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quinta-feira, 15 de outubro de 2009

JURID - Descaminho. Tipicidade. Princípio da insignificância. [15/10/09] - Jurisprudência


Descaminho. Tipicidade. Aplicação do princípio da insignificância.


Superior Tribunal de Justiça - STJ.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.112.748 - TO (2009/0056632-6)

RELATOR: MINISTRO FELIX FISCHER

RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

RECORRIDO: ERONILDES GOMES DE SOUZA

RECORRIDO: ELISEU GOMES DE SOUZA JÚNIOR

ADVOGADO: JULIANO MARTINS DE GODOY - DEFENSOR PÚBLICO DA UNIÃO

EMENTA

RECURSO ESPECIAL REPETITIVO REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. ART. 105, III, A E C DA CF/88. PENAL. ART. 334, § 1º, ALÍNEAS C E D, DO CÓDIGO PENAL. DESCAMINHO. TIPICIDADE. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.

I - Segundo jurisprudência firmada no âmbito do Pretório Excelso - 1ª e 2ª Turmas - incide o princípio da insignificância aos débitos tributários que não ultrapassem o limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais), a teor do disposto no art. 20 da Lei nº 10.522/02.

II - Muito embora esta não seja a orientação majoritária desta Corte (vide EREsp 966077/GO, 3ª Seção, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 20/08/2009), mas em prol da otimização do sistema, e buscando evitar uma sucessiva interposição de recursos ao c. Supremo Tribunal Federal, em sintonia com os objetivos da Lei nº 11.672/08, é de ser seguido, na matéria, o escólio jurisprudencial da Suprema Corte.

Recurso especial desprovido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da TERCEIRA SEÇÃO do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Votaram com o Relator os Srs. Ministros Arnaldo Esteves Lima, Maria Thereza de Assis Moura, Napoleão Nunes Maia Filho (com ressalva), Jorge Mussi, Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ/SP), Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ/CE) e Nilson Naves.

Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Og Fernandes.

Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Laurita Vaz.

Brasília (DF), 09 de setembro de 2009. (Data do Julgamento).

MINISTRO FELIX FISCHER
Relator

RELATÓRIO

O EXMO.SR.MINISTRO FELIX FISCHER: Trata-se de recurso especial interposto pelo Ministério Público Federal, com fundamento no art. 105, inciso III, alíneas a e c, da Constituição Federal, contra v. acórdão prolatado pelo e. Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

Depreende-se dos autos que o recorrido foi denunciado como incurso nas sanções do art. 334, § 1º, alíneas c e d, do Código Penal. Isso porque, narra a denúncia, estaria expondo à venda cerca de 120 (cento e vinte) maços de cigarro, de origem estrangeira e sem a respectiva documentação legal.

Contudo, a exordial acusatória foi rejeitada devido a aplicação, à espécie, do princípio da insignificância.

Irresignado, o Parquet apresentou recurso em sentido estrito, buscando a reforma da decisão e o consequente processamento do feito.

O e. Tribunal de origem manteve a decisão atacada em acórdão vazado nos seguintes termos:

"PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DESCAMINHO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO. CRIAÇÃO E/OU INCREMENTO DE RISCOS PROIBIDOS RELEVANTES. NÃO COMPROVAÇÃO.

1. A adequação material da tipicidade decorre da necessidade cada vez maior de se dar relevância ao caráter fragmentário do direito penal, afastando da incidência da ultima ratio situações que, por sua inexpressividade, não ofendam ou pouco ofendam os bens jurídicos tutelados pela norma penal.

2. Não cabe mais no direito penal somente o tradicional juízo lógico-formal de adequação das condutas típicas, devendo o Magistrado analisar, concomitantemente, o aspecto material da conduta, para verificar se há produção ou incremento de riscos proibidos relevantes.

3. A despeito da orientação jurisprudencial que vem sendo seguida, inclusive por esta Corte, a reativação dos autos é apenas uma hipótese, e não uma certeza. A premissa de que o agente voltará a cometer a sonegação fiscal não encontra embasamento legal, porque o direito penal não opera com base em suposições, mas, sim, em fatos concretos.

4. A perda dos bens apreendidos é sanção suficiente a ser aplicada ao denunciado. Isso porque, na conformação contemporânea do Estado brasileiro, de natureza constitucional democrática de direito, o fundamento de proteção à dignidade humana, estatuído no art. 1º, inciso III, da Carta Política de 1988, espelho da evolução de nossa sociedade, impede a exorbitância/desproporcionalidade na aplicação do direito penal, mormente quando a situação em debate sequer demanda atuação no âmbito cível.

5. Se nem mesmo no Império, sob a égide do Código Criminal de 1830, quando não se ouvia falar em direitos humanos, o contrabandista sofria privação de liberdade, menos razão há no encarceramento para o descaminho, dado o momento atual.

6. Recurso em sentido estrito não provido" (fl. 155).

Daí o presente apelo nobre no qual o recorrente, a par de dissídio jurisprudencial, alega violação ao art. 334, § 1º, alíneas c e d do Código Penal. Sustenta que não seria aplicável o princípio da insignificância, tendo em vista o valor dos tributos devidos. Assevera que diversamente do que decidido no vergastado acórdão, o parâmetro para a incidência do referido postulado seria o previsto no art. 18, § 1º, da Lei nº 10.522/02 (R$ 100,00).

Busca, ao final, seja dado provimento ao recurso para que prossiga a persecução penal.

Contrarrazões apresentadas às fls.178/187.

Submetido o recurso a juízo de admissibilidade perante o e. Tribunal a quo, este foi admitido nos termos do art. 543-C do CPC.

Assim, também nesta Corte, a irresignação foi admitida como representativa da controvérsia, observados aos ditames do art. 543-C do CPC e da Resolução nº 8/STJ.

A d. Subprocuradoria-Geral da República manifestou-se pelo provimento do recurso em parecer assim ementado:

RECURSO ESPECIAL. RÉU CONDENADO POR INFRAÇÃO AO ARTIGO 334, § 1º, ALÍNEAS "c" e "d", DO CP (CONTRABANDO OU DESCAMINHO). DENÚNCIA NÃO FOI RECEBIDA, AO FUNDAMENTO DE APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO INTERPOSTO PELO MP. DESPROVIDO. RESP. ALEGAÇÃO DE QUE O MONTANTE DO TRIBUTO INCIDENTE SOBRE AS MERCADORIAS ESTRANGEIRAS APREENDIDAS É SUPERIOR AO VALOR DE R$ 100,00, ESTABELECIDO NA NORMA LEGAL QUE REGE A EXTINÇÃO DOS CRÉDITOS TRIBUTÁRIOS (ART. 18, § 1.º, DA LEI Nº 10.522/02), NÃO SENDO POSSÍVEL APLICAR O ALUDIDO PRINCÍPIO. CONFIGURAÇÃO. PRECEDENTES DO STJ. PARECER PELO PROVIMENTO DO RECURSO PARA QUE SEJA REFORMADO O ACÓRDÃO RECORRIDO DEVENDO A INSTÂNCIA ORDINÁRIA DAR PROSSEGUIMENTO AO FEITO." (fl. 219).

É o relatório.

VOTO

O EXMO.SR.MINISTRO FELIX FISCHER: A controvérsia instaurada no presente feito cinge-se à verificação dos parâmetros a serem utilizados na aplicação do princípio da insignificância ao crime de descaminho.

É certo que referido princípio pode incidir no crime em comento, pois há muito a jurisprudência - mormente a dos Tribunais Superiores - sedimentou-se no sentido de admitir sua aplicação como forma de afastar a tipicidade material do fato.

Impende asseverar que em razão das inúmeras alterações legislativas que se sucederam (Leis nº 9.469/97 - 10.522/02 - 11.033/04), promoveu-se uma mutação na jurisprudência quanto aos contornos da aplicação do princípio para alcançar-se, na matéria, o conceito de infração de bagatela.

Assim, haja vista a polêmica instaurada, a questão foi submetida recentemente à apreciação da Terceira Seção desta Corte que, por maioria, entendeu ser impossível a aplicação do princípio quando o valor dos tributos elididos ultrapassasse o montante de R$ 100,00 (cem reais). Eis a ementa:

"EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. PENAL. CRIME DE DESCAMINHO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. VALOR SUPERIOR ÀQUELE PREVISTO NO ART. 18, § 1.º, DA LEI N.º 10.522/2002.

1. Hipótese em que foram apreendidas ao entrarem ilegalmente no país 644 (seiscentos e quarenta e quatro) pacotes de cigarro de diversas marcas e 12 (doze) litros de wisky, todas mercadorias provenientes do Paraguai, avaliadas à época em R$ 6.920,00 (seis mil novecentos e vinte reais). Impossibilidade de aplicação do princípio da insignificância.

2. Não é possível utilizar o art. 20 da Lei n.º 10.522/02 como parâmetro para aplicar o princípio da insignificância, já que o mencionado dispositivo se refere ao ajuizamento de ação de execução ou arquivamento sem baixa na distribuição, e não de causa de extinção de crédito.

3. O melhor parâmetro para afastar a relevância penal da conduta é justamente aquele utilizado pela Administração Fazendária para extinguir o débito fiscal, consoante dispõe o art. 18, § 1.º, da Lei n.º 10.522/2002, que determina o cancelamento da dívida tributária igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais).

4. Há de se ressaltar que, no caso, existe controvérsia sobre o montante da dívida tributária, que pode até ser maior do que R$ 10.000,00, além de se tratar a denunciada de pessoa que ostenta outras duas condenações por crimes da mesma espécie, revelando, em princípio, reiteração criminosa.

5. Embargos de divergência acolhidos para, cassando o acórdão embargado, negar provimento ao recurso especial.

(EREsp 966077/GO, 3ª Seção, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 20/08/2009)

Ressaltou a eminente Ministra Relatora em seu voto:

"(...) filio-me ao entendimento até então prevalente na Eg. Quinta Turma, no sentido de que o melhor parâmetro para afastar a relevância penal da conduta é justamente aquele utilizado pela Administração Fazendária para extinguir o débito fiscal, consoante dispõe o art. 18, § 1º, da Lei nº 10.522/2002, que determina o cancelamento da dívida tributária igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais).

Observa-se, assim, qua a legislação acima mencionada, ao indicar o limite, hoje, de R$ 10.000,00 (dez mil reais), não estabelece a extinção do crédito tributário, mas o mero arquivamento, sem baixa na distribuição, das execuções fiscais, ou seja, promove a suspensão da execução, até que o valor devido atinja o patamar ali previsto, por uma questão única e exclusivamente relacionada com a falta de aparelhamento do Estado para cobrar todos os débitos tributários"

O entendimento acima mencionado, há muito, é, a meu ver, o que deveria prevalecer. Ou seja, a invocação da insignificância como excludente da tipicidade penal somente teria lugar quanto constatado que o débito tributário não ultrapassasse a quantia de R$ 100,00 (cem reais).

Isso porque, conforme precedentemente já sustentado, somente aqui haverá extinção do crédito tributário e, por conseguinte, desinteresse definitivo na cobrança da dívida pela Administração Fazendária. Neste contexto, e somente neste, entendo invocável referido princípio.

Entretanto, ao se adotar o limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais) como norte para a aplicação da insignificância, creio, com a devida venia, há um desvirtuamento no trato da questão.

Com efeito, o argumento dos que defendem a sua aplicação neste último caso justifica-se pela consideração de que em não havendo interesse na cobrança do débito na esfera administrativa, de igual modo, não haveria na deflagração do processo-crime. Ocorre que o dispositivo legal utilizado como supedâneo para tal orientação (art. 20 da Lei nº 10.522/02), não permite, quero crer, alcançar a conclusão proposta, na medida em que o comando normativo trata de arquivamento sem baixa na distribuição do débito a evidenciar a ausência de desinteresse permanente como se dá, ao contrário, na hipótese tratada no art. 18, § 1º do mesmo diploma legal.

O que há, portanto, é uma mera estratégia de cobrança dos débitos por parte da Administração que, sopesando os custos de uma demanda judicial, de um lado, com o proveito que ela poderá obter, de outro, estipula um montante mínimo para que se de início à cobrança.

Acerca do tema, Douglas Fischer, Procurador Regional da República, ensina:

"A circunstância de o Estado não promover a cobrança (mediante execução fiscal) dos valores inferiores hoje a R$ 10.000,00 não significa dizer que não haja interesse em receber as quantias. A providência insculpida em norma legal que autoriza o arquivamento (momentâneo) na distribuição das execuções fiscais diz tão somente com uma questão de política econômica e operacional da máquina de cobrança do Estado. Ou seja, a inserção de tal dispositivo justifica-se pela fato de ser mais oneroso para o Estado cobrar as quantias objeto da prática criminosa, dado que as despesas para tanto superam aquele limite referido na norma retrorreferida. Mas o dano social - protegido pela norma penal - parece continuar evidente, dependendo do caso concreto. Em suma, o fundamento das regras de âmbito cível - de não execução e/ou de cobrança dos valores - é evitar exatamente que a sociedade seja novamente penalizada, gastando-se mais que o próprio objeto do dano perseguido - o qual pertence aos cofres públicos."

Na mesma senda, Dermeval Farias Gomes Filho, membro do MPDFT, assevera que:

Ora, o fato de não existir, por ora, interesse fiscal na cobrança judicial de débitos iguais ou inferiores a R$ 10.000,00 (dez mil reais) não pode levar à conclusão de que o não pagamento do tributo é insignificante, que constitui uma lesão ínfima ao bem jurídico penal e, portanto, uma atipicidade penal material.

Assim, além dos pressupostos genéricos para a incidência do princípio, é crucial afirmar que, no tocante ao descaminho, se existe algum critério razoável para a incidência do princípio da insignificância, esse há de ser o amparado no limite de R$ 100,00 (cem reais), valor que possibilita o cancelamento da cobrança com suporte no §1º do art.18 da Lei 10.522/2002, pois constitui o limite para arquivamento com baixa na distribuição. Além de ser um patamar que admite a valoração de bagatela, inclusive, em outras infrações penais.

Soma-se a isso a falta de fundamento jurídico sólido para valorar como uma atipicidade material a conduta parâmetro de perpetrar descaminho com valor não superior a dez mil reais. As peculiaridades sócio-econômicas do Brasil não suportam tamanha interpretação, capaz de favorecer a prática do delito em análise.

Ademais, a prática do descaminho, em não poucas vezes, fomenta outros crimes conexos que decorrem da importação de produtos sem o recolhimento do tributo devido. Desse modo, o critério atual (limite de R$ 10.000,00) não preenche o conteúdo de crime insignificante, que exige uma lesão ínfima ao bem jurídico tutelado e leva em conta as consequências sociais da conduta. (A dimensão do Princípio da Insignificância- imprecisão jurisprudencial e doutrinária- necessidade de nova reflexão no crime de descaminho? in 3ª edição da Revista Eletrônica da Justiça Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal- TRF 1ª Região)

A circunstância de não haver a cobrança imediata do crédito, não pode significar, automaticamente, a insignificância do fato. Ora, se assim o fosse, indago: supondo-se ocorrido um furto, cujo autor é conhecido da vítima, e imaginando esta de antemão, por pessimismo ou descrédito, que não obteria êxito, em prazo razoável, se intentasse uma ação judicial buscando a reparação do prejuízo sofrido, poderia se classificar a conduta como insignificante, ainda que de grande monta os valores subtraídos? Creio que não.

É que, nos crimes contra o patrimônio - seja ele o privado, seja o erário -, a tipificação penal não pode estar vinculada tão somente à forma como será, e se de fato será, buscada a reparação do prejuízo, pois o que move o legislador ao definir uma figura típica não é a mesma razão por ele utilizada quando define formas de cobrança de um débito gerado pela prática de um injusto.

Segundo Rogério Greco, perfilhando esse entendimento:

"Uma coisa é o desinteresse em dar início à execução fiscal por questões de ordem econômica (ou seja, o custo do processamento judicial pode ser superior ao valor executado); outra coisa é se, no caso concreto, existe tipicidade material, o que nos parece evidente, tendo em vista o elevado valor previsto pelo art. 20 da Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, com a nova redação que lhe foi dada pela Lei nº 11.033, de 21 de dezembro de 2004."(in Curso de Direito Penal - Volume IV, Parte Especial (arts.250 a 361 do CP), 2ª edição, Impetus: Niterói/RJ, 2007, p.526).

Neste ponto, escorreita a posição adotada por Pierre Souto Maior Coutinho de Amorim:

"Pode-se afirmar com segurança que a definição se a conduta vai ter resultado penalmente relevante, o que equivale a dizer resultado socialmente relevante, não pode ficar ao arbítrio da Administração Pública, em interesse público secundário nitidamente desvinculado do interesse público primário."

E arremata o Magistrado:

"(...) a Administração Pública pode não cobrar hoje uma dívida de R$ 10.000,00 (dez mil reais) e, amanhã, não cobrar apenas o que não exceda a R$ 10 (dez reais), melhorando a sua estrutura, ou o que não exceda a R$ 100.000 (cem mil reais), piorando sua estrutura." (O uso indevido do princípio da insignificância in Boletim dos Procuradores da República nº 73 - Março/2007).

É sabido, por outro lado, que o sujeito passivo eventual é o titular do interesse penalmente protegido. Portanto, pode ser o homem, a pessoa jurídica, o Estado ou ainda a coletividade, conforme o injusto penal. Assim, ficaria aí outra indagação: se a busca da reparação é decisiva para tipificação penal, qual a solução a ser dada nos denominados crimes vagos, em que o sujeito passivo material ou eventual é a coletividade (v.g. arts. 233 e 286 do CP)?

E não é só!

Além do mais, mesmo considerando a relação entre o injusto e o bem jurídico, se me afigura, permissa venia, totalmente inadequado falar-se de insignificância quando o valor do tributo (e não dos objetos apreendidos) for de R$ 10.000,00 (dez mil reais), uma vez que em país algum tal soma poderia ser considerada irrisória. Tudo isso sem contar com a extensão e o desdobramento que referido entendimento pode acarretar em relação a outros delitos. Assim, temo que tal entendimento possa servir de incentivo para a prática desta modalidade criminosa e de outros injustos que tratem também de créditos tributários.

Em segundo lugar, por dever de coerência, o Juizado Especial Criminal deveria perder a razão de ser de sua existência, pois quase nenhuma infração que lhe é submetida apresenta tamanho desvalor (independentemente do bem jurídico tutelado). E a Lei de Contravenções Penais, v.g., ficaria revogada? Em suma, tudo que viesse a ser ali tratado teria que ser considerado, a priori, insignificante.

Aliás, no plano da criminalidade tributária, insta asseverar, já existem, para os seus trangressores, diversas regalias na esfera extrapenal que, sob a minha ótica, implicam em um desestímulo para o contribuinte regular.

Por igual, a extensão do que vem a ser bagatela, relacionando a tipificação com o interesse na busca da reparação extra-penal pode ensejar perplexidade em outros casos. Por exemplo: como se solucionaria o problema no caso dos crimes omissivos próprios (art. 135 do CP) e na chamada tentativa branca - possível até em caso de homicídio qualificado? Ou seja, toda tentativa branca e boa parte dos delitos omissivos puros teriam que ser atingidos pelo apontado princípio, evidenciando a ausência de interesse penal.

Por derradeiro, nessa linha de ressalva, dizer-se que o arquivamento com baixa nos termos do artigo 18 § 1º da Lei 10.522/02 enseja a atipicidade legal, parece-me destituída de fundamento jurídico. Em momento algum nesta hipótese é dito que o débito não existiu por ocasião da conduta delituosa. A ação era típica e por questões meramente operacionais na esfera extra-penal deixou de despertar interesse, daí porque a conduta que é legalmente típica passa a ser penalmente atípica em decorrência da aplicação do princípio em foco.

Existem, outrossim, três aspectos que não podem ser olvidados na aplicação do princípio da insignificância. O primeiro diz com a equivocada exigência de que não haja comportamento delitivo reiterado do agente ou então que se proceda ao exame de seus antecedentes. Neste ponto de requisitos que escapam ao princípio, tem-se a aplicação do direito penal de autor em que, resumindo, o réu não é incriminado pelo que fez, mas, no fundo, pelo o que é. E, da mesma forma, ele deixa de ser incriminado, em outros casos, pelo que é, e não pelo o que fez (conforme dicção de Zaffaroni e Jakobs). Sabidamente, a utilização do direito penal de autor é apontado como o mais adequado a um regime não-democrático. O segundo aspecto diz com a exigência ou verificação da perigosidade social da conduta no plano da tipificação, o que, a toda evidência, pela sua vagueza ou incerteza denotativa, entra em choque direto com o princípio da legalidade (art. 5º, inciso XXXIX da Carta Magna). O terceiro refere-se à consideração, em sede de bem jurídico, com o patrimônio concreto do lesado, o que levaria a se aplicar o princípio em quase todos os casos de delitos patrimoniais praticados em detrimento, v.g., da União ou grandes sociedades empresárias.

Por tais razões, entendo não ser adequada, permissa venia, a aplicação do referido postulado quando o débito tributário ultrapassa o montante de R$ 100,00 (cem reais).

Contudo, não obstante os argumentos acima expendidos, verifico que a orientação firmada nesta Corte por ocasião do julgamento do já citado EREsp 966077/GO, 3ª Seção, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 20/08/2009, merece ser revista em razão da atual jurisprudência que o Pretório Excelso firmou acerca da quaestio.

Com efeito, o c. Supremo Tribunal Federal pacificou o entendimento no sentido de que o vetor para a aplicação do princípio da insignificância é aquele previsto no art. 20 da Lei nº 10.522/02 (R$ 10.000,00).

Neste sentido, julgados recentes de ambas as colendas Turmas:

"EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL.o que PACIENTE PROCESSADO PELA INFRAÇÃO DO ART. 334, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL (DESCAMINHO). ALEGAÇÃO DE INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. EXISTÊNCIA DE PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FAVORÁVEL À TESE DA IMPETRAÇÃO. HABEAS CORPUS CONCEDIDO PARA DETERMINAR O TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. 1. O descaminho praticado pelo Paciente não resultou em dano ou perigo concreto relevante, de modo a lesionar ou colocar em perigo o bem jurídico reclamado pelo princípio da ofensividade. Tal fato não tem importância relevante na seara penal, pois, apesar de haver lesão a bem juridicamente tutelado pela norma penal, incide, na espécie, o princípio da insignificância, que reduz o âmbito de proibição aparente da tipicidade legal e, por consequência, torna atípico o fato denunciado. 2. A análise quanto à incidência, ou não, do princípio da insignificância na espécie deve considerar o valor objetivamente fixado pela Administração Pública para o arquivamento, sem baixa na distribuição, dos autos das ações fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União (art. 20 da Lei n. 10.522/02), que hoje equivale à quantia de R$ 10.000,00, e não o valor relativo ao cancelamento do crédito fiscal (art. 18 da Lei n. 10.522/02), equivalente a R$ 100,00. 3. É manifesta a ausência de justa causa para a propositura da ação penal contra o ora Paciente. Não há se subestimar a natureza subsidiária, fragmentária do Direito Penal, que só deve ser acionado quando os outros ramos do direito não sejam suficientes para a proteção dos bens jurídicos envolvidos. 4. Ordem concedida."

(HC 96309, 1ª Turma, Relator(a): Min. Cármen Lúcia, DJe de 24/04/2009).

"EMENTA: AÇÃO PENAL. Justa causa. Inexistência. Delito teórico de descaminho. Tributo devido estimado em pouco mais de mil reais. Valor inferior ao limite de dez mil reais estabelecido no art. 20 da Lei nº 10.522/02, com a redação da Lei nº 11.033/04. Crime de bagatela. Aplicação do princípio da insignificância. Atipicidade reconhecida. Absolvição decretada. HC concedido para esse fim. Precedentes. Reputa-se atípico o comportamento de descaminho, quando o valor do tributo devido seja inferior ao limite previsto no art. 20 da Lei nº 10.522/2002, com a redação introduzida pela Lei nº 11.033/2004."

(HC 96976, 2ª Turma, Relator(a): Min. Cezar Peluso, DJe de 08/05/2009).

"EMENTA: HABEAS CORPUS. DESCAMINHO. MONTANTE DOS IMPOSTOS NÃO PAGOS. DISPENSA LEGAL DE COBRANÇA EM AUTOS DE EXECUÇÃO FISCAL. LEI N° 10.522/02, ART. 20. IRRELEVÂNCIA ADMINISTRATIVA DA CONDUTA. INOBSERVÂNCIA AOS PRINCÍPIOS QUE REGEM O DIREITO PENAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. ORDEM CONCEDIDA. 1. De acordo com o artigo 20 da Lei n° 10.522/02, na redação dada pela Lei n° 11.033/04, os autos das execuções fiscais de débitos inferiores a dez mil reais serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, em ato administrativo vinculado, regido pelo princípio da legalidade. 2. O montante de impostos supostamente devido pelo paciente é inferior ao mínimo legalmente estabelecido para a execução fiscal, não constando da denúncia a referência a outros débitos em seu desfavor, em possível continuidade delitiva. 3. Ausência, na hipótese, de justa causa para a ação penal, pois uma conduta administrativamente irrelevante não pode ter relevância criminal. Princípios da subsidiariedade, da fragmentariedade, da necessidade e da intervenção mínima que regem o Direito Penal. Inexistência de lesão ao bem jurídico penalmente tutelado. 4. O afastamento, pelo órgão fracionário do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, da incidência de norma prevista em lei federal aplicável à hipótese concreta, com base no art. 37 da Constituição da República, viola a cláusula de reserva de plenário. Súmula Vinculante n° 10 do Supremo Tribunal Federal. 5. Ordem concedida, para determinar o trancamento da ação penal."

(HC 92438, 2ª Turma, Relator(a): Min. Joaquim Barbosa, DJe de 19/12/2008) .

Dessarte, como o presente recurso qualifica-se como representativo da controvérsia aqui instaurada, entendo, para conferir efetividade aos fins propostos pela Lei nº 11.672/08, e, assim, para uma otimização do sistema, evitando-se que uma série de recursos e/ou habeas corpus sejam dirigidos à Suprema Corte, curvo-me, respeitosamente com ressalvas, aos precedentes dela emanados para considerar que os créditos tributários que não ultrapassem R$ 10.000,00 (dez mil reais), ex vi do art. 20 da Lei 10.522/2002, sejam alcançados pelo princípio da insignificância.

No presente caso, em que os tributos elididos perfazem o total de (R$ 1.045,15. fl.150), mantenho a decisão recorrida e, por conseguinte, nego provimento ao recurso do Parquet.

É o voto.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.112.748 - TO (2009/0056632-6)

RELATOR: MINISTRO FELIX FISCHER

RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

RECORRIDO: ERONILDES GOMES DE SOUZA

RECORRIDO: ELISEU GOMES DE SOUZA JÚNIOR

ADVOGADO: JULIANO MARTINS DE GODOY - DEFENSOR PÚBLICO DA UNIÃO

VOTO

(MINISTRO NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO)

1.Senhora Ministra Presidente, acompanho o voto do Senhor Ministro Relator. Porém, penso que estamos tirando do cenário da discussão jurídica, no Supremo Tribunal Federal, um tema da maior relevância e, quiçá, estimulando que esse raciocínio seja aplicado, também, a outros tributos, como, por exemplo, ao Imposto de Renda, ao IPI e até às contribuições previdenciárias e a qualquer tributo devido ao erário.

2.É uma adesão que acompanho, mas, segundo me parece, a solução é um tanto - digamos - prematura, embora, no Supremo Tribunal Federal, essa tese já se possa ter por consolidada. Acho irreal, porque R$ 10.000,00 (dez mil reais) é uma quantia vultosa. Não é o valor da mercadoria importada. É o valor do tributo sonegado. Portanto, a mercadoria deve ser em torno de 30, 40 ou 50 mil reais. Considerar-se tal valor uma bagatela, parece-me perigoso, além de desrespeitoso para com aqueles que se sentem desestimulados em pagar o tributo.

3.Acompanho o voto do eminente Ministro Relator, esperando que não se tire esse assunto da discussão. Se bem que, praticamente, vai se tirar, porque não se vai mais discutir essa questão. Vamos julgar, agora, monocraticamente, nos gabinetes, o provimento ou o desprovimento dos recursos, versando essa matéria.

4.Penso, com todo respeito, que a quantia de R$ 10.000,00 (dez mil reais) é extremamente vultosa para se considerar uma bagatela, mas o entendimento do Colendo STF estará acima dessa minha particular percepção.

5.Acompanho o eminente Relator.

CERTIDÃO DE JULGAMENTO

TERCEIRA SEÇÃO

Número Registro: 2009/0056632-6 REsp 1112748 / TO

MATÉRIA CRIMINAL

Número Origem: 200743000005728

PAUTA: 09/09/2009 JULGADO: 09/09/2009

Relator
Exmo. Sr. Ministro FELIX FISCHER

Presidenta da Sessão
Exma. Sra. Ministra LAURITA VAZ

Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. JAIR BRANDÃO DE SOUZA MEIRA

Secretária
Bela. VANILDE S. M. TRIGO DE LOUREIRO

AUTUAÇÃO

RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

RECORRIDO: ERONILDES GOMES DE SOUZA

RECORRIDO: ELISEU GOMES DE SOUZA JÚNIOR

ADVOGADO: JULIANO MARTINS DE GODOY - DEFENSOR PÚBLICO DA UNIÃO

ASSUNTO: DIREITO PENAL - Crimes Praticados por Particular Contra a Administração em Geral - Contrabando ou descaminho

CERTIDÃO

Certifico que a egrégia TERCEIRA SEÇÃO, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

A Seção, por unanimidade, negou provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.

Votaram com o Relator os Srs. Ministros Arnaldo Esteves Lima, Maria Thereza de Assis Moura, Napoleão Nunes Maia Filho (com ressalva), Jorge Mussi, Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ/SP), Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ/CE) e Nilson Naves.

Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Og Fernandes.

Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Laurita Vaz.

Brasília, 09 de setembro de 2009

VANILDE S. M. TRIGO DE LOUREIRO
Secretária

Documento: 911258

Inteiro Teor do Acórdão - DJ: 13/10/2009




JURID - Descaminho. Tipicidade. Princípio da insignificância. [15/10/09] - Jurisprudência

 



 

 

 

 

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