Constitucional. Administrativo. Civil. Usucapião. Terreno de marinha. Prédio construído mediante a expedição.
Tribunal Regional Federal - TRF3ªR
APELAÇÃO CÍVEL Nº 96.03.058814-8/SP
RELATOR: Desembargador Federal ANDRÉ NEKATSCHALOW
APELANTE: WALKIRIA GAIO VITAGLIANO e outro
: LUIZ VITAGLIANO
ADVOGADO: RITA DE FIGUEIREDO PEREIRA BOTTO DA FONSECA
APELADO: Uniao Federal
ADVOGADO: GUSTAVO HENRIQUE PINHEIRO DE AMORIM
Nº. ORIG.: 89.02.00075-3 2 Vr SANTOS/SP
EMENTA
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CIVIL. USUCAPIÃO. TERRENO DE MARINHA. PRÉDIO CONSTRUÍDO MEDIANTE A EXPEDIÇÃO, PELA UNIÃO, DE ALVARÁ RELATIVO À TRANSFERÊNCIA DE DIREITOS DE AFORAMENTO. SITUAÇÃO REGISTRÁRIA DO TERRENO E DA EDIFICAÇÃO DEVIDAMENTE FORMALIZADA NO CARTÓRIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS. SUCESSIVOS REGISTROS DAS UNIDADES HABITACIONAIS DE OUTROS CONDÔMINOS. PRETENSÃO À REGULARIZAÇÃO DA UNIDADE HABITACIONAL DOS AUTORES. PEDIDO INICIAL JULGADO PROCEDENTE.
1. Não há discussão quanto aos seguintes pontos: a) o imóvel usucapiendo encontra-se em terreno de marinha, pois nele construído o pavimento térreo sobre o qual se erige a unidade habitacional dos autores; b) a União não constituiu enfiteuse sobre o imóvel, o que impede que seja declarado o usucapião tão-somente sobre o domínio útil, visto não se conceber a constituição dessa modalidade de direito real nesta sede; c) a União, ciente de que se tratava de terreno de marinha e exatamente por que se tratava de terreno de marinha, expediu "alvará relativo a transferência de direitos de aforamento", conferindo título jurídico para o registro do bem como propriedade privada no registro imobiliário competente; d) após esse registro, construída a edificação, vieram a ser averbadas as unidades condominiais e subseqüentes transferências; e) os autores adquiriram uma das unidades habitacionais, sem contudo dispor de justo título para averbação no registro imobiliário; f) à míngua de justo título, intentam ação de usucapião para regularizar a titularidade jurídica do imóvel; g) a isolada circunstância de sua unidade habitacional encontrar-se em terreno de marinha, à vista dessa sucessão de fatos, incontroversos nos autos, não há impedimento ao acolhimento do pedido.
2. A circunstância de as testemunhas conhecerem os autores há 15 (quinze) anos não desabona a pretensão inicial. Não é imprescindível que as testemunhas conhecessem os demandantes desde o tempo em que tornaram-se possuidores do imóvel, cumprindo valorar seus depoimentos à luz do contexto da situação de fato alegada na petição inicial. No caso específico, trata-se de apartamento construído nos anos de 1949-1950, sendo certo que os testemunhos são uníssonos no sentido da antigüidade da posse dos autores que, inclusive, se abalançaram a trazer aos autos recibos que, em princípio, excedem o período referido pelas testemunhas. Nesse sentido, deve-se entender as declarações de que os autores já se encontravam na posse do imóvel quando as testemunhas passaram a morar no prédio como razoáveis e sugestivas de que aqueles ingressaram na posse 20 (vinte) anos antes da propositura da ação. Não há razão para desacreditar os fatos articulados na petição inicial, considerado o contexto probatório existente nos autos.
3. Apelação provida.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Quinta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, dar provimento ao recurso de apelação, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
São Paulo, 19 de abril de 2010.
Andre Nekatschalow
Desembargador Federal Relator
VOTO
Os apelantes intentaram a presente demanda para que lhes fosse reconhecido o direito à aquisição da unidade 1.502 do ed. Mirante, localizado na Av. Getúlio Vargas, 109, São Vicente (SP), com área construída de 105,65m2, fração ideal 32/1.000. Aduzem que exerciam a posse mansa e pacífica sobre o imóvel por mais de 20 (vinte) anos, de sorte que se tornaram então proprietários do bem.
Ocorre que a União contestou o pedido inicial, objetando que em verdade o imóvel é bem de sua propriedade, portanto público e insuscetível de aquisição por essa via originária. Esclarece que o imóvel foi edificado em terreno de marinha, nos termos do Decreto-lei n. 9.760/46, vale dizer, em profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente para a parte da terra, da posição da linha preamar médio de 1831.
A contestação da União implicou o deslocamento da competência da Justiça do Estado para a Justiça Federal. A intervenção do ente federal, com efeito, enseja a competência da última. De resto, a sentença encontra-se adequadamente provida de relatório, fundamentação e dispositivo, não havendo que se falar em nulidade, a qual fica desde logo afastada.
Conforme se verifica do laudo do Perito Oficial (fls. 293/297) e do respectivo esclarecimento (fl. 331/332), infere-se que o imóvel foi edificado em terreno de marinha:
A planta de fls. 319, juntada aos autos pela Ré, mostra a faixa de terrenos de marinha, de 33m de largura, ao longo da Av. Presidente Getúlio Vargas, de um dos lados do Morro dos Barbosas, em São Vicente, onde se encontra o terreno do imóvel desta ação.
Como se vê na citada planta, a linha limite da faixa de marinha, do lado do mar, situa-se sobre a linha externa do passeio em frente aos terrenos locais. Medindo-se, daí, no local da ação, aos 33 metros da faixa em direção ao Morro dos Barbosas, verifica-se, facilmente, que o edifício do apartamento em causa foi levantado com o pavimento térreo ocupando a faixa da marinha referida, tanto na largura como na profundidade.
Consequentemente, pode-se afirmar, ante a planta de fls. 319 e o posicionamento da faixa de marinha que dela consta, que o edifício do apartamento desta ação foi edificado com seu pavimento térreo totalmente contido na referida faixa (fls. 331/332).
É evidente que esse esclarecimento, ao referir-se ao "pavimento térreo", demonstra que a unidade habitacional sobre esse edificada igualmente encontra-se dentro do perímetro considerado terreno de marinha, sem embargo da objeção de que o terreno sobre o qual tal edificação ter sido construída, obviamente mais amplo, não pertença a esse perímetro em sua totalidade. Fica certo, por incontroverso nos autos, que o apartamento que se encontra em nível superior ao pavimento térreo, a fortiori encontra-se em terreno de marinha.
A dificuldade para dirimir a presente demanda não é de ordem fatual, mas jurídica, na medida em que igualmente não se controverte a respeito da existência de registro imobiliário dando conta não somente da aquisição regular do terreno sobre o qual veio a ser edificado o prédio, como também a própria averbação deste, da unidade condominial específica dos autores, que se encontra registrado em nome dos antigos proprietários, a saber, Affonso Vidal e Olavo Ferreira Lima (fl. 14), surgindo então a questão sobre a possibilidade da aquisição do imóvel pelo usucapião.
O Ilustre Procurador Regional da República, Dr. Marlon Alerto Weichert, observa a jurisprudência admite o usucapião relativamente ao domínio útil (fls. 405/408), mas a União pondera que não é disso de que se trata: "tal possibilidade somente existiria diante da existência de enfiteuse já anteriormente instituída" (fl. 415) ou, em outras palavras, não se concebe a aquisição do domínio útil com a procedência do pedido de usucapião contra o antigo proprietário porque este não desfruta de semelhante condição, à míngua de regular constituição da enfiteuse.
De certo modo, é procedente a objeção da União. Não tendo sido constituída a enfiteuse, não se pode falar, sem nenhum desconto, em usucapião do domínio útil. No entanto, no caso em apreço, a falta de constituição da enfiteuse resolve-se contrariamente aos interesses do ente federal, na medida em que ele próprio editou ato permissivo da constituição da propriedade plena em favor do real titular do domínio do imóvel, conforme se infere da Averbação n. 4 da Transcrição n. 12.691, Livro 3H, fls. 278, do 3º Cartório de Registro de Imóveis de Santos, segundo a qual o imóvel foi adquirido por Affonso Vidal e Olavo Ferreira Lima por escritura de compra e venda de 22.07.47 (fls. 13/14). No que se refere particularmente à circunstância de tratar-se de terreno de marinha, assim consta do registro:
(...) para ficar constando que parte do terreno retro descrito é de marinha, conforme alvará relativo a transferência de direitos de aforamento concedido pelo Ministério da Fazenda, pelo Serviço de Patrimônio da União, Delegacia em S. Paulo, transcrito no título, bem como a metragem de frente do terreno ao lado descrito, que mede 34,00 metros de extensão em linha reta, linha essa que se extende entre os pontos A-C do Alvará e que segundo o mesmo alvará dita frente se descreve por duas linhas - A-B e B-C, medindo elas respectivamente 16,69 metros e 17,34 metros, que perfazem uma diferencia mínima de 0,03 centímetros, averbação essa feita através escritura de 31/1/1952, do 17º Tabelião de S. Paulo. (sic, fl. 13v.).
Segue-se que a afirmação da União no sentido de que não teria sido constituído a enfiteuse e, por essa razão, restaria inadmissível o usucapião, não pode ser aceita. A própria União reconhece a concessão de aforamento e permite, sem nenhuma ressalva, a constituição da propriedade particular sobre o terreno e a edificação que sobre ele veio a ser erigida, gerando registros das transações imobiliárias subseqüentes, inclusive a inauguração de matrícula para pelo menos algumas das unidades habitacionais.
Do mesmo modo que não há registro da enfiteuse, de sorte a inviabilizar o usucapião do domínio útil, à míngua do registro imobiliário correspondente (a procedência do pedido ensejaria a criação de matrícula em nome da União?), também não se pode negar a existência de registro em nome de particular, o qual foi realizado, de qualquer modo, com a chancela da União, posto que em terreno de marinha: procedente o pedido inicial, isto é, considerada perfeita a aquisição da propriedade pela via originária, cumpre promover o registro correspondente destituindo-se o proprietário e criando-se um registro novo (matrícula) para o real titular do domínio. Não parece legítimo que a União possa vir contra seu próprio fato de admitir a aquisição da propriedade imobiliária (domínio pleno) pelo particular, ao qual foi assegurado o direito de nela edificar prédio de apartamentos, sob o fundamento de que, passados mais de 62 (sessenta e dois) anos de pacífico reconhecimento da propriedade (transcrição de 24.07.47, fl. 12), deu-se conta de que o imóvel seria inalienável.
Em resumo, não há discussão quanto aos seguintes pontos: a) o imóvel usucapiendo encontra-se em terreno de marinha, pois nele construído o pavimento térreo sobre o qual se erige a unidade habitacional dos autores; b) a União não constituiu enfiteuse sobre o imóvel, o que impede que seja declarado o usucapião tão-somente sobre o domínio útil, visto não se conceber a constituição dessa modalidade de direito real nesta sede; c) a União, ciente de que se tratava de terreno de marinha e exatamente por que se tratava de terreno de marinha, expediu "alvará relativo a transferência de direitos de aforamento", conferindo título jurídico para o registro do bem como propriedade privada no registro imobiliário competente; d) após esse registro, construída a edificação, vieram a ser averbadas as unidades condominiais e subseqüentes transferências; e) os autores adquiriram uma das unidades habitacionais, sem contudo dispor de justo título para averbação no registro imobiliário; f) à míngua de justo título, intentam ação de usucapião para regularizar a titularidade jurídica do imóvel; g) a isolada circunstância de sua unidade habitacional encontrar-se em terreno de marinha, à vista dessa sucessão de fatos, incontroversos nos autos, não impede o acolhimento do pedido.
No que se refere aos demais requisitos para a aquisição do bem pela via do usucapião, penso que a sentença foi excessivamente restritiva na análise da prova existente nos autos.
As testemunhas ouvidas em audiência de justificação afirmaram conhecer os autores, aos quais reconheceram a qualidade de titulares de posse mansa e pacífica sobre o apartamento, havia mais de 15 (quinze) ou 16 (dezesseis) anos.
Com efeito, Itália Schepis Araujo dos Santos disse que conhecia os autores há mais de 16 (dezesseis) anos, os quais já residiam no imóvel 9fl. 63v.). Newton Veja Gurgel disse que os autores já moravam no imóvel quando os conheceu em 1971 (fl. 64). José Edson Franco afirmou residir no imóvel desde 1976, sendo que os autores então já moravam no imóvel usucapiendo (fl. 65).
A audiência de justificação foi realizada em 26.09.85 (fl. 62). Por outro lado, os autores juntaram nos autos, com suas razões de apelação, guias de pagamento de água e de recolhimento de imposto de 1968, além de recibos de despesas condominiais de 1968 a 1977 (fls. 353/364).
A circunstância de as testemunhas conhecerem os autores há 15 (quinze) anos não desabona a pretensão inicial. Não é imprescindível que as testemunhas conhecessem os demandantes desde o tempo em que tornaram-se possuidores do imóvel, cumprindo valorar seus depoimentos à luz do contexto da situação de fato alegada na petição inicial. No caso específico, trata-se de apartamento construído nos anos de 1949-1950, sendo certo que os testemunhos são uníssonos no sentido da antigüidade da posse dos autores que, inclusive, se abalançaram a trazer aos autos recibos que, em princípio, excedem o período referido pelas testemunhas. Nesse sentido, deve-se entender as declarações de que os autores já se encontravam na posse do imóvel quando as testemunhas passaram a morar no prédio como razoáveis e sugestivas de que aqueles ingressaram na posse 20 (vinte) anos antes da propositura da ação. Não há razão para desacreditar os fatos articulados na petição inicial, considerado o contexto probatório existente nos autos.
Ante o exposto, DOU PROVIMENTO ao recurso para julgar procedente o pedido inicial e declarar a propriedade de Walkiria Gaio Vitagliano e seu marido Luiz Vitagliano sobre o Apartamento n. 1.502 do Ed. Mirante, localizado na Av. Getúlio Vargas, 109, São Vicente (SP). Custas ex lege. Condeno a União em honorários advocatícios de R$1.000,00 (mil reais), com fundamento no art. 20, § 4º, do Código de Processo Civil.
É o voto.
Andre Nekatschalow
Desembargador Federal Relator
RELATÓRIO
Trata-se de apelação interposta por Walkiria Gaio Vitagliano e Luiz Vitagliano contra a respeitável sentença de fls. 341/347, que julgou improcedente o pedido inicial e extinguiu o processo com resolução do mérito, condenando os autores em custas processuais remanescentes e honorários advocatícios fixados em 2 (dois) salários mínimos.
Alegam os apelantes, em síntese, o seguinte:
a) é nula a sentença, uma vez que a União não comprovou que o imóvel é abrangido por terrenos de marinho, cumprindo os autos serem remetidos à Justiça do Estado;
b) os autores exercem a posse mansa e pacífica sobre o imóvel por mais de 30 (trinta) anos;
c) propuseram então ação de usucapião na Justiça do Estado, na qual teve processamento normal, inclusive com oitiva de testemunhas, moradores do edifício onde se localiza o apartamento usucapiendo, as quais confirmaram que os autores encontravam-se na posse há mais de 20 (vinte) anos;
d) são nesse sentido os depoimentos de Newton Vega Gurgel e José Edson Franco, de modo que está configurado o requisito temporal;
e) posteriormente, a União manifestou interesse, tendo em vista a possibilidade de o imóvel estar em terreno de marinha, o que ensejou a redistribuição dos autos para a Justiça Federal;
f) na sentença, a MMa. Juíza afirmou entender que a União não comprovara que o imóvel se encontrava em terreno de marinha;
g) as testemunhas ratificaram a intenção dos autores sobre o imóvel usucapiendo, tendo sido aproveitada a audiência de justificação de posse na Justiça Federal;
h) não sendo acatada a tese de haver tempo suficiente, tal ensejaria a adoção de novas providências pelos apelantes para propor nova ação, o que envolveria altos custos;
i) o art. 183 da Constituição da República estabelece que aquele que possuir imóvel urbano de até 250 metros por 5 (cinco) anos ininterruptos e sem oposição, adquriri-lhe-á o domínio;
j) aguardam a decretação da nulidade ou a reforma da sentença (fls. 348/351).
A União ofereceu contrarrazões (fls. 370/372).
Manifestou-se a Ilustre Procuradora Regional da República, Dra. Maria Luisa R. de Lima Carvalho Duarte, no sentido do acolhimento da preliminar de incompetência absoluta da Justiça Federal (fls. 373/377).
Manifestaram-se os autores no sentido de desistir, em parte, da apelação, no que se refere ao pedido de nulidade da sentença, bem como para invocar o novo prazo de aquisição da propriedade pelo usucapião instituído pelo art. 183 da Constituição da República e pela Lei n. 10.257/01, além do art. 1.238 do Novo Código Civil (fls. 392/400).
Manifestou-se o Ilustre Procurador Regional da República, Dr. Marlon Alberto Weichert, no sentido do provimento da apelação (fls. 402/409).
Os autos foram encaminhados ao revisor, nos termos regimentais.
É o relatório.
Andre Nekatschalow
Desembargador Federal Relator
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JURID - Civil. Usucapião. Terreno de marinha. Expedição. [27/07/10] - Jurisprudência
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