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quarta-feira, 28 de julho de 2010

JURID - Decisão. Afastamento temporário [28/07/10] - Jurisprudência


Apuração de irregularidade em entidade de atendimento. Decisão sobre afastamento temporário.

Colaboração: Dr. Antônio Claudio Von Lohrmann Cruz ( * )


Processo n. ______
APURAÇÃO DE IRREGULARIDADE EM ENTIDADE DE ATENDIMENTO
Requerente: CONSELHO TUTELAR
Requerida: Gerente do Espaço de Acolhimento


DECISÃO SOBRE AFASTAMENTO TEMPORÁRIO


Versam os presentes autos sobre representação formulada pelos senhores ____ e ____, respectivamente, Conselheiros Tutelares do Bengui e Outeiro, com suporte no artigo 136, inciso III, alínea b do ECA, contra os genitores ____ e ____ e a Gerente do Espaço de Acolhimento.

A presente foi autuada como procedimento judicial para apuração de irregularidade em entidade de atendimento.

Em síntese, aduziram os representantes que no dia ___ de _____ de 2010, por volta de 19:30 horas, lhes foram apresentadas no Plantão dos Conselhos Tutelares II, V e VII, na sede do CT II, na Rua Manoel Barata, 608, bairro Cruzeiro, neste Distrito, por uma guarnição do CIEPAS II, VTR 2317, as crianças E. (DN 24.06.03 - 6 anos); L. (DN 21.09.05 - 4 anos); e os trigêmeos L., L. e L. (DN 21.12.07 - 2 anos), filhos de ____ e _____, que residem no Conjunto _____, Coqueiro, Belém.

Segundo o relato, as crianças teriam sido encontradas sob a responsabilidade de dois adolescentes de nome E. (15 anos) e A. (14 anos) e que a genitora mantém relacionamento afetivo com aquele. No local, teria sido constatada a negligência da mãe para com os filhos. A adolescente A. referiu, inclusive, que passam fome e quem são maltratadas. As crianças estavam sujas, maltrapilhas, com fome; os trigêmeos estavam com diarréia e todas as crianças apresentavam feridas pelo corpo, além de aparente estado de desnutrição. A criança L. referiu que "apanha" da mãe, do padrasto adolescente e que A. também é agredida por E.

A Conselheira _______ recebeu as crianças e repassou a situação para as conselheiras __ e __, que estavam assumindo o plantão.

A genitora não foi mais encontrada na residência e as crianças nada referiram acerca de existência de outros parentes.

Os infantes foram levados ao Abrigo Espaço e no local foram atendidas pela enfermeira L., que recusou recebimento delas porque haviam "mudado as normas" (sic) para o acolhimento. Mesmo após ter argumentado com a servidora, não foram atendidas. Na oportunidade, S. saiu para levar a adolescente A. para a Casa de Passagem, enquanto E. permaneceu no local com as crianças.

Em ato contínuo, a enfermeira do espaço entrou em contato com a gerente D. L. e a mesma confirmou que não receberia as crianças porque seria necessário um estudo de caso do Conselho Tutelar e que fosse feito o levantamento da rede parental das crianças, o que não poderia ser feito, pois ali estavam cinco crianças famintas e necessitando de descanso, isto por volta de 22:30 horas, e que já haviam estado na residência delas.

Após a interferência do Conselheiro M. da Casa de Passagem, novamente foram as crianças rejeitadas pela enfermeira, que se recusou a assinar o documento.

Em novo contato com a gerente D., as crianças foram novamente rejeitadas, ao argumento de que estava respaldada na nova lei de adoção e que precisava de um pedido do Juiz para o abrigamento (sic).

Infelizmente, não tendo outra opção, ante a recusa do acolhimento pela gerente do espaço, as crianças passaram a noite inteira no interior do Conselho Tutelar, tendo aquela orientado sua funcionária a não assinar a requisição.

A ocorrência foi registrada na Seccional de Icoaraci, pelo abandono das crianças e pelo descumprimento injustificado da requisição por parte da diretora do abrigo.

Por volta de 2 horas da manhã, estiveram na residência da genitora e não a encontraram.

O Conselheiro M., pelo celular da instituição (____), de novo, falou com a gerente D., relatando os novos fatos, obtendo nova recusa, já agora porque o CIEPAS não poderia ter trazido as crianças; porque não tinha documentos etc, entre outros absurdos.

"As crianças permaneceram no Conselho Tutelar com muita dificuldade..."

Por derradeiro, disseram, ainda, que "em 24 de janeiro de 2010, por volta das 12:00 horas, novamente recebemos a criança, de nome E., o qual foi trazida pela guarnição do CIEPAS em virtude de estar sozinha em sua residência" e que a sua genitora é usuária de drogas. A criança foi abrigada no Lar da Tia Nazaré, haja vista que eram 17:30 horas e pelo fato de nova recusa da gerente do espaço e para evitar que tivesse que fazer nova peregrinação em busca de um local para que a criança pudesse ter seus direitos garantidos.

Através do expediente de fls. 09 vieram aos autos os documentos de fls. 10 usque 35, valendo, desde logo, ressaltar que as mesmas crianças já eram conhecidas do espaço, pois foram acolhidas em 13.12.2008 por requisição do Plantão do CT II (fls. 15/25).

Consta dos autos, também, cópia do pedido de instauração de verificação de situação de risco formulado pelo MPE, fls. 37, com relação aos menores; cópias de fotografias das crianças no Conselho Tutelar; requisição do acolhimento (fls. 47) e a decisão proferida no processo n. ________.

Instado para manifestação sobre o afastamento provisório, opinou o MPE positivamente.

Isto posto
, passo a deliberar sobre a necessidade do afastamento provisório da dirigente do espaço.

A possibilidade de afastamento provisório de dirigente da entidade encontra amparo no parágrafo único do artigo 191 do ECA, quando constatado motivo grave e será tomada em decisão fundamentada de autoridade judiciária.

Nada obstante a previsão legal citada, o legislador estatutário não definiu de forma clara qual ou quais seriam as normas ensejadoras da medida, deixando à equilibrada apreciação da autoridade judiciária aquilatar e sobrepesar os fatos.

Entendo, nesse diapasão, que o "descumprimento das disposições desta lei pelo dirigente de entidade que desenvolva programas de acolhimento familiar ou institucional é causa de sua destituição, sem prejuízo da apuração de sua responsabilidade administrativa, civil e criminal" (§5º do art. 92, ECA), que é equiparado ao guardião (§1º do mesmo artigo), já se configuraria motivo bastante grave e autorizador do afastamento.

In casu, imputam os senhores Conselheiros Tutelares à dirigente do espaço a negativa de acolhimento institucional em duas (2) oportunidades distintas a crianças para as quais requisitaram a medida excepcional, conforme lhes faculta a lei estatutária em vigor.

Prima facie, emerge da prova documental que se encontra nos autos, a comprovação de duas tentativas de acolhimento, bem como as mesmas negativas com relação ao acolhimento requisitado para os menores E. (6 anos), L. (4 anos) e os trigêmeos L., L. e L. (2 anos), filhos de ___ e de ____, haja vista que o acolhimento só foi realizado após determinação deste magistrado proferida já nos autos de situação de risco n. _____ (decisão de fls. 48).

Isto também se observa do BOP de fls. 42/43 e da requisição de fls. 47.

Daí resulta que a dirigente descumpriu deliberadamente as seguintes normas e princípios:

a) de proteção integral, previsto no artigo 227 da CF e artigo 4º do ECA, que estabelece a primazia em favor das crianças e adolescentes em todas as esferas de interesse.

Tal princípio não comporta indagações ou ponderações sobre o interesse a tutelar em primeiro lugar, já que a escolha foi realizada pela criança através do legislador constituinte. Leva em conta também a condição de pessoa em desenvolvimento, pois a criança e o adolescente possuem uma fragilidade peculiar de pessoa em formação, correndo reais riscos que os adultos, por exemplo.

A prioridade deve ser assegurada por todos: família, comunidade, sociedade em geral, Poder Público. A primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, assegurada a crianças e adolescentes é a primeira garantia de prioridade estabelecida no parágrafo único do art. 4º da Lei n. 8069/90. Na prestação de serviços públicos e de relevância pública, crianças e jovens também gozam de primazia(1).

Sob este ângulo de visão, a representada simplesmente "sepultou" a garantia da proteção integral, tão arduamente conquistada.

b) o melhor interesse, princípio orientador tanto para o legislador como para o aplicador, determinando primazia das necessidades da criança e do adolescente como critério de interpretação da lei, deslinde de conflitos, ou mesmo para elaboração de futuras regras. Assim, na análise do caso concreto, acima de todas as circunstancias fáticas e jurídicas, deve pairar o princípio do melhor interesse, como garantidor do respeito aos direitos fundamentais titularizados por crianças e jovens. Indispensável que todos os atores da área infanto-juvenil tenham claro para que si que o destinatário final de sua atuação e a criança e o adolescente. Para eles é que se tem que trabalhar. É o direito deles que goza de proteção constitucional em primazia, ainda que colidente com o direito da própria família. É, pois, o norte que orienta todos aqueles que se defrontam com as exigências naturais da infância e juventude. Materializá-lo é dever de todos.(2)

A representada, pelo visto, também feriu de morte tal princípio, quando descumpriu e obstaculizou a ação do Conselho Tutelar na proteção dos direitos das crianças, fazendo prevalecer interesses pífios, secundários, menores e burocráticos.

c) ofendeu direitos fundamentais dos infantes, pois com tal conduta, a dignidade humana de cinco (5) crianças foi postergada. Negou-se-lhes o direito ao abrigo, na acepção da palavra. Depois, à alimentação e à saúde. Naquela noite, tenebrosa para as crianças, proporcionado pela representada (como mandante) e por sua servidora/enfermeira (como executora), além do total abandono e da vulnerabilidade social causados pelos genitores, ainda foram vítimas da insensatez, do descaso e do menosprezo do Estado, ator principal da proteção integral e, pasmem - pelo celular!

Os menores, ante a recusa da representada, doentes e com fome, foram literalmente, julgados e sentenciados a "dormirem" nas dependências do Conselho Tutelar, pernoitando no chão e com pouco alimento, pela irresponsabilidade da representada.

Que pobres crianças: abandonadas pelos genitores e rejeitadas pelo estado.

A repulsa a essa insanidade é inevitável!

d) o art. 5º do ECA: "Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou imissão aos seus direitos fundamentais".

A negligência, a violência psicológica e a opressão são patentes, que nem precisam de maiores esclarecimentos (art. 15, ECA).

e) violação a integridade física, psíquica e moral das crianças (art. 17, ECA);

f) deixou de zelar pela dignidade das crianças e não os colocou a salvo de tratamento desumano e vexatório e constrangedor (art. 18, ECA), quando poderia muito bem fazê-lo. Sem dúvida é desumano, vexatório e constrangedor permitir-se que os infantes passasse a noite no chão do Conselho Tutelar.

g) descumpriu o preceito contigo no art. 70 do ECA, sujeitando-se à responsabilidade pessoal;

h) dever de acolhimento dos menores (inc. IV do art. 90, ECA) e, por fim,

i) descumprimento de legítima requisição de acolhimento das crianças por membros do Conselho Tutelar, ex vi da autorização legal prevista no inciso I, do art. 136 c/c o inciso VII do art. 101, do ECA, hipótese que será objeto de comentários adiante.

De outra banda, é cediço que o afastamento de dirigente de entidade de atendimento nada mais é do que um provimento liminar, que se sujeita aos requisitos da espécie, ou seja, o "periculum in mora" e o "fumus boni iuris".

Considerando assim, a ofensa de diversos dispositivos legais, bem como a prórpia reiteração de conduta no dia seguintes, que me parece plenamente justificado o perigo de que venha a representada - como o fez - de continuar a negar acolhimento a outros infantes que necessitem dele e que sejam legalmente representados pelo Conselho Tutelar.

Permitir-se que a representada permaneça exercendo a função, sem qualquer admoestação por parte de seus superiores, é também colaborar para que outras ofensas sejam praticadas e o que é pior, mediante a utilização de argumentos totalmente infundados.

A Justiça da Infância e da Juventude tem o dever legal de obstar que atos desta triste natureza voltem a ocorrer (inc. VII do art. 148, ECA).

A fumaça do bom direito, da mesma forma, se caracteriza, em sede de cognição sumária, que a conduta da representada foi ilegal e que poderá ser objeto de aplicação de uma das penalidades previstas no inciso I do artigo 97 do ECA, tendo o seu afastamento provisório previsto em lei.

A propósito, torna-se necessário esclarecer que nos precisos termos do inc. I do art. 136 c/c o inciso VII do art. 101, todos do ECA, os Conselheiros Tutelares agiram amparados e dentro de suas atribuições que a lei estatutária lhes confere, haja vista que, em caráter excepcional e de urgência, as entidades podem acolher as crianças e adolescentes sem prévia autorização judicial, comunicando o fato em 24 horas para a autoridade judiciária competente (art. 93, ECA), sob pena de responsabilidade. Note-se que a redação do artigo 93 é a mesma. O prazo para comunicação é que foi modificado e reduzido pela Lei 12.010/2009.

Não creio, ademais, que a representada não tenha conhecimento mínimo da lei em vigor e dos princípios comezinhos que norteiam a proteção da infância e juventude. A presunção cabível na espécie é a contrária, ou seja, que seja pessoa competente para o exercício da função pública de dirigente de uma entidade de acolhimento. E mais: que desconheça que não lhe cabe qualquer poder de revisar ou de recusar determinação do Conselho Tutelar. Tal poder somente é conferido ao Juiz da Infância.

Cumpra-lhe, tão somente, acolher os menores, sem qualquer objeção e, isto não o fez. Ao contrário, pelo celular ou telefone, se recusou deliberadamente a cumprir a requisição proveniente de agente capaz, que foi cumprida por sua subalterna.

Constato, por derradeiro, a existência de graves motivos para o afastamento provisório, reconhecendo presentes os requisitos próprios para concessão de um provimento liminar.

Isto posto, concluindo com o lúcido ensinamento de Paulo Afonso Garrido de Paula de que, "considerando que os direitos da criança e do adolescente representam a única categoria a contar com a garantia constitucional de prioridade absoluta e que a validade dos seus interesses constitui-se em alicerce na construção da cidadania, extraem-se da sua natureza e da urgência em coibir danos irreparáveis ou de difícil reparação os fundamentos básicos de cognição sumária caracterizadora dos procedimentos disciplinados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente"(3), ex vi do parágrafo único do artigo 191 do ECA, com a manifestação favorável do MPE, DECRETO O AFASTAMENTO LIMINAR da representada D. C. L. Da função de Gerente do Espaço de Acolhimento, com endereço no ____, bairro Coqueiro, ligado à Secretaria de Estado de Assistência e Desenvolvimento Social do Estado do _____.

Cite-se a representada, por mandado, para que no prazo de 10 (dez) dias, através de advogado, ofereça resposta escrita, podendo juntar documentos e indicar provas a produzir, com ciência desta decisão por cópia.

Na qualidade de litisconsorte passivo obrigatório (art 47, CPC), cite-se o Governo do Estado do Pará, na pessoa de seu Procurador Geral do Estado (inciso I do art. 2º c/c o inciso VII do artigo 5º, de Lei Complementar nº 041, de 29.08.2002).

Notifique-se o(a) titular da Secretaria de Estado para que, no prazo de cinco (5) dias, promova a substituição da representada do cargo de que ora foi afastada, sob pena de multa diária no valor de R$ 1.000,00 (mil reais), a contar do término daquela.

Intime-se o MPE, pessoalmente.

Icoaraci, 25 de fevereiro de 2010


ANTÔNIO CLAUDIO VON LOHRMANN CRUZ
Juiz Titular da 3ª Vara Cível Distrital de Icoaraci - Infância e Juventude




Notas:

* Antônio Claudio Von Lohrmann Cruz é Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Pará. Após a formatura, exerceu a advocacia por quase um ano. Em seguida, exerceu a função de confiança de Vice-Diretor do Presídio São José em Belém. Por aprovação em concurso público, também exerceu o cargo de Promotor de Justiça do Estado do Pará, nos anos de 1985 a 1988. Exerce, desde novembro de 1988, a função de Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Pará e desde janeiro de 2007 é titular da 3a. Vara Cível Distrital de Icoaraci, Caomarca de Belém, com competência para Registros Públicos, Interdições e feitos da Justiça da Infância e da Juventude. Possui, ao londo de sua carreira, inúmeras participações em eventos e cursos jurídicos, tais como o Fórum Mundial de Juízes em Belém, na Escola Nacional da Magistratura (Infância e Juventude), FONAJUV e no CNJ. Magistrado há mais de 21 anos. [ Voltar ]

1 - MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (Org.) et al. Curso de Direito da Criança e do Adolescente - Aspectos Teóricos e Práticos, 2ª. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007. p. 20 a 24. [Voltar]

2 - Ob. cit., 27 a 29 [Voltar]

3 - Ob. cit., p. 613 [Voltar]



JURID - Decisão. Afastamento temporário [28/07/10] - Jurisprudência

 



 

 

 

 

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