Anúncios


quarta-feira, 25 de novembro de 2009

JURID - Habeas corpus. Crime contra o sistema financeiro nacional. [25/11/09] - Jurisprudência


Habeas corpus. Crime contra o sistema financeiro nacional. Responsabilidade penal dos controladores e administradores de instituição financeira.


Supremo Tribunal Federal - STF.

DJe nº 176 Divulgação 17/09/2009 Publicação 18/09/2009 Ementário nº 2374 - 2

SEGUNDA TURMA

HABEAS CORPUS 84.580-1 SÃO PAULO

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

PACIENTE(S): MILTO BARDINI

PACIENTE(S): RUBENS NUNES TAVARES

PACIENTE(S): YVES LOUIS JACQUES LEJEUNE

PACIENTE(S): OSWALDO DAUDE OU OSWALDO SAÚDA

PACIENTE(S): GIOVANNI LENTI

IMPETRANTE(S): JOSÉ CARLOS DIAS E OUTRO(A/S)

COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

"HABEAS CORPUS" - CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL - RESPONSABILIDADE PENAL DOS CONTROLADORES E ADMINISTRADORES DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA - LEI N° 7.492/86 (ARTIGO 17) - DENÚNCIA QUE NÃO ATRIBUI COMPORTAMENTO ESPECIFICO E INDIVIDUALIZADO AOS DIRETORES DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA - INEXISTÊNCIA, OUTROSSIM, DE DADOS PROBATÓRIOS MÍNIMOS QUE VINCULEM OS PACIENTES AO EVENTO DELITUOSO - INÉPCIA DA DENÚNCIA - PEDIDO DEFERIDO.

PROCESSO PENAL ACUSATÓRIO - OBRIGAÇÃO DE O MINISTÉRIO PÚBLICO FORMULAR DENUNCIA JURIDICAMENTE APTA.

- O sistema jurídico vigente no Brasil - tendo presente a natureza dialógica do processo penal acusatório, hoje impregnado, em sua estrutura formal, de caráter essencialmente democrático - impõe, ao Ministério Público, notadamente no denominado "reato societario", a obrigação de expor, na denúncia, de maneira precisa, objetiva e individualizada, a participação de cada acusado na suposta prática delituosa.

- O ordenamento positivo brasileiro - cujos fundamentos repousam, dentre outros expressivos vetores condicionantes da atividade de persecução estatal, no postulado essencial do direito penal da culpa e no princípio constitucional do "due process of law" (com todos os consectários que dele resultam) - repudia as imputações criminais genéricas e não tolera, porque ineptas, as acusações que não individualizam nem especificam, de maneira concreta, a conduta penal atribuída ao denunciado. Precedentes.

A PESSOA SOB INVESTIGAÇÃO PENAL TEM O DIREITO DE NÃO SER ACUSADA COM BASE EM DENÚNCIA INEPTA.

- A denúncia deve conter a exposição do fato delituoso, descrito em toda a sua essência e narrado com todas as suas circunstâncias fundamentais. Essa narração, ainda que sucinta, impõe-se ao acusador como exigência derivada do postulado constitucional que assegura, ao réu, o exercício, em plenitude, do direito de defesa. Denúncia que deixa de estabelecer a necessária vinculação da conduta individual de cada agente aos eventos delituosos qualifica-se como denúncia inepta. Precedentes.

DELITOS CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL - PEÇA ACUSATÓRIA QUE NÃO DESCREVE, QUANTO AOS DIRETORES DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA, QUALQUER CONDUTA ESPECIFICA QUE OS VINCULE, CONCRETAMENTE, AOS EVENTOS DELITUOSOS - INÉPCIA DA DENÚNCIA.

- A mera invocação da condição de diretor ou de administrador de instituição financeira, sem a correspondente e objetiva descrição de determinado comportamento típico que o vincule, concretamente, à prática criminosa, não constitui fator suficiente apto a legitimar a formulação de acusação estatal ou a autorizar a prolação de decreto judicial condenatório.

- A circunstância objetiva de alguém meramente exercer cargo de direção ou de administração em instituição financeira não se revela suficiente, só por si, para autorizar qualquer presunção de culpa (inexistente em nosso sistema jurídico-penal) e, menos ainda, para justificar, como efeito derivado dessa particular qualificação formal, a correspondente persecução criminal.

- Não existe, no ordenamento positivo brasileiro, ainda que se trate de práticas configuradoras de macrodelinqüência ou caracterizadoras de delinqüência econômica, á possibilidade constitucional de incidência da responsabilidade penal objetiva. Prevalece, sempre, em sede criminal, como princípio dominante do sistema normativo, o doem da responsabilidade com culpa ("nullum crimen sine culpa"), absolutamente incompatível com a velha concepção medieval do "versari in re illicita", banida do domínio do direito penal da culpa. Precedentes.

AS ACUSAÇÕES PENAIS NÃO SE PRESUMEM PROVADAS: O ÔNUS DA PROVA INCUMBE, EXCLUSIVAMENTE, A QUEM ACUSA.

- Nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete, ao réu, demonstrar a sua inocência. Cabe, ao contrário, ao Ministério Público, comprovar, de forma inequívoca, para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade, do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência (Decreto-lei n° 88, de 20/12/37, artigo 20, n. 5). Precedentes.

Para o acusado exercer, em plenitude, a garantia do contraditório, torna-se indispensável que o órgão da acusação descreva, de modo preciso, os elementos estruturais ("essentialia delicti") que compõem o tipo penal, sob pena de se devolver, ilegitimamente, ao réu, o ônus (que sobre ele não incide) de provar que é inocente.

- Em matéria de responsabilidade penal, não se registra, no modelo constitucional brasileiro, qualquer possibilidade de o Judiciário, por simples presunção ou com fundamento em meras suspeitas, reconhecer a culpa do réu. Os princípios democráticos que informam o sistema jurídico nacional repelem qualquer ato estatal que transgrida o dogma de que não haverá culpa penal por presunção nem responsabilidade criminal por mera suspeita.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, sob a Presidência da ministra Ellen Gracie, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em deferir o pedido de "habeas corpus", nos termos do voto do Relator. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, os Senhores Ministros Joaquim Barbosa e Eros Grau.

Brasília, 25 de agosto de 2009.

CELSO DE MELLO - RELATOR

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO - (Relator): O Ministério Público Federal, em parecer da lavra do ilustre Subprocurador-Geral da República, Dr. HAROLDO FERRAZ DA NÓBREGA, assim apreciou a presente impetração (fls. 683/691):

"A denúncia oferecida contra os ora pacientes (fls. 31/4, volume 1) foi rejeitada pelo magistrado Federal, Dr. Petrônio Maranhão Gomes de Sá (fls. 265/8, volume 2).

Todavia, dando provimento a recurso em sentido estrito, apresentado pelo ministério Público Federal, o Colando Tribunal Regional Federal da 3ª Região recebeu a vestibular acusatória (ver acórdão às fls. 395/404, volume 2). Transcrevo a sua ementa, que bem resume o seu conteúdo:

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO N° 95.03.103653-4

RECORRENTE: JUSTIÇA PÚBLICA

RECORRIDO: MILTON BARDINI

RECORRIDO: RUBENS NUNES TAVARES

RECORRIDO: IVES LOUIS JACQUES LEJEUNE

RECORRIDO: OSWALDO SAUDA

RECORRIDO: GIOVANNI LENTI

ADVOGADO: LUIZ FRANCISCO DA SILVA C. FILHO e outro

RELATOR: EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL ROBERTO HADDAD

EMENTA

PENAL - RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO (ARTIGO 17, 'CAPUT', DA LEI 7492/86) CRIME DE AUTORIA COLETIVA - INÉPCIA DA DENÚNCIA - DESCABIMENTO - ADITAMENTO - AUSÊNCIA DA JUSTA CAUSA PARA O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA - INOCORRÊNCIA - RECURSO MINISTERIAL PROVIDO.

1 - Tratando-se de crime de autoria coletiva, não é inepta a denúncia que não descreve pormenorizadamente a conduta de cada acusado, bastando somente a narração e descrição dos fatos, proporcionando aos acusados o contraditório e a ampla defesa.

2 - Não há que se falar em omissão na peça preambular quando esta deixa de denunciar alguns dos envolvidos na conduta delituosa, uma vez que a mesma poderá ser aditada a qualquer tempo, nos termos do artigo 569, do CPP.

3 - Recurso provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Desembargadores Federais da 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, na conformidade da ata de julgamento, por unanimidade de votos, em dar provimento ao recurso. Acompanharam o voto do Relator o Fino. Sr. Juiz Convocado Casem Mazloum e o Des. Fed. Oliveira Lima.

São Paulo, 15 de fevereiro de 1999.

DESEMBARGADOR FEDERAL ROBERTO HADDAD' (autos, fls. 404).

Inconformados com esta decisão, os pacientes interpuseram Recurso Especial (fls. 414/26, volume 03), o qual foi admitido pelo Desembargador Federal Vice-

Presidente do TRF da 3ª região (fls. 441, volume 03). Não foi, porém, conhecido o RESP, que tomou o número 291.201-SP (STJ) (ver fls. 671/7). Transcrevo a ementa do pertinente acórdão:

'RECURSO ESPECIAL 291.201 SP (2000/0128301-4)

RELATORA MINISTRA LAURITA VAZ

RECORRENTE: MILTON BARDINI

RECORRENTE: RUBENS NUNES TAVARES

RECORRENTE: YVES LOUIS JACQUES LEJEUNE

RECORRENTE: OSWALDO SAUDA

RECORRENTE: GIOVANNI LENTI

ADVOGADO : LUÍS FRANCISCO DA SILVA, CARVALHO FILHO E OUTROS

EMENTA

RECURSO ESPECIAL. PENAL. CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. PLURALIDADE DE AGENTES. DENÚNCIA. PARTICULARIZAÇÃO DAS CONDUTAS. DESNECESSIDADE. ADITAMENTO. POSSIBILIDADE.

1. Nos crimes de autoria coletiva, dada a grande dificuldade de discriminação da conduta de cada denunciado 'ab initio', não configura cerceamento de defesa o oferecimento da denúncia sem a individualização minuciosa do comportamento de cada acusado. Precedentes do STJ e do STF.

2. 'In casu', há indícios suficientes de autoria, o que justifica o desenvolvimento da instrução criminal, onde, oportunamente, com a observância do contraditório e da ampla defesa, será aferida a culpabilidade de cada Réu.

3. De acordo com o que dispõe o artigo 569 do Código de Processo Penal, eventuais omissões da denúncia poderão ser supridas a qualquer momento, desde que antes da sentença final.

4. Recurso não conhecido.

ACÓRDÃO

vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, não conhecer do recurso e julgar prejudicada a medida cautelar n° 3.4301SP, cassando a liminar anteriormente deferida. Os Srs. Ministros José Arnaldo da Fonseca, Felix Fischer, Gilson Dipp e Jorge Scartezzini votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Brasília (DF), 9 de dezembro de 2003 (Data do Julgamento)

MINISTRA LAURITA VAZ Relatora' (autos, fls. 671).

Contra a decisão do STJ, referida, apresentaram os pacientes, via dos seus doutos patronos, HC, perante o Supremo Tribunal Federal, que tomou o número 84.580-11130 (ver fls. 02/25, volume 1, deste HC). O pedido, inclusive de liminar, no 'Habeas Corpus', é este:

15. CONCLUSÃO E PEDIDO DE LIMINAR.

Uma vez demonstrado que o acórdão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região recebeu denúncia inepta oferecida contra os pacientes, que viola a disposição legal contida no artigo 41 do Código de Processo Penal, porque não descreveu, ao menos sucintamente, o nexo causal entre as responsabilidades administrativas dos pacientes, enquanto diretores do Banco Sudameris, e ainda, diante da absoluta carência de justa causa para a ação penal, bem como diante da decisão do Superior Tribunal de Justiça, que não conheceu do Recurso Especial interposto, dando seguimento ao constrangimento ilegal decorrente dessa situação, é o presente "Habeas Corpus", o remédio hábil para por fim, até mesmo por economia processual, à ação penal instaurada perante a 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo contra os pacientes.

O interrogatório dos pacientes foi designado para o próximo dia 2 de agosto perante a 3ª Vara Federal de São Paulo, oportunidade em que estarão os pacientes submetidos ao constrangimento ilegal de serem interrogados pela prática de fatos atípicos, em ação carente de justa causa, decorrente do recebimento da denúncia inepta pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região.

As razões da impetração e a proximidade do interrogatório dos pacientes demonstram a plausibilidade jurídica ('fumus boni iuris') e o 'periculum in mora' necessários para a concessão da liminar ora pleiteada, para a ação penal n° 94.0101826-0, em curso perante a 3ª vara Criminal Federal de São Paulo, fique suspensa até julgamento final da presente impetração.

De São Paulo para Brasília, em 19 de julho de 2004.

José Carlos Dias Jaqueline Furrier Maurício de Carvalho Araújo' (autos, fls. 24/5).

Pelo Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal, foi concedida a liminar (fls. 649/54).

Entendo que o HC deve ser indeferido, cassada a liminar concedida.

A denúncia, que preenche os requisitos legais atinentes à espécie, é vista às fls. 31/4.

Ela imputa com precisão fato típico aos denunciados. As queixas da impetração, de que a denúncia foi genérica, sem precisar a participação de cada denunciado no evento, não convencem. Ora, os denunciados estavam no mesmo plano de responsabilidade criminal - todos são diretores do 'Banco Francês e Italiano para a América do Sul S. A. Sudameris - e todos são, tal como articulado na denúncia, co-autores da infração (em forma continuada). Não há o vício apontado na impetração.

Por outro lado, a alegação de que a denúncia careceria do necessário suporte fático - porquanto a decisão administrativa teria favorecido os denunciados - não convence.

Ora, com inteira propriedade, disse a Dra. Samantha Chantal Dobrowolski, nas razões do recurso sentido estrito:

'Outro ponto a se considerar refere-se à estranheza demonstrada pelo julgador em função da inobservância, pelo órgão ministerial, em relação ao arquivamento, pelo Banco Central, de procedimento administrativo contra a Sudameris Arrendamento Mercantil S.A., tomadora dos empréstimos vedados.

Ignorou o magistrado a manifestação ministerial de fls. 232 e o próprio teor da peça acusatória, em que foram denunciados os diretores do Banco Sudameris, responsáveis pelo deferimento dos referidos empréstimos; sendo que quatro deles também figuravam como diretores da empresa controlada que recebeu os empréstimos.

Assim, laborou em equívoco o juiz 'a quo', já que a denúncia lastreou-se no procedimento administrativo instaurado contra os denunciados pelo Banco Central (fls. 08 a 90 dos autos), que, na época de seu oferecimento, estava em grau de recurso na referida autarquia. Existiam, portanto, dois procedimentos administrativos; apenas um deles - contra a tomadora, foi arquivado' (autos, fls. 293/4).

Ante o exposto, manifesta-se o Ministério Público no sentido do indeferimento do 'writ'." (grifei)

É o relatório.

VOTO

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO - (Relator): Entendo assistir plena razão aos ilustres impetrantes, quando argúem a inépcia da denúncia formulada contra os ora pacientes, porque impregnada de conteúdo genérico.

Para sustentar a alegação de inépcia da peça acusatória, esta impetração apóia-se, em síntese, na seguinte fundamentação (fls. 09, 11 e 17):

"Ao limitar a imputação do suposto fato delituoso aos pacientes, apenas em razão de serem diretores do Banco Sudameris, a denúncia violou dispositivo legal que lhe confere validade.

Em nenhum momento a denúncia faz qualquer distinção entre as atividades de cada um dos pacientes. Limita-se tão somente a descrevê-los como diretores da instituição financeira e, por essa razão, sempre lhes imputa de forma conjunta a realização das operações financeiras descritas na denúncia. A peça inaugural nem mesmo insinua se essas operações estariam dentre as atividades concernentes à área de atuação ou se todos ou alguns deles assinaram contratos referentes às operações.

..........

A peça inicial não traz descrição sucinta sobre os fatos e a participação dos pacientes. Pela sua leitura não se depreende nem mesmo quais funções eram exercidas pelos pacientes na instituição financeira e essa falha técnica não pode ser sanada no curso do processo. O simples fato de serem diretores do banco não lhes confere poder de mando em todas as áreas da instituição.

(...)

...........

Se os fatos narrados na denúncia foram descritos de 'modo genérico, como afirmado no Acórdão recorrido, reconhecido está que o fato acoimado de criminoso não foi descrito em todas as suas circunstâncias, uma vez que 'todas as circunstâncias,, a que faz referência o texto da lei, é requisito que obrigatoriamente tem que estar presente.

...........

A descrito dos fatos na denúncia pode ser sucinta, resumida, condensada, narrada com poucas palavras, mas deve conter todos os elementos necessários para a delimitação da conduta dos acusados, o que não se observa na denúncia dos autos.

...........

Pela conjugação dos princípios constitucionais da reserva legal e da responsabilidade pessoal, claro está que a Constituição repele o princípio da responsabilidade penal objetiva e, por essa razão, os acórdãos atacados não poderiam ter recebido, ou mantido, uma denúncia que descreve fatos supostamente criminosos de maneira genérica." (grifei)

Tendo em vista a natureza dialógica do processo penal acusatório, hoje impregnado, em sua estrutura formal, de caráter essencialmente democrático (JOSÉ FREDERICO MARQUES, "O Processo Penal na Atualidade", "in" "Processo Penal e Constituição Federal", p. 13/20, 1993, APAMAGIS/Ed. Acadêmica), não se pode desconsiderar, na análise do conteúdo da peça acusatória - conteúdo esse serie delimita e que condiciona o próprio âmbito temático da decisão judicial -, que o sistema jurídico vigente no Brasil impõe, ao Ministério Público, quando este deduzir determinada imputação penal contra alguém, a obrigação, de expor, de maneira individualizada, a participação das pessoas acusadas da suposta prática de infração penal, a fim de que o Poder Judiciário, ao resolver a controvérsia penal, possa, em obséquio aos postulados essenciais do direito penal da culpa e do princípio constitucional do "due process of law", e sem transgredir esses vetores condicionantes da atividade de persecução estatal, apreciar a conduta individual do réu, a ser analisada, em sua expressão concreta, em face dos elementos abstratos contidos no preceito primário de incriminação.

Cumpre ter presente, desse modo, que se impõe, ao Estado, no plano da persecução penal, o dever de definir, com precisão, a participação individual dos autores de quaisquer delitos.

O Poder Público, tendo presente a norma inscrita no artigo 41 do Código de Processo Penal, não pode deixar, de observar as exigências que emanam desse preceito legal, sob pena de incidir em grave desvio jurídico-constitucional no momento em que exerce o seu dever-poder de fazer instaurar a "persecutio criminis" contra aqueles que, alegadamente, transgrediram o ordenamento penal do Estado.

Não foi por outra razão que o Supremo Tribunal Federal, em decisão de que foi Relator o saudoso Ministro BARROS MONTEIRO, deixou consignada expressiva advertência sobre o tema ora em exame (RTJ 49/388):

"Habeas Corpus". Tratando-se de denúncia referente a crime de autoria coletiva, é indispensável que descreva ela, circunstanciadamente, sob pena de inépcia, os fatos típicos atribuídos a cada paciente. Extensão deferida, sem prejuízo do oferecimento de outra denúncia, em forma regular." (grifei)

Esse entendimento - que tem sido prestigiado, por diversos e eminentes autores (DAMÁSIO E. DE JESUS, "Código de Processo Penal Anotado", p. 40, 104 ed., 1993, Saraiva; LUIZ VICENTE CERNICHIARO/PAULO JOSÉ DA COSTA JR., "Direito Penal na Constituição", p. 84, item n. 8, 1990, RT; ROGÉRIO LAURIA TUCCI, "Direitos e Garantias individuais no Processo Penal Brasileiro", p. 212/214, item n. 17, 1993, Saraiva; JOAQUIM CANUTO MENDES DE ALMEIDA, "Processo Penal, Ação e Jurisdição", p. 114, 1975, RT) - repudia as acusações genéricas, repele as sentenças indeterminadas e adverte, especialmente no contexto dos delitos societários, que "Mera presunção de culpa, decorrente unicamente do fato de ser o agente diretor de uma empresa, não pode alicerçar uma denúncia criminal", pois "A submissão de um cidadão aos rigores de um processo penal exige um mínimo de prova de que tenha praticado o ato ilícito, ou concorrido para a sua prática. Se isto não existir, haverá o que se denomina o abuso do poder de denúncia" (MANOEL PEDRO PIMENTEL, "Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional", p. 174, 1987, RT).

Essa orientação, que reputa ser indispensável a identificação, pelo Estado, na peça acusatória, da participação individual de cada denunciado, tem, hoje, o beneplácito de ambas as Turmas do Supremo Tribunal Federal (EC 80.549/SP, Rel. Min. NELSON JOBIM - EC 85.948/PA, Rel. Min. CARLOS BRITTO - REC 85.658/ES, Rel. Min. CEZAR PELUSO, v.g.):

"1. 'Habeas Corpus'. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei nº 7.492, de 1986). Crime societário. 2. Alegada inépcia da denúncia, por ausência de indicação da conduta individualizada dos acusados. 3. Mudança de orientação jurisprudencial, que, no caso de crimes societários, entendia ser apta a denúncia que não individualizasse as condutas de cada indiciado, bastando a indicação de que os acusados fossem de algum modo responsáveis pela condução da sociedade comercial sob a qual foram supostamente praticados os delitos. Precedentes: HC nº 86.294-SP, 2ª Turma, por maioria, de minha relatoria, DJ de 03.02.2006; HC nº 85.579-MA, 2ª Turma, unânime, de minha relatoria, DJ de 24.05.2005; HC n° 80.812-PA, 2ª Turma, por maioria, de minha relatoria p/ o acórdão, DJ de 05.03.2004; HC n° 73.903-CE, 2ª Turma, unânime, Rel. Min. Francisco Rezek, DJ de 25.04.1997; e HC n° 74.791-RJ, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. limar Galvão, DJ de 09.05.1997. 4. Necessidade de individualização das respectivas condutas dos indiciados. 5. observância dos princípios do devido processo legal (CF, artigo 5º, LIV), da ampla defesa, contraditório (CF, artigo 5º, LV) e da dignidade da pessoa humana (CF, artigo 1º, III). Precedentes: HC n° 73.590-SP, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 13.12.1996; e HC n° 70.763-DF, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 23.09.1994. 6. No caso concreto, a denúncia é inepta porque não pormenorizou, de modo adequado e suficiente, a conduta do paciente. 7. 'Habeas corpus' deferido."

(HC 86.879/SP, Rel. p/ o acórdão Min. GILMAR MENDES - grifei)

"HABEAS CORPUS" - CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL - RESPONSABILIDADE PENAL DOS CONTROLADORES E ADMINISTRADORES DE INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS - LEI N° 7.492/86 (ARTIGO 25) - DENÚNCIA QUE NÃO ATRIBUI COMPORTAMENTO ESPECÍFICO AO DIRETOR DE CAMBIO DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA Quer O VINCULE, COM APOIO EM DADOS PROBATÓRIOS MÍNIMOS, AO EVENTO DELITUOSO - INÉPCIA DA DENÚNCIA - PEDIDO DEFERIDO.

PROCESSO PENAL ACUSATÓRIO - OBRIGAÇÃO DE O MINISTÉRIO PÚBLICO FORMULAR DENUNCIA JURIDICAMENTE APTA.

O sistema jurídico vigente no Brasil - tendo presente a natureza dialógica do processo penal acusatório, hoje impregnado, em sua estrutura formal, de caráter essencialmente democrático - impõe, ao Ministério Público, a obrigação de expor, de maneira precisa, objetiva e individualizada, a participação das pessoas acusadas da suposta prática da infração penal, a fim de que o Poder Judiciário, ao resolver a controvérsia penal, possa, em obséquio aos postulados essenciais do direito penal da culpa e do princípio constitucional do 'due process of law', ter em consideração, sem transgredir esses vetores condicionantes da atividade de persecução estatal, a conduta individual do réu, a ser analisada, em sua expressão concreta, em face dos elementos abstratos contidos no preceito primário de incriminação. O ordenamento positivo brasileiro repudia as acusações genéricas e repele as sentenças indeterminadas.

A PESSOA SOB INVESTIGAÇÃO PENAL TEM O DIREITO DE NÃO SER ACUSADA COM BASE EX DENUNCIA INEPTA.

A denúncia - enquanto instrumento formalmente consubstanciados da acusação penal - constitui peça processual de indiscutível relevo jurídico. Ela, antes de mais nada, ao delimitar o âmbito temático da imputação penal, define a própria "res in judicio deducta'.

A peça acusatória, por isso mesmo, deve conter a exposição do fato delituoso, em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias. Essa narração, ainda que sucinta, impõe-se ao acusador como exigência derivada do postulado constitucional que assegura, ao réu, o exercício, em plenitude, do direito de defesa. Denúncia que não descreve, adequadamente, o fato criminoso e que também deixa de estabelecer a necessária vinculação da conduta individual de cada agente ao evento delituoso qualifica-se como denúncia inepta. Precedentes.

PERSECUÇÃO PENAL DOS DELITOS CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO - PEÇA ACUSATÓRIA QUE NÃO DESCREVE, QUANTO AO ADMINISTRADOR DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA, QUALQUER CONDUTA ESPECÍFICA QUE O VINCULE AO EVENTO DELITUOSO - INÉPCIA DA DENÚNCIA.

- A mera invocação da condição de diretor em instituição financeira, sem a correspondente e objetiva descrição de determinado comportamento típico que o vincule ao resultado criminoso, não constitui fator suficiente apto a legitimar a formulação da acusação estatal ou a autorizar a prol ação de decreto judicial condenatório.

A circunstância objetiva de alguém meramente exercer cargo de direção em instituição financeira não se revela suficiente, só por si, para autorizar qualquer presunção de culpa (inexistente em nosso sistema jurídico-penal) e, menos ainda, para justificar, como efeito derivado dessa particular qualificação formal, a correspondente persecução criminal em juízo.

AS ACUSAÇÕES PENAIS NÃO SE PRESUMEM PROVADAS: O ÔNUS DA PROVA INCUMBE, EXCLUSIVAMENTE, A QUEM ACUSA.

- Os princípios constitucionais que regem o processo penal põem em evidência o nexo de indiscutível vinculação que existe entre a obrigação estatal de oferecer acusação formalmente precisa e juridicamente apta, de um lado, e o direito individual à ampla defesa, de que dispõe o acusado, de outro. É que, para o acusado exercer, em plenitude, a garantia do contraditório, torna-se indispensável que o órgão da acusação descreva, de modo preciso, os elementos estruturais ('essentialia delicti') que compõem o tipo penal, sob pena de se devolver, ilegitimamente, ao réu, o ônus (que sobre ele não incide) de provar que é inocente.

É sempre importante reiterar na linha do magistério jurisprudencial que o Supremo Tribunal Federal consagrou na matéria - que nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete, ao réu, demonstrar a sua inocência. Cabe, ao contrário, ao Ministério Público, comprovar, de forma inequívoca, para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência (Decreto-lei n° 88, de 20/12/37, artigo 20, n. 5). Precedentes." (HC 83.947/AM, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

"1. AÇÃO PENAL. Denúncia. Deficiência. Omissão dos comportamentos típicos que teriam concretizado a participação dos réus nos fatos criminosos descritos. Sacrifício do contraditório e da ampla defesa. Ofensa a garantias constitucionais do devido processo legal ('due process of law'). Nulidade absoluta e insanável. Superveniência da sentença condenatória. Irrelevância. Preclusão temporal inocorrente. Conhecimento da argüição. em HC. Aplicação do artigo 5º, incisos LIV e LV, da CF. Votos vencidos. A denúncia que, eivada de narração deficiente ou insuficiente, dificulte ou impeça o pleno exercício dos poderes da defesa, é causa de nulidade absoluta e insanável do processo e da sentença condenatória e, como tal, não é coberta por preclusão.

2. AÇÃO PENAL. Delitos contra o sistema financeiro nacional. Crimes ditos societários. Tipos previstos nos artigos 21, parágrafo único, e 22, 'caput', da Lei 7.492/86. Denúncia genérica. Peça que omite a descrição de comportamentos típicos e sua atribuição a autor individualizado, na qualidade de administrador de empresas. Inadmissibilidade. Imputação às pessoas jurídicas. Caso de responsabilidade penal objetiva. Inépcia reconhecida. Processo anulado a partir da denúncia, inclusive. HC concedido para esse fim. Extensão da ordem ao co-réu. .inteligência do artigo 5°, incs. XLV e XLVI, de CF, dos artigos 13, 18, 20 e 26 do CP e 25 da Lei 7.492/86. Aplicação do artigo 41 do CPP. Votos vencidos. No caso de crime contra o sistema financeiro nacional ou de outro dito 'crime societário', é inepta a denúncia genérica, que omite descrição de comportamento típico e sua atribuição a autor individualizado, na condição de diretor ou administrador de empresa."

(HC 83.301/RS, Rel. p/ o acórdão Min. CEZAR PELUSO - grifei)

À leitura da denúncia (fls. 31/34) - peça ora questionada nesta sede processual -, permite constatar, a meu juízo, que o ministério Público, ao formular acusação imperfeita, deixou de cumprir a obrigação processual de promover a descrição precisa do comportamento dos ora pacientes, que os vinculasse, concretamente, aos eventos delituosos narrados na peça acusatória.

Tenho para mim, desse modo, que, no caso presente, a ausência de individuada e detalhada descrição dos comportamentos delituosos atribuídos aos ora pacientes, pela peça acusatória em questão, faz emergir, desse ato processual, grave vício jurídico, de que só pode derivar, como efeito conseqüencial, séria ofensa aos "princípios da lealdade processual, do contraditório no processo penal e da defesa plena" (RTJ 33/430, Rel. Min. PEDRO CHAVES).

Cumpre ter presente, neste ponto, a advertência constante do magistério jurisprudencial desta Suprema Corte, que, ao insistir, na indispensabilidade de o Estado identificar, na peça acusatória, com absoluta precisão, a participação individual de cada denunciado - e considerada a inquestionável repercussão processual desse ato sobre a sentença judicial -, observa que "Discriminar a participação de cada co-réu é de todo necessário (...), porque, se, em certos casos, a simples associação pode constituir um delito per se, na maioria deles a natureza da participação de cada um, na produção do evento criminoso, é que determina a sua responsabilidade, porque alguém pode pertencer ao mesmo grupo, sem concorrer para o delito, praticando, por exemplo, atos penalmente irrelevantes, ou nenhum. Aliás, a necessidade de se definir a participação de cada um resulta da própria Constituição, porque a responsabilidade criminal é pessoal, não transcende da pessoa do delinqüente (...). É preciso, portanto, que se comprove que alguém concorreu com ato seu para o crime" (RTJ 35/517, 534, Rel. Min. VICTOR NUNES LEAL - grifei).

Tem-se, desse modo, que se revela inepta a denúncia, sempre que - tal como no caso ocorre - a peça acusatória, sem especificar, de modo detalhado, a participação dos acusados, vem a atribuir-lhes virtual (e objetiva) responsabilidade pelos eventos delituosos, como explicitado na inicial do presente "writ", pelo só fato "de serem diretores do Banco Sudameris" (fls. 09).

A formulação de acusações genéricas, em delitos societários, culmina por consagrar uma inaceitável hipótese de responsabilidade penal objetiva, com todas as gravíssimas conseqüências que dai podem resultar, consoante adverte, em precisa abordagem do tema, o ilustre Advogado paulista Dr. RONALDO AUGUSTO BRETAS MARZAGÃO ("Denúncias Genéricas em Crime de Sonegação Fiscal", "in" Justiça e Democracia, vol. 1/207-211, 210-211, 1996, RT):

"Se há compromisso da lei com a culpabilidade, não se admite responsabilidade objetiva, decorrente da imputação genérica, que não permite ao acusado conhecer se houve e qual a medida da sua participação no fato, para poder se defender.

Desconhecendo o teor preciso da acusação, o defensor não terá como orientar o interrogatório, a defesa prévia e o requerimento de provas, bem assim não terá como avaliar eventual colidência de defesas entre a do seu constituinte e a do co-réu. O acusado será obrigado a fazer prova negativa de que não praticou o crime, assumindo o ônus da prova que é do Ministério Público, tendo em vista o princípio constitucional da presunção de inocência. A denúncia genérica, nos crimes de sonegação fiscal, impossibilita a ampla defesa e, por isso, não pode ser admitida." (grifei)

Cumpre ter presente, bem por isso, a séria objeção exposta pelo saudoso Ministro ASSIS TOLEDO, para quem "Ser acionista ou membro do conselho consultivo da empresa não é crime. Logo, a invocação dessa condição, sem a descrição de condutas específicas que vinculem cada diretor ao evento criminoso, não basta para viabilizar a denúncia" (RT 715/526).

É preciso insistir na circunstância de que a responsabilidade penal pelos eventos delituosos praticados no plano societário, em nome e em favor de organismos empresariais, deve resolver-se - consoante adverte MANOEL PEDRO PIMENTEL ("Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional", p. 172, 1987, RT) - "na responsabilidade individual dos mandatários, uma vez comprovada sua participação nos fatos" (grifei), eis que, tal como salienta o saudoso Professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, o princípio hoje dominante da responsabilidade por culpa - que não se confunde com o postulado da responsabilidade por risco - revela-se incompatível com a concepção do "versari in re illicita", banida do domínio do direito penal da culpa.

É que - tal como já decidiu o Supremo Tribunal Federal - a circunstância de alguém meramente ostentar, a condição de sócio de uma empresa (ou, como registrado na espécie, haver sido dirigente de instituição financeira) não pode justificar, só por si, a formulação, pelo Estado, de qualquer juízo acusatório fundado numa inaceitável presunção de culpa (RTJ 163/268-269, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Não custa enfatizar que, no sistema jurídico brasileiro, não existe qualquer possibilidade de o Poder Judiciário, por simples presunção ou com fundamento em meras suspeitas, reconhecer, em sede penal, a culpa de alguém.

Na realidade, os princípios democráticos que informam o modelo constitucional consagrado na Carta Política de 1988 repelem qualquer ato estatal que transgrida o dogma de que não haverá culpa penal por presunção nem responsabilidade criminal por mera suspeita.

Meras conjecturas sequer podem conferir suporte material a qualquer acusação estatal. É que, sem base probatória consistente, dados conjecturais não se revestem, em sede penal, de idoneidade jurídica, quer para efeito de formulação de imputação penal, quer, com maior razão, para fins de prolação de juízo condenatório.

Torna-se essencial insistir, portanto, na asserção de que, "Por exclusão, suspeita ou presunção, ninguém pode ser condenado em nosso sistema jurídico-penal", consoante proclamou, em lapidar decisão, o E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (RT 165/596, Rel. Des. VICENTE DE AZEVEDO).

Cumpre ressaltar, neste ponto, que a análise de qualquer peça acusatória impõe que, nela, se identifique, desde logo, a narração objetiva, individuada e precisa do fato delituoso, que, além de estar concretamente vinculado ao comportamento de cada agente, deve ser especificado e descrito, em todos os seus elementos estruturais e circunstanciais, pelo órgão estatal da acusação penal.

Como já precedentemente enfatizado, a imputação penal não pode ser o resultado da vontade pessoal e arbitrária do acusador (RTJ 165/877-878, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Este, para que possa validamente formular a denúncia penal, deve ter por suporte uma necessária base empírica, a fim de que a acusação - que deve sempre narrar a participação individual de cada agente no evento delituoso - não se transforme, como advertia o saudoso Ministro OROSIMBO NONATO, em pura criação mental do acusador (RF 150/393).

Uma das principais obrigações jurídicas do ministério Público no processo penal de condenação consiste no dever de apresentar denúncia que veicule, de modo claro e objetivo, com todos os elementos estruturais, essenciais e circunstanciais que lhe são inerentes, a descrição do fato delituoso, em ordem a viabilizar, o exercício legítimo da ação penal e a ensejar, a partir da estrita observância dos pressupostos estipulados no artigo 41 do Código de Processo Penal, a possibilidade de efetiva atuação da cláusula constitucional da plenitude de defesa.

Daí a advertência presente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

"O processo penal de tipo acusatório repele, por ofensivas à garantia da plenitude de defesa, quaisquer imputações que se mostrem indeterminadas, vagas, contraditórias, omissas ou ambíguas.

Existe, na perspectiva dos princípios constitucionais que regem o processo penal, um nexo de indiscutível vinculação entre a obrigação estatal de oferecer acusação formalmente precisa e juridicamente apta e o direito individual de que dispõe o acusado à ampla defesa.

A imputação penal omissa ou deficiente, além de constituir transgressão do dever jurídico que se impõe ao Estado, qualifica-se como causa de nulidade processual absoluta."

(RTJ 165/877-878, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Não se pode desconhecer, que, no processo penal condenatório - que constitui estrutura jurídico-formal em cujo âmbito o Estado desempenha a sua atividade persecutória -, antagonizam-se exigências contrastantes que exprimem uma situação de tensão dialética, configurada pelo conflito entre a pretensão punitiva deduzida pelo Estado e o desejo de preservação da liberdade individual manifestado pelo réu.

A persecução penal, cuja instauração é justificada pela suposta prática de um ato criminoso, não se projeta nem se exterioriza como uma manifestação de absolutismo estatal. De exercício indeclinável, a "persecucio criminis" sofre os condicionamentos que lhe impõe o ordenamento jurídico. A tutela da liberdade, desse modo, representa uma insuperável limitação constitucional ao poder persecutório do Estado.

As limitações à atividade persecutório-penal do Estado traduzem garantias dispensadas pela ordem jurídica à preservação, pelo suspeito, pelo indiciado ou elo acusado, do seu estado de liberdade.

Tenho salientado, nesta Corte, que a submissão de uma pessoa à jurisdição penal do Estado coloca em evidência, a relação de polaridade conflitante que se estabelece entre a pretensão punitiva do Poder Público, de um lado, e o resguardo à intangibilidade do "jus libertatis" titularizado pelo réu, de outro.

A persecução penal, enquanto atividade estatal juridicamente vinculada, rege-se por padrões normativos, que, consagrados pela Constituição e pelas leis, traduzem limitações significativas ao poder do Estado. Por isso mesmo, o processo penal só pode ser concebido - e assim deve ser visto - como instrumento de salvaguarda da liberdade do réu.

A denúncia - enquanto instrumento formalmente consubstanciados da acusação penal - constitui peça processual de indiscutível relevo jurídico. Ela, antes de mais nada, ao delimitar, o âmbito temático da imputação penal, define a própria "res in judicio deducta".

A peça acusatória, por isso mesmo, deve conter a exposição do fato delituoso, descrito em toda a sua essência e narrado com todas as suas circunstâncias fundamentais. Essa narração, ainda que sucinta, impõe-se ao acusador como exigência derivada do postulado constitucional que assegura, ao réu, o exercício, em plenitude, do direito de defesa.

Em uma palavra: denúncia que não descreve, adequadamente, o fato criminoso e que também deixa de estabelecer a necessária vinculação da conduta individual de cada agente ao evento delituoso qualifica-se - como ressaltado pela jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal - como denúncia inepta (RTJ 57/389 - RTJ 163/268-269).

Essa diretriz jurisprudencial, que tem preponderado, na prática processual desta Suprema Corte, nada mais reflete senão antigo e clássico magistério de JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR ("O Processo Criminal Brasileiro", vol. II/183, item n. 305, 41 ed., 1959, Freitas Bastos), eminente Professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e Ministro deste Supremo Tribunal Federal:

"Vamos, agora, determinar as formalidades da queixa e da denúncia.

...........

É uma exposição narrativa e demonstrativa. Narrativa, porque deve revelar o fato com todas as suas circunstâncias, isto é, não só a ação transitiva, como a pessoa que a praticou ('quis'), os meios que empregou ('quibus auxiliis'), o malefício que produziu ('quid'), os motivos que o determinaram a isso ('cur'), a maneira por que a praticou ('quomodo'), o lugar onde a praticou ('ubi'), o tempo ('quando'). Demonstrativa, porque deve descrever o corpo de delito, dar as razões de convicção ou presunção e nomear as testemunhas e informantes." (grifei)

Igualmente lapidar, sob esse aspecto, o magistério de ALBERTO SILVA FRANCO, eminente Desembargador paulista, para quem (RT 525/372-375):

"Num processo de tipo acusatório, não se compreende que o objeto da acusação fique ambíguo, indefinido, incerto ou logicamente contraditório, pois é ele que estabelece os limites das atividades, cognitiva e decisória, do Juiz. A este efeito do objeto da acusação é que EBERHARD SCHMIDT denominou de vinculação temática do Juiz. Este só pode ter 'como objeto de suas comprovações objetivas e de sua valoração jurídica aquele sucesso histórico cuja identidade, com respeito ao fato e com respeito ao autor, resulta da ação (...)." (grifei)

Não custa rememorar que foi, em proveito da liberdade individual, que se impôs, ao órgão da acusação, o dever de incluir, na denúncia, todos os elementos essenciais á exata compreensão da imputação penal deduzida contra o suposto autor do comportamento delituoso.

Essa obrigação processual do Ministério Público - insista-se - guarda íntima conexão com uma garantia fundamental outorgada pela Constituição da República em favor daqueles que sofrem, em juízo, a persecução penal movida pelo Estado: a garantia da plenitude de defesa.

É por essa razão que VICENTE GRELO FILHO ("Manual de Processo Penal", p. 64, 1991, Saraiva), ao versar o tema referente aos princípios constitucionais que regem o processo penal, estabelece o nexo de indiscutível vinculação que existe entre a obrigação estatal de oferecer acusação formalmente precisa, processualmente apta e juridicamente idônea, de um lado, e o direito individual do acusado à ampla defesa, de outro:

"Outro requisito essencial à ampla defesa é a apresentação clara e completa da acusação, que deve ser formulada de modo que possa o réu contrapor-se a seus termos. É essencial, portanto, a descrição do fato delituoso em todas as suas circunstâncias. Uma descrição incompleta, dúbia ou que não seja de um fato típico penal gera a inépcia da denúncia e nulidade do processo, com a possibilidade de trancamento através de habeas corpus, se o juiz não rejeitar desde logo a inicial. Para que alguém possa preparar e realizar sua defesa é preciso que esteja claramente descrito o fato de que deve defender-se." (grifei)

É que, se assim não for, inverter-se-á, de modo ilegítimo, no processo penal de condenação, o ônus da prova, com evidente ofensa à presunção constitucional de inocência.

Não custa enfatizar, por isso mesmo, na linha do magistério jurisprudencial consagrado no âmbito do Supremo Tribunal Federal, que "Nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete, ao réu, demonstrar a sua inocência. Cabe, ao ministério Público, comprovar, de forma inequívoca, a culpabilidade do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência (Decreto-lei n° 88, de 20112/37, artigo 20, n. 5)" (RTJ 161/264-266, 265, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Torna-se relevante salientar, finalmente, que esta colenda Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal tem censurado a formulação de denúncias ineptas, fazendo-o em decisões consubstanciadas em acórdãos assim ementados:

"'HABEAS CORPOS'. DENÚNCIA. ESTADO DE DIREITO. DIREITOS FUNDAMENTAIS. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. REQUISITOS DO ARTIGO 41 DO CPP NÃO PREENCHIDOS.

1 - A técnica da denúncia (artigo 41 do Código de Processo Penal) tem merecido reflexão no plano da dogmática constitucional, associada especialmente ao direito de defesa. Precedentes.

2 - Denúncias genéricas, que não descrevem os fatos na sua devida conformação, não se coadunam com os postulados básicos do Estado de Direito.

3 - violação ao princípio da dignidade da pessoa humana. Não é difícil perceber os danos que a mera existência de uma ação penal impõe ao indivíduo. Necessidade de rigor e prudência daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais e daqueles que podem decidir sobre o seu curso.

4 - Ordem deferida, por maioria, para trancar a ação penal."

(RTJ 195/126, Rel. Min. GILMAR MENDES - grifei)

"'Habeas Corpus'. (...). 3. No caso concreto, a denúncia limita-se a reportar, -de maneira pouco precisa, os termos de representação formulada pelos policiais rodoviários federais envolvidos. Não narra o ato concreto do paciente que configure ameaça ou abuso de autoridade. A peça acusatória não observou os requisitos que poderiam oferecer substrato a uma persecução criminal minimamente aceitável. 4. Na espécie, a atividade persecutória do Estado orienta-se em flagrante desconformidade com os postulados processuais-constitucionais. A denúncia não preenche os requisitos para a regular tramitação de uma ação penal que assegure o legitimo direito de defesa, tendo em vista a ausência de fatos elementares associados às imputações dos crimes de ameaça e abuso de autoridade. Precedentes: HC n° 86.424/SP, acórdão de minha relatoria, Rel. originária Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, por maioria, DJ de 20.10.2006; HC nº 84.388/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, unânime, DJ de 19.05.2006; e HC n° 84.409/SP, acórdão de minha relatoria, Rel. originária Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, por maioria, DJ de 19.08.2005. 5. Ordem concedida para que seja trancada a ação penal Instaurada contra o paciente, em face da manifesta inépcia da denúncia."

(HC 86.395/SP, Rel. Min. GILMAR MENDES - grifei)

Sendo assim, tendo presentes as razões expostas, e não obstante o parecer da douta Procuradoria Geral da República, defiro o pedido de "habeas corpos", para invalidar, desde a denúncia, inclusive, o procedimento penal instaurado contra os ora pacientes Milto Bardini, Rubens Nunes Tavares, Yves Louis Jacques Lejeune, Oswaldo Daude e Giovanni Lenti (Processo-crime nº 94.0101826-0 - 3ª Vara Federal de São Paulo/SP), sem prejuízo da possibilidade de o Ministério Público oferecer nova peça acusatória, desde que juridicamente idônea e processualmente apta, contanto que ainda não consumada, na espécie, eventual prescrição penal.

É o meu voto.

EXTRATO DE ATA

HABEAS CORPUS 84.580-1

PROCED.: SÃO PAULO

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

PACTE.(S) : MILTO BARDINI

PACTE.(S): RUBENS NUNES TAVARES

PACTE.(S): YVES LOUIS JACQUES LEJEUNE

PACTE.(S): OSWALDO DAUDE OU OSWALDO SAÚDA

PACTE.(S): GIOVANNI LENTI

IMPTE.(S): JOSÉ CARLOS DIAS E OUTRO (A/S)

COATOR(A/S) (ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Decisão: A Turma, à unanimidade, deferiu o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, os Senhores Ministros Joaquim Barbosa e Eros Grau. 2ª Turma, 25.08.2009.

Presidência da Senhora Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Senhores Ministros Celso de Mello e Cezar Peluso. Ausentes, justificadamente, os Senhores Ministros Joaquim Barbosa e Eros Grau.

Subprocurador-Geral da República, Dr. Francisco Adalberto Nóbrega.

Carlos Alberto Cantanhede - Coordenador




JURID - Habeas corpus. Crime contra o sistema financeiro nacional. [25/11/09] - Jurisprudência

 



 

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário