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segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

JURID - Apelação crime. Maus tratos. Art. 136, § 3º, do CP. [25/01/10] - Jurisprudência


Apelação crime. Maus tratos. Art. 136, § 3º, do Código Penal.


Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul - TJRS.

Apelação Crime

Primeira Câmara Criminal

Nº 70032632515

Comarca de Guaíba

APELANTE/APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO

APELANTE/APELADO: MARIA CRISTINA DIAS LOPES

APELAÇÃO CRIME. MAUS TRATOS. ART. 136, §3º, DO CÓDIGO PENAL. ABSOLVIÇÃO DA RÉ EM SEGUNDO GRAU. INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. ART. 386, INCISO VII, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.

DERAM PROVIMENTO AO APELO DA DEFESA E NEGARAM PROVIMENTO AO APELO DO MINISTÉRIO PÚBLICO.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar provimento ao apelo da defesa para absolver a ré MARIA CRISTINA DIAS LOPES, com fulcro no art. 386, inciso VII, do CPP, e em negar provimento ao apelo do Ministério Público.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores Des. José Antônio Hirt Preiss (Presidente e Revisor) e Des. Manuel José Martinez Lucas.

Porto Alegre, 09 de dezembro de 2009.

DES. MARCEL ESQUIVEL HOPPE,
Relator.

RELATÓRIO

Des. Marcel Esquivel Hoppe (RELATOR)

Na Comarca de Guaíba, o Ministério Público denunciou MARIA CRISTINA DIAS LOPES e PAULO ROBERTO DE SOUZA LOPES, dando-os como incursos nas sanções do artigo 1º, inciso II, majorado pelo seu § 4º, inciso II, c/c seu § 7º, da Lei nº 9.455/97, na forma do artigo 29, "caput", do Código Penal.

Narra a denúncia que:

"Durante o interregno de tempo anterior e próximo ao dia 23-02-2005, em diversos horários, na residência localizada na Rua Antônio Ignácio Galeão, nº 366, no Bairro Santa Rita, nesta cidade de Guaíba, os denunciados MARIA CRISTINA DIAS LOPES e PAULO ROBERTO DE SOUZA LOPES, conjugando desígnios e esforços, na condição de tios-maternos e guardiães de fato da vítima (por ser esta órfã de mãe e com pai desconhecido), com emprego de violência, submeteram a intenso sofrimento físico e mental a criança Ana Maria Gonçalves, que contava com 10 (dez) anos de idade na época (conforme certidão de nascimento inclusa) e que se encontrava sob sua guarda de fato, poder e autoridade, ao agredirem-na com bofetadas, manterem-na sem alimentação, passando fome e encarcerada num galpão existente nos fundos do terreno da casa, muitas vezes amarrada ao encosto de uma cadeira, juntamente com cachorros doentes, inclusive durante a noite, fazendo-o como forma de aplicar castigo pessoal, para que a vítima não os incomodasse dentro de casa e se acalmasse quando estava em crises de agitação psicomotora.

Já com cinco anos de idade, a criança Ana Maria Gonçalves, juntamente com seus outros dois irmãos, veio a ser internada e permaneceu em abrigos municipais da cidade de Canoas, protegida por medida judicial, em razão da miserabilidade econômica, da situação de risco pela ausência constante da sua mãe no casebre onde moravam e das doenças graves e transmissíveis da sua mãe, já que não havia pai ou familiares conhecidos (conforme cópia de termo de audiência inclusa). No ano de 2002, quando a vítima tinha sete anos de idade, sua mãe faleceu.

A criança Ana Maria permaneceu num abrigo municipal de Canoas até que os denunciados, na condição de tios-maternos e mediante intermediação de conselheiros tutelares do Município de Canoas (vide cópia de despacho judicial inclusa), iniciaram visitas e passaram a levá-la por períodos determinados para a residência deles nesta cidade de Guaíba.

No interregno de tempo antes mencionado, os denunciados enfrentaram dificuldades de comportamento da vítima e crises de agitação psicomotora decorrentes do seu desenvolvimento conturbado na infância e da perda da mãe, sendo que, para corrigi-la, a espancavam e a mantinham encarcerada, às vezes amarrada, mesmo durante a noite, sozinha e sem alimentação, junto com cachorros num galpão nos fundos da residência.

Com o sofrimento decorrente do encarceramento no local sombrio onde era mantida, das violentas surras e da fome, a criança chorava convulsivamente, fato que sensibilizou duas vizinhas, as quais depararam-se com as condições desumanadas de abandono e sujeira em que era mantida a menina e passaram a tentar conversar com ela.

Como a criança implorava por comida, essa vizinhas passaram a tentar estender alimentos, alcançando pequenos pedaços de pão e comida pela malha da cerca, os quais eram disputados também pelos cachorros.

Notando que a situação de tortura se tornava rotina na vida da criança e os requintes de crueldade exorbitavam as condições de um castigo, essas vizinhas, que até então hesitavam por temerem conflito e represálias dos adultos daquela família, encorajaram-se e comunicaram o que ocorria ao Conselho Tutelar, cujos conselheiros acorreram ao local e acolheram a vítima no abrigo municipal desta cidade, em estado de desnutrição, com cicatrizes pelo corpo, com piolho e sarna, muito assustada e abatida.

As seqüelas traumáticas do tratamento desumano a que era submetida a vítima agravaram a sua já débil saúde psíquica, culminando posteriormente em surto psicótico (descrito como ruptura com a realidade) e com internação no Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre.

O crime foi cometido contra criança, conforme certidão de nascimento inclusa." (fls. 02/07)

A denúncia foi recebida em 08/03/07 (fl. 56).

Processado o feito, sobreveio sentença que condenou a ré MARIA CRISTINA DIAS LOPES nas sanções do art. 136, §3º, do Código Penal e absolveu PAULO ROBERTO DE SOUZA LOPES da imputação que lhe foi feita na denúncia, com base no art. 386, inciso VI, do CPP (fls. 182/194).

Inconformados, apelaram o Ministério Público (fl. 196) e a defesa da ré MARIA CRISTINA (fl. 205).

O Parquet, em razões, requer a condenação da ré pelo crime de tortura, nos termos da denúncia. Aduz que o fato de a vítima ter sofrido um surto psicótico é a maior prova das agressões físicas e morais a que foi submetida pela ré. Afirma que a privação de alimentos, o isolamento e as agressões físicas são condutas clássicas de tortura. Faz referência ao fato de a vítima possuir piolhos durante muito meses, entendo que no presente caso não estão caracterizados simples maus tratos, mas sim atos de extrema crueldade que constituem tortura (fls. 215/227).

A defesa de MARIA CRISTINA, por sua vez, afirma a insuficiência probatória a ensejar a condenação. Aduz que não seria plausível que a recorrente tivesse procurado por uma menina órfã com intuito de lhe impingir maus tratos, mas sim com a intenção de tratá-la e acolhê-la como filha, principalmente em função da mesma ter passado por um passado conturbado e problemático. Diz que a menina já possuía comportamento inadequado antes da adoção, e que a versão dos acusados merece guarida, já que as acusações podem ser fruto da mente fantasiosa de uma criança abandonada como é o caso em tela, sendo inegável a presença de dúvida no presente feito. Requer a absolvição da ré, com fulcro no art. 386, inciso VII, do CPP (fls. 234/237).

Contra-arrazoados os apelos (fls. 228/232 e 239/251).

Nesta instância, o parecer do Procurador de Justiça, Dr. Keller Dornelles Clós, é pelo improvimento do apelo defensivo e pelo provimento do apelo ministerial (fls. 254/265).

É o relatório.

VOTOS

Des. Marcel Esquivel Hoppe (RELATOR)

O Ministério Público e a defesa apelaram da sentença que condenou a ré MARIA CRISTINA DIAS LOPES pelo delito de maus tratos, art. 136, §3º do Código Penal.

Analiso os apelos conjuntamente.

Inicialmente, entendo necessário expor o histórico da criança Ana Maria, suposta vítima do crime de maus tratos, tal como consta dos autos.

Quando Ana Maria tinha sete anos foi determinado seu afastamento, assim como de seus dois irmãos, de sua genitora, por estarem os menores em situação de risco. No termo de audiência realizado à época, ficou consignado que "a mãe saía para 'programas de sexo'" e as crianças tinham que ficar na casa de uma vizinha. A mãe de Ana Maria possuía graves problemas de saúde, e a havia a suspeita de que sua irmã (de Ana) estava sendo abusada sexualmente (fl. 37).

As crianças foram abrigadas em um lar provisório, sendo admitidas as visitas por parte da mãe, que, posteriormente, foram canceladas, a pedido do Ministério Público, em razão do precário estado de saúde da genitora (fl. 39).

No ano seguinte faleceu a mãe de Ana Maria, vítima de tuberculose e HIV (fl. 40).

A menina foi transferida de abrigo, juntamente com sua irmã, em 21/08/2002, tendo seu irmão menor permanecido no local anterior. Na época, a coordenadora do Comitê dos Direitos da Criança e do Adolescente se manifestou no sentido de que a separação poderia trazer sequelas emocionais para a menina, já que essa "sempre faz referências idealizadas sobre sua família, onde sempre refere mãe, pai, irmãos". Ponderou que "Ana é uma menina que apresenta fragilidade psíquica, revela dificuldades de adaptação e relacionamentos interpessoais". A equipe ainda se manifestou no sentido de que uma mudança de escola poderia gerar retrocesso no desenvolvimento da menina (fls. 44/45).

No relatório de fl. 46, datado de 21 de maio de 2003, encaminhado por uma psicóloga e por uma coordenadora do abrigo Casa do pequeno Trabalhador ao Juizado da Infância e da Juventude de Canoas, consta que Ana Maria "apresenta sintomas que sugerem intenso sofrimento emocional e psíquico, e, por este motivo utiliza-se de medicamentos controlados (...) para auxiliá-la em crises de agitação psicomotora que no início eram frequentes, e hoje apresentam-se ocasionalmente. (...) era muito ligada à figura materna (falecida) (...) ambientes agitados ou com muitas crianças a predispõe a ter 'surtos' agressivos e de auto-agressão". Foi consignado que a menina recebia visitas no abrigo de "um Sr. Que se apresentou como um possível pai biológico. Após os exames de D.N.A. foi constatado que isto não é verídico e as visitas foram interrompidas. Para a menina foi uma nova situação de perda". Foi relatado também que o ideal para a menina seria um ambiente tranquilo e em que recebesse atenção exclusiva.

A partir de setembro de 2003, segundo o ofício de fl. 47, a menina passou a receber visitas de sua "tia materna", a ora ré, MARIA CRISTINA DIAS LOPES (que, todavia, nega o parentesco) e de seu companheiro PAULO ROBERTO SOUZA LOPES, os quais manifestaram o desejo de permanecer com sua guarda.

Há informação de que Ana Maria passou o mês de fevereiro de 2004 na residência de MARIA CRISTINA e PAULO, não havendo indicação da data em que foi legalizada a permanência da menor com os acusados.

O Estudo Social, datado de abril de 2006, portanto, após o fato, narrou que Ana Maria "é uma criança de pouco peso, clara, e apresenta indicativos de problemas psicossociais". "Inicialmente sofreu muito no processo de adaptação, não conversava com as pessoas (abrigadas, técnicos e funcionários), algumas vezes por medida de proteção ficou no andar do berçário onde as educadoras relataram que Ana possuía uma sexualidade muito desenvolvida para sua idade, tentou manusear uma menina menor e gostava muito de beijar os meninos pequenos na boca. (...) Houve a existência de rumores de que Ana Maria teria sido 'recolhida' pelo Conselho pois havia enfiado uma escova de dente e um tubo de pasta de dente na vagina de uma menina de sua idade na casa onde morava". A assistente social afirmou que a menina apresentava também limitações emocionais e intelectuais, e quanto à alimentação, informou que "estamos incentivando alguns alimentos pois só tem gosto por comer feijão com arroz. Gosta muito de doces e nas festas alega estar com dor de barriga para poder ficar no abrigo pois sabe que haverá doces e bolo". Relatou também que "Ana Maria fala muito sobre sua mãe, a menina ainda não elaborou o luto materno e acredita veemente que a genitora irá voltar um dia para vê-la. (...) É uma menina que demonstra muito sofrimento através de sua conduta e atitudes" (fls. 17/23).

O Relatório de fls. 30/34 informa que "Ana Maria chegou a instituição de assistência social com características marcantes, uma criança totalmente desnutrida, muito magra, mal cuidada com marcas físicas de cicatrizes no corpo, com piolhos, sarna, muito triste, assustada e com uma postura anti social". Que evidenciava comprometimento emocional e que não conseguia se adaptar com as outras meninas do abrigo, fazendo "muitas intrigas", "promovendo brigas e confusões". Que o Conselheiro Tutelar de Guaíba teria contado "que ouviu que Ana Maria teria enfiado os dedos, uma escova de cabelo e uma pasta de dente na genitália de uma criança de três anos sua vizinha e por isso teria sido repreendida pelos guardiões e colocada nas peças do fundo da casa com os cachorros". Que a menina até os últimos dias de abrigamento precisava de constante monitoramento para que realizasse sua higiene pessoal (fls. 30/34).

Essa é a situação que se depreende dos autos. Sem dúvida, uma história de vida trágica que foi vivenciada pela menor Ana Maria, com a perda de sua mãe, com a qual ainda parece ter uma ligação emocional muito forte, e, posteriormente, com a separação de seus dois irmãos, únicos elos que restavam com sua família. Restou comprovado que essa trajetória deixou sequelas físicas e psíquicas na menina. No entanto, entendo que os ora réus não podem ser penalizados por uma situação prévia, a qual não deram causa. Do contrário, os elementos nos autos permitem concluir que o casal tentou ajudar a menina a sair da situação de abandono em que se encontrava, após terem notícias de que seus irmãos já haviam sido adotados, e ela, por ser a mais velha, ainda não. Mesmo já tendo um casal de filhos, MARIA CRISTINA e PAULO ROBERTO resolveram abrigar a menina em sua residência.

A vítima ANA MARIA GONÇALVES, quando ouvida em juízo, declarou que:

"(...) Disse que ele referindo-se ao réu Paulo lhe dava socos na cabeça, que a ré trancava a depoente junto com os cachorros. Sentia muita fome porque ganhava pouca comida, sendo que um dia foi obrigada por Maria a comer pimenta com chocolate. Que os cachorros comiam a comida que a ré Maria dava para a depoente. Não ficava amarrada no galpão com os cachorros, somente trancada. Que as vezes dormia na casa outras vezes em uma cadeira no galpão. Quando podia ficar dentro de casa brincava com os dois primos. Tinha medo de escuro e lembra que chorava quando estava no galpão. Que quando Paulo a espancava ficava vermelho. Que ia na escola, mas não lembra a série." (fl. 144)

Os réus não negam que aplicassem corretivos na menina, assim como o faziam com seus dois outros filhos, tais como "palmadas" eventualmente em razão de mau comportamento. Negaram veementemente que deixassem a menina sem comer ou que a trancassem em um galpão apenas com cachorros.

MARIA CRISTINA DIAS DE OLIVEIRA, quando interrogada, declarou que:

"Interroganda: (...) A única coisa que é verdade disso tudo, tinha castigos, mas a menina não era espancada. A menina não passava fome, não se mantinha amarrada no meio dos cachorros. Até na época onde a gente morava, a gente morava nesse endereço nos fundos era uma lavanderia, não tinha galpão, nos tínhamos cinco cachorros. Como é que ela poderia ter ido embora com sarna se ela dormia no mesmo quarto com os meus dois filhos. Meus filhos ficaram bem.

(...)

Juiz: A senhora foi buscar essa menina onde é que ela estava? Interroganda: Ela estava em Canoas, a gente pegava ela, ela vinha passar os finais de semana com nós, depois a gente levava ela de volta.

Juiz: ela era órfã de mãe? Interroganda: Sim. Daí no final do ano foi quando a gente pegou ela foi quando ela ficou um tempo maior, quinze dias, passou o natal e final de ano conosco.

(...)

Juiz: Vocês tinham a intenção de adotar a criança? Interroganda: A gente estava naquela idéia de conhecer primeiro. Aí a gente teve lá, ela disse que tinha iniciado com os papeis da adoção. A gente matriculou na escola, ela estava na primeira série. Com 10 anos ela fez a primeira série. Ela passou.

Juiz: Morando com vocês normalmente? Interroganda: Morando com nós. (...) ela ia para a escola, não passava fome, não passava frio, estava sempre bem vestida. Bem calçada. Na época eu não trabalhava, ela ficava em casa comigo. Durante a manhã, na parte da tarde ela ia para a escola. Ela me ajudava a cuidar do meu menino mais novo.

(...)

Juiz: Por que vocês iam adotar, vocês não tinham filhos? Interroganda: Nós tínhamos dois filhos, mas assim por que ela estava distante dos irmãos. Era a única que tinha ficado no abrigo, a gente pensou que seria uma forma dela ficar próximo dos irmãos. Tinha um irmão da minha tia, e o outro com uma família lá em Canoas.

Juiz: Qual era a situação econômica e social de vocês?

Interroganda: Era boa.

Juiz: O seu companheiro trabalhava com o que? Interroganda: Ele trabalha na Dell. Até hoje ele trabalha, ganhava bem.

Juiz: Então a menina nunca foi maltratada? Interroganda: Nunca, de passar fome, de ser maltratada, de ser mantida junto com cachorro, ser presa.

Juiz: Nesse galpão ela nunca foi trancada. Interroganda: O problema dela é que ela era muito mentirosa. Ela roubava, tinha um mercadinho perto de casa, o dono do bar era conhecido, Ele dizia a Aninha teve aqui hoje, ela pegou tal coisa. Mas ele não trancava ela. Ele sabia que tinha eu e o meu ex-marido. Ele falava para nos.

Juiz: A senhora disse que houve castigos. Que tipo de castigos. Interroganda: Olha dr, castigos assim, uma chinelada. Uma puxada de cabelos. Um puxão de orelha, deixar sentado de castigo. Mas deixar trancafiada isso eu nunca fiz.

(...)

Interroganda: Ela ficou na casa de vocês por quanto tempo? Juiz: Ela ficou na casa da gente um ano e dois meses.

Interroganda: Por que daí ela foi para a casa da minha falecida sogra. Eu fui para casa da minha mãe, Anoiteceu e a minha sogra levou ela para casa e eu não estava em casa. Daí a minha sogra ligou dizendo que tinha deixado a Aninha em casa. Meu irmão me levou de carro. O tempo em que ela ficou sozinha, quinze ou vinte minutos. Ela disse para a vizinha do lado de que estava com fome, era de praxe ela fazer isso, ela sempre fazia. A vizinha chamou o Conselho tutelar, quando eu cheguei o Conselho Tutelar estava na frente da minha casa. Perguntei o que acontecido, eles disseram que a menina esta abandonada e que desde de manhã não come nada. Que passou o dia sozinha. Daí a gente vai recolher ela. Eu disse, ela não passou o dia sozinha se ficou foi meia hora e eu não vou deixar vocês levar ela. Até por que eu já estou em casa. A senhora não é obrigada a deixar a gente levar só que amanhã a senhora vai ter que ir no Conselho tutelar para prestar depoimento. A gente juntou tudo o que a menina tinha feito junto com nós, fomos no Conselho Tutelar e conseguimos entregar ela para o Conselheiro Abel.

Juiz: Ela posou com vocês naquela noite? Interroganda: Naquela noite ela posou com a gente.

Juiz: O que é tudo que vocês conseguiram juntar? Interroganda: Ela se masturbava no banheiro com uma escova de dente. Uma vez ela machucou a vagina de uma criança com seis anos dizendo que ia ensinar a menina a fazer sexo. Pegava o meu filho de três anos e meio para beijar na boca. Ela roubava, ela mentia.

Juiz: Assim, ela obedecia os castigos? Interroganda: Não.

Juiz: Então vocês agrediam ela. E ela obedecia. Interroganda: Daí a gente dava um puxão de cabelo e botava ela de castigo de novo. Daí ela ficava. Agora agredir ai como está escrito isso não.

Juiz: E questão de marcas no corpo? Interroganda: Que eu saiba nenhuma. Até o dia em que ela foi embora eu dei banho nela. Piolho ela realmente estava com muito piolho, era verão, até os meus guris estavam com piolho. A gente tinha conseguido limpar a cabeça dela no inverno.

Juiz: Essa vizinha que tava falando, a senhora se dava com ela, a senhora sabe o nome dela? Interroganda: Não, não me dava.

Juiz: Mas tinha problema de relacionamento? Interroganda: Não. também não. Era bom dia, boa tarde.

Juiz: A casa de vocês como era, era uma casa boa? Interroganda: Era uma casa com dois quartos, sala, cozinha e banheiro.

Juiz: E atrás tinha um galpão? Interroganda: Tinha uma peça onde a gente colocava a maquina de lavar roupa e um tanque.

Juiz: E a vítima nunca ficou trancada lá'? Interroganda: Nunca ficou trancada.

Juiz: Cachorro vocês tinham? Interroganda: Sim. Dois Pudol. Depois a gente deu eles.

Juiz: E esses cachorros ficavam aonde? Interroganda: Eles ficavam soltos no pátio, eles tinham a casinha deles.

(...)

Juiz: Tudo que eu li aqui para a senhora é grave, é bem diferente do que a senhora esta falando, então a senhora não admite nada desses fatos?

Interroganda: Não.

Juiz: Salvo alguns corretivos que a senhora aplicava. A senhora aplicava para os seus filhos? Interroganda: Sim, por meus filhos também. Agora como esta aí manter amarrada. Deixar com fome, isso nunca. Nunca teve fartura, mas nunca faltou, ela sempre levou merenda para o colégio. Ela sempre foi para o colégio alimentada de banho tomado.

Juiz: Nesse período todo que ela teve com vocês ela freqüentou colégio? Interroganda: Sim. Ela freqüentou escola.

Juiz: Quando o Conselho Tutelar esteve lá ela tinha ido na escola? Interroganda: Já tinha terminado o ano letivo. Ela tinha passado, estava em período de férias, ela tinha passado de ano. Ela tava na primeira série. Não tinha conseguido passar da primeira serie.

Juiz: Quando ela foi morara com vocês ela estava na primeira serie? Interroganda: Sim.

Juiz: Quantos anos ela tinha? Interroganda: Uns dez anos. Já tinha rodado umas três vezes na primeira serie. Eu ajudava ela estudar." (fls. 65/70)

No mesmo sentido foi o depoimento do corréu PAULO ROBERTO DE SOUZA LOPES:

"Juiz: Sobre esses fatos, é verdade tudo isso que eu ti? Interrogando: Não.

Juiz: Essa menina morou com o senhor? Interrogando: Morou.

Juiz: Por que e em quê situação? Interrogando: Foi assim, pelo o que eu sei, quem tinha mais informações a respeito de ser a parente ou vizinha de alguém, é a minha ex-esposa ali, então o quê que acontece, ela tava num orfanato lá no Matias Velho, em Canoas, daí ela conversou comigo e tal, disse que tinha uma menina lá que tinha dois irmãos que já foram adotados, uma coisa assim, daí nós fomos lá ver essa menina no orfanato.

Juiz: Vocês tinham intenção de adotar alguém, alguma coisa assim ou não? Interrogando: Não. A causa veio mais porque o seguinte, como ela tinha esses dois irmãos que foram adotados e era conhecido de não sei quem lá, então pra não deixar a menina sozinha lá, a gente resolveu ir lá olhar pra ver como é que ela era, como é que ela se relacionava com as outras crianças e com outras pessoas, a gente fez essa visita lá nesse orfanato, foi daí que a gente 'Não, vamos pegar então e vamos levar ela pra nós lá. Vamos adotar ela' e daí então começou tudo isso daí.

Juiz: E vocês já tinham esses dois filhos? Interrogando: Já tinha os dois filhos.

Juiz: E como é que foi o relacionamento dela com vocês e com os dois filhos? Interrogando: Da minha parte, da parte dela, foi tranqüilo, mas o que a gente recebia dela em troca, era mentira, desobedecia, a maioria das vezes mentia, mas a gente sempre tentava voltar ao assunto que foi, que ela mentiu, dizer pra ela "Não faz. Faz de tal forma" e tal. De vez em quando não adianta, ela desobedecia mesmo, a gente fazia, eu admito, a gente dava chinelada nela, mas não assim de agressão como tá escrito aí.

Juiz: De deixar marcas essas chineladas? Interrogando: Não.

(...)

Juiz: Nunca deixaram ela trancada, junto com os cachorros? Interrogando: Não. Isso daí jamais. Jamais.

Juiz: Questão de deixar passar fome? Interrogando: Não. Eu gastava R$ 500,00 de rancho, pro Senhor ter uma idéia, R$ 500,00 de rancho.

Juiz: Ela estudou durante todo esse período que teve com vocês? Interrogando: Não, de todo o período assim, eu não me lembro, eu sei que a gente teve uma luta pra colocar ela na escola, porque não tinha documentação dela, foi uma luta, mas a gente conseguiu colocar. (...).

Juiz: Mas ela chegou a estudar e passar no colégio? Interrogando: Chegou a estudar. Não, ela chegou a estudar alguns meses, até porque eu tive que retirar ela do colégio por causa dessa situação que ficou, ficou ruim pra mim lá, Essa situação que tava aí da, que teve Conselho Tutelar lá em casa, ela disse coisas que não eram verdades.

(...)

Juiz: Até então ela estava estudando? Interrogando: Sim, tava estudando.

Juiz: E ela era uma pessoa desnutrida? Interrogando: Olha, ela comia bem. Ela comia bem. Repetia às vezes as refeições.

Juiz: E porquê que estão lhe acusando disso? Interrogando: Não sei. Não sei.

Juiz: Como é que é o senhor no comportamento com seus outros filhos, também baita nos outros filhos? Interrogando: Só dava umas chineladas de vez em quando também.

Juiz: Mas que tipo de chinelada é essa? Interrogando: Ah! O Senhor já tomou uma chinelada, da sua mãe?! É normal assim. Eu não dava com força. Eu dava só pra eles entenderem que tavam fazendo errado alguma coisa.

Juiz: Sei, mas é chinelada de quê, de "Havaiana", de que tipo de chinelo, é tapa? O quê que é chinelada? Interrogando: Chinelada é, tinha um chinelo lá, eu não me lembro se era Havaiana ou outra marca, mas era um chinelo normal, de borracha.

Juiz: E batia aonde? Interrogando: Nas coxas, na parte de coxa ali, canela.

Juiz: Cabeça nunca bateu? Interrogando: Não. Não.

(...)

Juiz: Ela dormia aonde? Interrogando: Dormia no quarto com o, tinha um quarto junto com os meus filhos lá.

Juiz: Dormia no mesmo quarto que os seus filhos, é isso? Interrogando: Isso.

Juiz: Vocês tinham um galpão também, uma peça separada? Interrogando: É, tinha uma casa nos fundos que a gente não, a gente botava tipo ferramentas, alguma coisa assim,

Juiz: E alguma vez ela ficou de castigo lá, dentro dessa casa? Interrogando: Não. Até porque essa casa era aberta, ela tinha porta, janelas, mas era aberta, não tinha porquê deixar a criança lá.

Juiz: E ela era dada a gritos e confusão, a menina assim berrava dentro de casa, como é que era o comportamento dela, afora mentir e desobedecer? Interrogando: Não, só a única coisa que pode ter acontecido foi de a gente dar uns gritos pra ela, "Não faz isso! Por que tu tá mentindo?! Olha só que situação que ficou agora pra mim?!", só tipo assim que eu gritava.

Juiz: Ela mentia o quê? Interrogando: Olha, ela se masturbava no banheiro, com uma escova de dentes e a gente perguntava pra ela, né, se ela fazia isso daí mesmo, ela disse que não e daí uma vez eu peguei ela fazendo isso aí, daí eu falei: "Por que tu tá fazendo isso daí?!" e ela mentia assim. Eu dava merenda pra ela levar pro colégio, ela comia a merenda antes de chegar no colégio, na escola e mentia pras professoras lá, pras merendeiras que tava sem merenda e tinha um bar até que eu pegava, fiado que se diz, na esquina desse bar, daí eu tinha uma conta nesse bar aí, onde ela às vezes saía do recreio pra pegar coisa lá, nesse bar. E tinha situações assim e, mentia, como agora, falava pras vizinhas que passava fome, na realidade não passava nada. Tinha tudo. O que eu dava pros meus filhos, eu dava pra ela também.

Juiz: Ela era uma criança rebelde, nervosa, coisa assim, não? Interrogando: Ela era rebelde. Ela era rebelde sim." (fls. 71/75)

Não há elementos concretos nos autos que contrariem a palavra dos acusados nesse sentido a ponto de ensejar a condenação.

Entendo que a situação da menina, no presente caso, deve ser analisada de uma forma global, para que se compreenda que as precárias condições físicas e psíquicas podem ter sido ocasionadas por toda sua vida pregressa, que, infelizmente, foi pautada pela dor e pelo abandono.

As assistentes sociais frisaram as dificuldades de relacionamento da menina - o que também certamente deve ter sido um problema em sua família adotiva - e também sua negativa em ingerir alimentos diversos.

A vizinha que acionou o Conselho Tutelar, o fez certamente com boas intenções, preocupada por ter visto a suposta vítima sozinha no pátio da residência, junto com os cachorros da família. A própria menina teria lhe dito que estava o dia inteiro sem comer. No entanto, considerando a vulnerabilidade social da menina e os relatos das especialistas no sentido de que a mesma aprontava muitas intrigas e confusões e de acordo com os relatos dos réus no sentido de que contava muitas mentiras, entendo que não se pode excluir a hipótese de que a menina faltasse com a verdade quando se comunicava com a vizinha, pedindo-lhe comida, afirmando que não era alimentada. Segundo o acusado PAULO ROBERTO era comum que a menina fosse enviada à escola com a merenda e comesse o lanche no caminho, e, após, relatasse as professoras que não tinha sido enviada a merenda. Os réus também afirmaram que a menina praticava pequenos furtos e que tinha atitudes inadequadas com seu filho menor de 03 anos. Entendo que os depoimentos dos acusados não podem ser desconsiderados, porque encontram amparo nos relatos das assistentes sociais, que tiveram contato próximo com a menor.

A Assistente Social IVI OLIVIERI SANTOS DE CARVALHO apenas conheceu a menina após essa ter saído da casa dos réus, com a denúncia de maus tratos. Apesar de ter informado que a menina apresentava sintomas de maus tratos "através da linguagem corporal, da linguagem verbal", "ela revelou que era submetida a maus tratos", "ela ficava detida dentro de um galpão na casa dos guardiões, durante o dia e a noite, ela mencionou que chorava muito", a testemunha não tinha quaisquer informações sobre a vida pregressa da menor. Todas as informações que forneceu em juízo foram dadas a partir do que a menina lhe informou e diante do que teria sido relatado por uma vizinha dos réus, que teria dito que jogava comida para a menina, "jogava os pães para disputar entre a Ana e os cachorros". Questionada em relação aos supostos maus tratos disse que a menina "mencionava puxões, ela tinha algumas cicatrizes eu lembro nas pernas e a alimentação". A assistente ainda informou que em um primeiro momento Ana Maria "não conseguiu ficar no andar destinado as pré-adolescentes, devido aos tumultos que ela fazia". Com isso, foi conduzida ao setor do berçário e lá, "por ventura, beijava as crianças pequenas na boca", apresentava também comportamento agressivo com as outras crianças (fls. 89/85).

A testemunha DERLINA GONÇALVES DA FONTOURA, vizinha dos réus, e quem fez a denúncia de maus tratos ao Conselho Tutelar, e prestou informações à Assistente Social, declarou, em juízo, que:

"Juiz: Sobre esses maus tratos, o quê que a senhora sabe?

Testemunha: O que eu sei é que a menina me cha..., eu ouvia a menina apanhar, eu via a guria chorar, chorava, chorava, chorava, sabe, mas eu não, como eu não tinha, eu achava que ela era a mãe, eu nunca me meti, mas daí um dia a criança tava sozinha e me chamou e aí eu alcancei comida pra criança através do muro, a criança assustada, assustada, tinha um medo doentio da Maria, ela falava muito na Maria, que era a pessoa que tava ali, que morava com ela, ela estava sozinha, ela passou um, eu fui perceber de tarde, a tarde toda ela ficou sozinha.

Juiz: Ela se referia a Maria como o quê? Como mãe, tia, vó, o quê que ela falava? Testemunha: Não, ela só dizia a Maria, "Ai, não me dava...", me pedia comida pra comer e eu alcançava pra ela e ela comia gananciosamente a criança.

Juiz: Isso daí foi uma ou várias vezes? Testemunha: Eu dei três vezes comida pra ela.

Juiz: E ela estava sozinha em casa esses dias? Testemunha: Tava trancada na rua, no pátio, no pátio.

Juiz: Se ela quisesse ir pra rua, ela tinha como ir pra rua? Testemunha: Eu não sei lhe dizer se o portão tava fechado ou não, eu sei dizer que o pátio era fechado.

Juiz: Ela ficava, alguma vez a senhora viu ela trancada dentro do galpão? Testemunha: Ela ficava mais num galpão assim, que tinha nos fundos?

Juiz: Mas ela ficava por querer ou porquê ficava trancada? Testemunha: Não, ela ficava com uma cachorrinha, né, que tinha. Ela ficava junto com uma cachorrinha, porque eu chegava no muro...

Juiz: Mas ela ficava no galpão porquê ela queria ou era forçada a ficar? Testemunha: Não, eu via ela porque ela tinha, ela saía a hora que queria de dentro do galpão.

Juiz: Ela não ficava presa, amarrada? Testemunha: Não, amarrada eu nunca vi ela amarrada.

Juiz: Nunca viu ela amarrada em galpão nenhum? Testemunha: Não, Eu via ela ali dentro do galpão, ela ia mais pra li.

Juiz: E quando a senhora deu a comida pra ela, a senhora alcançou na mão dela a comida ou a senhora jogou? Testemunha: Ah! Eu alcançava na mão dela, uma vez eu não alcancei, eu atirei um pão porque ela disse assim "Vem a Maria! Vem a Maria!".

Juiz: E aí a senhora jogou um pão pra ela comer? Testemunha: Aí eu joguei um pão pra ela, infelizmente tive que fazer isso, né.

(...)

Juiz: A senhora chegou a chamar o Conselho Tutelar? Testemunha: Não. Foi assim á, eu não sabia o número de Conselho, não sabia número de nada, daí eu peguei e liguei pro 102, o 102 não tinha o número de Conselho, daí eu liguei pra Canoas, pro meu filho, porque eu fiquei abalada, abalada de ver aquela criança assim, daí o meu filho mandou eu ligar pra Brigada, a Brigada que me deu o número do Conselho.

Juiz: Essa situação de ela ficar sozinha foi uma vez ou foram várias?

Testemunha: Ah! Eu, ela sa... Quando eu via, quando eu via foi umas, como é que eu vou lhe dizer, porque eu pouco cuido do pátio dos outros, dos vizinhos, então o que me chamava a atenção era quando a criança chorava bastante e quando a criança me chamava ali no muro.

(...)

Juiz: Amarrada, a senhora viu alguma vez a criança? Testemunha: Não, eu não vi ela amarrada. Amarrada não.

(...)

Ministério Público: A senhora ouvia choro dessa menina. Testemunha: Ouvia.

Ministério Público: Como era esse choro. Testemunha: Gritava, gritava, "Ai! Para! Ai, para!", chorando.

Ministério Público: E isso acontecia em que período do dia. Testemunha: Ah! Seguido.

(...)

Juiz: E a senhora viu em casa, se ela dormia dentro da casa, onde é que ela dormia? Testemunha: Eu não sei onde é que ela dormia. Depois que ela foi embora de lá, assim, sempre tinha uma luz acessa no galpão lá e depois que tiraram a menina de lá, eu nunca mais vi a luz acessa. Não sei se a criança dormia, onde a criança dormia, eu não sei.

Juiz: Mas de noite a senhora nunca ouviu choro no galpão? Testemunha: Não. Não porque eu não saio pra rua muito de noite e a minha casa é bem fechada. Eu cansei de às vezes, de eu chegar até o muro, sabe, querer tomar atitude e tinha medo, né, de tá me envolvendo, até que foi um dia que eu não agüentei mais de ver aquilo.

Ministério Público: Nas conversas com a menina, o quê que ela lhe contava, o que acontecia. Testemunha: Ah! Que ela apanhava muito. Que a Maria dava muito nela.

Juiz: E ela dizia porquê que a Maria batia nela? Testemunha: Não.

(...)

Ministério Público: Consta aqui no processo, um estudo social feito por uma Assistente Social, que a pouco prestou depoimento aqui, estava no saguão, ela relatou o seguinte, que ela conversou com a, foi pela casa, ver o quê que estava acontecendo, depois do Conselho ir lá e retirar a Ana Maria, a menina e que uma vizinha, que teria um filho que tem síndrome de Down. Testemunha: Sou eu.

Ministério Público: Teria falado pra essa Assistente Social, essa senhora que ouvia choros compulsivo e que inclusive já viu a menina amarrada numa cadeira. Testemunha: Não. Eu não falei isso que eu vi a guria amarrada numa cadeira. Eu nunca vi ela amarrada. Se eu disser que eu vi ela amarrada, eu vou mentir. Que ela apanhava, apanhava.

Juiz: Desde o primeiro dia que a senhora viu a criança, até o ultimo dia que a senhora viu a criança, fisicamente ela tinha o mesmo corpo ou ela estava mais magra ou mais gorda? Testemunha: Ah! Essa criança é muito raquítica. Muito, muito magrinha. Sabe que quando eu enxerguei ela assim, que ela chegou no muro, a primeira vez que ela falou comigo, eu pensei que ela tinha quebrado isso aqui, porque isso daqui era muito saltado.

Juiz: Isso aqui o quê? Testemunha: O ossinho dela aqui.

Juiz: O osso perto do pescoço? Testemunha: Sim, porque era muito magrinho e ela disse "Não, é porque eu sou magra mesmo assim".

(...)

Ministério Público: Ãnn, essa senhora teria dito pra ela o seguinte, que viu que a menina passava toda a noite no galpão. Testemunha: Eu disse pra ela que a guria ficava no galpão, mas eu não sei se a guria ficava à noite, de dia eu via.

Ministério Público: E disse que sentia muita fome e que pedia muito por comida. Testemunha: Pedia, comida é verdade. Pedia, E eu alcançava a comida pra ela, até um dia eu fui e disse pra ela "Deixa que eu falo...", o dia que eu chamei o Conselho, eu disse pra ela "Eu vou fazer a comida bem cedo", porque ela, eu dei uma massinha, daí ela pediu outra, eu dei outra massinha e ela pediu outra, daí eu disse pra ela que não tinha nem um copo de refri e aí depois ela queria mais e eu disse pra ela que eu não tinha mais pra dar, que tinha acabado, mas daí eu disse pra ela "Deixa que eu vou fazer a janta bem cedo!" e fiz a janta bem cedo aquele dia e alcancei, alcancei num coisa de plástico porque ela disse pra mim "Ai, mas a Maria chega e vai ver!" e eu disse "Se ela chegar e ver, tu joga pra baixo do porão!", eu disse pra ela assim .Quem sabe ela entendeu errado, foi assim que eu falei.

Ministério Público: Chegou a ver mais cachorros, mais cães no local, do que um. Testemunha: Não, eu vi um.

Juiz: E esse cachorro era bem cuidado, limpo? Testemunha: É, um cachorro de pêlo, peludinho.

(...)

Ministério Público: Alguma vez a senhora viu ela ser espancada. Testemunha: (...) Não, eu ouvia ela gritando lá dentro.

Juiz: Mas a forma que ela batia a senhora nunca viu? Testemunha: Não, a forma não, porque era lá dentro da casa dela.

Juiz: E os motivos de o porquê que ela batia? Testemunha: Também não sei." (fls. 108/112)

Do relato da vizinha que fez a denúncia, percebe-se que a mesma apenas ouvia, eventualmente, gritos da menina, entendendo, diante disso, que possivelmente a ré lhe agredia. Negou a tese acusatória de que a menina era trancada no galpão, ou de que disputava a comida com cachorros. Apenas afirmou que a menina afirmava estar fome, diante do que lhe deu comida, aproximadamente em três ocasiões. Disse também que a menina não ficava trancada no galpão, aduzindo que "ela saía a hora que queria de dentro do galpão", tendo relatado que a menor ficava no local com um cachorro da família.

A testemunha VERA REGINA MADRUGA ALVES foi quem atendeu o chamado no plantão do Conselho Tutelar para resgatar a menina. Afirmou, em síntese, que a menina estava dentro do pátio da casa quando chegaram ao local. Todas as informações que tinham eram as repassadas pela vizinha DERLINA, no sentido de que a menor estava sozinha e sem comer o dia todo. Confirmou que a menina não estava presa no galpão, tanto é que se deslocou sozinha até a cerca. Disse que Ana Maria aparentava ser 'fraquinha' e estava desarrumada. Que a menina teve medo de se aproximar (fls. 108/112).

ABEL LUIS POKORSKI, que era o Conselheiro Tutelar de plantão na época, afirmou que após a denúncia, a menina foi devolvida ao abrigo pelos acusados. Foi ele quem foi buscar a menina na residência. Que os acusados teriam relatado que a menina "não obedecia, que a, como eu vou dizer assim, que se masturbava com escova de dente, que ela dizia que tentava, que ela espiava o Paulo em casa, enfim". Disse que antes dessa data não havia qualquer registro de maus tratos e não recorda de que a menina apresentasse sintomas de agressão, lesões ou machucados (fls. 112/115).

Ressalto que o Relatório de fl. 46, supra referido, datado do ano de 2003, ou seja, mais de dois anos antes do fato, já descrevia que a menina apresentava sintomas de intenso sofrimento emocional, o que certamente guarda relação com sua vida pregressa, que lhe deixou marcas profundas.

Dessa forma, no presente caso, entendo que não há elementos suficientes para condenar a acusada MARIA CRISTINA, sequer pelo crime de maus tratos, diante da ausência de provas a embasar um juízo condenatório.

A situação descrita na denúncia de "violentas surras", "condições desumanas de abandono e sujeira", "encarceramento em um galpão", e comida disputada com cachorros não foram comprovadas nos autos, razão pela qual impossível deferir o pleito ministerial de condenação pelo delito de tortura.

Acrescento que não foi juntado qualquer exame médico aos autos que atestasse as supostas condições de saúde precárias da menina. O baixo peso, por si só, não denota os maus tratos, até porque a própria menor teria afirmando à vizinha que era "magra assim mesmo". As assistentes sociais também declararam a dificuldade de Ana Maria em ingerir alimentos diferentes e de sua alimentação restrita no abrigo. A ré confirmou que a menina, à época, estava com piolhos, assim como seus outros dois filhos, o que também não é sinal de descaso, já que trata-se de parasita muito comum em crianças em idade escolar. Quanto à sarna que supostamente a menina teria, não há qualquer comprovação da doença. Necessário ressaltar que as funcionárias do abrigo informaram que a menina tinha dificuldades em fazer sua higiene pessoal sozinha se não fosse com acompanhamento.

Por fim, necessário afirmar que durante o período em que viveu na casa dos réus, Ana Maria inclusive frequentou a escola, razão pela qual a denúncia de que a menina vivia um completo abandono, sendo maltratada e negligenciada ao extremo, não se confirmou a ponto de ensejar uma condenação.

Diante do exposto, dou provimento ao apelo da defesa para absolver a ré MARIA CRISTINA DIAS LOPES, com fulcro no art. 386, inciso VII, do CPP, e nego provimento ao apelo do Ministério Público.

Des. José Antônio Hirt Preiss (PRESIDENTE E REVISOR) - De acordo com o(a) Relator(a).

Des. Manuel José Martinez Lucas - De acordo com o(a) Relator(a).

DES. JOSÉ ANTÔNIO HIRT PREISS - Presidente - Apelação Crime nº 70032632515, Comarca de Guaíba: "DERAM PROVIMENTO AO APELO DA DEFESA PARA ABSOLVER A RÉ MARIA CRISTINA DIAS LOPES, COM FULCRO NO ART. 386, INCISO VII, DO CPP E NEGARAM PROVIMENTO AO APELO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. UNÂNIME."

Julgador(a) de 1º Grau: RICARDO ZEM

PUBLICAÇÃO: Diário de Justiça do dia 15/01/2010




JURID - Apelação crime. Maus tratos. Art. 136, § 3º, do CP. [25/01/10] - Jurisprudência

 



 

 

 

 

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