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quarta-feira, 21 de outubro de 2009

JURID - Política de cotas. Autonomia universitária. [21/10/09] - Jurisprudência


Administrativo. Ações afirmativas. Política de cotas. Autonomia universitária.
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Superior Tribunal de Justiça - STJ.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.132.476 - PR (2009/0062389-6)

RELATOR: MINISTRO HUMBERTO MARTINS

RECORRENTE: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

PROCURADOR: ALEXANDRE DORNELES LEMOS E OUTRO(S)

RECORRIDO: DIEGO MOTTA RAMOS

ADVOGADO: EGYDIO MARQUES DIAS NETTO

EMENTA

ADMINISTRATIVO - AÇÕES AFIRMATIVAS - POLÍTICA DE COTAS - AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA - ART. 53 DA LEI N. 9.394/96 - INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO INC. II DO ART. 535 DO CPC - PREQUESTIONAMENTO IMPLÍCITO - MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL EM FACE DE DESCRIÇÃO GENÉRICA DO ART. 207 DA CF/88 - DEFINIÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE REPARAÇÃO - CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL - DECRETO N. 65.810/69 - PROCESSO SELETIVO DE INGRESSO - FIXAÇÃO DE CRITÉRIOS OBJETIVOS LEGAIS, PROPORCIONAIS E RAZOÁVEIS PARA CONCORRER A VAGAS RESERVADAS - IMPOSSIBILIDADE DO PODER JUDICIÁRIO CRIAR EXCEÇÕES SUBJETIVAS - OBSERVÂNCIA COMPULSÓRIA DO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA.

1. A oposição de embargos declaratórios deve acolhida quando o pronunciamento judicial padecer de ambiguidade, de obscuridade, de contradição, de omissão ou de erro material, os quais inexistem neste caso. Não há, portanto, violação do art. 535 do CPC.

2. Admite-se o prequestionamento implícito, configurado quando a tese jurídica defendida pela parte é debatida no acórdão recorrido.

3. A Constituição Federal veicula genericamente os contornos jurídicos de diversos institutos e conceitos, deixando, na maioria das vezes, o seu trato específico para as normas infraconstitucionais. O assento constitucional de um instituto ou conceito, sem detalhamentos e desdobramentos, não afasta a competência desta Corte quando a Lei Federal disciplina imperativos específicos.

4. Ações afirmativas são medidas especiais tomadas com o objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais, sociais ou étnicos ou indivíduos que necessitem de proteção, e que possam ser necessárias e úteis para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que, tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais, e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.

5. A possibilidade de adoção de ações afirmativas tem amparo nos arts. 3º e 5º, ambos da Constituição Federal/88 e nas normas da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, integrada ao nosso ordenamento jurídico pelo Decreto n. 65.810/69.

6. A forma de implementação de ações afirmativas no seio de universidade e, no presente caso, as normas objetivas de acesso às vagas destinadas a tal política pública fazem parte da autonomia específica trazida pelo artigo 53 da Lei n. 9.394/96, desde que observados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Portanto, somente em casos extremos a sua autonomia poderá ser mitigada pelo Poder Judiciário, o que não se verifica nos presentes autos.

7. O ingresso na instituição de ensino como discente é regulamentado basicamente pelas normas jurídicas internas das universidades, logo a fixação de cotas para indivíduos pertencentes a grupos étnicos, sociais e raciais afastados compulsoriamente do progresso e do desenvolvimento, na forma do artigo 3º da Constituição Federal/88 e da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, faz parte, ao menos - considerando o nosso ordenamento jurídico atual - da autonomia universitária para dispor do processo seletivo vestibular.

8. A expressão "tenham realizado o ensino fundamental e médio exclusivamente em escola pública no Brasil", critério objetivo escolhido pela UFPR no seu edital de processo seletivo vestibular, não comporta exceção sob pena de inviabilização do sistema de cotas proposto.

Recurso especial provido em parte.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça "A Turma, por unanimidade, deu parcial provimento ao recurso, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a)." Os Srs. Ministros Herman Benjamin, Mauro Campbell Marques, Eliana Calmon e Castro Meira votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília (DF), 13 de outubro de 2009(Data do Julgamento)

MINISTRO HUMBERTO MARTINS
Relator

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS (Relator):

Cuida-se de recurso especial interposto pela UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ, com base na alínea "a" do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal/88, contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, assim ementado:

"ADMINISTRATIVO. ENSINO SUPERIOR. COTAS SOCIAIS. PARTE DA PRIMEIRA SÉRIE DO ENSINO FUNDAMENTAL CURSADA EM ESCOLA PARTICULAR.

Não obstante seja atribuída à universidade autonomia didática para regulamentar a matéria, esta deve restar prejudicada e inoperante em face do princípio da razoabilidade." (fl. 153e)

A UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ opôs embargos de declaração contra a decisão acima (fls. 156e/162e), os quais foram rejeitados, com a seguinte ementa:

"ADMINISTRATIVO. ENSINO SUPERIOR. COTAS SOCIAIS. PARTE DA PRIMEIRA SÉRIE DO ENSINO FUNDAMENTAL CURSADA EM ESCOLA PARTICULAR. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO.

Recurso que, embora conhecido para fim de prequestionamento, deve ser rejeitado pela ausência do apontado pressuposto de acolhida, qual seja a omissão." (fl. 167e)

A recorrente afirma, nas suas razões recursais, que:

a) o Tribunal de origem não indicou o fundamento legal ou constitucional para negar provimento a seu recurso, violando, portanto, o inciso II do artigo 535 do Código de Processo Civil;

b) o edital do processo seletivo, baseado na autonomia universitária, exigiu como condição para concorrer às vagas disponibilizadas para o programa de inclusão social "ter realizado o ensino fundamental e médio exclusivamente em escola pública no Brasil";
c) a escola frequentada pela recorrida não pode, segundo os artigos 19 e 20 da Lei n. 9.394/96, ser classificada como pública;

d) o artigo 207 da Constituição Federal/88 referente à autonomia universitária foi violado;

e) a Lei de Diretrizes e Bases da Educação foi violada, pois suas normas outorgam às Instituições de Educação superior autonomia para o seu processo seletivo;

f) o inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal/88 referente ao devido processo legal foi violado;

g) a violação da autonomia universitária pelo Poder Judiciário implica inobservância ao disposto no artigo 2º da Constituição Federal/88;

h) foi violado o artigo 41 da Lei n. 8.666/93, pois a própria Administração Pública está vinculada às normas do edital, não podendo o Poder Judiciário afastar tal premissa. (fls. 170e/180e)

O prazo para a apresentação de contrarrazões transcorreu em branco. (fl. 195e)

A recorrente interpôs também recurso extraordinário. (fls. 181e/193e)

Tanto o recurso especial quanto o recurso extraordinário foram admitidos. (fls. 195e/196e)

É, no essencial, o relatório.

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS (Relator):

1. DO PREQUESTIONAMENTO

Restou prequestionado implicitamente apenas o artigo 53 da Lei n. 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), que trata da autonomia universitária.

Quanto ao prequestionamento implícito, tem-se que:

"AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. PREQUESTIONAMENTO IMPLÍCITO. ADMISSÃO. PROVIMENTO A RECURSO ESPECIAL. DECISÃO MONOCRÁTICA. POSSIBILIDADE. ART. 557, § 1º-A DO CPC.

1. Admite-se o prequestionamento implícito, configurado quando a tese jurídica defendida pela parte é debatida no acórdão recorrido.

2. O artigo 557, § 1º-A do CPC autoriza que o julgador dê provimento ao recurso, de maneira singular, caso o acórdão recorrido esteja em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal ou de Tribunal Superior.

3. Agravo regimental desprovido."

(AgRg no REsp 1052586/RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 7.5.2009, DJe 18.5.2009.)

Ressalte-se que os artigos 19 e 20 da Lei n. 9.394/96 e o artigo 41 da Lei n. 8.666/93 não foram prequestionados, pois o acórdão atacado não tratou, ainda que de forma implícita, dos mesmos na sua fundamentação.

2. DA INAPLICABILIDADE DO PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O STF, em caso semelhante, decidiu que:

"EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ENSINO SUPERIOR. SISTEMA DE COTAS. PREENCHIMENTO DE REQUISITOS. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE QUE A ALUNA OPTOU POR CONCORRER COMO COTISTA. IMPOSSIBILIDADE DE INTERPRETAÇÃO DO EDITAL DO VESTIBULAR E DO REEXAME DE PROVAS (SÚMULA 279). AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. Imposição de multa de 5% do valor corrigido da causa. Aplicação do art. 557, § 2º, c/c arts. 14, inc. II e III, e 17, inc. VII, do Código de Processo Civil."

(RE 591956 AgR, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 7.4.2009, DJe-084 DIVULG 7.5.2009 PUBLIC 8.5.2009 EMENT VOL-02359-08 PP-01610.)

Entretanto, o julgado acima não se aplica ao presente caso, pois não se busca aqui interpretação de norma do edital referente à comprovação de que o recorrido optou por concorrer como cotista. Tal fato é inconteste: o recorrido concorreu como cotista, o que se busca neste recurso especial é a análise da existência ou não de violação à norma que assegura a autonomia normativa das universidades, qual seja, o artigo 53 da Lei n. 9.394/96.

3. DA NORMA DO ARTIGO 207 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL/88

A autonomia apresentada pela Constituição Federal de 1988 apresenta-se de forma genérica, sem ilustrar especificamente a autonomia normativa referente à implantação de políticas públicas de ações afirmativas nos processos seletivos de ingresso de discente.

Assim, apesar desta Corte, na forma de reiterados precedentes, declarar não ter competência, em sede de recurso especial, para processar e julgar violação de norma constitucional, o objeto aqui delimitado é a violação da norma do artigo 53 da Lei n. 9.394/96, que fora implicitamente prequestionada.

4. DA INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ARTIGO 535, INCISO II, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Inexistente a alegada violação do art. 535 do CPC, pois a prestação jurisdicional foi dada na medida da pretensão deduzida, conforme se depreende da análise do acórdão recorrido.

Na verdade, a questão não foi decidida conforme objetivava o recorrente, uma vez que foi aplicado entendimento diverso. É cediço, no STJ, que o juiz não fica obrigado a manifestar-se sobre todas as alegações das partes, nem a ater-se aos fundamentos indicados por elas ou a responder, um a um, a todos os seus argumentos, quando já encontrou motivo suficiente para fundamentar a decisão, o que de fato ocorreu.

Ressalte-se, ainda, que cabe ao magistrado decidir a questão de acordo com o seu livre convencimento, utilizando-se dos fatos, provas, jurisprudência, aspectos pertinentes ao tema e da legislação que entender aplicável ao caso concreto.

Nessa linha de raciocínio, o disposto no art. 131 do Código de Processo Civil:

"Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento."

Em suma, nos termos de jurisprudência pacífica do STJ, "o magistrado não é obrigado a responder todas as alegações das partes se já tiver encontrado motivo suficiente para fundamentar a decisão, nem é obrigado a ater-se aos fundamentos por elas indicados." (REsp 684.311/RS, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 4.4.2006, DJ 18.4.2006, p. 191), como ocorreu na hipótese ora em apreço.

Nesse sentido, ainda, os precedentes:

"TRIBUTÁRIO - COFINS - SOCIEDADES CIVIS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PROFISSIONAIS - ISENÇÃO - MUDANÇA DE ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL NÃO FUNDAMENTA EMBARGOS DE DECLARAÇÃO - AUSÊNCIA DE OMISSÃO, OBSCURIDADE OU CONTRADIÇÃO.

1. A oposição de embargos declaratórios se faz apropriada quando o pronunciamento judicial padecer de ambigüidade, de obscuridade, de contradição ou de omissão, os quais inexistem neste caso. Em contrapartida, sabe-se que o tribunal não está compelido a manifestar-se sobre todas as questões suscitadas pela parte, principalmente se o acórdão contém adequado fundamento para justificar a conclusão perfilhada.

2. Nítido é o caráter modificativo que a embargante, inconformada, busca com a oposição dos embargos declaratórios, uma vez que pretende ver reexaminada e decidida a controvérsia de acordo com sua tese.

3. A mudança de entendimento jurisprudencial sobre a matéria não autoriza o manejo dos embargos de declaração com pretensão de efeitos infringentes. Esta inferência decorre do disposto no artigo 535, do Estatuto Processual Civil.

Embargo de declaração rejeitados."

(EDcl no AgRg no REsp 456.674/RS, relatado por este Magistrado, Segunda Turma, julgado em 26.9.2006, DJ 10.10.2006, p. 291.)

"PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO - IMPOSTO DE RENDA SOBRE VERBAS INDENIZATÓRIAS - REPETIÇÃO DE INDÉBITO - FORMA DE DEVOLUÇÃO - RETIFICAÇÃO DA DECLARAÇÃO ANUAL - DESVIRTUAMENTO DO PEDIDO: IMPOSSIBILIDADE.

1. Inexiste violação do art. 535 do CPC se as teses suscitadas pela parte são implicitamente rejeitadas no aresto impugnado, restando, portanto, prequestionadas.

2. Aplica-se o teor da Súmula 211/STJ às teses não prequestionadas.

3. Se na inicial é formulado pedido de repetição de indébito do imposto de renda, descabe ao Tribunal modificá-lo, determinando a retificação da declaração anual e a compensação com o imposto de renda porventura devido.

4. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, parcialmente provido."

(REsp 853.102/SC, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 19.9.2006, DJ 3.10.2006, p. 201.)

5. DAS AÇÕES AFIRMATIVAS

O conceito de "ações afirmativas" surgiu no início do século XX, com o ativismo judicial da Suprema Corte dos Estados Unidos da América (EUA). Entretanto, como será demonstrado, as decisões daquele Tribunal no final do século XIX e no início do século XX não apresentavam a distinção entre igualdade e isonomia, nem observam o princípio do convívio solidário.

A exigência de igualdade formal desconsidera as desigualdades fáticas que a realidade nos mostra, podendo ser bem ilustrada a sua forma obtusa pelo princípio do "equal treatment" dos EUA que Ronald Dworkin conceitua, no seu artigo We do not have right to liberty, in Stewart, Readings in Social & Political Philosophy, 1996:188, como mesma distribuição de bens e oportunidades a que todos possuem ou foram concedidos.

Assim, todo e qualquer estatuto que busca a implementação e a realização de Direitos Fundamentais deve tomar como rule of law o princípio da isonomia, e não o princípio da igualdade, pois aquele trata igualmente ou iguais e desigualmente os desiguais nas medidas das suas desigualdades.

O Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, in Discriminação Racial e Decisão Judicial, publicado no sítio http://bdjur.stj.gov.br, faz um resumo histórico da evolução do princípio da igualdade para o princípio da isonomia, afirmando que, em 1880, no caso Strauder vs. West Virginia, Justice Strong, que conduziu a maioria, anotou que a 14ª Emenda era uma provisão constitucional, dentre outras, com o objetivo de assegurar aos negros o gozo de direitos civis que são desfrutados pelas pessoas de cor branca, garantindo tais direitos sempre que ameaçados pelos estados.

Dezesseis anos depois, em 1896, no caso Plessy vs. Fergusson, a Corte manteve uma lei do Estado de Louisiana que estabeleceu igual em qualidade, mas separada, acomodação nos transportes para negros e brancos. Nasceu a chamada doutrina da separação com igualdade ("separate but equal").

O Poder Judiciário dos EUA entendeu, neste caso, que o objetivo da 14ª Emenda é, indubitavelmente, realizar a plena igualdade das duas raças diante da lei, mas a emenda não teve a intenção de abolir as distinções baseadas na cor.

A lei, entendeu a maioria da Corte, permite a separação, o que não significa inferioridade de nenhuma raça em relação a outra, sendo, de resto, tal matéria da competência dos Estados no exercício do seu poder de polícia. Justice Harlan, dissentido, acentuou que sob a Constituição e as leis não existe nenhuma raça superior; nenhuma casta. Para ele, a arbitrária separação dos cidadãos em razão de sua cor, nos transportes, é inconsistente com as liberdades civis e com a igualdade diante da lei estabelecida na Constituição.

Em 1954, com o caso Brown vs. Board of Education, com voto condutor do Chief Justice Warren, vem o precedente que teve maior repercussão.

A questão enfrentava, na verdade, o precedente Plessy vs. Fergusson, aplicado pelas cortes inferiores, com base na doutrina "separate but equal", ou seja, há igualdade de tratamento quando as raças têm substancialmente as mesmas facilidades, embora tais facilidades sejam separadas. No caso, questionava-se a matrícula de pessoa de cor negra em escolas públicas para brancos. Chief Justice Warren rememorou os precedentes sobre a matéria, mostrou que a educação era a mais importante função do Estado e dos governos locais, concluindo que a segregação de negros e brancos em escolas públicas tinha um efeito prejudicial para as crianças da cor negra, com grande impacto diante de previsão legal, denotando a inferioridade da raça negra.

E mais ainda, que a segregação sancionada pela lei tende a retardar a educação e o desenvolvimento mental das crianças negras, além de privá-las de alguns benefícios que poderiam receber com uma escola racialmente integrada. E arrematou em definitivo: a doutrina "separate but equal" na educação pública não tem lugar e qualquer disposição do caso Plessy vs. Fergusson contrária a isso está rejeitada.

Posteriormente, a Corte enfrentou a execução do caso e adotou a expressão muito criticada, diante das dificuldades práticas da integração, "with all deliberate speed".

Esse exemplo da jurisprudência da Corte Suprema dos Estados Unidos serve bem ao propósito de identificar o direito de igualdade - da igualdade de todos perante a lei -, no campo da discriminação racial, menos ao Direito positivo, de existência de leis protetivas, do que a uma interpretação da disciplina jurídica positiva a partir da Constituição e dos tratados dos quais somos signatários.

É claro que o nosso país, pela sua própria formação étnica, não se defronta com os mesmos problemas enfrentados pelos Estados Unidos. Mas é preciso não esquecer que as diferenças raciais não podem e não devem ser relegadas a um plano secundário, ainda mais, considerando os aspectos dominantes da vida internacional moderna, a dita globalização.

Neste contexto de reparação a danos causados a grupos sociais, raciais ou étnicos, foi ratificada pelo Brasil em 27.3.1968 a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, integrada ao nosso ordenamento jurídico pelo Decreto n. 65.810/69.

Este Tratado, bem antes da nossa Constituição Federal de 1988, já exigia da República Federativa do Brasil, no item 1 do artigo II, a adoção de ações positivas de reparação social (ações afirmativas) aos grupos étnicos, sociais ou raciais que sofreram ao longo do tempo tratamento desigual que impediu o seu desenvolvimento econômico, social e cultural e a sua integração total à sociedade circundante.

Ações afirmativas são medidas especiais tomadas como o objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais, sociais ou étnicos ou indivíduos que necessitem de proteção e que possam ser necessárias e úteis para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que, tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.

Tais ações tornam-se eficazes nos campos social, econômico, cultural e outros, como medidas especiais e concretas para assegurar o convívio, o desenvolvimento ou a proteção de certos grupos sociais, raciais ou étnicos com o objetivo de garantir-lhes, em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos do homem e das liberdades fundamentais.

Essas medidas não deverão, em caso algum, ter a finalidade de manter direitos desiguais ou distintos para os diversos grupos sociais, étnicos, raciais, depois de alcançados os objetivos em razão das quais foram tomadas.

Martina Thomasberger afirma, no seu artigo Gleichbehandlung im Arbeitsrecht,publicadoinhttp://www.voegb.at/bildungsangebote/skripten/ar/AR-07.pdf, que:

"Der Begriff 'affirmative action' stammt aus den USA. Praktiker/innen haben den Begriff weltweit aufgegriffen und ausgebaut. Eine positive Maßnahme muss auf ein konkretes, genau festgelegtes Ergebnis gerichtet und verbindlich sein. Sie muss aber immer den Grundsatz der Verhältnismäßigkeit wahren. Eine positive Maßnahme zielt auf eine höhere Beteiligung von benachteiligten Gruppen auf allen Ebenen der Hierarchie, der Funktionen und Tätigkeitsbereiche. Positive Maßnahmen sollen Praktiken korrigieren, die diskriminierende Folgen für die Beschäftigung der betroffenen Personen haben. Sie müssen wegen der Zielgenauigkeit "maßgeschneidert" sein, daher sind die Maßnahmen so vielfältig wie die Organisationen, in denen sie gesetzt werden. Die Bandbreite reicht von personalpolitischen Maßnahmen in Organisationen (Betrieben, Verwaltung) bis zu staatlichen Maßnahmen unterschiedlichster Art (Beispiel: Arbeitsmarktpolitik). Die positive Aktion ist immer vorübergehend, bis das gesetzte Ziel der besseren Beteiligung erreicht ist."

A autora ilustra que o termo "ação afirmativa" surgiu nos Estados Unidos da América, sendo que os juristas assumiram o conceito que se expandiu-se globalmente. A ação positiva deve ser direcionada para um resultado bem definido e específico e ser autêntica, mas deve sempre ser respeitado o princípio da proporcionalidade. Representa uma medida positiva no sentido de aumentar a participação dos grupos desfavorecidos em todos os níveis da hierarquia das funções e atividades. A ação positiva existe para corrigir práticas que têm um efeito discriminatório sobre o emprego das pessoas em causa, devendo ser adaptada para a exatidão do "alvo", portanto as medidas podem ser tão variadas quanto as organizações em que estão colocadas. Elas vão desde as políticas de recursos humanos nas organizações (empresas, administração) até as políticas públicas de vários tipos de trabalho, por exemplo. A ação positiva é sempre temporária, vige até que a meta estabelecida de uma participação maior seja alcançada.

A nossa Constituição Federal/88, posteriormente à Convenção, listou no seu artigo 3º os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, eis o texto:

"Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação."

Eles representam o arcabouço normativo que norteia todas as ações positivas do Estado para minorar as desigualdades e as garantias das raças, etnias e grupos sociais colocados à margem do pregresso e do desenvolvimento.

Ressalte-se que as ações afirmativas devem ser compatibilizadas com os bens culturais dos grupos que serão beneficiados. Caso contrário, estar-se-ia veladamente buscando a aniquilação do grupo vulnerável.

6. DA POLÍTICA DE COTAS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS

6.1 DA AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA

André Ramos Tavares, no seu artigo Direito Fundamental à Educação,inhttp://200.142.144.130/revista/direito/primeira_edicao/andre_ramos_tavarez.pdf, afirma que a primeira lei orgânica do ensino superior da República Federativa do Brasil, o Decreto n. 8.659, de 5.4.1911, já concedia autonomia às escolas superiores, entretanto foi revogada tal autonomia, voltando as Instituições de Ensino Superior à esfera de precedência hierárquica dos órgãos da Administração Direta.

O Decreto n. 19.851, de 11.4.1931, restabeleceu a autonomia universitária, mas a matéria continuava sendo regida por uma espécie normativa, cuja facilidade de alteração denotava insegurança jurídica para tais instituições. Sendo certo que foi a partir da promulgação da Constituição Federal/88 que a autonomia universitária adquiriu contornos gerais constitucionais.

A regulamentação veio com a Lei n. 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), eis o seu artigo referente à autonomia:

"Art. 53. No exercício de sua autonomia, são asseguradas às universidades, sem prejuízo de outras, as seguintes atribuições:

I - criar, organizar e extinguir, em sua sede, cursos e programas de educação superior previstos nesta Lei, obedecendo às normas gerais da União e, quando for o caso, do respectivo sistema de ensino; (Regulamento)

II - fixar os currículos dos seus cursos e programas, observadas as diretrizes gerais pertinentes;

III - estabelecer planos, programas e projetos de pesquisa científica, produção artística e atividades de extensão;

IV - fixar o número de vagas de acordo com a capacidade institucional e as exigências do seu meio;

V - elaborar e reformar os seus estatutos e regimentos em consonância com as normas gerais atinentes;

VI - conferir graus, diplomas e outros títulos;

VII - firmar contratos, acordos e convênios;

VIII - aprovar e executar planos, programas e projetos de investimentos referentes a obras, serviços e aquisições em geral, bem como administrar rendimentos conforme dispositivos institucionais;

IX - administrar os rendimentos e deles dispor na forma prevista no ato de constituição, nas leis e nos respectivos estatutos;

X - receber subvenções, doações, heranças, legados e cooperação financeira resultante de convênios com entidades públicas e privadas.

Parágrafo único. Para garantir a autonomia didático-científica das universidades, caberá aos seus colegiados de ensino e pesquisa decidir, dentro dos recursos orçamentários disponíveis, sobre:

I - criação, expansão, modificação e extinção de cursos;

II - ampliação e diminuição de vagas;

III - elaboração da programação dos cursos;

IV - programação das pesquisas e das atividades de extensão;

V - contratação e dispensa de professores;

VI - planos de carreira docente."

O ingresso na instituição de ensino como discente é regulamentado basicamente pelas normas jurídicas internas das universidades, logo a fixação de cotas para indivíduos pertencentes a grupos étnicos, sociais e raciais afastados compulsoriamente do progresso e do desenvolvimento, na forma do artigo 3º da Constituição Federal/88 e da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, faz parte, ao menos - considerando o nosso ordenamento jurídico atual - da autonomia universitária para dispor do processo seletivo vestibular.

Deve ser ressaltado que caso o Poder Legislativo, representando o povo na forma do parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal/88, desejasse limitar a autonomia das universidades na implantação da política de cotas, já o teria feito por meio da edição de lei tratando do assunto.

Observe-se que a autonomia não implica soberania nem independência, devendo ser exercida com base nos princípios da legalidade (rule of law), proporcionalidade e razoabilidade, o que foi observado pela UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ.

6.2 DA OBJETIVIDADE DAS NORMAS COMO DECORRÊNCIA DO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA

Consolidado o entendimento de que as universidades podem instituir o sistema de cotas no processo seletivo de ingresso de discentes, tem-se que as normas jurídicas editadas para a efetivação da discriminação positiva devem ter conteúdo objetivo, a fim de que o candidato possa se adequar.

Kant afirma, in Fundamentação da Metafísica dos Costumes, São Paulo: Martin Claret, 2009, que os imperativos hipotéticos, baseados no dever-ser, devem ter conteúdo objetivo, a fim de que o cidadão tenha certeza da consequência da sua conduta.

O Edital do processo seletivo vestibular afirma, no § 2º do seu artigo 3º, que:

"§ 2º - Das vagas oferecidas para os cursos, 20% serão de inclusão social, disponibilizadas para estudantes que tenham realizado o ensino fundamental e médio exclusivamente em escola público no Brasil, entendidas como tais aquelas mantidas pelo poder público."

O recorrido, conforme pode ser extraído do acórdão do Tribunal de origem, cursou parte da primeira série do ensino fundamental em escola privada. Portanto, teve a sua matrícula obstada na forma do parágrafo acima transcrito.

Ora, a norma objetiva expedida pela universidade em tela denota a sua autonomia razoável e proporcional na escolha dos critérios de atribuição de vagas para implementação de ações afirmativas.

A segurança, valor jurídico, é instrumentalizada por uma expressão objetiva, que é a legalidade. Assim, o seu cumprimento passa a poder ser provado dentro de limites mais estritos, dando margem a um menor número de dúvidas.

O subjetivismo denotado na decisão atacada tem duplo efeito, quais sejam, instituir a autonomia em detrimento da heteronomia das normas jurídicas e inviabilizar a implementação da política de cotas.

O imperativo hipotético é baseado na heteronomia, portanto faz parte do estatuto externo convencional, já a busca pela justiça caso a caso, sem a observância de critérios de legitimidade, enfraquece a norma jurídica e afasta a sua natureza objetiva.

A ausência de critérios objetivos torna ineficaz a política de inclusão, visto que, além de retirar da universidade a sua autonomia, afasta a possibilidade de estipulação de percentuais claros para a implementação da discriminação positiva pertinente.

No ordenamento jurídico brasileiro, a norma jurídica é uma prescrição que deve ser observada pelos cidadãos e pelos aplicadores do Direito. Já o sistema dos EUA adota a norma como uma previsão, podendo o aplicador, no caso concreto, afastar a sua aplicação.

De fato, há casos no sistema anglo-saxão cujo afastamento do critério objetivo não fulmina de morte a política púbica a ser implementada, mas a inobservância do estabelecido no presente edital tornará a tentativa de implementar o princípio da isonomia através de cotas impossível.

O poder normativo do Poder Judiciário não pode, em regra, afastar a autonomia universitária exercida nos limites da lei, da razoabilidade e da proporcionalidade, sob pena de se tornar agente normativo positivo e invadir o poder regulamentar de órgãos e entidades do Poder Executivo.

A propósito, os seguintes precedentes:

"MANDADO DE SEGURANÇA. PORTARIA MINISTERIAL. ILEGALIDADE POR OFENSA À LIVRE INICIATIVA E À CONCORRÊNCIA. PRÉ-FIXAÇÃO DE PREÇOS E RESERVA DE MERCADO PARA EMPRESAS NACIONAIS. LEGITIMIDADE E LEGALIDADE DA PORTARIA MINISTERIAL. PROCESSO PRODUTIVO BÁSICO - PPB.

(...).

5. É cediço que os atos administrativos, como soem ser as Portarias, gozam de presunção de legitimidade, mercê de, em nome da harmonia dos poderes, vedar-se a sindicância à opção do administrador, muito embora seja lícito na aferição da legalidade observar a correspondência entre a motivação e o resultado do ato, sem contudo, permitir-se ao Judiciário avaliar os critérios de adoção de determinada política econômica governamental, sob pena de ferimento do Princípio da Independência entre os Poderes.

6. A Portaria que executa regra constitucional de desenvolvimento regional e nacional motiva-se na Carta Fundamental e no dever Ministerial, sem prejuízo de conceber-se esse dever maior como fundamento de verdadeiro ato vinculado, nos quais, como de sabença a motivação 'está predefinida na lei, perante situação objetivamente identificável, a única providência qualificada como hábil e necessária para atendimento do interesse público' e 'o que mais importa é haver ocorrido o motivo perante o qual o comportamento era obrigatório, passando para segundo plano a questão da motivação.

Assim, se o ato não houver sido motivado, mas for possível demonstrar ulteriormente, de maneira indisputavelmente objetiva e para além de qualquer dúvida ou entredúvida, que o motivo exigente do ato preexistia, dever-se-á considerar sanado o vício do ato".(Celso Antônio Bandeira de Mello in "Curso de Direito Administrativo', 20.ª Edição, Malheiros Editores, 2006, pág. 375)

(...)."

(MS 11.862/DF, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, Rel. p/ Acórdão Min. Luiz Fux, Primeira Seção, julgado em 22.4.2009, DJe 25.5.2009) (grifo meu.)

Quanto ao controle de políticas públicas pelo Poder Judiciário como legislador positivo, Martine Lombard, in Droit Administratif. 4ª ed., Paris: Dalloz, 2001, afirma que:

"L'évaluation des politiques publiques se distingue des travaux d'inspection et de contôle en ce qu'elle ne porte pas seulement sur la vérification du respect de normes administratives ou techniques, mais tend à comparer les résultats d'une politique publique aux objetifs initialement fixés et aux moyens mis en oeuvre."

Ora, o autor francês mostra que a avaliação da política pública é diferente do trabalho de inspeção e controle, pois não se concentra apenas na fiscalização do cumprimento de normas administrativas ou técnicas, mas tende a comparar os resultados de uma política pública aos objetivos inicialmente fixados e aos meios utilizados.

Esta avaliação, no presente caso, faz parte da autonomia específica das universidades trazida pelo artigo 53 da Lei n. 9.394/96, sendo que desconsiderar o critério objetivo estabelecido no edital terminaria por macular a política pública de inclusão.

Eis precedente em caso de processo seletivo de ingresso:

"PROCESSUAL E ADMINISTRATIVO - PROGRAMA EXPERIMENTAL DE INGRESSO NO ENSINO SUPERIOR - PEIES - AVALIAÇÃO SERIADA - LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO (LEI 9.394/96).

1. Não cabe ao STJ, em sede de recurso especial, examinar possível violação a dispositivos constitucionais.

2. Incide a Súmula 284/STF se o recorrente, a pretexto de violação do art. 535 do CPC, limita-se a fazer alegações genéricas, sem, contudo, indicar com precisão em que consiste a omissão, contradição ou obscuridade do julgado.

3. Matéria que não foi discutida no Tribunal a quo não pode ser analisada em sede de especial, por ausência de prequestionamento (Súmula 282/STF).

4. Descabe, em sede de recurso especial, o exame de violação a decreto, a portaria interministerial ou a regimento interno, por não se enquadrarem no conceito de lei federal, na forma do art. 105, III, 'a', da CF/88.

5. A Lei 9.394/96, ao regulamentar o art. 207 da Constituição Federal de 1988, abandonou por completo a sistemática de acesso ao ensino superior unicamente através de 'vestibular', antes definido pela Lei 5.540/68, traçando novas diretrizes quanto aos critérios de seleção e admissão de estudantes, que passaram a ser fixados de acordo com o princípio da autonomia didático-científica das universidades, mediante articulações destas com os órgãos normativos dos sistemas de ensino.

6. Nesse contexto, uma vez que observadas as normas da Lei 9.394/96 e principalmente o princípio da publicidade dos critérios de seleção, dentro do contexto de autonomia didático-científica atribuída às instituições de ensino, como bem salientado pelo Tribunal de origem, legítimo é o processo seletivo de avaliação seriada criado pela Universidade recorrida, sem que se possa falar em ofensa do princípio da igualdade no acesso à escola, previsto no art. 3º, inciso I desta lei.

7. Recurso especial parcialmente conhecido e, no mérito, improvido."

(REsp 546.232/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 9.8.2005, DJ 5.9.2005 p. 345) (grifo meu.)

Eis as palavras da Ministra Relatora do acórdão acima transcrito:

"Não fosse apenas isso, paralelamente à outorgada a essas instituições, dentre outras coisas, da discricionariedade quanto ao estabelecimento das formas de acesso ao ensino superior, abandonou a Lei 9.394/96, de forma expressa, a antiga imposição quanto à exclusividade do usual 'vestibular', prevista nos arts. 17, 'a' e 21 da Lei 5.540/68, ao revogar inteiramente esses dispositivos pelo seu art. 92." (grifo meu.)

A Segunda Turma tem como premissa que faz parte da autonomia universitária a fixação das normas que tratam do ingresso de discente, o que se estende à implementação de política pública de ação afirmativa no processo seletivo.

A exigência relacionada à frequência integral e exclusiva no ensino médio e fundamental públicos é um critério objetivo razoável e proporcional escolhido pela universidade, pois a possibilidade de candidato que cursou alguns meses do ensino fundamental em escola privada disputar vagas reservadas aos cotistas retira a objetividade da norma.

Caso exceções à autonomia universitária veiculadas pelo magistrado fossem possíveis, surgiriam as seguintes perguntas. Até quantos meses? Será o Poder Judiciário competente para, no presente caso, fixar, em cada julgamento, os meses que seriam razoáveis e proporcionais?

Brilhantes são os ensinamentos do Ministro do STF Joaquim Benedito Barbosa Gomes sobre segurança jurídica na implementação das ações afirmativas - no seu artigo Ações afirmativas e os processos de promoção da igualdade efetiva, in Seminário Internacional as minorias e o direito (2001:Brasília) / Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários; AJUFE; Fundação Pedro Jorge de Mello e Silva; The Britsh Council. Brasília: CJF, 2003, p. 121 - ao afirmar a necessidade da discriminação positiva ser específica, estabelecendo claramente as situações ou indivíduos que serão beneficiados com a diferenciação. Eis o texto:

"Aliado a isto, a legislação infraconstitucional deve respeitar três critérios concomitantes para que atenda ao princípio da igualdade material: a diferenciação deve (a) decorrer de um comando-dever constitucional, no sentido de que deve obediência a uma norma programática que determina a redução das desigualdades sociais; (b) ser específica, estabelecendo claramente aquelas situações ou indivíduos que serão 'beneficiados' com a diferenciação, e (c) ser eficiente, ou seja, é necessária a existência de um nexo causal entre a prioridade legal concedida e a igualdade socioeconômica pretendida." (grifo meu.)

Sobre o cuidado na escolha dos meios de implantação de qualquer ação afirmativa para não inviabilizar o seu objetivo final, José Carlos Evangelista de Araújo, no seu livro Ações afirmativas e Estado democrático social de direito. São Paulo: LTr, 2009, afirma que:

"Nem sempre seria possível, ou até mesmo plausível, saber qual, dentre todos os meios igualmente adequados, seria o mais intenso, o melhor e o mais seguro na realização do fim. Tudo dependeria de informações e de circunstâncias que, na maior parte das vezes, estão indisponíveis para o administrador.

Dessa maneira, poderia a administração pública inviabilizar-se, e com ela, também a promoção satisfatória dos seus fins, se dela se exigir, na tomada de cada decisão, por insignificante que pareça, avaliar exaustivamente todos os meios possíveis e imagináveis para se atingir o fim que lhe foi colimado pelo ordenamento jurídico".

O autor afirma também que quando os meios (recursos públicos) são insuficientes, não apenas no grau de limitações aos direitos fundamentais, como também no grau de promoção da finalidade, as escolhas podem se mostrar difíceis.

Não é fácil para a Administração Pública escolher entre um meio que restringe pouco um direito fundamental, mas, em contrapartida, promove pouco o fim colimado, e um outro meio que, ao mesmo tempo, promove intensamente o fim, mas provoca restrições a direitos fundamentais na mesma intensidade.

De fato, tais questões não podem, considerando este caso concreto, ser decididas fora da autonomia universitária, sendo certo que a UFPR o fez da maneira mais específica e objetiva possível.

7. CONCLUSÕES

Ante o exposto, dou parcial provimento ao presente recurso especial, para manter a exigência formulada pela recorrente, de que candidatos a vagas reservadas à discriminação positiva "tenham realizado o ensino fundamental e médio exclusivamente em escola pública no Brasil".

É como penso. É como voto.

MINISTRO HUMBERTO MARTINS
Relator

CERTIDÃO DE JULGAMENTO

SEGUNDA TURMA

Número Registro: 2009/0062389-6 REsp 1132476 / PR

Número Origem: 200870000045460

PAUTA: 13/10/2009 JULGADO: 13/10/2009

Relator
Exmo. Sr. Ministro HUMBERTO MARTINS

Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro HUMBERTO MARTINS

Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. EUGÊNIO JOSÉ GUILHERME DE ARAGÃO

Secretária
Bela. VALÉRIA ALVIM DUSI

AUTUAÇÃO

RECORRENTE: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

PROCURADOR: ALEXANDRE DORNELES LEMOS E OUTRO(S)

RECORRIDO: DIEGO MOTTA RAMOS

ADVOGADO: EGYDIO MARQUES DIAS NETTO

ASSUNTO: DIREITO ADMINISTRATIVO E OUTRAS MATÉRIAS DE DIREITO PÚBLICO - Serviços - Ensino Superior

CERTIDÃO

Certifico que a egrégia SEGUNDA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

"A Turma, por unanimidade, deu parcial provimento ao recurso, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a)."

Os Srs. Ministros Herman Benjamin, Mauro Campbell Marques, Eliana Calmon e Castro Meira votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília, 13 de outubro de 2009

VALÉRIA ALVIM DUSI
Secretária

Documento: 919323

Inteiro Teor do Acórdão - DJ: 21/10/2009




JURID - Política de cotas. Autonomia universitária. [21/10/09] - Jurisprudência

 



 

 

 

 

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