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quinta-feira, 15 de julho de 2010

JURID - Ação civil pública. Desconto salarial. [15/07/10] - Jurisprudência


Ação civil pública. Desconto salarial decorrente de crimes praticados por terceiros em veículos da ré.

Tribunal regional do trabalho - TRT4ªR

ACÓRDÃO

0036300-41.2009.5.04.0023 RO

EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DESCONTO SALARIAL DECORRENTE DE CRIMES PRATICADOS POR TERCEIROS EM VEÍCULOS DA RÉ. O descumprimento, pelo empregado, de norma interna da empresa acerca dos valores que devem ser mantidos em poder do cobrador, não pode ensejar a realização de descontos salariais referentes aos prejuízos causados por atos de terceiros, cabendo à reclamada aplicar uma punição ao empregado que descumpre a norma, mediante aplicação de advertência, suspensão ou até mesmo dispensa por justa causa, e não puni-lo mediante a realização de descontos em seus salários. Conduta da empresa que caracteriza evidente abuso do poder diretivo, pois amparada em norma interna que impõe ao trabalhador ônus excessivo e desproporcional. Descontos que não encontram amparo no disposto no artigo 462, caput e §1º, da CLT.

VISTOS e relatados estes autos de RECURSO ORDINÁRIO interposto de sentença proferida pela Exma. juíza substituta da 23ª Vara do Trabalho de Porto Alegre, sendo recorrente MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO e recorrida COMPANHIA CARRIS PORTOALEGRENSE.

Inconformado com a decisão de origem (fls. 289-91), proferida pela juíza Deise Anne Herold, que julga improcedente a ação civil pública ajuizada, o Ministério Público do Trabalho interpõe recurso ordinário. Conforme as razões das fls. 295-308, busca a reforma da sentença para que a reclamada seja condenada na obrigação de se abster de descontar valores dos seus empregados relativamente a roubos, furtos ou outros crimes praticados por terceiros em seus veículos, sob pena de pagamento de multa no valor equivalente a R$20.000,00 por trabalhador em relação ao qual for efetuado o desconto, reversível ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos.

Com contrarrazões apresentadas às fls. 315-22, sobem os autos a este Tribunal para julgamento e são distribuídos a esta Relatora na forma regimental.

É o relatório.

ISTO POSTO:

Ação Civil Pública - Desconto salarial decorrente de crimes praticados por terceiros em veículos da reclamada

Na petição inicial da presente Ação Civil Pública, o autor refere ter recebido, em abril de 2008, denúncia através de e-mail acerca da prática da reclamada em descontar de seus empregados os valores levados em assaltos a ônibus, tendo sido instaurado o Inquérito Civil nº 879/2008. Afirma ter a reclamada afirmado, nos autos do aludido inquérito, que efetua descontos em decorrência de assaltos quando o empregado descumpre os termos da Ordem de Serviço n.º 11111-006, a qual estipula o valor equivalente a cinquenta passagens como limite do numerário que poderá estar depositado na gaveta do cobrador, sendo guardado no cofre do veículo o restante da féria. Alega ter sido efetuada proposta de assinatura de Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta, não aceito pela ré, razão pela qual houve o ajuizamento da presente ação, face ao reconhecimento de que são descontados valores dos salários dos empregados. Ampara a sua pretensão nos incisos VII e X do artigo 7º da CF, bem como no art. 462, §1º, da CLT. Destaca que os descontos efetuados pela ré não têm como fundamento propriamente um dano causado pelo empregado, quer porque um roubo praticado por terceiro não pode assim ser conceituado, quer porque o prejuízo experimentado pela empresa não decorre da conduta dolosa do empregado, mas de terceiro, ou seja, o assaltante. Salienta serem levados bens pessoais dos cobradores e motoristas em inúmeras ocorrências. Argumenta a proteção ao salário quanto a descontos, ponderando que em tal caso os descontos não estão amparados por norma legal ou coletiva. Refere caber à empresa a adoção de medidas protetivas dos assaltos ou limitação dos prejuízos decorrentes de tais eventos, sendo questão de segurança pública. Sustenta que os prejuízos decorrentes de assaltos a transporte coletivo integram os riscos do negócio, os quais são exclusivos do empregador, não sendo absoluto o seu poder regulamentar. Invoca o Princípio da Proteção do Salário.

O pedido de antecipação de tutela é indeferido (decisão da fl. 160). Entende a magistrada a quo que "a medida adotada pela reclamada busca dar segurança não apenas aos seus empregados, mas também à população em geral, pois uma vez que o valor disponível no veículo para fins de 'assalto' é pouco, e isto evita que haja uma "disposição" criminosa, na busca de tais valores." Acrescenta que o cofre "não é passível de arrombamento" e que "o controle é viável, o que sequer se alega", razão pela qual entende "como lícita a norma da reclamada".

A reclamada contesta a presente demanda afirmando, em suma, que a decisão da fl. 160 refere o foco central da demanda. Reitera todos os elementos já trazidos nos autos do Inquérito Civil instaurado pelo MPT, onde teria restado incontroverso que a única hipótese na qual efetua descontos em decorrência dos assaltos é quando o empregado descumpre os termos da Ordem de serviço n.º 11111-006, ou seja, quando não guarda o valor excedente a 50 passagens no cofre. Sustenta que tal prática inibe a ação de meliantes, pois estes sabem que não encontrarão valores fora dos cofres superiores a R$105,00. Defende a licitude de tais descontos frente ao artigo 462 da CLT. Alega ser a hipótese dos autos caso fortuito, porquanto o empregador não tem qualquer ingerência nestes tipos de acontecimento, nem responsabilidade sobre a sua ocorrência.

A nobre julgadora de origem julga improcedente a ação. Entende que, à luz do princípio da intangibilidade salarial, um regulamento de empresa, a priori, não pode estabelecer descontos salariais sem que haja prévia negociação e autorização por parte de seus empregados, sendo ele um limite ao poder regulamentar do empregador. Refere que, todavia, no caso particular dos autos, a norma interna da empresa deve ser cotejada com outros princípios, na medida em que - como destacado na decisão de fl. 160 - esta visa à segurança dos empregados e dos cidadãos usuários de ônibus, pois razoável o argumento da ré de ser um fator inibidor da ação dos meliantes o fato de o valor superior a 50 (cinquenta) passagens estar depositado no cofre do veículo, o qual não pode ser rompido. Entende haver na hipótese dos autos, uma antinomia jurídica e que, para resolvê-la, não se pode olvidar que as relações de trabalho, por serem contratos de emprego, também possuem uma função social no sentindo de que as partes têm liberdade de contratar desde que não causem risco aos interesses da coletividade, respeitando os interesses da sociedade como um todo, baseada na igualdade material, alargando a responsabilidade dos sujeitos contratantes sempre que os efeitos desta relação jurídica alcançar terceiros, como no caso desta demanda. Sopesando o direito do trabalhador à intangibilidade salarial com o direito do cidadão - onde se inclui o próprio empregado - à segurança, entende pela validade da norma interna da empresa, não havendo ilicitude nos descontos salariais, porquanto o bem jurídico protegido transcende ao estrito de uma relação de emprego. Conclui que, dessa forma, por um critério de razoabilidade, não há ilicitude na norma interna da empresa em descontar valores dos empregados em caso de seu descumprimento, razão pela qual julga improcedente a ação.

Inconformado com a decisão, o Ministério Público do Trabalho recorre. Alega ser manifesta a ilicitude dos descontos efetuados pela ré, os quais, além de violarem a Constituição Federal e a lei, revelam-se totalmente contrários aos príncípios que regem o Direito do Trabalho. Invoca o disposto no artigo 8º da Convenção nº 95 da OIT, de 1949, aprovada pelo Decreto-legislativo nº 24/56, e promulgada pelo Decreto nº 41.721/57, bem como o disposto nos incisos VII e X do artigo 7º da CF e no caput e §1º do artigo 462 da CLT. Argumenta que, pelo nosso ordenamento jurídico vigente, eventuais descontos nos salários do empregado, afora aqueles decorrentes de adiantamento, somente são possíveis quando previstos em lei norma coletiva, sendo que mesmo na hipótese de dano causado pelo empregado, somente será lícito o desconto quando houver acordo expresso entre as partes ou dolo na conduta do trabalhador. Assevera que na hipótese dos autos os descontos salariais havidos decorrem de norma interna da empresa, sem qualquer respaldo em lei, convenção ou acordo coletivo de trabalho, circunstância que, por si só, afasta a hipótese de exceção prevista no caput do artigo 482 da CLT. Alega que, ainda que se pudesse imputar algum "dano causado pelo empregado" pelo descumprimento da referida norma empresa - o que entende afigurar-se totalmente desarrazoado, porquanto o empregado, assim como os demais usuários e a empresa, são todos vítimas do assalto - a própria recorrida admite que não é realizado qualquer procedimento para verificação de eventual dolo, ou mesmo culpa, do trabalhador. Argumenta que tampouco é válido invocar a referida Ordem de Serviço como sendo um acordo entre as partes, pois se trata de ato unilateral do empregador, inerente ao seu poder diretivo. Alega que, a rigor, os prejuízos decorrentes de assaltos a transportes coletivos claramente integram os riscos do negócio, que devem ser assumidos pelo empregador, na forma do disposto no artigo 2º da CLT. Assevera que a conduta da empresa, de efetuar descontos salariais em decorrência de assaltos, caracteriza evidente abuso do poder diretivo, pois amparada em norma interna que impõe ônus excessivo e desproporcional ao trabalhador. Sustenta que em caso de descumprimento da Ordem de Serviço da empresa o empregador pode lançar mão das sanções possíveis de serem aplicadas - advertência, suspensão ou dispensa por justa causa - e não efetuar descontos nos salários de seus empregados, pois, além de inexistir previsão legal a respeito, é do salário que depende a subsistência do trabalhador e de sua família. Afirma que a redução de valores em espécie em poder do empregado é um procedimento que nada mais é do que o cumprimento da obrigação constitucional e legal da empresa de reduzir os riscos inerentes à atividade econômica por ela explorada, a fim de proporcionar: ao trabalhador, um ambiente que preserve ao máximo sua integridade física e psicológica; e aos usuários (consumidores), a devida prevenção de exposição aos riscos dos serviços prestados à população (serviço público e essencial). Assevera que a coletividade não aufere nenhum benefício com os descontos procedidos pela empresa nos salários de seus empregados quando referida Ordem de Serviço não é observada. Alega que impor ao trabalhador o ônus de suportar o prejuízo econômico da empresa nem de longe encontra amparo na invocada função social do contrato e muito menos em um critério de razoabilidade. Sustenta que a decisão encontrada pela empresa e chancelada pela decisão de origem é contrária aos princípios mais comezinhos do Direito do Trabalho (como, por exemplo, o da proteção, o da interpretação mais favorável, o da intangibilidade salarial e o da alteridade, dentre outros), refletindo verdadeiro retrocesso social, subvertendo a lógica do contrato de trabalho e violando os moldes preconizados pela nossa Carta Maior, que norteia o ordenamento jurídico com base em diversos princípios indeclináveis, como a dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho e a busca do pleno emprego. Por fim, sinala que a atuação do Ministério Público do Trabalho no caso em exame tem por escopo resgatar a colisão de interesses verificada com a prática empresarial, que, na mais absoluta margem do ordenamento jurídico, impõe ao trabalhador o ônus de arcar com os prejuízos inerentes à sua atividade econômica. Transcreve jurisprudência. Para fins de prequestionamento na hipótese de ser negado provimento ao recurso, pugna pela manifestação expressa desta Turma julgadora acerca de violação aos dispositivos constitucionais e legais invocados: artigo 7º, incisos VII e X, da CF; e artigo 462, caput e §1º, da CLT.

Examino.

Como já referido na sentença, restou incontroversa nos autos a existência de uma norma interna na empresa (Ordem de Serviço nº 11111-006), que determina que os empregados devem portar na gaveta do cobrador apenas os valores equivalentes a 50 (cinquenta) passagens, devendo o excedente ser guardado no cofre do veículo. Também incontroverso o fato de que a reclamada efetua descontos dos salários dos empregados que descumprem tal norma em caso de furto ou roubo. A discussão limita-se, portanto, sobre a legalidade ou não dos descontos efetuados pela reclamada a tal título.

O procedimento adotado pela empresa não protege apenas os interesses da coletividade, mas os interesses financeiros da própria empresa, que não quer arcar com os prejuízos advindos de furtos ou assaltos ocorridos em seus veículos. Segundo disposto no artigo 2º da CLT, é o empregador quem assume os riscos da atividade econômica. Não cabe a transferência dos riscos do empreendimento econômico aos empregados, que é o que prevê a Ordem de Serviço da demandada.

O descumprimento, pelo empregado, de norma interna da empresa acerca dos valores que devem ser mantidos em poder do cobrador, não pode ensejar a realização de descontos salariais referentes aos prejuízos causados por atos de terceiros, cabendo à reclamada aplicar punição ao empregado que descumpre a norma, mediante aplicação de advertência, suspensão ou até mesmo dispensa por justa causa, e não puni-lo mediante a realização de descontos em seus salários. A conduta da empresa, como bem ressaltado pelo recorrente, caracteriza evidente abuso do poder diretivo, pois amparada em norma interna que impõe ao trabalhador ônus excessivo e desproporcional.

A CLT, em seu artigo 462, veda sejam efetuados descontos nos salários do empregado, salvo quando resultar de "adiantamentos, de dispositivos de lei ou de contrato coletivo" ou em caso de dano causado pelo empregado "desde que esta possibilidade tenha sido acordada ou na ocorrência de dolo do empregado". No caso em exame, os descontos feitos pela ré em decorrência de furtos ou roubos havidos em seus veículos não se enquadram em nenhuma destas hipóteses, razão pela qual não podem ser considerados lícitos.

Em ação envolvendo a mesma reclamada e a mesma discussão presentes nestes autos, este Tribunal já decidiu pela ilegalidade de tais descontos, conforme acórdão proferido nos autos do proc. nº 00254-2006-025-04-00-6, da lavra do desembargador Fabiano de Castilhos Bertolucci, cujos fundamentos se adotam como razões de decidir:

O artigo 462, §1o, da CLT dispõe:

"Em caso de dano causado pelo empregado, o desconto será lícito, desde de que esta possibilidade tenha sido acordada ou na ocorrência de dolo do empregado."

Como se vê, ela somente permite a retenção do salário, por dano causado pelo empregado, quando esta possibilidade tenha sido acordada (em caso de culpa do empregado) ou, ainda, quando houver dolo. Evidentemente, tendo em vista as medidas de proteção ao salário, a culpa do empregado deve ficar inequivocamente comprovada para que se permita a ingerência do empregador no seu salário. Este, todavia, não é o caso dos autos, pois o reclamante não tem culpa dos assaltos cometidos.

O risco do negócio é do empregador e não se pode permitir que em situações normais de trabalho ele transfira ao empregado todo e qualquer prejuízo decorrente de sua atividade econômica. Nem mesmo o descumprimento da recomendação para que os valores fossem guardados no cofre enseja considerar o reclamante culpado do ato criminoso. Neste sentido, é oportuno citar Valentin Carrion:

"Dano causado pelo empregado é descontável; seria iníquo, entretanto, que todo o dano culposo causado, normalmente previsto na execução de certos trabalhos, e que integra o risco normal do empreendimento, fosse carreado à responsabilidade do empregado. Exige-se, por isso, dolo ou culpa grave." (in Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, 24ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 1999, pág. 333).

A conclusão, nessa linha, é que a demandada não trouxe aos autos elementos que permitisse concluir ter o reclamante agido com culpa ao realizar sua atividade.

Assim, dá-se provimento parcial ao recurso para determinar que a reclamada se abstenha de descontar valores dos seus empregados relativamente a roubos, furtos ou outros crimes praticados por terceiros em seus veículos, sob pena de pagamento de multa no valor equivalente a R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por trabalhador em relação ao qual for efetuado o desconto, reversível ao FDD - Fundo de Defesa de Direitos Difusos, valor que se considera adequado ao caso.

Ante o exposto,

ACORDAM os Magistrados integrantes da 9ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região: por unanimidade de votos, dar provimento parcial ao recurso da parte autora para determinar que a reclamada se abstenha de descontar valores dos seus empregados relativamente a roubos, furtos ou outros crimes praticados por terceiros em seus veículos, sob pena de pagamento de multa no valor equivalente a R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por trabalhador em relação ao qual for efetuado o desconto, reversível ao FDD - Fundo de Defesa de Direitos Difusos. Valor da condenação fixado em R$ 20.000,00 para os efeitos legais. Custas de R$ 400,00 (quatrocentos reais), em reversão, pela reclamada.

Intimem-se.

Porto Alegre, 19 de maio de 2010 (quarta-feira).

Carmen Gonzalez
Relatora




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