão e da sentença. Adequada a redução da pena nos moldes feitos pelo magistrado, ou seja, em 6 (seis) meses.
Inexistem causas de aumento ou diminuição de pena previstas na Parte Especial; há, porém, a incidência da causa geral de aumento de pena do art. 71.
Foi comprovado que a prática do crime se deu em mais de uma oportunidade, em curto espaço de tempo, de maneira e modo de execução semelhantes. Acertado o aumento de pena efetuado em seu patamar mínimo, ou seja, 1/6 (um sexto).
É o entendimento desta Corte:
CAUSA DE ESPECIAL AUMENTO DO ART. 226, II, DO CP. CONDUTA PRECISADA PELA OFENDIDA EM FINS DE 2005, ALCANÇADA PELA NOVA REDAÇÃO DA CAUSA DE AUMENTO. INCERTEZA QUANTO AO NÚMERO DE INFRAÇÕES COMETIDAS. MAJORAÇÃO PELA CONTINUIDADE DELITIVA EM SEU MÍNIMO LEGAL. REPRIMENDA ADEQUADA. RECURSO PROVIDO, EM PARTE (Ap. Crim. n. 2009.001866-4, de São José, rel. Des. Irineu João da Silva, j. 17.11.2009).
E também:
CONTINUIDADE DELITIVA. INDEFINIÇÃO QUANTO AO NÚMERO DE CRIMES. AUMENTO ESTIPULADO NA SENTENÇA DE UM MEIO. IMPOSSIBILIDADE. ELEVAÇÃO QUE DEVE CORRESPONDER À FRAÇÃO MÍNIMA. RECURSOS PARCIALMENTE PROVIDOS. Comprovada a prática de mais de um delito contra a liberdade sexual, nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar e maneira de execução, não se podendo, contudo, identificar, com a certeza necessária, o número de vezes que foi perpetrado, aumenta-se a sanção, por força do crime continuado, em conformidade com a fração mínima estipulada no art. 71, caput, do Código Penal (Ap. Crim. n. 2008.081002-7, de Seara, rel. Des. Sérgio Paladino, j. 17.3.2009).
A pena resultante é, portanto, de 8 (oito) anos e 9 (nove) meses de reclusão, já fixada na sentença em primeiro grau, devendo ser mantida nesta instância.
As demais disposições da sentença, quanto ao regime para cumprimento de pena e quanto à impossibilidade de concessão de benesses (arts. 44 e 77 do CP), devem permanecer inalteradas.
Por derradeiro, com relação ao pleito desclassificatório trazido quando da sustentação oral pelo patrono do réu Ângelo Chiarelli, é entendimento desta Corte que os pedidos formulados em sede de tribuna não são conhecidos pelo tribunal ad quem, por representar ofensa ao contraditório.
Nesse sentido:
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO - AVENTADA OMISSÃO NO ACÓRDÃO EM RELAÇÃO A TESES APRESENTADAS EM MEMORIAL E EM SUSTENTAÇÃO ORAL EM PLENÁRIO - IMPOSSIBILIDADE DE ARGÜIÇÃO DE NOVAS TESES E FORMULAÇÃO DE OUTROS PEDIDOS NÃO CONSTANTES DAS RAZÕES DE APELAÇÃO - NÃO CONHECIMENTO. Inadmissível a pretensão de acolhimento de manifestação, no acórdão, de matéria não articulada no recurso, trazida apenas em memoriais ou em sustentação oral, sem oportunidade de contraditório (Embargos de Declaração na Apelação Cível n. 43.275, de Balneário Camboriú, rel. Des. Solon d'Eça Neves, j. 21/5/97) (Apelação Criminal n. 2006.002190-9, da Capital, rel. Des. Torres Marques, j. 1.8.2006).
Dito isso, entendo que o recurso deve ser conhecido, as preliminares afastadas e, no mérito, ser desprovido.
Observa-se que a comarca de origem deverá promover as devidas comunicações, conforme dispõe o § 2.º do art. 201 do Código de Processo Penal, acrescentado pela Lei n. 11.690/2008.
DECISÃO
Ante o exposto, a Terceira Câmara Criminal decidiu, por unanimidade, afastar as preliminares e negar provimento ao recurso.
O julgamento, realizado no dia 15 de junho de 2010, foi presidido pelo Exmo. Sr. Des. Torres Marques, sem voto, e dele participaram, com voto, os Exmos. Srs. Des. Moacyr de Moraes Lima Filho e Des. Subst. Roberto Lucas Pacheco. Funcionou, pela douta Procuradoria Geral de Justiça, o Exmo. Sr. Dr. Paulo Roberto Speck, tendo lavrado parecer o Exmo. Sr. Dr. Robison Westphal.
Florianópolis, 29 de junho de 2010.
Alexandre d'Ivanenko
Relator
JURID - Apelação criminal. Crime contra a liberdade sexual. [16/07/10] - Jurisprudência
Nenhum comentário:
Postar um comentário