Apelação criminal. Vias de fato e desacato (art. 21 da Lei das Contravenções Penais e art. 331 do Código Penal).
Tribunal de Justiça de Santa Catarina - TJSC.
Apelação Criminal n. 2009.037282-9, de Timbó
Relator: Desembargador Substituto Tulio Pinheiro
APELAÇÃO CRIMINAL. VIAS DE FATO E DESACATO (ART. 21 DA LEI DAS CONTRAVENÇÕES PENAIS E ART. 331 DO CÓDIGO PENAL). AGENTE QUE AGRIDE VÍTIMA COM UM TAPA NO ROSTO E QUE, MOMENTOS APÓS, DECLAMA EXPRESSÕES OFENSIVAS CONTRA POLICIAIS EM DILIGÊNCIA, ATINGINDO O DECORO E A DIGNIDADE DA FUNÇÃO. DELITOS COMPROVADOS PELAS DECLARAÇÕES DO OFENDIDO E DOS AGENTES ESTATAIS ALVOS DOS IMPROPÉRIOS. EVENTUAL ESTADO DE NERVOSISMO E IRRITAÇÃO DO AGRESSOR QUE NÃO AFASTA O DOLO DE DESACATAR. LAUDO PERICIAL, ADEMAIS, PRESCINDÍVEL À CARACTERIZAÇÃO DO ILÍCITO CONTRAVENCIONAL. SENTENÇA ESCORREITA. RECURSO NÃO PROVIDO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal n. 2009.037282-9, da Comarca de Timbó (Vara Criminal), em que é apelante Fernando Doege e apelada a Justiça, por seu Promotor:
ACORDAM, em Segunda Câmara Criminal, por unanimidade, negar provimento ao recurso. Custas legais.
RELATÓRIO
No Juízo da Vara Criminal da Comarca de Timbó, Fernando Doege foi denunciado como incurso nas sanções do art. 21 do Decreto-Lei 3.688/41 (Lei das Contravenções Penais) e do art. 331 do Código Penal, porque consoante se depreende da exordial acusatória:
[...] Em data de 10 de julho de 2007, em horário que a instrução irá precisar, o denunciado Fernando Doege, na rua Ruy Barbosa, bairro das Capitais, nesta cidade e comarca de Timbó, entrou em vias de fato com a vítima Lauri Werno Schweizer provocando-lhe diversas lesões.
Após a agressão, a vítima acionou a Polícia Militar, que se deslocou ao local e, lá chegando, efetuou a abordagem do denunciado Fernando Doege, o qual passou a desacatar os policiais militares Rudimar Luiz Zatti e Márcio Rech, enquanto no exercício de suas funções, referindo-se aos mesmos com palavras de baixo calão, como: "filhos da puta e vagabundos", momento no qual restou preso em flagrante delito. [...] (fls. 01/02 - sic).
Finda a instrução criminal, o MM. Juiz Ubaldo Ricardo da Silva Neto julgou procedente a denúncia para condenar o réu à reprimenda de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de detenção, em regime semiaberto, por infração ao art. 331 do Código Penal, bem como à pena de 1 (um) mês e 5 (cinco) dias de prisão simples, no regime semiaberto, pela prática da contravenção penal prevista no artigo 21 do Decreto-Lei 3.688/41. Ao final, porque preenchidos os requisitos legais, o togado substituiu as penas de detenção e de prisão simples pelas restritivas de direitos de prestação de serviço comunitário e de interdição temporária de direitos.
Inconformado com a prestação jurisdicional, apelou o sentenciado, postulando a absolvição por ausência de provas. Relativamente ao crime de desacato, afirmou a inexistência do dolo específico de ofender ou ultrajar. Sobre a contravenção de vias de fato, defendeu a imprescindibilidade da realização do exame de corpo de delito para a configuração da infração. Alegou, por fim, que não poderia ter sido preso em flagrante, face a vedação contida no art. 69 da Lei n. 9.099/95.
Com as contrarrazões, ascenderam os autos a este egrégio Tribunal, tendo a douta Procuradoria-Geral de Justiça opinado pelo conhecimento e não provimento do apelo.
VOTO
O recurso não merece guarida.
Colhe-se dos autos que, no dia 10 de julho de 2007, na rua Ruy Barbosa, Bairro das Capitais, na Cidade de Timbó, os policiais militares Rudimar Luiz Zatti e Márcio Rech foram acionados por Lauri Werno Schweizer, eis que este teria sido agredido pelo denunciado Fernando Doege. Após efetuarem buscas nas imediações, os agentes estatais lograram encontrar o acusado nos fundos de sua residência, oportunidade em que este passou a desacatá-los, referindo-se a eles com expressões de baixo calão, tais como, "filhos da puta e vagabundos", razão pela qual foi preso em flagrante.
A materialidade de ambos os ilícitos está positivada no auto de prisão em flagrante (fls. 05/09v.) e nos boletins de ocorrência de fls. 15/16 e 17/18.
A autoria, por sua vez, malgrado a negativa do recorrente em ambas as fases (inquisitorial [fl. 11] e em juízo [fls. 43/44]), encontra amparo tanto nas palavras da vítima agredida, como nos relatos dos policiais que foram alvo das palavras ofensivas.
A vítima da agressão física deixou patente que foi o acusado Fernando quem, sem motivação aparente, lhe deu um tapa na orelha direita e que, já no hall de entrada de Delegacia de Polícia, chamou os Policiais Militares de "filhos da puta e vagabundo":
[...] QUE, o depoente nesta data trafegava de bicicleta pela rua Ruy Barbosa e parou para pedir informações acerca da propriedade de uma residência que estava fechada, mas sem placa de imobiliária, pois queria saber se tal imóvel estava para alugar. QUE, o depoente parou junto a uns jovens, que estavam em grupo, e que acabaram de ser abordados por guarnição da Polícia Militar. QUE, o depoente parou perante tais jovens e de pronto já foi ofendido e agredido fisicamente com um tapa na orelha direita. QUE, o depoente informa que apenas parou para pedir informação e já foi agredido [...] tão logo conseguiu livrar-se telefonou à Polícia Militar que veio ao local e prendeu o indivíduo agressor. QUE, sendo-lhe apresentado o indivíduo identificado como sendo FERNANDO DOEGE reconhece nele a pessoa que lhe agrediu fisicamente [...] QUE, haviam no local uns cinco ou seis jovens, todavia, somente FERNANDO DOEGE é que lhe atacou física e verbalmente, sem que o depoente tivesse feito algo a ele [...] QUE, o depoente também testemunha que FERNANDO DOEGE no hall de entrada da Delegacia chamou os Policiais Militares de "filhos da puta e vagabundo" [...] (fase indiciária - fls. 09/09v. - sic) (frisou-se).
O policial Rudimar Luiz Zatti relatou que ele e seu colega de farda Márcio Rech foram comunicados pelos COPOM de que "um senhor" teria sido agredido e que, diante disso, rumaram até o local, tendo abordado o denunciado Fernando, "que foi 'grosso' logo chamando 'nos de vagabundos e filhos da puta"'. Na sequência, contou que foi dava voz de prisão ao acusado e que encontraram a vítima da agressão, "que tinha uma lesão no rosto", a qual "confirmou que Fernando foi o seu agressor" (etapa judicial - fl. 70 - sic).
Seu colega de farda, o policial Márcio Rech, também sob o crivo do contraditório, ratificou os fatos ora delineados, destacando as palavras do ofendido, que ostentava em seu rosto as marcas da agressão, bem assim a ocorrência do desacato, senão vejamos:
[...] que esteve no local acompanhado do Soldado Zatti; que o denunciado desacatou o Soldado Zatti, com palavras de baixo calão; que desacatou em virtude da sua detenção [...] que ouviu mas não se recorda das palavras proferidas; [...] que a pessoa agredida foi identificada e conduzida à delegacia; que esta disse que foi agredida pelo denunciado; que a vítima tinha a face vermelha como se tivesse sido agredida com um soco [...] que o desacato foi quando o denunciado estava sendo conduzido pelos policiais "do fundo da residência dele até a viatura que estava em frente a casa" e dentro da viatura durante a condução; [...] que quando o denunciado foi detido a vítima estava aguardando na subida que leva à casa do denunciado [...] (fl. 72 - sic) (ressaltou-se).
Rhian Brigido Pereira, policial civil que fazia plantão na data da ocorrência, explicitou, por fim, que a vítima "estava com vermelhidão no rosto" (etapa judicial - fl. 79).
Conforme se viu, os depoimentos são coerentes e harmônicos, imputando ao réu as práticas delitivas.
Nesse ponto, vale enfatizar que não se vislumbrou, em qualquer momento do processado, fatos que pudessem colocar em dúvida a ação policial, ou mesmo desabonassem os depoimentos prestados por estas testemunhas, até porque nominados testigos não foram contraditados, tomando-se suas declarações sob compromisso.
Aliás, sobre a validade das provas produzidas pelos depoimentos de policiais, posiciona-se a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
O valor do depoimento testemunhal de servidores policiais especialmente quando prestado em juízo, sob a garantia do contraditório - reveste-se de inquestionável eficácia probatória, não se podendo desqualificá-lo pelo só fato de emanar de agentes estatais incumbidos, por dever de ofício, da repressão penal (STF - HC n. 73.518 - rel. Min. Celso de Mello - j. 26.03.96 - DJU 18.10.96).
Especificamente quanto ao tipo descrito no art. 331 do Código Penal, vaza sua redação:
Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.
Acerca da aludida figura delitiva, Magalhães Noronha assinala que o verbo desacatar:
[...] exprime a ação de ofender, humilhar, espezinhar, agredir etc. o funcionário, com o que se ofendem a dignidade, o prestígio e o decoro da função. Consiste em palavras, gritos, gestos, escritos (presente o funcionário), vias de fato e lesões corporais. Em suma, por todos os modos porque se pode ofender uma pessoa, o desacato, atendidas as exigências que se verão, pode ser praticado. Não é mister que o servidor se sinta ofendido, basta que insultuoso seja o fato: palavrões atirados, gestos obscenos, vaia, ameaça, esputação, empurrões, bofetada, soco, agressão, etc., tudo isso dispensa a indagação se o funcionário se sentiu ofendido. (Direito penal, v. 4, 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 408).
Em reforço, Julio Fabrinni Mirabete também elucida que:
O crime é desacatar, que significa ofender, vexar, humilhar, espezinhar, desprestigiar, menosprezar, menoscabar, agredir o funcionário, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro da função. Pode constituir-se em palavras ou atos [...]. Pouco importa que o funcionário se julgue, ou não, ofendido, já que a ofensa é dirigida também a dignidade e o prestígio de seu cargo ou função. [...] O dolo do desacato consiste na vontade consciente de praticar a ação ou proferir a palavra injuriosa com o propósito de ofender ou desrespeitar o funcionário a quem se dirige [...]. O delito de desacato consuma-se com a prática da ofensa, percebida pelo funcionário. Trata-se de crime formal, sendo irrelevante outros resultados, inclusive o eventual pedido de desculpas por parte do agente. (Código penal interpretado, 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, págs. 2148, 2155 e 2163).
Sobre o tema, a jurisprudência não discrepa, esclarecendo, diversamente do que sustenta a defesa, que o delito de desacato não exige um dolo específico, mas apenas a vontade genérica de proferir expressão ofensiva contra o sujeito passivo, sendo irrelevante eventual estado de nervosismo ou irritação do ofensor:
[...] O crime de desacato se configura pela simples vontade de menosprezar a função pública exercida pelo policial, sendo irrelevante para afastar o dolo o estado de nervosismo e irritação apresentado pelo agressor. [...] (TJ-DF; Rec. 2008.03.1.002045-7; Ac. 348.925; Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais; Relª Juíza Iracema Miranda e Silva; DJDFTE 16/04/2009; Pág. 177).
Incorre nas penas do art. 331 do CP, o agente que dirige palavras ofensivas a Policial em diligência, não sendo exigido um fim determinado de desacato, ofender, mas, sim, a genérica ação voluntária de proferir a expressão ultrajante, humilhante, contra o sujeito passivo. (RJDTACRIM 21/118).
É suficiente para caracterizar o crime de desacato o fato de o agente, repreendido por policiais, por conduta inconveniente, reagir mediante expressão de baixo calão. (RT 540/352).
O desacato é o desprezo grosseiro, a ofensa, a falta de acatamento, que pode ir desde a simples palavra ou gesto até a agressão física, e, se provém do mesmo fato, é absorvido pelo delito de resistência. (TAMG - AC - rel. Gudesteu Bíber - RT 601/381).
Não é outro o entendimento desta Corte:
Comete o crime de desacato previsto no artigo art. 331 do CP, o agente que, de vontade livre e consciente, com intenção de desprestigiar e humilhar, profere palavras ofensivas a policiais, no exercício de suas funções. (Apelação Criminal n. 2002.001755-8, rel. Des. Sérgio Baasch Luz).
PENAL - DESACATO - DOLO CONFIGURADO - OFENSAS POR MEIO DE PALAVRAS DE BAIXO CALÃO CONTRA POLICIAIS MILITARES - AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS - TESTEMUNHAS PRESENCIAIS - PROVA SUFICIENTE - RECURSO DESPROVIDO
Pratica desacato aquele que utilizando-se de palavras de baixo calão, ofende policiais, atingindo a dignidade e o decoro de suas funções. [...] (Apelação Criminal n. 2001.000564-1, rel. Des. Amaral e Silva).
In casu, restou amplamente demonstrado que o apelante, ao se deparar com os milicianos em estrito cumprimento do dever legal, mostrou sua irresignação pelo fato de ter sido abordado e detido, taxando-os de "filhos da puta e vagabundos", palavras que sem dúvida atingiram a dignidade dos militares.
De se lembrar que "O crime de desacato ofende mais a administração pública que o titular da função. Quando se pune o ofensor, defende-se, pois, o princípio da legalidade, que a todos interessa e a cuja sombra se abriga a ordem pública e a paz social" (RT 416/385).
Logo, porque presentes os pressupostos caracterizadores do tipo descrito no art. 331 do Código Penal, impossível prosperar a pretensão de absolvição.
A contravenção penal prevista no art. 21 do Decreto-Lei 3.688/41 (vias de fato), a seu turno, também se encontra perfeitamente subsumida ao presente caso, mormente pelas declarações da vítima, que disse ter levado um tapa no rosto, e dos policiais que atenderam a ocorrência, que, além de confirmarem as palavras do ofendido, descreveram que este apresentava uma vermelhidão na face.
Importa mencionar, neste aspecto, rebatendo a argumentação defensiva, que a realização do exame de corpo de delito se fazia desnecessária, pois "Em nosso ordenamento jurídico, a contravenção de vias de fato consiste na violência empregada contra a vítima sem acarretar em dano considerável a sua integridade física, ou seja, é a violência praticada que não deixa vestígios perceptíveis, sendo prescindível a constatação por laudo pericial." (Recurso em Sentido Estrito n. 2007.600537-5, rel. Juiz Altamiro de Oliveira).
Resta anotar, por fim, que a suposta violação ao disposto no art. 69 da Lei n. 9.099/95, ao argumento de que a prisão em flagrante não era cabível na hipótese, trata-se de matéria preclusa, porquanto não impugnada pela defesa à época, e que não tem relevância no momento, haja vista que eventuais irregularidades não maculam a ação penal instaurada.
Oportuno transcrever a ementa do seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça:
Os eventuais vícios ocorridos no inquérito policial não são hábeis a contaminar a ação penal, pois aquele procedimento resulta em peça meramente informativa e não probatória. [...] (HC 34.870, rel. Min. Gilson Dipp).
No mesmo sentido, já decidiu este egrégio Tribunal de Justiça:
[...] O recebimento da denúncia supre qualquer irregularidade ou eventual nulidade do auto de prisão em flagrante, ou inquérito policial, a qual, caso existente, não tem ressonância na ação penal instaurada. (HC n. 12.544, rel. Des. Solon d' Eça Neves).
Destarte, mantém-se hígido o édito condenatório.
DECISÃO
Ante o exposto, a Segunda Câmara Criminal, por unanimidade de votos, decide negar provimento ao recurso.
O julgamento, realizado no dia 3 de novembro de 2009, foi presidido pelo Exmo. Des. Sérgio Paladino, com voto, e dele participou o Exmo. Des. Irineu João da Silva. Pela douta Procuradoria-Geral de Justiça lavrou parecer o Exmo. Dr. Pedro Sérgio Steil.
Florianópolis, 03 de novembro de 2009.
Tulio Pinheiro
Relator
Publicado em 30/11/09
JURID - Apelação criminal. Vias de fato e desacato. [14/12/09] - Jurisprudência
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