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terça-feira, 17 de novembro de 2009

JURID - Vale será indenizada. [17/11/09] - Jurisprudência


Estado e União são condenados a indenizar a Vale por danos materiais.
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PODER JUDICIÁRIO

JUSTIÇA FEDERAL DE 1ª INSTÂNCIA

SEÇÃO JUDICIÁRIA PARÁ - SUBSEÇÃO MARABÁ

SENTENÇA N: 599/2009 TIPO: A

AUTOS N.: 2008.523-7

NATUREZA: AÇÃO ORDINÁRIA

AUTOR: COMPANHIA VALE DO RIO DOCE-CVRD

RÉU: UNIÃO e ESTADO DO PARÁ

S E N T E N Ç A

Trata-se de ação ordinária, com pedido de tutela antecipada, proposta pela Companhia Vale do Rio Doce - CVRD contra a União e o Estado do Pará, através da qual pretende seja determinado aos réus que adotem medidas necessárias à repressão e prevenção de crimes praticados pelos "movimentos sociais" intitulados MST e MTM. Pede-se seja estabelecido aos réus que planejem, dimensionem e estruturem a segurança pública contra as investidas desses movimentos, especificamente para proteção das instalações e atividades da autora nos municípios de Parauapebas e Marabá. Propõe-se, a título de medidas repressivas e preventivas, a existência de efetivo policiamento, a realização de prisões em flagrante, instauração de inquéritos policiais, processamento dos criminosos, fornecimento de contingente policial adequado, atendimento imediato das requisições judiciais de reforço policial e, principalmente, formulação de política de segurança pública que enfrente esses conflitos coletivos. O estabelecimento das medidas deve ter caráter de obrigação de fazer, a fim de preservar a ordem pública, a incolumidade das pessoas e o patrimônio da autora contra todo e qualquer ato ilícito de terceiros que possa dificultar, impedir, obstaculizar, turbar, esbulhar ou molestar, de alguma forma, a posse e as atividades da empresa, inclusive sobre a Estrada de Ferro Carajás. Ao descumprimento da obrigação, pediu fosse fixada multa diária de R$200.000,00, bem como indenização pelas perdas e danos.

Alegou a autora que o Movimento dos Sem Terra - MST - e Movimento dos Trabalhadores da Mineração - MTM -, ao argumento de insurgir-se contra o processo de privatização da VALE, atualmente finalizado, promovem, organizam e praticam atos criminosos contra pessoas e atividades da empresa.

Tais atos causam a interrupção das atividades, atentam contra a ordem jurídica, tipificam crime de dano e provocam prejuízos. Afirmou que as ações criminosas não afetam apenas a VALE, pois acabam por atingir o transporte público ferroviário e o trânsito de pessoas em rodovias, além de já ter resultado em cárcere privado e agressões físicas a cidadãos. Trata-se de operações premeditas e planejadas, que se renovam todos os anos em períodos quase definidos, a título de rememoração do episódio de Eldorado dos Carajás, ocorrido em abril de 1996, em que houve a morte de vários trabalhadores sem-terra. As investidas dos movimentos ditos "sociais" são pública e notoriamente conhecidas e, pelo desrespeito com que tratam a ordem pública, devem ser enfrentadas pelos réus de modo a preservar a paz e a segurança, bem como o patrimônio pessoal e material da CVRD.

Conforme determinado à f. 120, a União (f. 146/155) e o Estado do Pará (f. 156/183) apresentaram manifestações sobre o pedido preambular.

Indeferimento da tutela antecipada (f. 238).

Regularização da representação processual da Vale (f. 260).

O Estado do Pará apresentou contestação às f. 319/352, em que arguiu, preliminarmente, a ausência de interesse processual, visto que todas as medidas executivas para enfrentar o problema foram tomadas. O Estado propiciou efetivo policial e montou "Gabinete de Crise" na cidade de Parauapebas, nas proximidades da Estrada de Ferro Carajás, a fim de garantir a ordem. Como a segurança pública é mantida pelo Estado, não há necessidade de se movimentar o Judiciário para conceder aquilo que já foi suprido. Em preliminar, ainda, suscitou a ilegitimidade ativa e passiva das partes. A primeira, porque a Vale, autora da ação, não ostenta titularidade dos direitos difusos e coletivos expendidos na exordial. A segunda, porque o Estado não foi omisso no seu mister de proporcionar a segurança pública. No mérito, apelou para a inexistência de responsabilidade civil, porque a pretensão exige proteção especial e particular à empresa, o que destoa da função pública. Aquilo que poderia ser feito para neutralizar as invasões e prevenir novas investidas, o Estado realizou. Mais de 600 servidores, entre policiais, bombeiros e peritos, foram disponibilizados para coibir as práticas criminosas resultantes dos "movimentos sociais". Mais do que isso significa tratar a empresa com prioridade que extravasa os limites do interesse público. Aduziu que a ação danosa provocada pelo MST e MTM não estabelece nexo de causalidade que vincule o Estado à reparação dos prejuízos, motivo pelo qual não há que se falar em responsabilidade estatal por supostos danos. Os responsáveis são única e exclusivamente os integrantes dos movimentos coletivos. Outrossim, disse que aquilo que está ao alcance do Estado para preservar a segurança e a ordem foi realizado. Entretanto, exigir-se que se impeça a realização de movimentos sociais foge à esfera de atuação do ente público. Os conflitos coletivos emergem da sociedade e não podem ser evitados. A ação criminosa resultante deles pode e deve ser repelida, o que é feito. Porém, reclamar por mais operações e aparelhamento policial viola a reserva do possível, diante do contingente já disponibilizado. Asseverou não haver comprovação dos danos alegados e requereu aplicação da litigância de má-fé, em face da temeridade da lide.

Reiteração do pleito de antecipação dos efeitos da tutela (f. 403/405).

Foi oferecida contestação pela União às f. 414/439. Em preliminar, alegou inépcia da inicial, porque não há parâmetro para estabelecer o número de policiais necessários a evitar os danos alegados, o que caracteriza pedido incerto e indeterminado. Aduziu ilegitimidade ativa e passiva. Ativa, porque a autora não é titular dos direitos coletivos invocados. Passiva, porque o policiamento ostensivo ou preventivo é de responsabilidade do ente estadual, razão da ilegitimidade da União para figurar no pleito. Outrossim, a requisição de força policial por meio desta ação comum ordinária é indevida. Tal requisição deve ocorrer em processo relativo à obrigação de fazer ou não fazer. O procedimento, portanto, é impróprio. No mérito, afirmou que a pretensão da Vale não reflete responsabilidade pública, pois se trata de segurança que se restringe à esfera privada, a ser patrocinada pela própria empresa. Asseverou que a intervenção jurisdicional na formulação de política de segurança pública implica violação da separação dos poderes. Por fim, assegurou que não foram demonstrados os pressupostos necessários para responsabilização da União. A omissão aventada, além de não existir no presente caso, deveria estar fundada na culpa ou dolo. A responsabilidade no caso, em tese, é subjetiva. A ausência de nexo causal entre a ação dos manifestantes e os danos alegados afasta referida responsabilidade. Além disso, os danos não foram comprovados, pelo que a pretensão da autora não passa de meras alegações.

Indeferida a reiteração da tutela antecipada, bem como a exibição de documentos e a realização de prova pericial (f. 440), contra o que foi interposto agravo retido (f. 451/458).

Informações da Secretaria Especial de Defesa Social dando conta do número de policiais lotados na 20ª Seccional Urbana da Polícia Civil de Parauapebas (f. 445/446). Informações da Secretaria do Estado de Segurança Pública a respeito do contingente de policiais militares disponibilizados para Marabá e Parauapebas (f. 448).

Especificação de provas pelo Estado do Pará, em que requereu oitiva de testemunhas (f. 449/450).

Dispensa de testemunhas em razão de o arrolamento ter ultrapassado o mínimo legal (f. 494).

Contra-razões do Estado do Pará ao agravo retido (f. 499/509).

A Vale interpôs novo agravo retido (f. 537/547) contra a dispensa de testemunhas, determinada à f. 494.

Realizou-se audiência no dia 2/9/08, em que foram inquiridas três testemunhas arroladas pelo Estado do Pará e três testemunhas da autora (f. 523/534).

Documentos juntados pela autora a título de indicação dos contornos da atividade policial quanto às manifestações contra a empresa (f. 557/972).

Oitiva da testemunha Manoel Fernando Abadi (f. 1.082/1.083).

Memoriais da Vale, em que ratificou as teses levantadas na inicial (f. 979/989).

Memoriais do Estado do Pará (1015/1033) e da União (f. 1.063/1.068).

Foi apresentado pela autora pedido de desistência da ação (f. 1.071), mas o Estado do Pará e a União manifestaram-se contrariamente ao pleito (f. 1091/1092 e 1102/1104).

Reiteração do requerimento de desistência pela autora, aoargumento de que a recusa do ente estatal não foi justificada, pelo que merece deferimento seu pleito (f. 1094/1098).

É o relatório.

Deixo de homologar o pedido de desistência da Vale, em respeito ao direito de exceção por parte dos réus, que não aceitam a extinção do processo, sem resolução do mérito da demanda. O Superior Tribunal de Justiça, em diversos precedentes (REsp 976861/SP, DJ 19/10/2007; REsp 864432, DJ 27/03/2008, REsp 241780/PR, DJ 03/04.2000; REsp 115642/SP, DJ 13/10/1997), decidiu que a recusa do réu ao pedido de desistência deve ser fundamentada e justificada, não bastando apenas a simples alegação de discordância, sem a indicação de qualquer motivo relevante.

Os réus, especialmente a União, justificaram porque não concordavam com a desistência pretendida pela Vale. Esperam uma resposta do Poder Judiciário no julgamento da ação, desejam que as questões suscitadas sejam apreciadas e, caso se defira o pedido, estaria a Vale autorizada a ingressar com nova ação, versando sobre os mesmos fatos. Em face da justificada oposição ao pedido de desistência, o mérito da questão necessitará ser analisado.

A União suscitou preliminar de inépcia da inicial, ao argumento de que a Vale não formulou pedido certo e determinado, haja vista não fazer menção ao número de agentes públicos necessários para solucionar o quadro de insegurança apontada em sua petição. A alusão à deficiência estrutural do sistema de segurança pública no Estado do Pará, revelada, sobretudo, pela falta de contingente suficiente para a prevenção de delitos apontados na petição inicial é um dos fundamentos de que se utiliza a parte autora para justificar a necessidade de provimento de obrigação de fazer, no sentido de que os réus planejem e estruturem a segurança pública, para impedir que membros de movimentos sociais obstruam suas atividades.

Da forma como requerido e em face do conteúdo da prestação pleiteada, a inicial é parcialmente inepta. Como assevera Valter Foleto Santin, ao discorrer sobre o controle judicial da segurança pública, "a fixação do objeto da lide destinada à discussão da eficiência dos serviços de segurança pública não é assunto muito fácil. O pedido deverá ser o mais específico possível. Um pedido muito amplo pode comprometer a instrução do processo, a apreciação judicial e até o próprio comando judicial e sua exequibilidade".(1) O pedido necessita ser específico justamente para que não haja decisão genérica que condene entes públicos, de maneira vaga e de difícil verificação, a prestar serviços de segurança pública de maneira eficiente.

A segurança pública é serviço uti universi, prestado de forma geral, em benefício de toda a coletividade, sem distinção de usuários. Em se revestindo dessa qualidade, o serviço prestado pelo Estado, dotado de aparato policial, presume-se existente. Os serviços de segurança pública expressam o exercício de parcela da soberania estatal, na interferência do exercício da liberdade e da propriedade pelos cidadãos e na manutenção da paz pública.

Em face do caráter de prestação geral indivisível, o serviço de segurança pública é remunerado por impostos. De acordo com o Supremo Tribunal Federal, "sendo a segurança pública dever do Estado e direito de todos, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através, entre outras, da polícia militar, essa atividade do Estado só pode ser sustentada pelos impostos, e não por taxa, se for solicitada por particular para a sua segurança ou para a de terceiros, a título preventivo, ainda quando essa necessidade decorra de evento aberto ao público. Ademais, o fato gerador da taxa em questão não caracteriza sequer taxa em razão do exercício do poder de polícia, mas taxa pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, o que, em exame compatível com pedido de liminar, não é admissível em se tratando de segurança pública".(2)

Para a prova da deficiência dos serviços públicos, basta ao usuário demonstrar a ocorrência do fato danoso, os prejuízos gerados e o dolo ou culpa. Mas para se estruturar a segurança pública, é insuficiente o uso das locuções planejar, dimensionar, prover e estruturar a segurança pública. É preciso que a parte, no caso concreto, discrimine quais são as suas necessidades específicas para que a prestação de serviço seja adequada.

De acordo com a petição inicial, não se sabe se são necessários um, dois, dez, cem ou mil policiais para guarnecer as instalações da empresa e a estrada de ferro quando objeto de ataque pelos movimentos sociais. Não se precisou o número de policiais, a quantidade de recursos financeiros a ser despendidos na proteção da estrada férrea, a necessidade de armas e de quais tipos, isto é, elementos mínimos que tornariam o pedido certo e determinado.

A pretensão genérica por segurança pública ou por planejamento dessa atividade não atende a exigência processual de determinação do pedido, sobretudo quando se apurou que planejamento, pelos entes públicos, houve. A questão será definir se o planejamento e a segurança pública prestada foram eficientes e adequados, o que ensejará ou não indenização por danos materiais causados, objeto de outro pleito.

Por outro lado, afigura-se plenamente apto o pedido de indenização por perdas e danos de forma genérica, justificável pelo contexto e pelas circunstâncias, haja vista tratar-se de demanda preventiva, tendente a evitar a consecução de ilícitos iminentes, cujas conseqüências eram indeterminadas no momento do ajuizamento da ação. Diante da impossibilidade de se formular pedido certo e determinado, no ingresso da ação, autoriza-se a formulação de pedido genérico, com base no art. 286, II do CPC. No curso do processo, conseguiu-se apurar as consequências dos atos, o que é suficiente para reconhecer a validade da inicial.

Portanto, acolho em parte a preliminar, reconhecendo a inépcia apenas em relação aos pedidos para planejar, dimensionar, prover e estruturar a segurança pública, como também para preservar a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio da autora.

O Estado do Pará suscitou a preliminar de ausência de interesse processual, ao fundamento de que tomou todas as providências que estavam a seu alcance para manter a paz social.

A teoria do interesse processual funda-se no binômio utilidade/necessidade. Nesse caso, contesta-se a existência da necessidade da demanda, uma vez que o Estado do Pará teria tomado todas as medidas possíveis para manter a paz social. Em verdade, a adoção de providências para coibir manifestações que atentassem contra a segurança pública consiste em fato impeditivo do direito da autora, haja vista que obstaria o reconhecimento da responsabilidade dos entes públicos. Revestindo-se dessa qualidade, sua análise será feita em sede de mérito e, não, sob as vestes de preliminar. E pelos mesmos fundamentos, também deve ser afastada a preliminar de ilegitimidade passiva do Estado do Pará, porque parte da discussão versa sobre quem deve proporcionar segurança pública, matéria eminentemente de caráter substantivo.

Quanto à ilegitimidade ativa em razão de a autora pretender a tutela de interesses de natureza transindividual e indivisível, de que são titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias fáticas, não é verdade que as conseqüências do ilícito tenham afetado exclusivamente a coletividade. Ao aludir à gravidade dos fatos contra si perpetrados e a sua repercussão social, a autora referiu-se ao imenso contingente de pessoas que utiliza a via férrea. O propósito foi demonstrar a extensão do dano e, por essa razão, afirmou que a paralisação das atividades na linha férrea também prejudicava as pessoas que dela se beneficiavam diariamente. Não é possível concluir, a partir dessa referência, que ela tenha formulado demanda de natureza coletiva. O pedido refere-se à prestação de segurança pública para que as atividades por ela exercidas sejam mantidas, sem risco de turbação iminente, como também para obter indenização pelos danos sofridos. O pedido, ao menos no aspecto indenizatório, é certo, determinado e dirige-se única e exclusivamente ao atendimento de pretensão de natureza individual.

A União invocou, também, a ilegitimidade para figurar no pólo passivo da demanda por ser a segurança pública preventiva dever do Estado, que a exerce de forma ostensiva. Saber se a União detém ou não responsabilidade pela prestação do serviço de segurança pública consiste em matéria de mérito, a ser examinada na sede própria.

Por fim, não é possível conceber a apreciação da causa como intervenção do Judiciário nas funções do Executivo, ao menos em sede preliminar.

O direito de a autora em ver seu pedido apreciado decorre de imposição constitucional (art. 5º, XXXV), nessa medida, caso constatada violação ou ameaça a direito, caberá ao Judiciário prover a medida mais adequada, dentro dos limites do que a própria Constituição estabelece.

Além disso, a Constituição Federal expressamente previu a legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência como princípios da Administração Pública. A separação de poderes ou a discricionariedade dos atos administrativos não funcionam como óbice ao controle da eficiência, especialmente porque a garantia da eficiência da segurança pública é norma constitucional (art. 144, § 7º). É certo que "o controle das políticas públicas e dos serviços públicos essenciais deve ser limitado pela razoabilidade para evitar que o processo judicial e as decisões e comandos respectivos ponham abaixo todo o trabalho e planejamento dos órgãos executivos, encarregados da formulação e execução das políticas públicas".(3) Isso, porém, não impede que a análise vá além da legalidade da atuação da Administração, porque as omissões e imperfeições na formulação e concretização das políticas públicas abrem perspectivas para o controle judicial da eficiência, voltado para buscar caminhos direcionados à melhor prestação dos serviços públicos.

No mérito, tencionava a requerente que os réus estruturassem a segurança pública, com contingente policial que se fizesse necessário e adequado para impedir que integrantes de movimentos sociais, a exemplo do MST, MTM, MAR, Via Campesina, entre outros, perpetrassem contra ela delitos que resultassem em obstrução às atividades nas cidades de Paruapebas e Marabá.

Entretanto, nesse ponto, o pedido não é passível de ser apreciado em face da inépcia reconhecida. Resta aferir a responsabilidade civil da União e do Estado do Pará pelos danos causados à autora pela omissão em conter a ação dos movimentos sociais aludidos na petição inicial.

O primado da segurança pública como dever do Estado e direito e responsabilidade de todos tem dimensão constitucional. Por essa razão, não resta dúvida de que a autora tem direito a requerer atuação estatal no sentido de conferir-lhe eficácia para que assegure o pleno exercício de outros direitos, tais como o direito de propriedade, ao trabalho e à livre iniciativa.

Por força desse conjunto de normas de feição constitucional descabe o argumento da União de que a autora teria assumido a responsabilidade pela segurança da linha férrea. O contrato firmado entre Vale e União não isenta o ente estatal de prestar segurança pública. Negar a obrigação por parte dos réus é afirmar que a empresa pode valer-se da própria força, conduta concebível em nosso Estado republicano apenas em estritas hipóteses. A segurança da malha ferroviária entabulada entre Vale e União refere-se à manutenção da ferrovia e da garantia de que sua utilização não ponha em risco a integridade de particulares.

Desse acordo jamais poderia surgir a obrigação de a autora, na condição de pessoa jurídica de direito privado, prover por si só a própria segurança, para placitar a omissão dos entes públicos de dever que é deles.

Também não faz sentido a afirmação da União de que a Polícia Federal atua apenas na condição de polícia judiciária, sob o fundamento simplista de que a ordem constitucional dispensou à Polícia Militar a preservação da ordem pública, ao destacar o caráter ostensivo de sua atuação. O dever da União emerge do disposto no art. 144 da Constituição, segundo o qual a segurança pública deve ser exercida para a preservação da ordem pública e incolumidade das pessoas e do patrimônio, entre outros órgãos, pela Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícias Civis e Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares.

De qualquer forma, não se deve perder de vista que os argumentos da autora fundam-se principalmente na incapacidade dos órgãos de segurança pública de dar cumprimento às decisões judiciais, o que invariavelmente leva ao estudo da efetividade dos serviços da Polícia Federal no exercício da função de polícia judiciária da União. Nesse aspecto, o assessor especial de gabinete da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Pará afirmou que a Polícia Militar funciona apenas como força de apoio, pois a diretriz principal é definida pela Polícia Federal, com base em todas as informações colhidas e estratégias adotadas. Ressaltou, assim, o efetivo papel que a Polícia Federal deveria desempenhar na situação retratada nos autos.

No caso específico, havia decisão prolatada na Justiça Federal impondo a proibição de se invadir a estrada férrea e interromper o regular transporte de pessoas e de coisas (f. 600/601). Incumbiria à Polícia Federal zelar pelo cumprimento da determinação judicial.

Em nenhuma passagem do texto constitucional observa-se o rigor hermenêutico pretendido pela ré União no sentido de que estaria isenta do dever de prestar segurança pública, relativamente a ações destinadas à prevenção de ilícitos. Caso assim fosse não faria sentido erigir, no art. 144, a preservação da ordem como dever do Estado no exercício da segurança pública.

Ademais, a realidade mostra que a Polícia Militar é que, na quase na totalidade dos casos, age na repressão de infrações penais, em razão da insuficiência de pessoal das polícias ditas judiciárias, a exemplo da Polícia Federal em Marabá, que destacou apenas 12 Policiais Federais para dar cumprimento à ordem de desocupação da ferrovia.

Conquanto não se possa exigir que o Estado garanta integralmente a incolumidade física e patrimonial de todos os cidadãos, não há dúvida de que nos casos em que se mostram previsíveis as ações ilícitas, é plenamente exigível a atuação das forças de segurança estatal.

Nesse ponto é preciso fazer uma distinção entre atos ilícitos praticados episodicamente e atos ilícitos com data programada. No primeiro caso, nem sempre se pode imputar ao Estado o encargo de evitá-los, porque não se conhece o momento em que serão praticados, não se sabe quais bens jurídicos serão lesados e, se assim não fosse, instituir-se-ia automática responsabilidade objetiva estatal sempre que furtos ou roubos, por exemplo, ocorressem. Na segunda hipótese, os contornos são diversos porque o ato ilícito não é só previsível como também ganha feições de notoriedade. Divulga-se com antecedência o dia da atividade à margem da lei, e a álea que envolve o cometimento de atos ilícitos é substituída pela certeza de sua realização. Se há prévia comunicação das autoridades públicas e, a despeito disso, não se consegue evitar as práticas censuráveis, abre-se largo espectro para apuração da responsabilidade estatal pela omissão na prestação de segurança pública. Tem-se aí, claramente, a imputação de responsabilidade por danos causados por ação coletiva de terceiros, propiciada por omissão ou falta culposa ou faute de service do aparelhamento administrativo.

Essa divisão remonta a quase um século, de acordo com a lição de Pedro Lessa. Para o Ministro do Supremo Tribunal Federal, "...é necessário que o autor prove (...) finalmente, que entre a prestação ou desempenho do serviço publico, o acto ou omissão do serviço publico, que occasionou o damno, e este, se verifique uma relação directa de causalidade, um laço directo de causa e effeito. Por exemplo, um delicto de furto, ou de roubo, perpetrado nas condições em que geralmente taes crimes se comettem, não dá à victima o direito de ser indemnisada pelos cofres públicos; por evidentemente não há um vinculo directo, que prenda o damno causado a um acto do poder publico. Laço directo só se descobre entre o mal soffrido e o acto dos autores do crime. Mas, se uma aggressão contra a pessôa, ou contra propriedade, fôr conhecida e annunciada com tal antecedencia e visos de certeza, que a policia administrativa deva e possa evital-a, e não obstante, graças á inercia injustificavel das autoridades, o attentado se realisar, animado ou auxiliado pela indifferença dos agentes de segurança publica, ao Estado incumbe indemnisar o damno causado; porquanto, a sua inacção concorreu tanto para a pratica do acto criminoso, que, se não na linguagem rigorosa da logica, pelo menos na linguagem comum se póde dizer com propriedade que esse procedimento do poder publico foi a causa do damno soffrido; de todos os antecedentes cujo concurso era necessario para a producção deste consequente - o damno causado pelo crime, o que primeiro se nos apresenta ao espirito, o que mais nos fere a attenção, por nos parecer que das causas concomitantes é mais efficiente - dada a particularidade da hipothese, é a inercia do poder publico, o qual com seus meios normaes de acção teria efficazmente atalhado o mal".(4)

A despeito de o art. 36, § 7º da Constituição ter-se referido à responsabilidade objetiva, neste caso, a responsabilização dos réus depende da caracterização da culpa, porque a omissão ou falha no serviço são o fundamento da ilicitude da conduta, segundo entende a jurisprudência:

"Responsabilidade civil do Estado por omissão culposa no prevenir danos causados por terceiros à propriedade privada: inexistência de violação do art. 37, § 6º, da Constituição. 1. Para afirmar, no caso, a responsabilidade do Estado não se fundou o acórdão recorrido na infração de um suposto dever genérico e universal de proteção da propriedade privada contra qualquer lesão decorrente da ação de terceiros: aí, sim, é que se teria afirmação de responsabilidade objetiva do Estado, que a doutrina corrente efetivamente entende não compreendida na hipótese normativa do art. 37, § 6º, da Constituição da República. 2. Partiu, ao contrário, o acórdão recorrido da identificação de uma situação concreta e peculiar, na qual - tendo criado risco real e iminente de invasão da determinada propriedade privada - ao Estado se fizeram imputáveis as conseqüências da ocorrência do fato previsível, que não preveniu por omissão ou deficiência do aparelhamento administrativo. 3. Acertado, assim, como ficou, definitivamente, nas instâncias de mérito, a existência da omissão ou deficiência culposa do serviço policial do Estado nas circunstâncias do caso - agravadas pela criação do risco, também imputável à administração -, e também que a sua culpa foi condição sine qua da ação de terceiros - causa imediata dos danos -, a opção por uma das correntes da disceptação doutrinária acerca da regência da hipótese será irrelevante para a decisão da causa. 4. Se se entende - na linha da doutrina dominante -, que a questão é de ser resolvida conforme o regime legal da responsabilidade subjetiva (C.Civ. art. 15), a matéria é infraconstitucional, insusceptível de reexame no recurso extraordinário. 5. Se se pretende, ao contrário, que a hipótese se insere no âmbito normativo da responsabilidade objetiva do Estado (CF, art. 37, § 6º), a questão é constitucional, mas - sempre a partir dos fatos nela acertados - a decisão recorrida deu-lhe solução que não contraria a norma invocada da Lei Fundamental".(5)

A confirmação da responsabilidade dos réus depende da caracterização da culpa, ou seja, fundada na negligência, imprudência, imperícia ou mesmo no dolo, e da confirmação da relação de causalidade entre a ação ou omissão e o dano provocado à parte autora. Se o dano tornou-se possível em decorrência de omissão estatal, é de se aplicar a teoria da responsabilidade subjetiva. Se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser o autor do dano. E se não foi o autor, apenas cabe responsabilizá-lo caso esteja obrigado a impedir o dano, isto é, deve ser responsabilizado se descumpriu dever legal que lhe impunha obstar o evento lesivo. Deve-se considerar, a partir da análise do caso concreto, se era possível exigir, dos réus, conduta diversa do procedimento adotado, ou se, pelas circunstâncias do caso, sua atuação representou reação normal e adequada que se espera diante de casos dessa espécie.

No caso concreto, noticiou-se com antecedência as articulações dos movimentos sociais tendentes a obstruir a ferrovia (f. 560/592). A própria Vale, nessas situações, age preventivamente, prova disso são as inúmeras liminares de interdito proibitório expedidas em seu favor. Além disso, conforme constatado nestes autos, os setores de inteligência da Polícia Federal e da Polícia Militar tinham amplo conhecimento das movimentações de que resultou o bloqueio da via férrea.

Não é, portanto, a imprevisibilidade que impediu a atuação do Estado e da União para evitar as intervenções na atividade e no patrimônio da parte autora. De acordo com reportagem publicada no jornal local, Correio do Tocantins, edição de 15 e 16 de maio de 2008, a estrada de Ferro Carajás, nos anos de 2007 e 2008, foi obstruída sete vezes. Em algumas ocasiões, há prévia divulgação do impedimento ao tráfego ferroviário e isso efetivamente foi detectado nas obstruções realizadas em 17 de abril de 2008, 9 de maio de 2008 e 13 de maio de 2008.

Em nenhum caso referido nestes autos, a ação policial precedeu à intervenção do Poder Judiciário a tempo de coarctar a degradação dos bens jurídicos titularizados pela Vale. A convolação de interditos em reintegrações tornou-se prática habitual, pois decisões que estabeleciam a proibição de ocupar a estrada de ferro eram solenemente descumpridas, o que exigia que se determinasse, como sucedâneo do ato judicial desobedecido, a retirada dos invasores para permitir o fluxo ferroviário.

A ocupação, por poucas horas do dia 17/4/2008, e a reocupação dos dias 9/5/2008 e 13/5/08 poderiam ter sido evitadas, caso os réus tivessem programado ação no sentido de contrapor-se à sua ocorrência, conforme a seguir será demonstrado.

Edição de O Liberal, de 11 de abril 2008, registrou que o presidente da Vale reuniu-se com integrantes da FIEPA e com a Governadora do Estado do Pará e o assunto foi posto em pauta durante a reunião (f. 217). O Diário do Pará, edição de 10/4/2008, noticiou que a Polícia Militar havia chegado para impedir a noticiada invasão do MST, cujos integrantes estavam acampados a 100 metros da ferrovia (f. 219). Havia informação de que o movimento tinha agregado mais de 1500 pessoas (f. 215/225), mas o levantamento feito pelos órgãos policiais contabilizou cerca de 400 a 500 manifestantes (f. 525 e 527).

Ainda assim, obstruiu-se a ferrovia e se paralisaram as atividades da parte autora. O que mais causa espanto quanto à primeira ocupação é o fato de tal acontecimento ter ocorrido justamente durante operação da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Pará, que atuava em conjunto com a Polícia Federal.

Sobre o fato, o tenente-coronel da Polícia Militar Mário Alfredo Souza Solano disse ter obtido conhecimento de que estavam programadas invasões a quatro fazendas, duas rodovias, além da ferrovia, e não havia contingente suficiente para reprimir as manifestações caso fossem simultâneas.

Por outro lado, alegou que o efetivo de 193 policiais deslocados para a região, somados aos policiais já lotados no local, seria suficiente para cumprir a missão (f. 525/527).

O tenente-coronel Edson José da Costa Bentes informou que os invasores estavam acampados numa fazenda às margens da ferrovia e não havia ordem específica para protegê-la, então, a ação foi programada de forma a garantir a segurança de maneira geral (f. 527). Relatou que "até o momento que antecedeu a desobstrução nada de concreto foi informado ao depoente sobre o local exato em que seria feito o bloqueio", "a tropa não tinha nenhuma informação concreta que permitisse a ela antecipar-se aos invasores" e "a detecção do foco de concentração de invasores somente ocorreu após o bloqueio da estrada de ferro". Asseverou que o contingente deslocado era suficiente para controlar a situação e a multidão "logo se dispersou com a chegada da Polícia Militar" (f. 527).

O depoimento do tenente-coronel não encontra ressonância no que foi dito pelo coronel Carlos Augusto Oliveira da Silva, então comandante regional da Polícia Militar. Ele recebeu comunicado, tal como o comando em Belém, acerca do local onde estavam concentradas as pessoas que participaram da invasão da ferrovia, normalmente ocupado pelos manifestantes. Tão logo foi feito o agrupamento, a informação foi transmitida a Belém, que orientou o acompanhamento da movimentação até a chegada da tropa de missão especial.

A Polícia Federal destacou contingente de 12 policiais, fato confirmado pelo Delegado de Polícia Federal Antonio Carlos Beaubrum Júnior (f. 535), para quem a instituição não possuía agentes em número suficiente para enfrentar questões dessa envergadura. Marabá contava com apenas três delegados, dois escrivães e dozes agentes. O número de policiais federais não permitiu sequer que a decisão judicial proferida na ação possessória fosse notificada aos integrantes dos movimentos sociais. Consta da f. 412 certidão no sentido de que não foi possível promover a notificação de integrante do MST em seu acampamento, nos dias 15 e 16 de abril de 2008, porque não havia policiais federais em número suficiente para garantir a integridade do oficial de justiça e, por conseguinte, o cumprimento da decisão proferida nos autos da ação n. 2008.39.01.000264-6. Em razão disso, cumpriu-se parcialmente o mandado de citação e só depois da desocupação foi possível dar seguimento à diligência, no dia 18 de abril de 2008.

O Estado foi omisso porque negligenciou o cumprimento de determinação judicial e não impediu a ocupação da linha férrea Carajás. A União, ao disponibilizar número ínfimo de Policiais Federais, também negligenciou direitos da parte autora.

O Tenente-Coronel Mário Solano relatou que a "simples chegada da Polícia Militar afastou as pessoas que se encontravam nas proximidades da ferrovia", que foi "imediatamente liberada" (f. 525). O tenente-coronel Edson José da Costa Bentes informou que a multidão "logo se dispersou com a chegada da Polícia Militar" (f. 527). Percebe-se que não houve dispêndio de esforços ou conflito corporal para promover a retirada dos manifestantes da estrada de ferro, que retornaram à situação de passividade quando avistaram a aproximação da força policial. Isso significa que a presença da força policial, tal como serviu para tranquilamente afugentar os invasores, seria capaz de inibir a interrupção do tráfego ferroviário, caso adrede posicionada e adequadamente preparada.

Após a desocupação, a imprensa voltou a alertar para a possibilidade de nova ocupação (f. 286). A reportagem noticiava como certa nova ocupação da estrada de ferro e, de fato, nos dia 9 e 13 de maio de 2008, a ferrovia foi novamente obstruída (f. 403/411). Dado o curto lapso de tempo entre a primeira invasão e as que a sucederam, pode-se concluir que se tratava de desdobramento das iniciais manifestações não coibidas, sem alteração do modo de proceder dos invasores. Constatou-se ter havido dano em equipamentos de detecção de descarrilamento de trens, máquina de chave e circuitos de via, equipamento de detecção de rodeiros (EAK), cabo de fibra óptica com capacidade para 18 fibras (f. 466/478), entre outros, além de prejuízo causado pela cessação da atividade de transporte de minérios e passageiros durante o tempo exigido para efetivação do reparo.

A causalidade entre a conduta deficiente dos réus e os ilícitos levados a efeito em desfavor da autora é patente, pois a ação no momento oportuno seria capaz de preservar a ordem. Quanto à Polícia Militar, o contingente suficiente serviria para lidar com a situação. No tocante à Polícia Federal, não havia policiais suficientes para preservar a ordem pública local, como reconhecido pelo Delegado Chefe de Polícia Federal. Sequer haveria tempo para adotar medidas preventivas ou antecipatórias para coibir os atos previamente alardeados, por falta de recursos disponíveis na Delegacia de Marabá, como o próprio delegado consignou em seu depoimento.

Em verdade, a União e o Estado do Pará não se mostraram complacentes ou omissos. Contudo, apresentaram-se imprevidentes e ineficientes. A deficiência no planejamento e execução de seus serviços de segurança deu azo a que a multidão invadisse a estrada de ferro, causando danos materiais que incumbem aos réus ressarcir e compensar.

Não se sabe ao certo se a União e o Estado preferiram consentir com a invasão momentânea, para permitir aos manifestantes gozar da sensação de meta alcançada, ou se efetivamente não conseguiram evitar a propalada obstrução da ferrovia. Qualquer que seja a hipótese, arcarão com o ônus de indenizar a empresa autora, seja porque devem suportar as consequências da suposta opção por deliberadamente não agir, seja porque a deficiência na prestação de segurança pública importa em reconhecimento da responsabilidade estatal. Dolo e culpa são justamente as modalidades da responsabilidade subjetiva.

O Estado do Pará confunde a responsabilidade ora em exame com aquela reconhecida aos integrantes dos movimentos sociais, nos autos da ação n. 2008.39.01.000264-6. Não há dúvida de que os causadores diretos dos danos foram as pessoas que, agrupadas às margens da ferrovia, causaram sua obstrução. Esse simples fato, porém, não leva automaticamente à exclusão da responsabilidade estatal. A culpa de terceiro só afasta a responsabilidade da União e do Estado do Pará quando há o desfazimento do próprio nexo causal necessário à responsabilização subjetiva. Nestes autos, discute-se a responsabilidade do Estado e da União acerca da omissão em impedir que a obstrução ocorresse. Na hipótese dos autos, na relação causal que teve como evento os danos gerados à autora, somaram-se, à ação dos manifestantes, a ineficiência do serviço de segurança exercido pelo Estado, o que a doutrina reconhece como faute de service.

A teoria da reserva do possível sustentada pelo Estado do Pará não se mostra aplicável ao caso e, nota-se, muitas vezes, que é utilizada para escusar os entes públicos de sua reconhecida deficiência nos mais diversos setores. A interdição da Estrada de Ferro Carajás por parte de certos movimentos sociais mostra-se corriqueira, previsível e evitável. Sua dimensão considerável também não foi motivo para confundir a atuação policial ou tornar incerto o ponto de ocupação. Foi amplamente noticiado pela imprensa que o acampamento de onde partiram os manifestantes localizava-se a 100 metros da ferrovia. Não precisaria ser nenhum Sherlock Holmes para concluir quão elementar que a ferrovia seria obstruída em frente ao acampamento montado pelos manifestantes, a despeito da longa extensão da estrada de ferro. Foram montados bloqueios nas estradas, para detectar movimentações, e não há notícia de que houve avanço imprevisível e invisível dos manifestantes. Estranhamente, a barreira policial feita pela Polícia Militar, apesar de atuar 24 horas, não detectou o deslocamento dos invasores, como informado pelo tenente coronel Edson Bentes (f. 528). Isso se explica porque a concentração de pessoas já estava formada, consoante revelam as fotografias de f. 366/368. Tudo demonstra que, fazia alguns dias, havia concentração de pessoas em determinado ponto das margens da ferrovia, local exato a partir do qual se deu o bloqueio da estrada férrea.

Não obstante a extensão da linha férrea, a experiência revela que as ações costumam concentrar-se em pontos sensíveis entre Marabá e Parauapebas, dos quais a polícia poderia ter obtido pleno conhecimento, com bastante antecedência. Consta dos autos ordem de missão de f. 778/779, segundo a qual, em 25 de março de 2008, a Polícia Federal já havia levantado todos os prováveis locais de concentração de manifestantes e todos os pontos de acesso. Causa espanto a afirmação de membros da Polícia Militar e do governo do Estado do Pará de que não foi possível identificar previamente o local da invasão.

Os jornais já sabiam, a Vale já sabia, este magistrado já sabia...Tanto é verdade que a decisão liminar proferida na ação de interdito proibitório fazia referência ao acampamento que seria montado ao lado da estrada de ferro (f. 600).

Os limites do possível, aferidos no caso concreto, durante o curso da ação, não foram ultrapassados. Na realidade, a atuação do Estado não orbitou dentro do mínimo exigido. É certo que não se pode exigir tudo do Estado, nem se pretende cobrar isso. No caso em apreço, contudo, observa-se que se, de um lado o Estado do Pará olvidou a existência de determinação judicial para proteger a ferrovia durante a formatação da "Operação Abril Vermelho", de outro, a União agiu negligentemente ao destacar número ínfimo de doze policiais federais para o cumprimento da ordem. Ao desconsiderar o acampamento ao lado da ferrovia permitiu-se que a obstrução ocorresse durante o forte esquema de segurança da "Operação Abril Vermelho". Posteriormente, e a despeito de a imprensa alertar para a iminência de nova ocupação, nenhuma providência foi tomada no sentido de evitá-la.

Não há questões orçamentárias envolvidas, a ponto de limitar a atuação dos entes públicos. O Estado do Pará despendeu mais de um milhão de reais na operação policial montada no mês de abril de 2008, na região de Parauapebas. Não se tem notícia de que a União seja insolvente ou enfrente dificuldades orçamentárias para bem equipar a Polícia Federal. Havia recursos públicos bastantes para enfrentar a situação, os quais não foram empregados a ponto de resultar em atuação eficiente.

Em síntese, os atos atentatórios contra a estrada de ferro tinham data marcada, especialmente o primeiro deles, com ampla divulgação. Se por um lado o contingente de policiais federais era reduzido, o efetivo deslocado pela Polícia Militar seria suficiente para o cumprimento da missão e, mesmo assim, não se impediu a obstrução da ferrovia. As Polícias Federal e Militar tinham pleno conhecimento - ou deveriam ter - do local onde a invasão ocorreria e, mesmo assim, não foi obstada a ocupação. Bastou a chegada de integrantes da Polícia Militar no local obstruído para que o trecho fosse imediatamente liberado e os manifestantes, afastados, o que demonstra que a ausência de vigilância ou de atuação tempestiva oportunizaram o comportamento ilícito.

Os réus devem indenizar a parte autora pelos prejuízos que lhe foram causados pelas ocupações da Estrada de Ferro Carajás, após o ajuizamento desta ação, nos dias 17/4/08, 9/5/08 e 13/5/08. Embora as desocupações tenham ocorrido no mesmo dia em que se deram os bloqueios, dada a dimensão da carga que transporta a empresa, o dano pode ter atingido proporções consideráveis.

Juntou-se laudo às f. 466/478, que especifica os danos havidos nos equipamentos da estrada de ferro e que pode servir de parâmetro para apuração do quantum devido. As partes puderam manifestar-se sobre o laudo apresentado, confeccionado sob a supervisão da Polícia Federal, e embora possam ser questionados os valores das peças danificadas, reputa-se correta a identificação dos danos ocorridos. Por outro lado, conquanto não tenham sido apurados, durante a instrução processual, os prejuízos havidos com a paralisação do transporte férreo, é possível postergar para a fase de liquidação de sentença a aferição e estimativa dos danos.

Ante o exposto, JULGO EXTINTO O PROCESSO, sem resolução do mérito, relativamente aos pedidos para planejar, dimensionar, prover e estruturar a segurança pública, como também para preservar a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio da autora, nos termos do art. 267, I c/c art. 295, I do CPC e ACOLHO PARCIALMENTE O PEDIDO para condenar a União e o Estado do Pará a pagar indenização à Companhia Vale do Rio Doce pelos danos materiais por ela suportados em decorrência das ocupações da Estrada de Ferro Carajás, nos dias 17 de abril de 2008, 9 de maio de 2008 e 13 de maio de 2008, em valor a ser apurado por artigos em liquidação de sentença.

Em face da sucumbência recíproca, cada parte arcará com os honorários de seu patrono e as custas serão rateadas à metade, isentas a União e o Estado do Pará.

Sentença sujeita a reexame necessário.

Publique-se. Registre-se. Intime-se.

Marabá, 9 de novembro de 2009.

CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD
Juiz Federal



Notas:

1 - SANTIN, Valter Foleto. Controle judicial da segurança pública - eficiência do serviço na prevenção e repressão ao crime. São Paulo: RT, 2004, p. 243. [Voltar]

2 - BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. ADI MC n. 1942/PA, Rel. Min. Moreira Alves, Tribunal Pleno, DJ de 22/10/99, p. 57. [Voltar]

3 - SANTIN, Valter Foleto. Controle judicial da segurança pública - eficiência do serviço na prevenção e repressão ao crime. São Paulo: RT, 2004, p. 231. [Voltar]

4 - LESSA, Pedro. Do poder judiciario. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1915, p. 170. [Voltar]

5 - BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. RE 237.561/RS, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, DJ de 5/4/2002. [Voltar]



JURID - Vale será indenizada. [17/11/09] - Jurisprudência

 



 

 

 

 

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