Inépcia da inicial. Determinação de emenda.
Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul - TJMS.
19.1.2010
Quarta Turma Cível
Apelação Cível - Ordinário - N. 2009.032685-3/0000-00 - Campo Grande.
Relator - Exmo. Sr. Des. Dorival Renato Pavan.
Apelante - Berenice Gonçalves Couto.
Advogado - José Angelo da Silva Junior.
Apelada - Fundação Serviços de Saúde de Mato Grosso do Sul-Saúde-MS.
Procurador - Não Consta.
E M E N T A - APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE COBRANÇA C/C INDENIZAÇÃO E REPETIÇÃO DE INDÉBITO - INÉPCIA DA INICIAL - DETERMINAÇÃO DE EMENDA - JUIZ QUE NÃO INDICA, COM PRECISÃO, EM QUE DEVERIA CONSISTIR A EMENDA - FATOS E FUNDAMENTOS JURÍDICOS DESCRITOS NA INICIAL - APLICAÇÃO DA REGRA NARRA MIHI FACTUM DABO TIBI JUS - INDEFERIMENTO DA INICIAL - PROCESSUALISMO EXACERBADO - RECURSO CONHECIDO E PROVIDO PARA ANULAR A SENTENÇA, RECEBER A INICIAL E DETERMINAR O PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO.
Muito embora seja correto o entendimento de que é possível a extinção do processo sem resolução do mérito por falta de cumprimento da determinação judicial para sua emenda, trata-se de regra restritiva que impõe ao magistrado o dever de especificar qual é, exatamente, a falha contida na peça inaugural, sob pena de, por rigorismo processual exacerbado, entravar o prosseguimento do feito e impedir a célere composição do litígio, comprometendo os postulados constitucionais da efetividade, instrumentalidade, economia e razoável duração do processo.
Se o juiz não indica com precisão onde está o defeito que comprometeria a peça inaugural, que supostamente a tornaria inepta, não pode, em seguida, após a emenda feita pelo autor, dentro dos limites do que compreendeu do lacunoso despacho, indeferir liminarmente a inicial, sob o fundamento de que sua determinação não foi cumprida.
Ao determinar a emenda da inicial o magistrado não tem a prerrogativa de empregar termo muito lacônico, vago e impreciso que dificulta compreensão do teor do ato e compromete a pretensão da parte de emendar adequadamente a inicial.
O que o artigo 282 do CPC exige da parte, na inicial, é a descrição dos fatos e fundamentos jurídicos do pedido. Vige em nosso sistema processual a regra narra mihi factum dabo tibi jus, segundo a qual o juiz aplica o direito ao fato, ainda que aquele não tenha sido expressamente invocado pela parte.
Se o autor, na inicial observa os preceitos decorrentes do referido dispositivo legal, a emenda há de ser reputada apta e eficaz para atender ao comando da determinação exarada pelo juiz, o qual, por ausência de especificação das razões que o levaram a tal desiderato, não pode, em seguida, indeferir liminarmente a inicial, sob o argumento de que o despacho não foi suficientemente cumprido, até mesmo porque a parte tem o direito de saber qual é a falha da inicial, exatamente, para poder suprir o ato omissivo ou lacunoso, completando-a.
Sentença anulada para receber a inicial e determinar o normal prosseguimento do feito.
A C Ó R D Ã O
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os juízes da Quarta Turma Cível do Tribunal de Justiça, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por unanimidade, dar provimento ao recurso, nos termos do voto do relator.
Campo Grande, 19 de janeiro de 2010.
Des. Dorival Renato Pavan - Relator
RELATÓRIO
O Sr. Des. Dorival Renato Pavan
Trata-se de apelação cível interposta por Berenice Gonçalves Couto contra a sentença de fl. 91 proferida pelo douto juízo da 5ª Vara de Fazenda Pública e Registros Públicos de Campo Grande, que indeferiu a inicial de plano, com base no art. 284 do Código de Processo Civil.
A autora ingressou com a presente Ação de Cobrança c/c Indenização c/c Repetição de Indébito em face da Fundação Serviços de Saúde de Mato Grosso do Sul alegando uma série de supostas arbitrariedades. Sustenta que tem direito a horas extras; que vem trabalhando em feriados nacionais e religiosos sem qualquer indenização; que os intervalos intrajornada lhes são suprimidos; que trabalha em turno ininterrupto de revezamento e a reclamada não concede o intervalo nem efetua o correto registro no cartão de ponto do servidor. Citou uma série se dispositivos celetistas e orientações jurisprudenciais do Tribunal Superior do Trabalho.
Em despacho inicial (fl. 83), o magistrado singular deferiu a assistência judiciária gratuita e determinou a emenda da inicial para adequação da pretensão autoral e indicação do fundamento legal de seus pedidos.
A autora emendou a inicial às fls. 86-90 especificando, genericamente, quais os direitos dos servidores públicos, o que culminou no indeferimento da inicial (fl. 91).
Irresignado, apelou o autor às fls. 95-108 requerendo a reforma da sentença e citando, novamente, quais os direitos do servidor público de forma genérica.
VOTO
O Sr. Des. Dorival Renato Pavan (Relator)
Trata-se de apelação cível interposta por Berenice Gonçalves Couto contra a sentença que indeferiu de plano a inicial com base no artigo 284 do Código de Processo Civil. Pretende a anulação da sentença e o prosseguimento da Ação de Cobrança c/c Indenização e Repetição de Indébito.
Tenho que a apelação deve ser provida.
Conforme leciona Cássio Scarpinella Bueno, a emenda da inicial deve ser determinada quando verificada a existência de irregularidades que coloquem em risco o desenvolvimento da relação processual:
"Uma terceira e derradeira postura a ser assumida pelo juiz, que pode ser chamada de intermediária, é aquela em que ele, sentindo falta de algum requisito da petição inicial ou, de forma mais ampla, que há defeitos ou irregularidades que podem colocar em risco a higidez do desenvolvimento da relação processual, determina a correção de eventuais irregularidades. É o que o art. 284 determina seja feito, valendo-se dos rótulos 'emenda' ou "complementação' da petição inicial".
A decisão judicial de fl. 83 determinou expressamente a intimação da autora para emenda da inicial, nos seguintes termos:
"Tendo em vista tratar-se aqui de relação estatutária, e portanto não regida pela CLT, intime-se a parte autora para, em 10 dias e sob pena de indeferimento, emendar sua inicial, adequando sua pretensão e indicando o fundamento jurídico de sua pretensão e seus pedidos".
A autora, então, apresentou a petição de fls. 86-90 e o MM. Juiz entendeu que o recorrente havia deixado de cumprir o determinado, indeferindo a inicial.
A sentença deve ser reformada, até mesmo porque está na contra-mão da efetividade e instrumentalidade do processo.
Embora a inicial e sua emenda não sejam primor de técnica processual, é possível entender perfeitamente a pretensão do autor, que deseja obter a condenação da fundação ré ao pagamento das verbas que foram por ele exaustivamente descritas na petição inicial, mês a mês, fundado na alegação de realização de trabalho extraordinário, plantões, produtividade SUS, intervalo intra-jornada suprimido, feriados suprimidos e que foram laborados, tudo a resultar numa expressão econômica postulada na inicial.
Ora, se assim agiu, cumpriu com os requisitos do artigo 282 do CPC e não há que se falar em indeferimento da inicial, até mesmo porque, sabidamente, em nosso ordenamento vige o velho e remansoso brocardo narra mihi facto dabo tibi jus, que permite ao juiz aplicar o direito aos fatos narrados na inicial.
De mais a mais, o despacho de fls. 83, que determinou a emenda, foi extremamente lacunoso e impreciso, porque se o juiz entendia que a inicial haveria de ser emendada, era de seu dever indicar com precisão onde estaria a suposta falha para que fosse sanada ou suprida pelo recorrente, e tal não foi o que ocorreu na espécie.
Muito embora seja correto o entendimento de que é possível sentença que extingue o processo sem resolução do mérito por falta de cumprimento da determinação judicial para sua emenda, há de se observar, entrementes que quando o juiz determinar a emenda da inicial deve especificar onde estaria e no que consistiria o defeito, ensejando à parte o atendimento à determinação de emenda.
O Juiz não pode agir para ocasionar surpresa à parte com ato judicial inusitado. Se entende que a inicial está incompleta ou que deva ser emendada, deve especificar no que consiste o defeito e onde deverá ser emendada.
De há muito o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA já decidiu que:
"PROCESSUAL CIVIL. PETIÇÃO INICIAL. EMENDA. INDICAÇÃO DO REQUISITO AUSENTE PELO MAGISTRADO. PRINCÍPIOS DA INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS E DA ECONOMIA E CELERIDADE PROCESSUAIS. AUSÊNCIA DO MOTIVO ENSEJADOR DO INDEFERIMENTO DA EXORDIAL. PROSSEGUIMENTO DO FEITO.
- Embora não exista dispositivo legal impondo a indicação, quando intimada a parte autora para emendar a petição inicial, do requisito ausente na exordial, deve o magistrado, com os olhos nos modernos princípios da instrumentalidade das formas e da economia e celeridade processuais, especificar a falha contida na peça, sob pena de, por rigorismo processual, entravar o prosseguimento do feito e impedir a célere composição do litígio.
- Se consta dos autos o endereço do advogado da autora, não havendo, igualmente, informações de mudança de endereço, encontra-se ausente o motivo que ensejou o indeferimento da petição inicial e, conseqüente, extinção do processo, devendo o feito prosseguir.
- Recurso especial não conhecido.
(REsp 86.415/SP, Rel. Ministro VICENTE LEAL, SEXTA TURMA, julgado em 18/04/2002, DJ 13/05/2002 p. 235)".
Em outro acórdão, o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA voltou a decidir:
"PROCESSUAL CIVIL. PETIÇÃO INICIAL. INDEFERIMENTO.
1. As regras de indeferimento da petição inicial recebem interpretação restritiva.
2. O indeferimento da petição inicial é medida extrema que só deve ser aplicada após a abertura do prazo de 10 (dez dias) ao autor para mandá-la ou anexar documento essencial à causa.
3. Está conforme com o ordenamento jurídico ingresso em juízo de ação de cobrança com a juntada do contrato, de confissão da dívida e de demonstrativo dos serviços prestados.
4. Se, no curso da lide, não for possível fixar o valor devido, em caso de procedência do pedido, o juiz deve determinar que a liquidação obedeça ao procedimento por artigos.
5. Recurso provido para deferir-se a petição inicial, prosseguindo-se o feito com a realização da instrução e conseqüente julgamento da lide.
(REsp 356.368/BA, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 26/02/2002, DJ 25/03/2002 p. 196)".
Essa me parece a hipótese dos autos, até mesmo porque se o juiz entendeu que não se aplica à espécie a CLT mas sim o regime estatutário, deve permitir o prosseguimento da ação para, após defesa, examinar os fundamentos do pedido do autor, que estão centrados no regime estatutário e quanto a isto não existe qualquer dúvida na inicial, porque a todo tempo o autor cita normas do estatuto dos servidores para referendar ou fundamentar os pedidos que formulou na inicial.
O douto magistrado de primeiro grau foi extremamente lacônico no despacho inaugural, porque simplesmente afirmou:
"Tendo em vista tratar-se aqui de relação estatutária, e portanto não regida pela CLT, intime-se a parte autora para, em 10 dias e sob pena de indeferimento, emendar sua inicial, adequando sua pretensão e indicando o fundamento jurídico de sua pretensão e seus pedidos". (f. 83).
O juiz se houve, no caso, com formalismo exagerado e incompatível com os postulados constitucionais da razoável duração do processo, da economia processual (porque a despeito do artigo 268 do CPC novas despesas haverão que ser feitas pelo autor para retornar em juízo) e da instrumentalidade, porque da inicial e sua emenda é possível extrair e compreender os objetivos do autor, o que permite que a ação tenha seu curso natural.
Entendo que certos formalismos processuais devem certamente ser respeitados, havendo hipóteses em que, uma vez não cumpridos, ensejam a nulidade do processo por inteiro ou de determinados atos, sendo que obviamente devem ser acatados.
O apego desnecessário e excessivo ao formalismo processual, todavia, acaba por atrasar demasiadamente o processo, muitas vezes prejudicando o exercício do direito material e tornando o meio mais importante que o fim.
Essa é justamente a lição de José Roberto dos Santos Bedaque(1), conforme se depreende da seguinte transcrição:
"A técnica constitui fator essencial à idéia de processo. Concebido este como instrumento de que a função jurisdicional do Estado se serve para colocar fim às crises existentes no plano do direito material, necessário regular a maneira como ele opera. É fundamental que o instrumento atue segundo técnica adequada e apta a possibilitar que os fins sejam atingidos. Esta é a função das formas e formalidades processuais, cuja razão de ser encontra explicação fundamentalmente em fatores externos ao próprio processo.
Mas processo não é, e nem poderia ser, somente forma. Toda a organização e a estrutura desse mecanismo encontram sua razão de ser nos valores e princípios constitucionais por ele incorporados. A técnica processual, em última análise, destina-se a assegurar o justo processo, ou seja, aquele desejado pelo legislador ao estabelecer o modelo constitucional ou devido processo constitucional.
De nada adianta o processo regular do ponto de vista formal, mas substancialmente em desacordo com valores constitucionais que o regem.
"A principal missão do processualista é buscar alternativas que favoreçam a resolução dos conflitos. Não pode prescindir, evidentemente, da técnica.
Embora necessária para a efetividade e eficiência da justiça, deve ela ocupar o seu devido lugar, como instrumento de trabalho, não como fim em si mesmo.
Não se trata de se desprezar os aspectos técnicos do processo, mas apenas de não se apegar ao tecnicismo. A técnica deve servir de meio para que o processo atinja seu resultado.
...Nesta mesma linha de raciocínio, se o direito processual não se flexibilizar em função do direito material, teremos um instrumento absolutamente ineficaz.
É preciso tomar consciência de que instrumentalidade não se compatibiliza com neutralidade ou indiferença quanto às necessidades verificadas no plano material.
Não se pode olvidar que o processo, nas suas várias espécies, é sempre voltado para uma situação de direito substancial.
Como já se advertiu com muita propriedade, o processo não pode ser colocado no vácuo, sendo imprescindível o reconhecimento, pelos juristas, de que as técnicas processuais servem a funções sociais.
E arremata o douto processualista:
"...Tudo isso quer dizer que as questões eminentemente processuais devem ser reduzidas ao máximo. Apenas se justifica sua prevalência sobre aquelas relativas ao objeto litigioso do processo quando se tratar de exigência que vise à tutela dos princípios maiores, como a ampla defesa, o contraditório, etc.
Muitos dos princípios processuais, por exemplo, se levados às últimas consequências, sem considerar a realidade fática sobre que irão incidir, podem tornar-se verdadeiros óbices aos escopos do processo.
Necessário, pois, "relativizá-los", isto é, considerar os princípios processuais sempre como meios para a obtenção de uma justiça rápida e eficiente.
Sua aplicação jamais pode desconsiderar o litígio, sob pena de se construir um modelo processual inadequado ao seu objeto."
Com o máximo respeito, é preciso reconhecer que a lição acima se amolda perfeitamente à espécie dos autos.
A extinção do processo efetivada pelo douto juízo a quo privilegiou exageradamente o tecnicismo contido nos artigos 284, parágrafo único, e 267-I e 295-I, do Código de Processo Civil.
Ora, o que significa a expressão adequar sua pretensão? Termo muito lacônico, vago e impreciso que dificulta a própria pretensão da parte de emendar adequadamente a inicial, embora assim o tivesse feito pela petição que apresentou depois, tentando - se possível - cumprir despacho tão evasivo quanto o que foi exarado pelo douto juízo a quo.
Em mais de um julgado o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA também decidiu:
"O nosso direito prestigiou os princípios do jura novit curia e do da mihi factum, dabo tibi jus. Isso significa que a qualificação jurídica dada aos fatos narrados pelo autor não é essencial para o sucesso da ação. Tanto que o juiz pode conferir aos fatos qualificação jurídica diversa da atribuída pelo autor". (RSTJ, vol. 111/39).
No mesmo sentido: RSTJ, vol. 140/587 e RT 830/192, dentre inúmeros outros.
A r. sentença, assim, contraria frontalmente tal orientação jurisprudencial, emanada a partir do Superior Tribunal de Justiça e por isto mesmo não se sustenta, merecendo pronta reforma, em conformidade com o disposto no artigo 557, § 1º-A, do CPC, que permite ao relator dar provimento ao recurso, por decisão monocrática, quando estiver em confronto com súmula ou jurisprudência dominante do STF ou de Tribunal Superior, no caso, o STJ, como se viu dos arestos transcritos.
Toda a jurisprudência do STJ está centrada no argumento de que a inicial deve ser, tanto quanto possível, aproveitada ao máximo, sendo a hipótese de indeferimento liminar uma situação excepcional, daí a razão pela qual o artigo 284 do CPC deve sofrer uma interpretação restritiva, e não ampliativa, como ocorreu no caso, onde o MM. Juiz agiu com rigor exagerado, incompatível com os postulados acima expendidos.
Em razão do exposto, dou provimento ao recurso para cassar a decisão recorrida e receber a inicial, determinando o prosseguimento da ação em seus ulteriores termos, até final sentença.
DECISÃO
Como consta na ata, a decisão foi a seguinte:
POR UNANIMIDADE, DERAM PROVIMENTO AO RECURSO, NOS TERMOS DO VOTO DO RELATOR.
Presidência do Exmo. Sr. Des. Dorival Renato Pavan.
Relator, o Exmo. Sr. Des. Dorival Renato Pavan.
Tomaram parte no julgamento os Exmos. Srs. Desembargadores Dorival Renato Pavan, Rêmolo Letteriello e Atapoã da Costa Feliz.
Campo Grande, 19 de janeiro de 2010.
Publicado em 26/01/10
Notas:
1 - Efetividade do Processo e Técnica Processual. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 26. [Voltar]
JURID - Inépcia da inicial. Determinação de emenda. [02/02/10] - Jurisprudência
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