Dano moral. Vulneração do princípio da boa-fé contratual. Indenização devida.
Tribunal Regional do Trabalho - TRT15ªR
Processo 3500-98.2008.5.15.0148 RO
Publicado em 25.06.2010
RECURSO ORDINÁRIO
PROCESSO TRT/15ª REGIÃO Nº 0003500-98.2008.5.15.0148 RO
RECORRENTE: FUNCRAF - FUNDAÇÃO PARA O ESTUDO E TRATAMENTO DAS DEFORMIDADES CRÂNIO-FACIAIS
RECORRIDA: OLGA APARECIDA NUNES
ORIGEM: VARA DO TRABALHO DE ITARARÉ
DANO MORAL - VULNERAÇÃO DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ CONTRATUAL - INDENIZAÇÃO DEVIDA.
Comprovado o fechamento da empresa e sua reabertura em outra cidade, distante mais de cento e setenta quilômetros e que, pretendendo continuar contando com a mesma mão-de-obra, o empregador induziu o empregado a mudar-se de onde mantém seus laços familiares e sociais para o novo local, conspira contra o princípio da boa-fé a iniciativa patronal de, após poucos dias, rescindir o contrato de trabalho sem qualquer justificativa, rendendo ensejo à indenização por dano moral.
Recurso ordinário não provido.
Contra a r. sentença de fls. 323/334, proferida pelo MM. Juiz José Guido Teixeira Junior, que julgou parcialmente procedentes os pedidos formulados nesta reclamação trabalhista e cujo relatório adoto, recorre ordinariamente a reclamada, por meio do arrazoado de fls. 336/360, para alegar, em síntese, que a dispensa da reclamante decorre do exercício regular do direito potestativo de resilição contratual, razão pela qual deve ser reputada legítima. Sustenta, em conseqüência, que em face da licitude da dispensa, não há falar-se em dano moral na espécie, motivo por que a r. sentença deve ser reformada. Bate-se, sucessivamente, pela redução da indenização arbitrada na origem. Postula, em suma, a reforma da r. sentença.
Contrariedade da reclamante às fls. 364/366, opinando pelo desprovimento do recurso e pela manutenção da r. sentença.
É o breve relatório.
VOTO
Conheço o recurso, porquanto atendidos os pressupostos legais de admissibilidade.
Os fatos debatidos nestes autos resumem-se da seguinte forma: a reclamante, desde sua contratação, em 2000, prestou serviços em Itararé, cidade em que localizava a reclamada. A partir de 1/10/2007, a reclamada encerrou suas atividades na cidade de Itararé, estabelecendo-se em Itapetininga, distante 177 km (v. http://mapas.uol.com.br), o que obrigou a reclamante a mudar-se, com sua família, para aquela cidade.
Dois meses depois da mudança, em 5/12/2007, a reclamante foi injustamente dispensada. A autora alega que a conduta da reclamada, ao dispensá-la somente dois meses após o processo de transferência, causou-lhe danos morais e materiais, em razão dos transtornos decorrentes da alteração domiciliar.
A recorrente, por sua vez, estriba sua defesa na licitude da transferência que, em face da extinção do estabelecimento, encontra guarida no artigo 469, § 2º, da CLT, e na licitude da dispensa da obreira, feita em conformidade com as disposições legais aplicáveis e com o pagamento correto das indenizações previstas no ordenamento jurídico.
Pois bem.
Nem se discute a licitude da transferência realizada no caso presente; com efeito, é incontroverso o fato da extinção do estabelecimento da reclamada localizado em Itararé, porquanto narrado pela proporia autora na exordial. A discussão suscitada pela obreira, no sentido de que o estabelecimento não teria sido extinto, mas sim transferido, é irrelevante; o fato é que as atividades da reclamada foram efetivamente encerradas na cidade de Itararé, situação suficiente para atrair a incidência da regra permissiva contida no parágrafo 2º do artigo 469 da CLT.
Resta apreciar a dispensa da autora.
E neste aspecto tenho que a r. sentença deve ser integralmente mantida, e assim afirmo com lastro em um fato relevante demonstrado pela prova coletada nos autos: segundo a testemunha Elisiane Rodrigues Santos Zelinski, "... antes da transferência, foram promovidas duas reuniões, sendo comunicado o fechamento da unidade de Itararé e que seria importante que todos os funcionários fossem para Itapetininga pois faziam parte da família FUNCRAF; que foi dito que na condição de família 'o ideal é que todos fossem, que nenhum filho fosse deixado para trás'; que a expectativa para os transferidos para Itapetininga é que lá permanecessem por um bom período; que na reunião ficou bem claro 'que todos nós tínhamos lugar assegurado lá'..." (fl. 87).
Esse depoimento, cujo teor não foi impugnado por contraprova, é de extrema importância para o deslinde da questão. A testemunha deixa claro que não houve promessa de garantia de emprego, mas revela, igualmente, que os empregados da recorrente situados em Itararé eram considerados uma 'família', e que esse status deveria ser mantido na nova unidade de Itapetininga. Esse fato, inclusive, é confirmado pela testemunha patronal, Maria Cristina de Arruda Augusto, que declarou que "... os funcionários foram convidados para a transferência, na condição de participantes 'da família FUNCRAF'..." (fl. 312).
Ao fazer tais considerações, no sentido da existência de uma 'família Funcraf' e da importância de se mantê-la unida, a recorrente demonstrou explicitamente a intenção e fez solidificar na boa-fé dos trabalhadores que, pelo menos por um período razoável, o grupo de trabalhadores de Itararé seriam mantidos em seus postos. Desnecessário realçar que a insistência no "espírito de grupo" foi suficiente para alavancar a confiança desses empregados, incluindo-se a reclamante, em realizar os procedimentos necessários para deslocar integralmente o eixo em que se assentaram suas vidas familiares e sociais, na cidade de Itararé, para uma nova realidade na cidade de Itapetininga. E essa confiança revelava-se de extrema necessidade, tendo em conta a distância que separa as duas cidades, de 177 km, fator impeditivo à manutenção de seus domicílios.
Por conseguinte, ao incentivar seus empregados, e a reclamante em particular, a se deslocarem para Itapetininga, a fim de manter unida a 'família Funcraf', a recorrente expressou uma declaração de vontade quer aderiu ao contrato de trabalho, e à qual se vinculou em virtude dos imperativos da lealdade e da confiança que regem a interpretação e a execução das cláusulas contratuais, à luz do princípio da boa-fé. Em outros dizeres, ao criar a imagem de uma 'família', a recorrente obrigou-se a suportar as conseqüências dela advindas, sendo que a primeira idéia que surge vinculada a esse termo é precisamente a perenidade dos laços.
A observância do princípio da boa-fé, na execução dos contratos em geral, é determinada pelo artigo 422 do CC. E o referido princípio impõe que as partes ajam com lealdade e confiança recíprocas, a fim de proteger o interesse social de segurança das relações jurídicas, de modo a impedir que uma das partes obtenha vantagem indevida fundada no prejuízo da outra parte contratante. Segundo leciona Orlando Gomes, "Para traduzir o interesse social de segurança das relações jurídicas, diz-se, como está expresso no Código Civil alemão, que as partes devem agir com lealdade e confiança recíprocas. Numa palavra, devem proceder com boa-fé" (in Contratos; Ed. Forense; 25ª ed.; p. 23).
Sob esse prisma, a prova dos autos demonstra que a recorrente estimulou na reclamante, e nos demais empregados, a idéia de que havia uma forte união entre todos, a ponto de caracterizar uma 'família' própria, união esta que, se não indissolúvel - não se está cogitando aqui de garantia de emprego - possuía significativa força, capaz inclusive de se equiparar a veros laços familiares. E lastreada nessa demonstração, a reclamante adotou as medidas necessárias para transferir seu domicílio para a cidade de Itapetininga: celebrou contrato de locação de imóvel residencial, efetuou despesas relativas à mudança, e viu seu marido deixar o emprego em Itararé para acompanhá-la. Em suma, houve uma drástica alteração na rotina familiar da reclamante em decorrência de sua transferência. Mas essa alteração estava assentada na confiança e na lealdade com que deve ser executado o contrato de trabalho, ou seja, na boa-fé.
Nesse passo, sempre é de valia o magistério de Orlando Gomes, para quem "compreende-se no princípio da boa-fé a necessidade de compreender ou interpretar o contrato segundo os ditames da lealdade e confiança entre os contratantes, já que não se pode aceitar que um contratante tenha firmado o pacto de má-fé, visando a locupletar-se injustamente à custa do prejuízo do outro. O dever de lealdade recíproca (i. e. honestidade) acha-se explicitado no Código Civil alemão e prevalece em todo o direito de raízes romanas" (op. cit.; p. 24).
E esse dever não foi cumprido pela recorrente que, depois de instigar a recorrida à preservação do espírito de união, da 'família Funcraf', dispensou-a apenas dois meses após a transferência, sem justificativa plausível. Nesse aspecto, aliás, as alegações da recorrente beiram as fímbrias da aleivosia, pois não há prova alguma de que a reclamante tenha incorrido em desídia e insubordinação na execução de suas obrigações contratuais.
Assim, em resumo, a prova dos autos demonstra que a recorrente, ao noticiar seus empregados sobre a desativação da unidade de Itararé, incutiu-lhes um espírito de união, cuja manutenção seria necessária nas novas instalações de Itapetininga. E fundada nesse incentivo, a reclamante adotou as medidas necessárias para sua transferência, com todas as conseqüências, sendo que, ao cabo de apenas dois meses, foi dispensada de forma imotivada. Ditou de outro modo, a reclamada incorreu no venire contra factum proprium, ao adotar uma conduta contraditória com outra anteriormente adotada.
Fica patente, pois, que a recorrente quebrou o princípio da boa-fé na terminação do contrato de trabalho da autora. E, segundo estabelece o artigo 187 do CC, "Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos costumes" (grifamos).
Por conseguinte, força é concluir que a terminação do contrato de trabalho da autora ocorreu fora dos limites da boa-fé, caracterizando-se como ato ilícito passível de reparação, nos termos do artigo 927 do CC.
Correta, portanto, a r. sentença de origem que fica mantida integralmente no particular.
E em relação ao quantum arbitrado pelo juízo de origem, melhor sorte não acompanha a recorrente.
Isso porque não se pode ter em mira somente o caráter compensatório da indenização, uma vez que, no caso específico do dano moral, se torna impossível a restituição, pela via indenizatória, ao statu quo ante verificável quando da apuração de indenização por dano material. Em outras palavras, não há como pagar a dor perpetrada pelo ato ilícito, pelo que a indenização, nesse sentido, teria apenas o poder de atenuá-la.
Toma força, portanto, o caráter punitivo/pedagógico da indenização, referente à aplicação de uma sanção ao ofensor, de sorte a imputar-lhe prejuízo tal que lhe incuta um comportamento de abstenção, quanto à conduta praticada, em relação a futuras situações fáticas análogas. Consoante ensina Carlos Alberto Bittar, "o peso do ônus financeiro é, em um mundo em que cintilam interesses econômicos, a resposta pecuniária mais adequada a lesionamentos de ordem moral" (in A reparação civil por danos morais; Ed. RT; 2ª ed.; 1994; p. 222).
Assim, tendo em conta a capacidade financeira da reclamada, bem como a gravidade e extensão do dano perpetrado (art. 944 do CC), concluo que o valor arbitrado pelo juízo a quo (R$ 20.000,00) é compatível com a situação fática desvelada nos autos, à luz dos princípios da razoabilidade e da ponderação, motivo pelo qual nego provimento ao apelo.
Ante o exposto, decide-se conhecer o recurso interposto e, no mérito, negar-lhe provimento, mantendo-se íntegra a r. sentença recorrida por seus próprios fundamentos. Custas na forma da lei.
Luiz José Dezena da Silva
Juiz Relator
JURID - Dano moral. Vulneração do princípio da boa-fé contratual. [23/07/10] - Jurisprudência
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