Apelações criminais. Crime contra o patrimônio. Estelionato (art. 171, caput, do CP).
Tribunal de Justiça de Santa Catarina - TJSC
Apelação Criminal n. 2009.031169-4, de São Lourenço do Oeste
Relatora: Desa. Marli Mosimann Vargas
APELAÇÕES CRIMINAIS. CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO. ESTELIONATO (ART. 171, CAPUT, DO CP). AGENTES QUE, FAZENDO USO DE CHEQUES CLONADOS, INDUZIRAM VÍTIMAS EM ERRO, OBTENDO, ASSIM, VANTAGEM INDEVIDA. SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA.
PLEITO ABSOLUTÓRIO DO APELANTE EVERALDO EM FUNÇÃO DA AUSÊNCIA DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. AUTORIA E MATERIALIDADE DELITIVA DEVIDAMENTE COMPROVADAS. CONFISSÃO DO APELANTE QUE, ALIADA AS PALAVRAS DA VÍTIMA ENSEJAM A MANUTENÇÃO DO ÉDITO CONDENATÓRIO.
[...] "Comete crime de estelionato quem, sabendo estar na posse de cheque clonado, preenche-o e passa-o a comerciante, obtendo, por esse meio, vantagem ilícita em prejuízo de terceiros. (AC n. 2005.041618-1, de Jaraguá do Sul, rel. Des. Solon d'Eça Neves, j. 21/2/2006)."
PLEITO ABSOLUTÓRIO DE AMBOS OS APELANTES EM FUNÇÃO DO RECONHECIMENTO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INVIABILIDADE. EFETIVA LESÃO AO BEM JURÍDICO TUTELADO. RES FURTIVA DE RELEVANTE VALOR. CONDUTA REPROVÁVEL E FATO SOCIALMENTE RELEVANTE. AUSÊNCIA DOS VETORES QUE AUTORIZAM SUA APLICAÇÃO. RECURSO NÃO PROVIDO NO PONTO.
[...] "E na aferição do relevo material da tipicidade penal, notadamente nos crimes contra o patrimônio, torna-se indispensável a presença de vetores para se legitimar a descaracterização do crime à luz da máxima da insignificância, tais como a mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada, não sendo possível sua aplicação, entretanto, quando houver prejuízo de grande monta à vítima e quando a conduta perpetrada pelo agente é capaz de causar reprovabilidade, por não ser insignificante à tutela do Direito Penal. [...] (Revisão Criminal n. 2008.062438-5, de Laguna, rel. Desa. Salete Silva Sommariva, j. 11/5/2009)."
RECURSOS CONHECIDOS E DESPROVIDOS.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal n. 2009.031169-4, da comarca de São Lourenço do Oeste, em que são apelantes Everaldo Ferreira da Silva e João Carlos Camelo e apelada A Justiça, por seu Promotor:
ACORDAM, em Primeira Câmara Criminal, por votação unânime, conhecer dos recursos e negar-lhes provimento. Custas legais.
RELATÓRIO
O representante do Ministério Público da Comarca de São Lourenço do Oeste/SC ofereceu denúncia contra Everaldo Ferreira da Silva e João Carlos Camelo pela prática dos delitos de falsidade ideológica, estelionato e quadrilha (arts. 299, 171 e 288 do Código Penal), assim descritos na inicial acusatória:
Consta do inquéritos policiais n°s 066.02.000531-3 e 066.02.000536-4, em anexo, que os acusados EDIBERTO LUIZ DA SILVEIRA, de alcunha "Magaiver"; CLODOALDO LUIZ DE MATTOS, de alcunha "Clodo"; RADAMÉS CÍCERO ECKERT; JOÃO CARLOS CAMELO, de alcunha "Camelo"; CLENIR RODRIGUES DA SILVA; EVERALDO FERREIRA DA SILVA, de alcunha "Nego Vêra", e GILVAN LUIZ DA COSTA, de alcunha "Mano", uniram-se em quadrilha para, em comunhão de vontades, praticarem crimes contra a fé pública e para obterem vantagem patrimonial ilícita, tendo sempre a iniciativa da ação por parte do acusado EDIBERTO, eis que, em razão da profissão de técnico gráfico que possui, passou a clonar folhas de cheques de terceiros e os distribuía aos demais acusados, que se encarregavam de passá-los adiante, principalmente em estabelecimentos comerciais, induzindo as vítimas a erro, conforme descrição dos fatos que seguem.
Fato 01 (inquérito policial n° 066.02.000531-3)
1.1 No mês de janeiro de 2002, em data que a instrução poderá apurar, EDIBERTO atendeu a solicitação de CLODOALDO LUIZ DE MATTOS e efetuou a "clonagem" de uma folha de cheque do Banco do Brasil, em nome da empresa ERVATEIRA LOURENCIANA, de propriedade do acusado CLODOALDO e de sua família, de cuja folha houve a extração várias cópias, as quais esse acusado encarregou-se de distribuir a outros integrantes da quadrilha, sendo que a maioria foi entregue ao acusado RADAMÉS CÍCERO ECKERT.
1.2. Duas dessas folhas, ambas contendo o mesmo número 270820, o acusado RADAMÉS preencheu-as no valor de R$ 70,00 (setenta reais) cada uma, datando-as de 28.01.02 e 29.01.02, cujas cópias estão às fls. 91/IP, e as entregou aos acusados JOÃO CARLOS CAMELO e CLENIR RODRIGUES DA SILVA, mediante a singela retribuição do valor de R$ 10,00 para cada folha.
1.3. Com um dos cheques preenchidos no valor de R$ 70,00, os acusados JOÃO CARLOS CAMELO e sua amásia CLENIR RODRIGUES DA SILVA, em comunhão de vontades para praticarem o crime de estelionato, mediante o ato de induzirem terceiros de boa-fé a erro, compareceram no Bar Paulino, localizado na rua Monte Castelo, n° 365, próximo ao trevo do bairro Santa Catarina, nesta cidade, de propriedade da vítima LUIZ PAULO LAZAROTTO (fls. 14/IP n° ...531-3), e lá adquiriram cerveja, cartão telefônico, uma garrafa de conhaque e uma de bitter águia, totalizando a despesa em R$ 18,00. Em pagamento, entregaram o cheque referido, sendo que, na ocasião, a acusada CLENIR identificou-se com o nome falso de ROBERTA MOREIRA, com o qual assinou no verso do cheque, cuja cópia está a fls. 33/34/IP, o que foi confirmado pela perícia de fls. 88/IP, recebendo de troco o valor de R$ 52,00 (cinqüenta e dois reais). Ao levar esse cheque ao banco para tentar sacar a importância nele consignada, a vítima foi informada que se tratava de cheque "clonado", portando falsificado, o que restou afirmado pela perícia de fls. 87 a 103/IP, ficando essa vítima no prejuízo do valor de R$ 70,00. A cópia desse cheque está a fl. 91/IP e a fls. 26/IP consta o reconhecimento dos acusados procedido por essa vítima.
Fato 02 (inquérito policial n° 066.02.000531-3)
2.1. De posse de outro cheque com o mesmo número 270820, também pertencente à empresa ERVATEIRA A LOURENCIANA e preenchido pelo acusado RADAMÉS, no valor de R$ 70,00, os acusados JOÃO CARLOS CAMELO e sua amásia CLENIR RODRIGUES DA SILVA, em comunhão de vontades para praticarem o crime de estelionato, mediante o ato de induzirem terceiros de boa-fé a erro, compareceram na mercearia e padaria pertencente à vítima JAIRO GRANDO (fls. 15/IP), localizada na rua Tiradentes, n° 21, bairro São Francisco, nesta cidade, onde encomendaram uma torta no valor de R$ 22,00 (vinte e dois reais) para pegarem no dia seguinte, tendo a acusada CLENIR informado que trabalhava na empresa PARATI, nesta cidade. Na ocasião, manifestaram interesse em deixar a encomenda já paga, daí porque entregaram o cheque antes referido, no valor de R$ 70,00 (setenta reais), recebendo o troco de R$ 48,00. No entanto, no dia seguinte eles não retornaram para apanhar a encomenda. Quando se dirigiu ao banco para sacar a importância antes referida, a vítima foi informada que o cheque era fruto de "clonagem" e, portanto, falsificado, o que restou afirmado pela perícia de fls. 87 a 103/IP, ficando, então, com o prejuízo da importância referida. A cópia desse cheque está a fls. 91/IP e a fls. 26/IP consta o reconhecimento dos acusados procedido por essa vítima.
Fato 03 (inquérito policial n° 066.02.000531-3)
3.1. Uma das cópias clonadas da folha de cheque original n° 270820, da empresa ERVATEIRA A LOURENCIANA-ME, foi preenchida provavelmente pelo acusado RADAMÉS, no valor de R$ 132,00 (centro e trinta e dois reais), com data de 16.01.02, cuja cópia está a fls. 91/IP, e depois devolvida para CLODOALDO LUIZ DE MATTOS, proprietário da empresa referida, o qual pediu ao outro acusado, EVERALDO FERREIRA DA SILVA, o "Nego Vêra", que providenciasse a troca desse cheque.
3.2. Atendendo essa solicitação, o acusado EVERALDO compareceu no "Bar Azul", de propriedade da vítima VALDIR COLET (fls. 16/IP), localizado na rua Guilherme Hack, n° 339, nesta cidade, onde adquiriu cerveja, cigarros, refrigerantes e salame, totalizando a despesa em R$ 39,00. Em pagamento, ele entre entregou o cheque no valor de R$ 132,00, dizendo que era empregado da empresa ERVATEIRA A LOURENCIANA e que recebera o cheque em pagamento por serviços realizados, recebendo de troco a importância de R$ 93,00 (noventa e três reais). Quando se dirigiu ao banco para sacar a importância antes referida, a vítima foi informada que o cheque era fruto de "clonagem" e, portanto, falsificado, o que restou afirmado pela perícia de fls. 87 a 103/IP, ficando, então, com o prejuízo da importância de R$ 132,00, consignada no cheque.
Fato 04 (inquérito policial n° 066.02.000536-4)
4.1. O acusado EDIBERTO afirmou a fls. 08 do IP acima que estava na posse do cheque juntado a fls. 94/IP, n° 000310, do banco Bradesco, agência de São Miguel do Oeste, do correntista JOSÉ EBRAIR DE OLIVEIRA, no valor de R$ 45,00, emitido com data de 11.09.98, que lhe foi entregue em pagamento por EVERALDO FERREIRA DA SILVA, mas que fora devolvido pelo banco sacado por contra-ordem do emitente (código 21), em razão de tratar-se de material obtido por meio de furto, conforme registro de perda de documentos e objetos que está a fls. 48/IP.
4.1.2. Em razão da solicitação de clonagem de uma folha de cheque que lhe fez o acusado JOÃO CARLOS CAMELO, o qual disse que necessitava fazer compras, EDIBERTO resolveu fazer a clonagem a partir do cheque original que estava em seu poder, antes referido, o qual utilizou com documento padrão para extrair uma folha em branco, alterando os dados referentes ao número da conta, o nome do correntista e o n° do CPF, isto para diferir dos dados constantes em outras cópias clonadas do mesmo documento padrão. Ao concluir o serviço, entregou para JOÃO CARLOS CAMELO a cópia do cheque com os campos dos valores em branco, recebendo como pagamento o singelo valor de R$ 15,00 (quinze reais).
Fato 05 (inquérito policial n° 066.02.000536-4)
5.1 No dia 01 de fevereiro de 2002, o acusado EDIBERTO DA SILVEIRA, atendendo pedido de GILVAN LUIZ DA COSTA, falsificou uma folha de cheque pelo processo de clonagem e a entregou a GILVAN mediante o pagamento do valor de R$ 10,00. Porém, a autoridade policial não logrou apurar se GILVAN fez uso dessa folha para obter vantagem patrimonial ilícita, já que nenhuma vítima fez registro de ocorrência de haver sofrido algum prejuízo praticado por ele, restando consumado somente o crime de falsidade praticado por EDIBERTO."
Encerrada a instrução, o magistrado julgou parcialmente procedente a denúncia para o fim de: a) absolver os acusados Ediberto Luiz da Silveira, Clodoaldo Luiz de Matos e Radamés Cícerto Eckert das imputações que lhes foram feitas, com base no art. 386, VI, do Código de Processo Penal; b) condenar os acusados João Carlos Camelo e Clenir Rodrigues da Silva ao cumprimento de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de reclusão e ao pagamento de 20 (vinte) dias-multa, como incurso nas sanções do art. 171, caput, c/c art. 29, ambos do Código Penal, por duas vezes; d) condenar o réu Everaldo Ferreira da Silva ao cumprimento de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de reclusão e ao pagamento de 15 (quinze) dias-multa.
Em seguida foi decretada a prescrição da pretensão punitiva em relação a ré Clenir Rodrigues da Silva com base no art. 107, IV, c/c art. 109, VI e art. 115, todos do Código Penal.
Inconformados, os réus Everaldo Ferreira da Silva e João Carlos Camelo interpuseram recurso de apelação, aquele objetivando sua absolvição ante a falta de provas da imputação articulada na exordial acusatória , bem como em função do reconhecimento do princípio da insignificância (fls. 437/440), e este pleiteando sua absolvição em face do princípio da insignificância (fls. 462/467).
Em contrarrazões, requereu o Ministério Público a manutenção da sentença (fls. 441/446 e 474/475).
Ascenderam os autos e, nesta instância, manifestou-se a douta Procuradoria-Geral de Justiça, por intermédio do Dr. Odil José Cota, pelo conhecimento e desprovimento dos recursos (fls. 490/497).
Vieram os autos conclusos.
É o relatório necessário.
VOTO
Trata-se de apelação criminal interposta por Everaldo Ferreira da Silva e João Carlos Camelo contra sentença que os condenou pela prática do crime de estelionato (art. 171, caput, do Código Penal).
Pretendem os apelantes, em síntese, serem absolvidos. Para tanto, João Carlos Camelo clama pelo reconhecimento do princípio da insignificância. Everaldo Ferreira da Silva usa o mesmo argumento, além de alegar a falta de provas da imputação articulada na exordial acusatória.
Presentes os pressupostos de admissibilidade, conhece-se dos reclamos e passa-se à análise dos seus objetos, em tópicos separados, conforme segue:
1 EVERALDO FERREIRA DA SILVA
1.1 PLEITO ABSOLUTÓRIO EM FUNÇÃO DA AUSÊNCIA DE PROVAS
Extrai-se dos autos que o apelante Everaldo Ferreira adquiriu mercadorias no "Bar Azul", de propriedade da vítima Valdir Colet, no montante de R$ 39,00 (trinta e nove reais), dando em pagamento um cheque no valor de R$ 132,00 (cento e trinta e dois reais), recebendo de troco a importância de R$ 93,00 (noventa e três reais). Ocorre que quando sacados os cheques junto ao banco, as vítimas foram informadas de que estes eram falsificados.
Nesse contexto, a materialidade delitiva demonstra-se através do Boletim de Ocorrência (fl. 10), do Auto de Exibição e Apreensão (fls. 12/14), bem como dos Laudos Periciais (fls. 83/101, 103/123 e 213/225).
A autoria dos fatos, da mesma forma, é inequívoca, sobretudo por ser confessa (fl. 248):
[...] que o réu recebeu o cheque descrito no item 3.1 da denúncia, da empresa Ervateira Lorenciana de Francis Aurélio; que o cheque estava preenchido e assinado; que o réu não sabe porque Francis estava com um cheque da empresa Ervateira Lorenciana; que o réu não sabe porque Francis não trocou o cheque; que o réu trocou no estabelecimento, Bar Azul, de propriedade de um amigo; que o réu entregou o troco para Francis e ficou com uma parte das mercadorias que adquiriu [...].
As palavras da vítima Valdir Colett não divergem (fl. 22):
[...] que o declarante é proprietário de um bar denominado Bar Azul, no endereço acima; Que diz em meados do mês de janeiro de 2002, pela parte da tarde, esteve no bar do declarante um rapaz de cor morena, estatura mediana, o qual é conhecido como NEGO VERA, o qual adquiriu cerveja, cigarro, refrigerantes e salame, resultando tudo R$ 39,00; QUE como forma de pagamento, ofereceu um cheque da Ervateira Lourenciana no valor de R$ 132,00 reais, alegando que era funcionário da referida empresa e que tinha recebido o cheque como pagamento de dias trabalhados; QUE como se tratava de cheque de empresa, o declarante recebeu o cheque e descontou o valor gasto, devolvendo a importância de R$ 93,00 reais em dinheiro vivo; QUE o tal rapaz tinha freqüentado o bar apenas algumas vezes e depois da data dos fatos, não mais apareceu [...].
Diante do exposto, concluí-se ter ocorrido a perfectibilização do tipo penal do art. 171, caput, do CP: "obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou quaisquer outro meio fraudulento".
Acerca do núcleo do tipo do crime em análise, leciona Guilherme de Souza Nucci:
[...] a conduta é sempre composta. Obter vantagem indevida induzindo ou mantendo alguém em erro. Significa conseguir um benefício ou um lucro ilícito em razão do engano provocado na vítima. Esta colabora com o agente sem perceber que está se despojando de seus pertences. Induzir quer dizer incutir ou persuadir e manter significa fazer permanecer ou conservar. Portanto, a obtenção da vantagem indevida deve-se ao fato de o agente conduzir o ofendido ao engano ou quando deixa que a vítima permaneça na situação de erro na qual se envolveu sozinha. É possível, pois, que o autor do estelionato provoque a situação de engano ou apenas dela se aproveite. De qualquer modo, comete a conduta proibida. (Nucci, Guilherme de Souza. Código penal comentado, 5ª ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, pág. 686).
Julio Fabbrini Mirabete também comenta que:
[...] a conduta do estelionato consiste no emprego de meio fraudulento para conseguir vantagem econômica ilícita. A fraude pode consistir em artifício, que é a utilização de um aparato que modifica, aparentemente, o aspecto material da coisa ou da situação etc., em ardil, que é a conversa enganosa, em astúcia, ou mesmo em simples mentira, ou qualquer outro meio para iludir a vítima, inclusive no inadimplemento contratual preconcebido, na emissão de cheques falsificados, furtados, dados em garantia de dívida etc. Para a caracterização do ilícito é necessário que o meio fraudulento seja causa da entrega da coisa. (In Julio Fabbrini Mirabete, Código penal interpretado, São Paulo: Atlas, 1999, p. 1094 e 1095).
Caracterizada, então, a figura típica do estelionato, impossível a absolvição do apelante.
Sobre o tema, este Tribunal de Justiça já decidiu:
ESTELIONATO - PLEITO ABSOLUTÓRIO - AUTORIA E MATERIALIDADE POSITIVADAS - RÉU QUE FAZENDO USO DE CHEQUE CLONADO INDUZ VÍTIMA EM ERRO - OBTENÇÃO DE VANTAGEM INDEVIDA DEMONSTRADA - INCREPADO QUE VENDE O PRODUTO DA EMPREITADA CRIMINOSA A CONHECIDOS OMITINDO SUA ORIGEM ILÍCITA - PALAVRAS DA OFENDIDA COERENTES E UNÍSSONAS QUE ALIADAS À CONFISSÃO DO RÉU ENSEJAM A MANUTENÇÃO DO ÉDITO CONDENATÓRIO. [...] (AC n. 2007.018243-7, de Balneário Camboriú, rel. Des. José Carlos Carstens Köhler, j. 19/6/2007).
E:
APELAÇÃO CRIMINAL - CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO - ESTELIONATO - CHEQUES CLONADOS - EFETIVO RECONHECIMENTO DOS APELANTES PELAS VÍTIMAS - ELEMENTOS DO TIPO CONFIGURADOS - CONJUNTO PROBATÓRIO APTO A FUNDAMENTAR A CONDENAÇÃO - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO DESPROVIDO.
Comete crime de estelionato quem, sabendo estar na posse de cheque clonado, preenche-o e passa-o a comerciante, obtendo, por esse meio, vantagem ilícita em prejuízo de terceiros. (AC n. 2005.041618-1, de Jaraguá do Sul, rel. Des. Solon d'Eça Neves, j. 21/2/2006).
Mutatis mutandis:
APELAÇÃO CRIMINAL - ESTELIONATO EM CONTINUIDADE DELITIVA (CP, ART. 171, CAPUT, C/C ART. 71, CAPUT) - EMISSÃO DE CHEQUES SEM PROVISÃO DE FUNDOS - PLEITO DE ABSOLVIÇÃO POR INSUFICIÊNCIA DE PROVAS - IMPOSSIBILIDADE - MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS - DEPOIMENTOS DA VÍTIMA E TESTEMUNHAS CONDIZENTES COM A REALIDADE DOS AUTOS - CONDENAÇÃO MANTIDA.
Não há que se falar em insuficiência de provas quando presentes nos autos elementos aptos a demostrar, de forma inequívoca, a materialidade e autoria do delito. Em se tratando de crime contra o patrimônio, os depoimentos apresentados pela vítima, testemunhas e pelo próprio acusado, encontrando-se coerentes e uníssonos, permitem a formação de um juízo seguro de convicção e justificam a decretação de um édito condenatório. (AC n. 2008.022121-3, de Sombrio, rel. Des. Salete Silva Sommariva, j. 23/9/2008).
Assim, tendo em vista ter restado plenamente caracterizado que o apelante obteve vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo a vítima proprietária do citado estabelecimento comercial em erro mediante meio fraudulento, diga-se, o repasse de cheque falsificado, não há que se falar em sua absolvição.
1.2 PLEITO ABSOLUTÓRIO EM FUNÇÃO DO RECONHECIMENTO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
Sorte também não assiste ao apelante quanto ao seu pedido de absolvição em função da aplicação do princípio da insignificância.
Sabe-se que tal princípio é regido, principalmente, pelos princípios da ofensividade ou lesividade e da proporcionalidade, que tem por fundamento, em suma, que o direito penal é aplicável somente como última hipótese para dirimir conflitos, de modo que deve ser utilizado apenas nos casos de ofensa relevante aos bens jurídicos tutelados.
Sobre o tema, Paulo Queiroz leciona:
Em conformidade com o princípio da lesividade (nullunm criem sine iniuria), só podem ser consideradas criminosas condutas lesivas ao bem jurídico alheio (por isso também conhecido como princípio da proteção de bens jurídicos), público e particular, entendendo-se como tal os pressupostos existenciais e instrumentais de que a pessoa necessita para sua auto-realização na vida social (muñoz conde), não podendo haver a criminalização de atos que não ofendam seriamente bem jurídico ou que representem apenas má disposição entre o interesse próprio, como automutilação, suicídio tentado, dano à coisa própria etc. (manual de direito penal - parte geral, 4. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro, Lumen Juris. p.58).
Contudo, concernente aos crimes contra o patrimônio, é cediço que para aplicação do princípio da bagatela ou da insignificância faz-se necessário que a coisa subtraída seja ínfima, insignificante e, em conformidade com lição do Supremo Tribunal Federal, que haja a mínima ofensividade da conduta do agente; nenhuma periculosidade social da ação; o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada (Resp. STJ, 750626/RS, rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 4/9/2006).
Nessa linha, ensina Cezar Roberto Bitencourt:
A tipicidade penal exige ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico. Segundo esse princípio, é imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Amiúde, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal, porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado. [...] Assim, a irrelevância ou insignificância de determinada conduta deve ser aferida não apenas em relação à importância do bem juridicamente atingido, mas especialmente em relação ao grau de sua intensidade, isto é, pela extensão da lesão produzida. (Código penal comentado. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 6).
Logo, repisa-se, para que seja considerada atípica a conduta perpetrada pelo apelante por intermédio do princípio aludido, além do bem possuir valor ínfimo - requisito objetivo - faz-se imprescindível que não ocorra qualquer ofensa ao bem jurídico tutelado, a conduta não produza grande reprovabilidade, bem como as circunstâncias judiciais sejam favoráveis ao apelante - requisitos subjetivos.
In casu, além do prejuízo da vítima não ter sido pequeno, correspondendo a quantia de R$ 132,00 (cento e trinta e dois reais), o segundo requisito também não resta preenchido, uma vez que, de acordo com as certidões de antecedentes, o apelante é contumaz no envolvimento com crimes, conforme certidão de antecedentes de fls. 386/394.
Diante do exposto, entende-se não poder ser reconhecido em seu favor o princípio da ofensividade e proporcionalidade e, por conseguinte, o princípio da insignificância.
Sobre o tema extrai-se entendimento deste Sodalício:
REVISÃO CRIMINAL - CRIMES DE FURTO E ESTELIONATO (CP, ART. 155 C/C ART. 171) - APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - IMPOSSIBILIDADE - RES FURTIVA DE RELEVANTE VALOR - ABSORÇÃO DO CRIME DE FURTO PELO DELITO DE ESTELIONATO - SUBTRAÇÃO DE TALONÁRIO DE CHEQUES E DE OUTROS BENS DA VÍTIMA - PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO AFASTADO - CRIME CONTINUADO - INOCORRÊNCIA - DELITOS DE ESPÉCIE DIFERENTES PRATICADOS EM COMARCAS DISTINTAS E MODUS OPERANDI DIVERSO.
I - O princípio da insignificância, como causa supralegal de exclusão da tipicidade, recomenda considerar-se penalmente atípica a conduta criminosa que, a despeito de se subsumir formalmente ao tipo incriminador, é inapta a lesar o titular do bem jurídico tutelado e a ordem social.
E na aferição do relevo material da tipicidade penal, notadamente nos crimes contra o patrimônio, torna-se indispensável a presença de vetores para se legitimar a descaracterização do crime à luz da máxima da insignificância, tais como a mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada, não sendo possível sua aplicação, entretanto, quando houver prejuízo de grande monta à vítima e quando a conduta perpetrada pelo agente é capaz de causar reprovabilidade, por não ser insignificante à tutela do Direito Penal. [...] (Revisão Criminal n. 2008.062438-5, de Laguna, rel. Desa. Salete Silva Sommariva, j. 11/5/2009).
[...] EXCLUSÃO DA TIPICIDADE POR FORÇA DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. LESÃO AO BEM JURÍDICO PROTEGIDO. RES FURTIVA DE VALOR RELEVANTE. PRETENSÃO DESCABIDA [...] RECURSO DESPROVIDO.
A exclusão da tipicidade da conduta como corolário da aplicação do princípio da insignificância exige, além da irrelevância do fato delituoso, a ausência de lesão ao bem juridicamente tutelado pela norma penal, bem assim que o valor dos bens subtraídos seja irrisório [...] (AC n. 2008.065712-6, da Capital, rel. Des. Sérgio Paladino, j. 10/3/2009).
CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO. ESTELIONATO. TENTATIVA. RÉUS QUE SE UTILIZARAM DE DOCUMENTOS FALSOS PARA GARANTIR CRÉDITO JUNTO À INSTITUIÇÃO FINANCEIRA PARA COMPRA DE VEÍCULO. REVENDEDOR QUE, AO AVERIGUAR AS INFORMAÇÕES, DESCOBRIU A FRAUDE. COMPARSAS PRESOS QUANDO COMPARECERAM À AGÊNCIA PARA RETIRAR O AUTOMÓVEL. PALAVRAS DOS FUNCIONÁRIOS DAS EMPRESAS E DE POLICIAIS QUE CONFIRMARAM TODA A TRAMA FRAUDULENTA. INTENÇÃO DOLOSA DEMONSTRADA. ABSOLVIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. BEM JURÍDICO TUTELADO QUE NÃO PODE SER CONSIDERADO IRRELEVANTE. CONDENAÇÃO MANTIDA. [...] (AC n. 2008.056811-1, de Chapecó, rel. Des. Irineu João da Silva, j. 2/12/2008).
E, mais especificamente ao caso, ou seja, crime praticado mediante falsificação de cheque:
[...] ESTELIONATO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE AO CASO CONCRETO. RECURSO DESPROVIDO.
"Não se tem dúvida que o emergente princípio da insignificância (ou bagatela) no Direito Penal, visa alcançar aqueles crimes em que uma eventual sanção é flagrantemente desproporcional com o ato praticado, ou seja, a intervenção penal surge dispensável ou socialmente irrelevante. No entanto, jamais pode o referido princípio surgir como elemento gerador de impunidade, mormente em se tratando de um crime de estelionato (falsificação de cheque), pouco importando que o valor percebido seja de pequena monta" (APR n. 97.004261-2, de São Miguel do Oeste, rel. Des. Álvaro Wandelli).[...] (AC n. 2005.036632-9, de Tubarão, rel. Des. Sérgio Paladino, j. 13/12/2005).
Desse modo, afasta-se a aplicação do princípio da insignificância à hipótese em comento.
Nega-se, então, provimento ao recurso de Everaldo Ferreira da Silva.
2 JOÃO CARLOS CAMELO
2.1 PLEITO ABSOLUTÓRIO EM FUNÇÃO DO RECONHECIMENTO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
Clama o apelante, em síntese, pelo reconhecimento da atipicidade da conduta pela qual foi condenado em função do princípio da insignificância.
Extrai-se dos autos que o apelante João Carlos Camelo adquiriu mercadorias em estabelecimentos comerciais por duas vezes, efetuando o pagamento com cheques falsificados. A primeira compra deu-se no Bar Paulino, de propriedade da vítima Luiz Paulo Lazarotto, no valor de R$ 18,00 (dezoito reais), quantia esta paga com um cheque falsificado e preenchido no valor de R$ 70,00 (setenta reais), recebendo de troco R$ 52,00 (cinquenta e dois reais). A segunda compra ocorreu na padaria de propriedade da vítima Jairo Grando, no valor de R$ 22,00, paga com outro cheque no valor de R$ 70,00 (setenta reais), recebendo de troco R$ 48,00 (quarenta e oito reais).
Apenas para melhor elucidar tais fatos, colaciona-se as palavras do próprio apelante (fls. 241/243):
[...] que o réu recebeu de Francis Aurélio duas folhas de cheque, em nome da empresa Ervateira Lorenciana; que Francis disse que trabalhava na empresa; que os cheques estavam preenchidos e assinados; que Francis pediu para o acusado trocar os cheques; que o réu estava acompanha da acusada Clenir; que Francis iria pagar para o réu e Clenir R$ 10,00 ou R$ 20,00 para trocar os cheques; que o réu e Clenir foram até o bar Paulinho e na Padaria do Jairo Grando para trocar os cheques, uma folha em cada estabelecimento; que o réu e Clenir compravam alguns produtos, pagava com o cheque e recebia o troco; que o troco o réu e Clenir entregaram para Francis e receberam o pagamento combinado; que Francis não podia trocar o cheque no bar do Paulinho pois estava devendo para o proprietário; que o cheque foi trocado na padaria por Clenir; que o réu não sabe porque Clenir identificou-se como o nome de Roberta Moreira; que o réu soube que os cheques eram falsificados quando a polícia prendeu 'Mano', Gilvan Luiz da Costa, também com cheque clonado; que o réu não sabe de quem Gilvan recebeu o cheque [...].
Corroborando tal confissão, tem-se o testemunho das vítimas Luiz Paulo Lazaroto (fl. 269) e Jairo Grando (fl. 270), respectivamente:
[...] que na época o informante era proprietário e também cuidava atendendo os clientes no bar Paulino; que o informante lembra que atendeu em seu estabelecimento João carlos e Clenir; que o casal adquiriu produtos e pagou com um cheque da Ervateira Lorenciana; que os réus se identificaram como funcionários da empresa Ervateira; que depois da compra o casal recebeu o troco, pois o valor do cheque era superior ao dos produtos adquiridos; que Clenir não se identificou com este nome, mas o informante não lembra qual o nome pelo qual ela se apresentou; que o informante foi até o banco para descontar o cheque, tendo sido atendido pelo gerente; que o gerente perguntou como o informante conseguiu o cheque; que o informante disse que recebeu o cheque de clientes do seu bar; que o informante acompanhou o gerente até a Delegacia (....) que até hoje o informante não foi ressarcido do prejuízo; que o informante reconhece neste ato os réus João carlos e Clenir.
[...] que na época dos fatos o informante era proprietário de uma mercearia e padaria; que o informante lembra de ter recebido no seu estabelecimento os réus João e Clenir que encomendaram um bolo; que no dia seguinte a namorada de João Carlos, que trabalhava na Parati, passaria na padaria para pegar o bolo; que ninguém apareceu para pegar o bolo; que o informante foi até o banco para descontar o cheque e lá foi encaminhado para Delegacia, onde foi informado que o cheque era uma falsificação, cópia de uma folha verdadeira; que até hoje o informante continua com o prejuízo da venda que realizou [...].
Nota-se já ter sido feito, anteriormente (tópico 1.2), todas as considerações necessárias acerca do princípio em debate, de forma que passa-se, nesse momento, apenas a expor os motivos que impedem a aplicação deste ao presente caso.
Nesse aspecto, cumpre salientar que além do prejuízo da vítima não ter sido pequeno, correspondendo a quantia de R$ 140,00 (cento e quarenta reais), o apelante é contumaz no envolvimento com crimes, conforme certidão de antecedentes de fls. 382/383.
Diante disso, afasta-se a aplicação do princípio da insignificância à hipótese em comento.
Nega-se, então, provimento ao recurso interposto por João Carlos Camelo.
DECISÃO
Nos termos do voto da relatora, esta Primeira Câmara Criminal, por unanimidade de votos, resolveu conhecer dos recursos e negar-lhes provimento.
O julgamento, realizado nesta data, foi presidido pelo Exmo. Sr. Des. Rui Fortes, com voto, e dele participaram a Exma. Sra. Desa. Marli Mosimann Vargas - relatora e o Exmo. Sr. Des. Newton Varella Júnior.
Pela douta Procuradoria-Geral de Justiça participou o Exmo. Sr. Procurador Gilberto Callado de Oliveira.
Florianópolis, 6 de abril de 2010.
Marli Mosimann Vargas
RELATORA
JURID - Apelações criminais. Crime contra o patrimônio. Estelionato. [15/07/10] - Jurisprudência
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