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Delito de tortura. Desconhecimento do caráter ilícito dos fatos. Inocorrência.
Tribunal de Justiça de Minas Gerais - TJMG.
Número do processo: 1.0701.04.064916-5/001(1) Númeração Única: 0649165-25.2004.8.13.0701
Relator: ADILSON LAMOUNIER
Relator do Acórdão: ADILSON LAMOUNIER
Data do Julgamento: 19/01/2010
Data da Publicação: 03/02/2010
EMENTA: DIREITO PENAL - DELITO DE TORTURA - DESCONHECIMENTO DO CARÁTER ILÍCITO DOS FATOS - INOCORRÊNCIA - DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO DE MAUS TRATOS - NECESSIDADE - DELITO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO - REMESSA DOS AUTOS AO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL - OFERECIMENTO DOS BENEFÍCIOS DA LEI 9.099/95 - RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. I - A violência praticada e as lesões dela decorrentes impõem a clara certeza de que a ré tinha plena consciência do ilícito penal que estava cometendo. II - Não vislumbrada a vontade da ré de causar intenso sofrimento físico e mental na vítima, necessário à caracterização do delito de tortura, mas tão-somente um enorme excesso na imposição de punições, abusando dos meios de correção e disciplina, deve ser o delito desclassificado para o crime de maus tratos. III - Operada a desclassificação na presente decisão para crime de menor potencial ofensivo, devem os autos ser remetidos ao Juizado Especial Criminal, para fins de aplicação dos benefícios legais.
APELAÇÃO CRIMINAL N° 1.0701.04.064916-5/001 - COMARCA DE UBERABA - APELANTE(S): VILMA ALVES DA SILVA - APELADO(A)(S): MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADO MINAS GERAIS - RELATOR: EXMO. SR. DES. ADILSON LAMOUNIER
ACÓRDÃO
Vistos etc., acorda, em Turma, a 5ª CÂMARA CRIMINAL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, sob a Presidência do Desembargador PEDRO VERGARA , na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, EM DAR PROVIMENTO PARCIAL E DETERMINAR A REMESSA DOS AUTOS AO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL.
Belo Horizonte, 19 de janeiro de 2010.
DES. ADILSON LAMOUNIER - Relator
NOTAS TAQUIGRÁFICAS
O SR. DES. ADILSON LAMOUNIER:
VOTO
Trata-se de recurso de apelação criminal interposto em face da sentença de fls. 110-117, em que o douto magistrado a quo, condenou a apelante às penas de 03 (três) anos de reclusão, a serem cumpridas no regime inicial fechado, pela prática do crime tortura (Lei 9.455/97, art. 1º, § 4º II).
Em suas razões de recurso, às fls. 125-132, a apelante pugna pela reforma da r. sentença, com a sua consequente absolvição do delito em questão, por ausência de dolo e sob a alegação de que não tinha consciência de seus atos, pois estava com problemas psicológicos e sob efeito de remédios. Pelo princípio da eventualidade, requer a aplicação da pena mínima, o reconhecimento da atenuante da confissão espontânea, a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, a concessão do sursis e a fixação do regime aberto.
O Ministério Público, às fls. 135-141, contrarrazoou o recurso pugnando pelo seu desprovimento. Assim também opinou a Procuradoria-Geral de Justiça em seu parecer de fls. 146-153.
É o relatório do essencial.
Conheço do recurso, vez que estão presentes os seus pressupostos objetivos e subjetivos de admissibilidade.
Não foi alegada e, em princípio, também não vislumbro nenhuma preliminar ou nulidade que mereça apreciação de ofício, razão pela qual passo ao exame do mérito recursal.
Narra a denúncia que, em meados da primeira quinzena do mês de janeiro de 2004, nas dependências da residência localizada na Rua João Scussel, nº 503, Parque das Américas, em Uberaba/MG, a apelante submeteu a criança K.C.S.A, com apenas 03 (três) anos de idade, que se encontrava sob sua guarda de fato, com emprego de violência a intenso sofrimento físico, como foram de aplicar-lhe castigo pessoal.
O douto magistrado de primeira instância, conforme já relatado, julgou a denúncia procedente para condenar a ré nas iras do artigo 1º, §4º, II, da Lei 9.455/97, o que motivou o presente recurso.
Analisando detidamente os autos, verifico que a materialidade e a autoria do crime em questão estão devidamente comprovadas pelo Auto de Corpo de Delito, fls. 25, prova fotográfica de fls. 27-31, Avaliação Psicológica, fls. 53-54, confissão da apelante, fls. 12-13 e 42-43, e, por fim, pelo conjunto dos depoimentos testemunhais, fls. 66-69.
Em relação à alegação da douta defesa de que a ré não tinha consciência da ilicitude de seus atos, não vislumbro nenhuma chance de êxito em sua pretensão absolutória.
O desconhecimento da lei, conforme é de notória sabença, por ficção jurídica, é inescusável (CP, art. 21), sendo certo que apenas o erro sobre a ilicitude do fato tem conseqüências relevantes para o direito penal.
Quanto ao reconhecimento de eventual erro de proibição no caso concreto, também não há o que se prover.
A violência praticada e as lesões dela decorrentes impõem a clara certeza de que a ré tinha plena consciência do ilícito penal que estava cometendo.
Pensar o contrário, data venia, é fechar os olhos para a realidade e pressupor que ela vive em um mundo onírico, alheio a tudo e a todos.
A propósito, sobre o tema leciona Guilherme de Souza Nucci em sua obra Código Penal Comentado, 7ª ed. - São Paulo:Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 208:
"A ausência de consciência atual da ilicitude, que acarreta apenas um erro inescusável, com possibilidade de redução da pena de um sexto e um terço, significa que o agente, no exato momento do desenvolvimento da conduta típica, não tinha condições de compreender o caráter ilícito do fato, embora tivesse potencialidade para tanto, bastasse um maior esforço de sua parte. A falta de consciência potencial de ilicitude, que provoca a excludente de culpabilidade, significa que o agente não teve, no momento da prática da conduta típica, noção da ilicitude, nem teria condições de saber, em razão das circunstâncias do caso concreto. Em síntese, para se configurar o erro de proibição escusável, torna-se indispensável que o agente não saiba, nem tenha condições de saber, que o ato praticado é ilícito, ainda que típico."
A propósito, veja-se, também, neste particular, o entendimento jurisprudencial:
"Não se reconhece erro de proibição quando age sem consciência do injusto, mas, nas circunstâncias, podia alcançar a consciência da ilicitude, com esforço de inteligência e com base na experiência da vida comum; nem quando atua na dúvida, propositadamente deixando de informar-se para não ter que se abster" (TACrSP Julgados 84/346).
Ademais, a alegação de que a ré nunca quis espancar a criança e de que as agressões tinham apenas a finalidade corretiva não tem o condão de afastar a responsabilidade da ré pelo ilícito cometido, tendo em vista a habitualidade e a gravidades das agressões.
Com essas considerações, a meu ver, a conduta da apelante-ré não está acobertada pela exculpante do artigo 21 do CP na medida em que ele tinha experiência suficiente para entender o caráter ilícito do fato, sendo-lhe exigível que tivesse conduta inteiramente diversa.
No mesmo norte, a alegação de que se encontrava em estado psíquico que lhe impedia de entender o caráter ilícito de sua conduta não merece guarida.
Isto porque a ré não comprovou tal alegação, ônus que lhe cabia (art. 156 do CPP).
Sobre o ônus da prova, leciona Fernando Capez em sua obra Curso de Processo Penal, 6. ed - São Paulo: Saraiva, 2001, p. 249:
"A prova é induvidosamente um ônus processual, na medida em que as partes provam em seu benefício, visando dar ao juiz os meios próprios e idôneos para formar a sua convicção.
Ônus da prova é, pois, o encargo que têm os litigantes de provar, pelos meios admissíveis, a verdade dos fatos.
(...)
Portanto, cabe provar a quem tem interesse em afirmar. A quem apresenta uma pretensão cumpre provar os fatos constitutivos; a quem fornece a exceção cumpre provar os fatos extintivos ou as condições impeditivas ou modificativas."
Com essas considerações, tenho que tanto a autoria quanto a materialidade dos fatos narrados são induvidosos no caso concreto, não havendo que se falar na aplicação do brocardo in dubio pro reo para absolver a apelante.
Todavia, tenho que a conduta da ré não é apta a configurar o delito de tortura, eis que, não vislumbrei, in casu, a vontade da apelante de causar intenso sofrimento físico e mental na vítima, necessário à caracterização do delito de tortura, mas tão-somente um enorme excesso na imposição de punições, abusando dos meios de correção e disciplina.
Logo, tenho que a sua conduta se amolda ao delito previsto no art. 136 do CP - maus tratos.
A propósito, colaciono os seguintes julgados desta Egrégia Corte:
APELAÇÃO CRIMINAL - CRIME DE TORTURA -ABSOLVIÇÃO AFASTADA - DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO DE MAUS TRATOS - POSSIBILIDADE - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. - É inadmissível a absolvição por insuficiência de provas quando o conjunto probatório evidencia a conduta típica praticada pelos agentes. - Se o que motivou os acusados foi o desejo de corrigir, embora o meio empregado tenha sido imoderado, o crime é de maus tratos, podendo-se, assim, operar a desclassificação para o tipo previsto no art. 136 do CPB. (TJMG, Apelação Criminal n 1.0568.06.000918-1/001, Rel. Des. Hebert Carneiro, p. 30.09.2009).
TORTURA - MAUS TRATOS - CRIMES PRÓPRIOS - DISTINÇÃO - ELEMENTO VOLITIVO. O crime de tortura, assim como o de maus tratos, são crimes próprios, eis que só podem ser cometidos por pessoa responsável por outra, sendo indispensável a condição de 'garante' do sujeito ativo em relação ao sujeito passivo, de fato ou de direito, distinguindo-se os crimes pelo elemento volitivo, ou seja, enquanto no primeiro, o 'animus' é causar um intenso sofrimento físico ou mental da vítima, no segundo, o autor excede-se na imposição de medidas coercitivas ou disciplinares. Recurso parcialmente provido. (TJMG, Apelação Criminal n 1.0054.05.015921-6/001, Rel. Des. Antônio Armando dos Anjos, p. 20.09.2006).
APELAÇÃO CRIMINAL - TORTURA PRATICADADA PELO PADRASTO CONTRA ENTEADO MENOR - ABSOLVIÇÃO AFASTADA - DESCLASSIFICAÇÃO PARA O CRIME DE MAUS TRATOS - POSSIBILIDADE - (...) - Não é cabível a absolvição por insuficiência de provas quando o conjunto probatório, notadamente a prova testemunhal, evidencia a conduta típica praticada pelo agente. - Se o que motivou o agente foi o desejo de corrigir, embora o meio empregado tenha sido imoderado, o crime é de maus tratos, podendo-se, assim, operar a desclassificação para o tipo previsto no art. 136 do CPB. (...)" (TJMG, Apelação Criminal nº 1.0114.03.019307-1/00, Rel. Des. Armando Freire, p. 14.12.2004).
Ante o exposto, desclassifico o delito de tortura para o de maus tratos (art. 136 do CP), ressaltando que este está devidamente narrado na inicial acusatória.
E tendo sido o delito cometido contra uma criança de apenas 03 (três) anos de idade, deve incidir a majorante prevista no art. 136, §3º, do CP.
E, conforme a recente orientação da sistemática processual, a desclassificação operada acarreta a remessa dos autos ao Juizado Especial Criminal.
Entendo que ainda que o feito tenha tramitado regularmente perante a Justiça comum até a prolação da sentença condenatória, a desclassificação operada para o crime de menor potencial ofensivo, cujas penas não ultrapassam o limite imposto no art. 89 da Lei 9099/95, transfere a competência para o Juizado Especial Criminal, a fim de que sejam oferecidos ao acusado os benefícios da referida lei.
Nos termos do atual art.383, §§1º e 2º,
Art. 383. O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave.
§ 1º Se, em conseqüência de definição jurídica diversa, houver possibilidade de proposta de suspensão condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei.
§ 2º Tratando-se de infração da competência de outro juízo, a este serão encaminhados os autos.
Sobre o assunto, inclusive, a Súmula 337 do Superior Tribunal de Justiça, através do qual "É cabível a suspensão condicional do processo na desclassificação do crime e na procedência parcial da pretensão punitiva."
Também nesse sentido, a jurisprudência deste Tribunal:
"APELAÇÃO CRIMINAL - ART. 28 DA LEI 11.343/06 - PRECEITO SECUNDÁRIO - CONSTITUCIONALIDADE - COMPETÊNCIA - JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. As medidas trazidas no preceito secundário do art. 28 da Lei 11.343/06 não são inconstitucionais, à medida que a própria Constituição Federal prevê a possibilidade de sua aplicação, não podendo lei infraconstitucional determinar aplicação de forma contrária. Havendo desclassificação do delito de tráfico de drogas para posse para consumo próprio, os autos deverão ser encaminhados ao juízo competente, para fins de aplicação dos benefícios legais." (TJMG, Ap. Criminal nº 1.0056.04.083217-4/001, Rel. Des. Maria Celeste Porto, 27/01/2009)
APELAÇÃO CRIMINAL - TRÁFICO DE DROGAS - PRELIMINAR DE NULIDADE DA SENTENÇA - ATRIBUIÇÃO DE DEFINIÇÃO JURÍDICA DIVERSA - REMESSA DOS AUTOS AO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL - POSSIBILIDADE - ART. 383 DO CPP - SÚMULA 337 DO COLENDO STJ - MÉRITO - PEQUENA QUANTIDADE DE ENTORPECENTES - INEXISTÊNCIA DE CONJUNTO PROBATÓRIO ROBUSTO QUE APONTA PARA A POSSE PARA FINS DE MERCANCIA - DESCLASSIFICAÇÃO - POSSIBILIDADE - INDÍCIOS DE CONSUMO PESSOAL - PRELIMINAR REJEITADA - RECURSO IMPROVIDO. - Considerando que tanto a orientação jurisprudencial do Colendo Superior Tribunal de Justiça quanto a recente alteração no texto do CPP, que recebeu nova redação pela Lei 11.719/08, vêm norteando no sentido da possibilidade da apresentação de proposta por parte do Ministério Público, na hipótese da desclassificação do crime, entendo cabível a remessa dos autos ao Juizado Especial Criminal, sem a fixação da pena, para a realização de tal expediente processual, até porque, por uma questão de lógica, a aplicação da pena somente ocorrerá na hipótese da não-concretização da suspensão condicional do processo. (...)" (TJMG, Ap. Criminal nº 1.0525.07.122297-6/001, Rel. Des. Fernando Starling, 28/04/2009)
APELAÇÃO - RECEPTAÇÃO QUALIFICADA - AUSÊNCIA DE PROVAS DA RELAÇÃO ENTRE ATIVIDADE COMERCIAL E A PRÁTICA CRIMINOSA - DESCLASSIFICAÇÃO PARA RECEPTAÇÃO SIMPLES - APLICAÇÃO DO ART. 89 DA LEI 9099/95 - SÚMULA 337 DO STJ. Não comprovada qualquer relação entre a aquisição do bem produto de crime precedente e a atividade comercial exercida pelo réu, deve ser desclassificada a sua conduta para receptação simples. O art. 89 da Lei 9099/95 deve incidir no caso de desclassificação, mesmo se já prolatada sentença condenatória de primeiro grau. DERAM PROVIMENTO PARCIAL E DETERMINARAM A BAIXA DOS AUTOS À COMARCA DE ORIGEM PARA APLICAÇÃO DA REGRA DO ARTIGO 89 DA LEI 9.099/95. (TJMG, Apelação Criminal n 1.0480.03.042239-22/00a, Rel. Des. Alexandre Victor de Carvalho, p. 28.09.2009).
Assim, considero cabível a remessa dos autos ao Juizado Especial Criminal nos casos de desclassificação, sem a fixação da pena, para a apresentação de proposta dos benefícios da Lei nº 9099/99.
Pelo exposto, dou parcial provimento à apelação, para desclassificar o delito de tortura para aquele previsto no art. 136, § 3º, do CP, determinando a remessa dos autos ao Juizado Especial Criminal, competente para aplicar os benefícios legais nos crimes de menor potencial ofensivo.
Custa ex lege.
É como voto.
Votaram de acordo com o(a) Relator(a) os Desembargador(es): EDUARDO MACHADO e PEDRO VERGARA.
SÚMULA: DERAM PROVIMENTO PARCIAL E DETERMINARAM A REMESSA DOS AUTOS AO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL.
JURID - Delito de tortura. Desconhecimento do caráter ilícito. [09/02/10] - Jurisprudência

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