Embargos infringentes. Tortura. Policiais militares.
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios - TJDFT.
Órgão: Câmara Criminal
Classe: EIR - Embargos Infringentes na Apelação Criminal
Nº. Processo: 1999 01 1 062912-7
Embargante: HAROLDO JOSÉ SATURNINO
Embargado: MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS
Relator Des.: SOUZA E AVILA
Revisor Des.: ARNOLDO CAMANHO DE ASSIS
EMENTA
PROCESSUAL PENAL. EMBARGOS INFRINGENTES. TORTURA. POLICIAIS MILITARES. DIVERSAS VÍTIMAS INCLUSIVE UMA GESTANTE. PALAVRA SEGURA DAS VÍTIMAS. LESÕES CORPORAIS COMPROVADAS. TESTEMUNHAS HARMÔNICAS ENTRE SI E COM A NARRATIVA DAS VÍTIMAS. CONDENAÇÃO MANTIDA.
Afigura-se configurado o crime de tortura perpetrado por policiais militares (agentes públicos), se o depoimento das vítimas está em harmonia com o depoimento de testemunhas e com os laudos de lesões corporais acostados nos autos. Deve ser mantida a condenação dos agentes públicos, diante da hediondez do crime, sendo que os réus não hesitaram, inclusive, em torturar uma mulher gestante, em fase avançada de gravidez.
Embargos Infringentes desprovidos.
ACÓRDÃO
Acordam os Desembargadores da Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, SOUZA E AVILA - Relator, ARNOLDO CAMANHO DE ASSIS - Revisor, EDSON ALFREDO SMANIOTTO, GEORGE LOPES LEITE, ROBERVAL CASEMIRO BELINATI e SÉRGIO ROCHA - Vogais, sob a presidência da Desembargadora SANDRA DE SANTIS, em NEGAR PROVIMENTO AOS EMBARGOS. UNÂNIME, de acordo com a ata do julgamento e notas taquigráficas.
Brasília-DF, 26 de outubro de 2009.
Desembargador SOUZA E AVILA
Relator
RELATÓRIO
Haroldo José Saturnino, Nildemar Almeida Santos e Leonardo Theodoro Hermann Krause, com fulcro no artigo 609, parágrafo único, do Código de Processo Penal, interpuseram Embargos Infringentes contra Acórdão proferido pela 1ª Turma Criminal desta Corte (fls. 1571/1599) que, por maioria, vencido o relator, Desembargador Lecir Manoel da Luz, rejeitou as preliminares e negou provimento às apelações de Nildemar Almeida Santos e Leonardo Theodoro Hermann Krause e deu parcial provimento à apelação de Haroldo José Saturnino, apenas para reduzir a pena privativa de liberdade em 5/6 (cinco sextos) em razão da continuidade delitiva.
O voto vencido do relator proveu as três apelações criminais, para absolver os apelantes com fundamento na insuficiência de provas para condenação. O Acórdão ficou assim ementado:
"PENAL E PROCESSUAL PENAL. TORTURA QUALIFICADA PRATICADA POR POLICIAIS MILITARES. ALEGAÇÃO DE INÉPCIA DA INICIAL E DE CERCEAMENTO DE DEFESA. TRECHOS DESFAVORÁVEIS ALUSIVOS AO RÉU SUBLINHADOS EM PEÇAS PROCESSUAIS. INOCORRÊNCIA DE NULIDADES. MATERIALIDADE E AUTORIA DEMONSTRADAS NA PROVA PERICIAL E TESTEMUNHAL. CONDENAÇÃO MANTIDA.
1 Não há que se cogitar de inépcia quando, nos crimes de autoria coletiva, a denúncia descreva os fatos essenciais à caracterização do delito, de molde a permitir o exercício da ampla defesa, sendo desnecessária a individualização precisa e pormenorizada da conduta de cada um dos acusados. Preliminar de inépcia rejeitada.
2 Silenciando a defesa diante da decisão do Juiz que deliberou sobre a oitiva de testemunhas, da qual fora regularmente intimada, operou-se a preclusão do direito à impugnação do ato supostamente ofensivo ao exercício do contraditório, especialmente quando não formula qualquer manifestação de inconformidade nas alegações finais, demonstrando que aceitou aquela decisão.
3 O sublinhamento de trechos das peças processuais, inclusive perícias e depoimentos de testemunhas, supostamente desfavoráveis aos interesses do réu, embora constitua irregularidade processual que deva ser coibida pelo Juiz, não enseja nulidade ou punição ao autor, se este não é identificado e tampouco os trechos considerados inconvenientes pela defesa.
4 Comprovadas as sevícias praticadas pelos réus, policiais militares, não há como aceitar a negativa de autoria, que se apresenta em flagrante colisão com as provas produzidas. Os réus apreenderam ilicitamente seis jovens que estavam à toa numa praça do Núcleo Bandeirante, pretextando averiguar eventual participação em assalto praticado naquela noite por um grupo de pessoas a bordo de um veículo Ford Escort. Informados da prisão desses assaltantes, cumpria-lhe soltar imediatamente os jovens que pretendiam conduzir à Delegacia "para averiguação". Resolveram levá-los para um terreno baldio alagado nas proximidades do Núcleo Rural Vargem Bonita, onde praticaram sevícias inomináveis, inclusive contra mulher em gravidez avançada. Além de submetidos a intenso sofrimento físico e mental, sofreram agressões com cassetetes, socos, chutes e xingamentos e foram constrangidos à prática de atos libidinosos que o pudor recomenda não falar em público, sob reiteradas ameaças de morte, sujeitando-se a deploráveis cenas de degradação humana.
5 A perda da função pública e a interdição para o seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada são efeitos naturais da condenação nos crimes de tortura, estando expressamente prevista no § 5º da Lei 9.455/1997.
6 O regime inicial fechado se conjuga com o § 7º do artigo 1º da Lei 9.455/1997 e no § 1º do artigo 2º da Lei dos Crimes Hediondos, em face da nova redação dada pela Lei 11.464/2007.
7 Recurso de um dos réus provido parcialmente para diminuir a pena. Sentença mantida em relação aos demais acusados."
(19990110629127APR, Relator GEORGE LOPES LEITE, 1ª Turma Criminal, julgado em 29/05/2008, DJ 14/07/2008 p. 129).
Leonardo Theodoro Hermann Krause e Nildemar Almeida Santos interpuseram Embargos de Declaração contra o Acórdão que julgou a Apelação, os quais foram desprovidos (fls. 1664/1669), mas o aresto foi republicado às folhas 1.697/1.702, pela ausência de intimação de um dos patronos dos embargantes, conforme se verifica da ementa do julgado adiante transcrita:
"PENAL E PROCESSUAL PENAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. ALEGAÇÃO DE CONTRADIÇÃO, OBSCURIDADE E OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. PRETENSÃO EM REDISCUTIR MATÉRIA JULGADA. IMPOSSIBILIDADE.
1 Embargos de declaração não se prestam à rediscussão da matéria decidida, que é a verdadeira pretensão vislumbrada nas razões dos embargantes, a pretexto de contradição, omissão e obscuridade. Embargos rejeitados."
(19990110629127APR, Relator GEORGE LOPES LEITE, 1ª Turma Criminal, julgado em 21/08/2008, DJ 30/09/2008 p. 88).
Leonardo Theodoro Hermann Krause apresentou outros Embargos de Declaração. Este recurso foi parcialmente provido, apenas para corrigir erro material na dosimetria, a fim de constar condenação à pena definitiva de 14 (quatorze) anos e 8 (oito) meses de reclusão em regime inicial fechado e não 15 (quinze) anos, como definido na sentença. O julgado ficou resumido na seguinte ementa:
"PROCESSO PENAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NA APELAÇÃO CRIMINAL. REDISCUSSÃO DA MATÉRIA PROBATÓRIA DECIDIDA FUNDAMENTADAMENTE. INEXISTÊNCIA DOS VÍCIOS APONTADOS. CORREÇÃO DE ERRO MATERIAL. ACOLHIMENTO PARCIAL.
1 Inexiste ambigüidade, obscuridade, contradição ou omissão no acórdão, subsistindo tão somente erro material no somatório de uma das penas. Estando o julgado devidamente fundamentado, cabe ao embargante trilhar o caminho recursal adequado para fazer valer suas teses. Embargos de declaração providos parcialmente para corrigir erro de cálculo aritmético."
(19990110629127APR, Relator GEORGE LOPES LEITE, 1ª Turma Criminal, julgado em 23/10/2008, DJ 11/11/2008 p. 103).
Nas razões de folhas 1.792/1.735, o embargante Haroldo José Saturnino pede a reforma do Acórdão embargado, a fim de prevalecer o voto vencido do relator, Desembargador Lecir Manoel da Luz, que proveu a apelação, para absolvê-lo da acusação de cometimento do crime de tortura em concurso de pessoas e continuidade delitiva, na forma do artigo 1.º, inciso II, c/c incisos I, II e III, dos § 4.º e § 5.º, da Lei n.º 9.455/1997, em face da insuficiência das provas para a condenação.
Nas razões de folhas 1.736/1.746, o embargante Nildemar Almeida Santos suscita, em preliminar, fato novo consistente em declaração feita por meio de Escritura Pública por Ismael Firmino Soares (fls. 1747/1749), Policial Civil que participou das investigações deste processo crime, acerca de insuficiência de elementos para atribuir responsabilidade penal aos embargantes pelos delitos que lhes foram imputados pela acusação.
No mérito, o embargante Nildemar sustenta a necessidade de reforma do Acórdão, a fim de que prevaleça o voto vencido proferido pelo relator, Desembargador Lecir Manoel da Luz, que o absolveu das acusações, por insuficiência de provas.
Nas razões de folhas 1.750/1.775, Leonardo Theodoro Hermann Krause pede o provimento do recurso, para que o Acórdão embargado seja reformado, de modo a prevalecer a decisão absolutória exarada pelo relator, Desembargador Lecir Manoel da Luz em seu voto, o qual ficou vencido na sessão de julgamento.
Na impugnação de folhas 1.776/1.802, a Procuradoria de Justiça se manifestou pelo desprovimento dos três embargos infringentes, a fim de ser mantido o Acórdão embargado.
É o relatório.
VOTOS
O Senhor Desembargador SOUZA E AVILA - Relator
Senhora Presidente, ouvi com muita atenção a sustentação oral feita pelo ilustre Advogado, e creio que no voto, extenso, que fiz estou abordando todas as questões colocadas nos recursos e nas argumentações orais.
Inicialmente, conheço dos Embargos Infringentes interpostos por Haroldo José Saturnino, Nildemar Almeida Santos e Leonardo Theodoro Hermann Krause, porquanto os requisitos de admissibilidade foram atendidos.
À exceção do embargante Nildemar Almeida Santos, que suscita fato novo superveniente em prol de sua absolvição, este e os outros dois embargantes postulam a reforma do Acórdão embargado, a fim de prevalecer a decisão absolutória proferida pelo relator, Desembargador Lecir Manoel da Luz, no voto que restou vencido.
As questões tratadas nos recursos são idênticas, com a ressalva acima quanto ao fato superveniente ventilado pelo embargante Nildemar, mas isso não impede o exame conjunto dos três recursos, o que será feito doravante, após a apreciação da matéria superveniente suscitada pelo embargante Neldemar.
Examino, pois, a referida questão superveniente suscitada por Nildemar Almeida Santos.
A declaração feita por Ismael Firmino Soares, por meio de Escritura Pública lavrada pelo 1.º Ofício de Notas, Registro Civil e Protesto, Registros de Títulos, Documentos e Pessoas Jurídicas do Distrito Federal (folhas 1631/1633) não elide a condenação imposta pela sentença e mantida pelo Acórdão embargado.
Trata-se de documento juntado serodiamente pela parte, o qual não foi submetido ao contraditório e ampla defesa. A consideração de seu teor, no atual estágio recursal, após encerrada, há muito, a fase instrutória, se tornou inviável, diante da preclusão.
Não se alegue prejuízo para a defesa, pela não apreciação das declarações feitas pela testemunha Ismael Firmino Soares na referida Escritura Pública, porque a aludida testemunha foi inquirida e reinquirida acerca dos fatos, mormente quanto à certeza ou não do que viu e ouviu das pessoas envolvidas, inclusive em sua apuração, consoante se verifica do termo de inquirição de folhas 751 a 756.
Ademais, não constitui conduta adequada à Defesa tentar desconstituir depoimento de testemunha colhido perante a Justiça sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, apresentando uma Escritura Declaratória, onde esta testemunha não depõe sobre fatos, mas emite juízo de valor. Tenho que o documento de folhas 1.631/1.633 não serve para elidir o conjunto probatório colhido nestes autos.
A respeito da matéria, trago à colação precedente do Superior Tribunal de Justiça:
"CONSTITUCIONAL E PENAL. REVISÃO CRIMINAL. DECLARAÇÃO EXTRAJUDICIAL. EXAME DE PROVAS. LEI DOS CRIMES HEDIONDOS. REGIME PRISIONAL. "HABEAS CORPUS".
1. A declaração prestada em Cartório, pela vítima, sem a necessária participação do Juízo e vigilância do Ministério Público, não é suficiente à procedência de pedido de Revisão Criminal.
2. As provas, em "Habeas Corpus", devem ser incontroversas, e os fatos, convergentes.
3. O crime de estupro (CP, art. 213) é considerado hediondo, por expressa determinação legal (Lei 8072/90, art. 1º).
4. Os condenados pela prática de crimes hediondos e os a estes assemelhados (tortura, tráfico de entorpecentes e terrorismo), deverão cumprir integralmente a pena em regime fechado (Lei 8.072/90, Art. 2º, § 1º. Ressalva da posição vencida do Relator.
5. "Habeas Corpus" conhecido; pedido indeferido."
(HC 12.094/SP, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, julgado em 28/03/2000, DJ 02/05/2000 p. 154).
Denota-se, portanto, com fundamento na jurisprudência, em especial no julgado susomencionado, não causar prejuízo para a defesa dos embargantes o não exame, nesta via recursal, da declaração superveniente feita pela testemunha Ismael Firmino Soares por meio de Escritura Pública lavrada em cartório extrajudicial, porque a referida testemunha teve a oportunidade e foi efetivamente inquirida sobre os fatos pelo Magistrado, pela acusação e pela defesa durante a instrução processual.
A juntada da aludida declaração pública pela defesa de Nildemar é serôdia e, por conseguinte, atingida pela preclusão. Ausente prejuízo para as defesas, deve ser rejeitada a preliminar de fato superveniente suscitada pela defesa do embargante Neldemar.
Rejeito, portanto, a preliminar de fato novo superveniente suscitada pela defesa do embargante Nildemar Almeida Santos.
Passo ao exame do mérito dos três Embargos Infringentes, cujas razões são idênticas e têm por escopo a prevalência do voto vencido do Desembargador Lecir Manoel da Luz, que proveu as apelações por eles interpostas, para absolvê-los da acusação do crime de tortura apurado neste feito.
Os embargantes foram denunciados e condenados como incursos nas sanções do artigo 1.º, inciso II, c/c o § 4.º, incisos I, II e III, e § 5.º, da Lei n.º 9.455/1997, porquanto, no dia 20 (vinte) de maio de 1999 (um mil novecentos e noventa e nove) por volta das 22h (vinte e duas horas) na praça situada entre as quadras 1 e 3 na Candangolândia/DF, voluntária, livre e conscientemente, abordaram as vítimas Emerson Silva Ferreira, Márcio de Matos Rodrigues, Vander Rogério Haddad da Silva, Vera Lúcia de Oliveira Lima, Marina "de Tal" e pessoa conhecida pelo apelido de "Ciariba", fizeram revista pessoal em cada um deles e nada encontraram.
Por determinação do embargante Ten. Krause, os homens foram algemados e todos os abordados, inclusive as duas mulheres, foram colocados no cubículo da viatura policial tipo veraneio prefixo 1213, conduzida pelo embargante Saturnino, a fim de verificar possível envolvimento no furto de um automóvel Ford/Escort. Enquanto a viatura transitava pela cidade-satélite, houve comunicado por rádio de que o veículo citado foi localizado em frente à sede da Administração Regional da Candangolândia.
Ao chegarem a esse local, verificaram que o citado automóvel se encontrava estacionado e outra equipe de policiais militares tomava as providências para a prisão dos envolvidos no fato. Lá, o embargante Ten. Krause contatou o policial civil Firmino, a quem exibiu as pessoas reclusas no cubículo da viatura veraneio, quando o referido policial civil reconheceu como foragido da Justiça a pessoa chamada Maurício "de Tal" e o levou consigo para a 11.ª Delegacia de Polícia, ocasião em que este policial civil sugeriu que os condenados conduzissem os demais para a Delegacia de Polícia, a fim de ser levantada a Polinter deles. Consta que o embargante Ten. Krause disse que antes faria com eles uma triagem na "milésima DP no inferno", também conhecida como "banheira do Gugu", lugar ermo situado no Núcleo Rural Vargem Bonita.
Nesse local, os embargantes retiraram as algemas dos homens e, voluntária, livre e conscientemente, com unidade de desígnios e emprego de grave ameaça e violência física, submeteram a intenso sofrimento físico e mental por cerca de cinco horas, como forma de castigo pessoal, Emerson Silva Ferreira, Márcio de Matos Rodrigues, Vander Rogério Hadad da Silva, Vera Lúcia de Oliveira Lima, Marina "de Tal" (que estava grávida com oito meses de gestação) e "Ciariba", que se encontravam em poder e sob autoridade deles. Ordenaram que os homens se despissem, sob ameaça de agressão física e morte, no caso de fuga.
O que se seguiu à ordem dos embargantes foram atos de extrema brutalidade e repugnância.
As vítimas Emerson Silva Ferreira, Márcio de Matos Rodrigues, Vander Rogério Haddad da Silva e "Ciariba" foram agredidas a golpes de cassetete pelos embargantes nas costas e nádegas, por aproximadamente quinze minutos. As duas mulheres apenas presenciaram a surra.
Em seguida, as vítimas Emerson e Vander foram obrigadas a mergulhar em poço com água suja existente no local e somente retornarem à superfície mediante autorização, sob pena de tomarem outra surra. O mesmo aconteceu com as vítimas Márcio e "Ciariba". Os mergulhos duravam três minutos aproximadamente. Feito isso, repetiram a agressão física com cassetetes nas vítimas pelo período aproximado de quinze minutos.
Na sequência, os embargantes determinaram às vítimas do sexo masculino que praticassem felação entre si nas posições ativa e passiva, mediante ameaça de espancamento até a morte, sendo que as vítimas assim o fizeram, mesmo contra a vontade deles, enquanto os embargantes e as duas vítimas mulheres assistiam a tudo.
Posteriormente, os embargantes obrigaram as quatro vítimas do sexo masculino, ainda nuas, a formarem fila e introduzirem um dedo no ânus da pessoa posicionada à frente, novamente sob ameaça de agressão e morte. Depois, mandaram as duas mulheres se deitarem próximas à vítima Márcio, uma delas, Marina, tomou um tapa no rosto, e após se deitarem, obrigaram Márcio a introduzir o dedo nos órgãos genitais de Marina e Vera.
Após, mandaram-nas mergulharem no mesmo poço que os homens mergulharam. Ao final, jogaram fora as roupas dos homens, lançaram gás lacrimogênio nos olhos deles e os despediram, sob ameaça de morte. As mulheres foram conduzidas na viatura policial até ponto de ônibus na rodovia existente entre a Candangolândia e o Gama, à altura de uma Floricultura/Passarela, com advertência de retaliação no caso de comunicação do fato à autoridade policial.
Na manhã do mesmo dia, ou seja, 21 (vinte e um) de maio de 1999, a vítima Emerson compareceu à Delegacia de Polícia e comunicou os fatos, ocasião em que foi submetido à perícia médica para constatação das lesões físicas. As demais vítimas não informaram à autoridade policial os fatos relatados, mas algumas delas foram ouvidas no curso do inquérito policial e do processo crime.
Expostos os fatos, verifico que a discussão gira em torno da comprovação da autoria e materialidade do crime de tortura capitulado no artigo 1.º, inciso II, c/c o § 4.º, incisos I, II e III e § 5.º, da Lei n.º 9.455/1997, que assim dispõem:
"Art. 1.º Constitui crime de tortura:
.........................................................
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos.
.........................................................
§ 4.º Aumenta-se a pena de 1/6 (um sexto) até 1/3 (um terço):
I - se o crime é cometido por agente público;
II - se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos;
III - se o crime é cometido mediante seqüestro.
§ 5.º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada."
O registro de ocorrência policial de folhas 16/17 contém a notitia criminis feita pela vítima Emerson Silva Ferreira no dia dos fatos (21/05/1999), com a narrativa dos crimes, seus agentes e vítimas, das quais Marina se encontrava gestante.
O Laudo de Exame de Lesões Corporais de folhas 22/24, elaborado na avaliação da vítima Emerson Silva Ferreira, no dia 21/05/1999, relata a existência de lesões contusas causadas por instrumento contundente e produzidas mediante crueldade.
Destaco que o Laudo de Exame de Lesões Corporais de folha 532, produzido em razão da perícia a que se submeteu a vítima Márcio de Matos Rodrigues, retrata, ainda, que decorridos mais de cinco meses, ainda havia lesões não recentes em forma de bastão nas costas dele.
As declarações prestadas pelas vítimas Emerson Silva Ferreira, Márcio de Matos Rodrigues, Vander Rogério Haddad da Silva e Vera Lúcia de Oliveira Lima à autoridade policial (fls. 25/38), todas harmônicas entre si, narram com precisão os fatos susomencionados, com o destaque de uma das vítimas do sexo feminino estar grávida, além da referência ao nome do embargante Leonardo Theodoro Hermann Krause, chamado sempre de Tenente Krause.
A vítima Márcio de Matos Rodrigues reconheceu o embargante Nildemar Almeida Santos como sendo um dos algozes (fls. 71/72).
O embargante Leonardo Theodoro Hermann Krause se negou a submeter-se ao procedimento de reconhecimento pessoal pelas vítimas perante a autoridade policial, alegando a execração pública de sua imagem pela imprensa e a desnecessidade da realização do ato (fls. 90/91).
Ouvido pela autoridade policial, o embargante Leonardo Theodoro Hermann Krause corroborou toda a narrativa feita pelas vítimas Emerson Silva Ferreira, Márcio de Matos Rodrigues, Vander Rogério Haddad da Silva e Vera Lúcia de Oliveira Lima à autoridade policial até o momento posterior à apresentação delas ao agente de polícia Firmino, quando este capturou Maurício "de Tal" e o levou consigo. Após esse marco inicia-se divergência, porquanto alega que, em seguida, pouco distante do local do encontro com o referido policial civil, liberou as vítimas em via pública, sem qualquer ameaça ou agressão (fls. 102/104).
No mesmo sentido das declarações prestadas pelo embargante Leonardo Theodoro Hermann Krause à autoridade policial (fls. 102/104) foram as afirmações do embargante Nildemar Almeida Santos (fls. 106/108; 550/551). De igual teor, foram as declarações dos embargantes no inquérito policial militar, inclusive do embargante Haroldo José Saturnino (fls. 228/235 e 320/322).
Em Juízo, os embargantes confirmaram as declarações prestadas na delegacia (fls. 610/622). O policial civil Firmino, também perante o Juiz, disse que verificou pessoalmente as lesões na vítima Emerson Silva Ferreira, o qual lhe disse que as agressões foram praticadas pelo embargante Ten. Krause e outros policiais que o acompanhavam no dia 20/05/1999 (fls. 751/756). As vítimas Márcio de Matos Rodrigues (fls. 757/763), Emerson Silva Ferreira (fls. 787/794) e Vera Lúcia de Oliveira Lima (fls. 815/819) corroboraram suas declarações prestadas à autoridade policial quanto aos fatos apurados e seus autores.
É incontroverso, nos autos, que os embargantes compunham a guarnição da viatura policial tipo veraneio prefixo 1213 na ocasião dos fatos (entre as 22h do dia 20/05/1999 e 03h do dia 21/05/1999), sendo que o embargante Haroldo José Saturnino era o condutor do veículo, Leonardo Theodoro Hermann Krause o comandante da equipe e Nildemar Almeida Santos integrante do grupo de policiais militares. Estes três abordaram as vítimas Emerson Silva Ferreira, Márcio de Matos Rodrigues, Vander Rogério Haddad da Silva, Vera Lúcia de Oliveira Lima, Marina "de Tal" e pessoa conhecida pelo apelido de "Ciariba", na praça situada entre as quadras 1 e 3, na Candangolândia/DF, prenderam-nas para verificação de possível envolvimento no furto/roubo do automóvel Ford/Escort naquela cidade-satélite e mantiveram-nas reclusas após a constatação de que nenhuma participação tiveram no cometimento do crime.
A discrepância de versões sobre os fatos ocorre a partir do local onde o veículo Ford/Escort foi encontrado. Lá o policial civil Firmino presenciou estarem as vítimas presas na viatura veraneio prefixo 1213 sob autoridade do embargante Leonardo Theodoro Hermann Krause, quando este as apresentou a ele, para saber se alguém tinha envolvimento com crime. Na ocasião, o policial civil Firmino retirou uma pessoa da viatura policial militar, porque havia mandado de prisão contra esta, mas os demais permaneceram com os embargantes, os quais disseram tê-los liberados em outro local, para evitar tumulto no lugar onde o veículo Ford/Escort foi encontrado.
As vítimas são uníssonas em afirmar que após a partida do policial civil Firmino, o embargante Leonardo Theodoro Hermann Krause determinou fossem eles conduzidos até a "milésima DP no inferno" para averiguação. Os embargantes, ao revés, dizem tê-las liberado minutos depois, distantes cinquenta ou cem metros do local onde tiveram contato com o policial civil Firmino. Nildemar Almeida Santos disse, em Juízo, que acompanhou o embargante Leonardo Theodoro Hermann Krause por ordem deste, que exercia a função de oficial de dia, em razão dos tumultos no plantão (fls. 615/618).
O procedimento tomado pelos embargantes foi irregular, na medida em que a captura das vítimas, na praça da Candangolândia por suspeita de participação no roubo do Ford/Escort, implicou o dever para os milicianos de apresentá-las à autoridade policial para as providências de sua alçada. A adoção de procedimento diverso, segundo o Capitão Anderson Carlos de Castro Moura - encarregado do inquérito policial militar instaurado para apuração dos fatos narrados neste feito -, demonstrou indícios de crime cometido pelos embargantes, consoante se extrai da conclusão do relatório final do aludido inquérito policial militar (fls. 330/333; 504/505), o qual foi encaminhado ao juízo criminal comum pela Juíza Auditora Militar do Distrito Federal (fls. 513/514).
Estranha foi a afirmação feita em Juízo pelos embargantes Leonardo Theodoro Hermann Krause (fls. 610/614) e Nildemar Almeida Santos (fls. 615/618), de que, após o encontro com o policial civil Firmino no local onde o veículo Ford/Escort foi encontrado, teriam liberado as vítimas e depois se dirigido à 11.ª Delegacia de Polícia, porquanto desencontrada da narrativa do embargante Haroldo José Saturnino também perante a autoridade judiciária (fls. 619/622), que afirma terem se deslocado até o posto da Polícia Militar na Candangolândia, depois retornaram ao local onde o Ford/Escort foi encontrado e em seguida fizeram rondas nas imediações da Candangolândia, inclusive no Setor de Postos e Motéis.
A discrepância nas assertivas dos embargantes tem especial relevância, uma vez que se refere ao período de tempo em que as vítimas foram submetidas a intenso sofrimento físico e mental como forma de castigo ou medida de prevenção. Ressalto que a divergência não pode ser desprezada, principalmente pelo fato de o embargante Haroldo José Saturnino ser o condutor da viatura veraneio prefixo 1213 no dia em que o delito foi cometido e não ser admissível que ele, como motorista do veículo, não se lembrasse do itinerário percorrido pela viatura.
As testemunhas Manoel de Jesus Matos Rodrigues e Carlos Leomar Neres, em Juízo, disseram não terem presenciado os fatos, mas tiveram conhecimento deles através da vítima Márcio Matos Rodrigues, que comentou que o embargante Leonardo Theodoro Hermann Krause e outros policiais militares que o acompanhavam foram os autores das condutas, narrando com detalhes o modo como foram cometidas as agressões físicas e mentais, inclusive os atos libidinosos que as vítimas foram obrigadas a praticar entre si e a condição de gestante de uma das vítimas do sexo feminino. (fls. 709/711 e 712/714)
A testemunha Manoel de Jesus Matos Rodrigues, que é irmão da vítima Márcio Matos Rodrigues, disse que viu as lesões no corpo do irmão e que ele não comunicou o fato à Polícia, temendo retaliação dos agressores.
As policiais civis Creuza Aparecida Cândido e Regina Lúcia Camargos Mesquita, em Juízo (fls. 747/750; 783/786), confirmaram o relatório de investigação de folhas 19/21 por elas elaborado na apuração dos fatos noticiados neste feito. Na ocasião, obtiveram as declarações das vítimas Emerson Silva Ferreira, Vander Rogério Hadad da Silva, Márcio Matos Rodrigues e Vera Lúcia de Oliveira Lima, uníssonas sobre os acontecimentos e a existência de outras duas vítimas - "Ciariba" e Marina - as quais não foram inquiridas, sendo que Marisa estava gestante.
As declarações das testemunhas corroboram as afirmações feitas pelas vitimas. Vale destacar que os crimes de tortura são praticados clandestinamente, normalmente sem a presença de terceiros, como medida para assegurar-se a impunidade. Por isso, a palavra da vítima assume especial relevância e, confirmada por outros elementos probatórios, deve ser acolhida como expressão da verdade.
A propósito, faço referência a precedente deste Tribunal sobre a matéria:
"PENAL - CRIME DE TORTURA - PORTE ILEGAL E DISPARO DE ARMA DE FOGO EM VIA PÚBLICA - NEGATIVA DE AUTORIA - PALAVRA DA VÍTIMA - HARMONIA DO CONJUNTO PROBATÓRIO.
- Pratica o crime de tortura, na modalidade do art. 1º, inc. I, letra "a", da Lei nº 9.455/97 o agente que constrange a vítima, com o emprego de violência ou grave ameaça, ao fito de obter confissão acerca de suposta autoria de crime.
- Inviável a absolvição da prática dos delitos de porte ilegal e disparo de arma de fogo, em face da inexistência de registro da arma em nome do réu e da harmonia do acervo probatório.
- Recurso improvido. Unânime."
(20000310020865APR, Relator OTÁVIO AUGUSTO, 1ª Turma Criminal, julgado em 22/11/2001, DJ 18/02/2002 p. 85).
Peço vênias ao Desembargador Lecir Manoel da Luz, mas entendo que as provas são suficientes para manter a sentença condenatória imposta aos embargantes.
As provas, notadamente as declarações das vítimas Emerson Silva Ferreira, Márcio de Matos Rodrigues, Vander Rogério Haddad da Silva e Vera Lúcia de Oliveira Lima, os laudos de lesões corporais das vítimas Emerson Silva Ferreira e Márcio Matos Rodrigues, cujas agressões físicas sofridas ainda subsistiram meses após o fato, bem como os depoimentos das testemunhas Manoel de Jesus Matos Rodrigues e Carlos Leomar Neres e dos agentes de polícia civil Ismael Firmino Soares, Creuza Aparecida Cândido e Regina Lúcia Camargos Mesquita são harmônicos, coesos e seguros na identificação dos embargantes Leonardo Theodoro Hermann Krause, Nildemar Almeida Santos e Haroldo José Saturnino como autores do intenso sofrimento físico e mental a que submeteram as vítimas retrocitadas, além de Marina "de Tal" e pessoa apelidada de "Ciariba", apenas por castigo pessoal ou medida preventiva, sem que nada tivessem feito para serem presos pelos embargantes no dia dos fatos.
As afirmações dos três embargantes são confusas sobre os fatos após o encontro com o policial civil Firmino no local onde o veículo Ford/Escort foi encontrado e após a saída desse policial civil com um dos presos que se encontrava recluso com as vítimas na viatura veraneio prefixo 1213 da Polícia Militar do Distrito Federal, cuja equipe era composta apenas pelos embargantes. Eles sequer demonstraram, inequivocamente, onde estiveram logo após esse fato.
É crível que os embargantes tenham levado as vítimas até o local ermo no Núcleo Rural Vargem Bonita e lá agredido fisicamente as vítimas do sexo masculino. A não localização de "Ciariba" e a não realização do exame de lesões corporais em Vander e em "Ciariba", assim como o desaparecimento de Marina "de Tal", que estava grávida, não incita conclusão diferente.
Natural, sem dúvida, que pessoas já processadas ou condenadas criminalmente evitem contato com autoridades policiais. Não ignoro os antecedentes criminais das vítimas, mas sem motivo fundado, os embargantes não poderiam manter presas as vítimas e, muito pior, submetê-las a intenso sofrimento físico e mental para aplicar-lhes castigo pessoal ou prevenir cometimento de delitos.
Por que os embargantes não levaram as vítimas à 11.ª Delegacia de Polícia após o encontro com o policial civil Firmino, eis que para lá os embargantes Leonardo Theodoro Hermann Krause e Nildemar Almeida Santos dizem ter se dirigido? É que para lá não foram, segundo disse o embargante Haroldo José Saturnino, que era o condutor da viatura policial.
Onde foi que os embargantes deixaram as vítimas? Não foi cinquenta metros ou três quilômetros depois do lugar onde o Ford/Escort foi encontrado por outra equipe de policiais militares, que atenderam à ocorrência. Deixaram-nas no local ermo para onde as levaram no Núcleo Rural Vargem Bonita, onde aplicaram castigo pessoal ou medida preventiva, através de intenso sofrimento físico e mental, submetendo-as a sevícias indescritíveis, que sequer convém serem ditas publicamente, conforme expressão do Desembargador George Lopes Leite.
Por isso é que os embargantes somente foram vistos por volta das 2h (duas horas) da manhã do dia 21 de maio de 1999, pelo Sr. Hélio Querino Pereira, segurança do posto de combustíveis Tiradentes, situado no Setor de Postos e Motéis, horário após o qual o delito já tinha ocorrido.
Em reforço à fundamentação, trago à colação julgado do Superior Tribunal de Justiça que decidiu que intensas agressões físicas aplicadas por castigo pessoal ou prevenção caracterizam o delito de tortura e não o de maus-tratos:
"CRIMINAL. RESP. TORTURA QUALIFICADA POR MORTE. DESCLASSIFICAÇÃO PARA CRIME DE MAUS-TRATOS QUALIFICADO PELA MORTE PROMOVIDA PELO TRIBUNAL A QUO. REVISÃO DA DECISÃO. IMPOSSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N.º 07/STJ. RECURSO NÃO-CONHECIDO.
I. A figura do inc. II do art. 1.º, da Lei n.º 9.455/97 implica na existência de vontade livre e consciente do detentor da guarda, do poder ou da autoridade sobre a vítima de causar sofrimento de ordem física ou moral, como forma de castigo ou prevenção.
II. O tipo do art. 136, do Código Penal, por sua vez, se aperfeiçoa com a simples exposição a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, em razão de excesso nos meios de correção ou disciplina.
III. Enquanto na hipótese de maus-tratos, a finalidade da conduta é a repreensão de uma indisciplina, na tortura, o propósito é causar o padecimento da vítima.
IV. Para a configuração da segunda figura do crime de tortura é indispensável a prova cabal da intenção deliberada de causar o sofrimento físico ou moral, desvinculada do objetivo de educação.
V. Evidenciado ter o Tribunal a quo desclassificado a conduta de tortura para a de maus tratos por entender pela inexistência provas capazes a conduzir a certeza do propósito de causar sofrimento físico ou moral à vítima, inviável a desconstituição da decisão pela via do recurso especial.
VI. Incidência da Súmula n.º 07/STJ, ante a inarredável necessidade reexame, profundo e amplo, de todo conjunto probatório dos autos.
VII. Recurso não conhecido, nos termos do voto do relator."
(REsp 610.395/SC, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 25/05/2004, DJ 02/08/2004 p. 544).
Comprovado, portanto, que os embargantes foram os autores do crime de tortura qualificada pela condição de agentes públicos contra as vítimas nominadas na denúncia, sendo uma delas gestante, deve ser mantida a sentença condenatória.
Ante o exposto, nego provimento aos Embargos Infringentes.
É como voto.
O Senhor Desembargador ARNOLDO CAMANHO - Revisor
Senhora Presidente, trouxe voto escrito que coincide integralmente com o do Relator, seja para rejeitar a preliminar, seja para, no mérito, negar provimento aos embargos infringentes. O ponto da divergência reside sobre a comprovação da autoria e materialidade do crime de tortura praticado pelos embargantes. O eminente Des. Lecir Manoel da Luz, Relator da apelação, entendeu que não havia nos autos prova firme de que os embargantes tivessem sido os autores do fato narrado na denúncia. Os eminentes Desembargadores George Lopes Leite e Sandra de Santis seguiram orientação diversa: a de que existiam nos autos provas suficientes da autoria e materialidade do delito imputado aos embargantes.
Preliminarmente, a declaração juntada aos autos pelo embargante Nidemar, sob título de fato novo superveniente, é extemporânea. Além disso, a testemunha que prestou tal declaração foi ouvida em juízo, sob o crivo do contraditório.
No mérito, restando, e como bem salientado pelo eminente Relator, Des. Souza e Ávila, havendo prova bastante no sentido de comprovar as sevícias praticadas pelos policiais militares, a condenação é medida que se impõe. Diga-se, aliás, que as provas carreadas aos autos, quais sejam, as declarações coesas e harmônicas feitas pelas vítimas, os laudos periciais e demais depoimentos, revelam a torpeza e crueldade empregadas para a prática do delito.
Por outro lado, em casos que tais, em que o crime é cometido às escondidas, longe de testemunhas, deve-se conferir especial relevo à palavra das vítimas. Além disso, as teses de que estaria a haver eventual vingança contra o oficial condenado e de que as vítimas são pessoas que possuem maus antecedentes não têm o condão de macular seus depoimentos, eis que isoladas do conjunto probatório.
Dessa forma, pedindo respeitosa venia ao sempre culto prolator do voto minoritário, rejeito a preliminar e nego provimento aos embargos, prestigiando a inteligência dos votos majoritários.
É como voto.
O Senhor Desembargador EDSON ALFREDO SMANIOTTO - Vogal
Acompanho o eminente Relator.
O Senhor Desembargador GEORGE LOPES LEITE - Vogal
Senhora Presidente, fui relator da apelação criminal e quero confessar aqui, de público, que, depois de doze anos de exercício de advocacia e vinte e um de Magistratura, nunca me assaltou tamanho sentimento de tristeza em proferir um voto como ocorre neste caso, que deixou à mostra as possibilidades infinitas da maldade e da degradação moral de que é capaz o ser humano. O ocorrido serve de alerta a todos os componentes da brava corporação policial militar, os quais, mercê do enfrentamento constante, diuturno e sistemático com a criminalidade violenta que vem se alastrando cada vez mais nas ruas, às vezes se deixa levar por aquela corrente ilusória do direito penal do inimigo, que enxerga em toda pessoa que já cometeu crime o inimigo a ser combatido a qualquer preço, e para o qual não há necessidade de serem observadas as garantias fundamentais previstas na Constituição da República.
Não tenho dúvida de que o oficial da Polícia Militar envolvido neste caso foi contaminado por essa falsa ilusão e pelo poder que lhe foi conferido, como responsável pelo policiamento ostensivo na área do Núcleo Bandeirante, quando tomou para si o papel de justiceiro, atacando sem trégua os marginais daquela comunidade. A maioria das vítimas, neste caso, realmente não tinha passado recomendável, eis que se envolvera em crimes.
Há uma alegação, inclusive, se não falha a memória, de que a vítima principal desses autos, retratada em uma fotografia colorida, que mostra nas costas, desde o calcanhar até o pescoço, as marcas do látego infamante, o bastão policial, teria razões para uma vindita pessoal, porque esse mesmo policial fora também acusado de assassinar o irmão dele, também envolvido com a criminalidade. Ocorre que a morte desse irmão se deu posteriormente ao fato. Então, não há como se lhe imputar uma retaliação por vingança, pois as torturas sofridas por essa vítima aconteceram muito antes.
No tocante à nova prova que se pretende ter sido produzida, parece-me que é absolutamente inusitada: uma testemunha ouvida sob o pálio da ampla defesa e do contraditório, posteriormente à condenação, foi a um cartório de notas modificar o seu depoimento prestado em juízo, na tentativa de minimizar seus efeitos na formação da convicção íntima do Juiz. A defesa teve amplas possibilidades de explorar o depoimento dessa testemunha policial, que é, realmente, uma das mais importantes, porque acompanhou pelas informações do rádio a apreensão indevida das vítimas. Elas estavam na praça pública e foram vistas pelo oficial da Polícia Militar como prováveis autores do roubo de um automóvel. Mas se provou, pouco depois, que os verdadeiros autores desse roubo já tinham sido capturados em outra diligência policial, consoante informou a referida testemunha aos integrantes da patrulha comandada pelo Tenente Krause.
Enfim, Senhora Presidente, estou apenas justificando meu ponto de vista em relação ao voto proferido, porque, efetivamente, este é um caso duro, bastante doloroso, e impõe uma reflexão sobre o verdadeiro papel do policial, e como ele necessita ser protegido e estimulado a se preservar desse estresse emocional intenso a que está submetido, a fim de que não venha a se impregnar da brutalidade ínsita do seu árduo mister.
Hoje se assiste no Estado do Rio de Janeiro uma situação de guerrilha urbana absolutamente inconcebível. Temo que essa violência esteja, aos poucos, se espalhando por outros quadrantes deste pobre país, sequioso de paz e de segurança.
Enfim, a condenação dos réus me foi particularmente dolorosa. Senti profunda tristeza ao constatar que a espécie humana pode chegar a tal ponto de insensibilidade moral diante da dor alheia. Não tenho dúvida de que os soldados e o cabo que acompanhavam o oficial se deixaram impregnar pelo clima de brutalidade. Talvez não quisessem ou não desejassem dela participar; um ou outro talvez até se sentiram constrangidos, mas a verdade é que, naquele momento crucial, nenhum deles levantou a voz para contrapor às arbitrariedades que se passavam diante de seus olhos. No Nordeste, há um ditado muito popular que afirma: "por falta de um grito, às vezes se perde uma boiada".
Resumindo, não vejo como possa, a essa altura, voltar atrás no meu posicionamento anterior, de maneira que o meu voto é acompanhando integralmente as razões do eminente Relator.
É como voto.
O Senhor Desembargador ROBERVAL CASEMIRO BELINATI - Vogal
Senhora Presidente, ouvi com muita atenção a exposição do ilustre Advogado de defesa, todavia, entendo que a escritura pública acostada aos autos não descaracteriza o conjunto probatório, que não deixa nenhuma dúvida sobre a materialidade e autoria do hediondo crime perpetrado pelos réus.
Sendo assim, peço vênia ao ilustre Advogado para manter a condenação dos réus, acompanhando o voto do eminente Relator.
O Senhor Desembargador SÉRGIO ROCHA - Vogal
Com o eminente Relator.
DECISÃO
Negado provimento aos embargos. Unânime.
DJ-e: 18/01/2010
JURID - Embargos infringentes. Tortura. Policiais militares. [21/01/10] - Jurisprudência
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