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sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Informativo STF 405 - Supremo Tribunal Federal

Informativo STF


Brasília, 10 a 14 de outubro de 2005 - Nº 405.

Este Informativo, elaborado a partir de notas tomadas nas sessões de julgamento das Turmas e do Plenário, contém resumos não-oficiais de decisões proferidas pelo Tribunal. A fidelidade de tais resumos ao conteúdo efetivo das decisões, embora seja uma das metas perseguidas neste trabalho, somente poderá ser aferida após a sua publicação no Diário da Justiça.

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SUMÁRIO




Plenário
1ª Turma
Bens Públicos de Uso Especial e Imunidade
IR: Atualização e Princípios da Capacidade Contributiva e do Não Confisco
Ação Civil Pública e Legitimidade do Ministério Público - 1
Ação Civil Pública e Legitimidade do Ministério Público - 2
ICMS e Base de Cálculo
2ª Turma
Adulteração de Sinal Identificador de Veículo Automotor - 2
Prorrogação de Contrato de Concessão de Serviço Público e Ausência de Licitação - 2
Sociedade Civil de Direito Privado e Ampla Defesa - 4
Clipping do DJ
Transcrições
Sociedade Civil de Direito Privado e Ampla Defesa (RE 201819/RJ)
Adulteração de Sinal Identificador de Veículo Automotor (HC 86424/SP)
HC e Justiça Trabalhista (HC 85096/MG)
Presunção Constitucional de Não-Culpabilidade - Maus Antecedentes (RE 464947/SP)


PLENÁRIO


Não houve sessões nos dias 12 e 13.10.2005.


PRIMEIRA TURMA


Bens Públicos de Uso Especial e Imunidade

A Turma iniciou julgamento de recurso extraordinário interposto pela Companhia Docas do Estado de São Paulo - CODESP contra acórdão do Tribunal de Alçada do mesmo Estado que entendera incidente o IPTU sobre o patrimônio do Porto de Santos/SP e legal a cobrança das taxas de conservação e limpeza de logradouros públicos, remoção de lixo e iluminação pública. Sustenta-se, na espécie, ofensa aos arts. 21, XII, f; 22, X e 150, VI, a, todos da CF, sob a alegação de que os imóveis são de uso especial e, portanto, estão acobertados pela imunidade recíproca prevista no art. 150, VI, a, da CF, bem como de que as taxas são indevidas, uma vez que a recorrente não utiliza os serviços prestados pelo Município. O Min. Marco Aurélio, relator, por ausência de prequestionamento, conheceu do recurso somente quanto à alegada imunidade e negou-lhe provimento. Entendeu que a imunidade recíproca está restrita à instituição de imposto sobre o patrimônio ou renda ou serviços das pessoas jurídicas de direito público e que a recorrente não faria jus a tal benefício por se tratar de sociedade de economia mista, exploradora de atividade econômica (CF, art. 173, § 2º). Ademais, asseverou que a recorrente seria o sujeito passivo da obrigação tributária, tendo em conta que o fato gerador do tributo não é apenas a propriedade, mas também o domínio útil ou a posse quando estes não estão na titularidade do proprietário e, no caso, a União, proprietária do imóvel, transferira o domínio útil à recorrente por concessão de obras e serviços. Após, a Turma decidiu afetar o feito a julgamento do Plenário.
RE 253472/SP, rel. Min. Marco Aurélio, 11.10.2005. (RE-253472)
 
IR: Atualização e Princípios da Capacidade Contributiva e do Não Confisco

A Turma decidiu afetar ao Plenário julgamento de recurso extraordinário em que se discute se a não atualização das tabelas do imposto de renda e das respectivas deduções pelos índices utilizados na correção da UFIR (Lei 9.250/95, art. 2º) ofende ou não os princípios da capacidade contributiva e do não confisco. Trata-se de recurso interposto contra acórdão do TRF da 1ª Região que indeferira pedido de correção das tabelas do imposto de renda ao fundamento de que a sua não atualização, por si só, não viola esses princípios constitucionais. Sustenta-se, na espécie, afronta ao arts. 146, III, a, e 150, II e IV, ambos da CF, sob a alegação de que a aludida Lei 9.250/95 não poderia reger a matéria, sob pena de desrespeito aos referidos postulados, uma vez que cabe à lei complementar a regulamentação de tema pertinente a fato gerador e base de cálculo.
RE 388312/MG, rel. Min. Marco Aurélio, 11.10.2005. (RE-388312)

Ação Civil Pública e Legitimidade do Ministério Público - 1

O Ministério Público possui legitimidade para propor ação civil pública com o fim de reduzir reajuste na tarifa de transporte coletivo. Com base nesse entendimento, a Turma negou provimento a recurso extraordinário interposto pelo Município de Santos/SP em que se sustentava ofensa aos arts. 1º; 2º; 30; 34, VII, c e 129, todos da CF, sob alegação de ilegitimidade do parquet e afronta ao princípio federativo e à autonomia municipal. Considerou-se presente o interesse difuso, porquanto caracterizada a sua natureza indivisível, bem como envolvidos segmentos indeterminados da sociedade. Asseverando tratar-se de relação de prestação de serviços, submetida ao Código de Defesa do Consumidor, e não de questão tributária, entendeu-se adequada a competência do Ministério Público (CF, art. 129, III). Ressaltou-se, ainda, que a autonomia municipal não obsta a preservação de direitos difusos. Precedentes citados: RE 195056/PR (DJU de 14.11.2003); RE 213631/MG (DJU de 7.4.2000); AI 491195 AgR/SC (DJU de 7.5.2004); RE 163231/SP (DJU de 29.6.2001).
RE 379495/SP, rel. Min. Marco Aurélio, 11.10.2005. (RE-379495)
 
Ação Civil Pública e Legitimidade do Ministério Público - 2

A Turma iniciou julgamento de recurso extraordinário interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina que reconhecera, de ofício, a ilegitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública em que pretendida a revisão de cláusulas de contratos de arrendamento mercantil que prevêem a correção das parcelas de acordo com a variação cambial do dólar. Sustenta-se, na espécie, ofensa aos arts. 127 e 129, III, ambos da CF, sob a alegação de estarem envolvidos direitos individuais homogêneos ligados à defesa do consumidor, haja vista que requerida a nulidade da cláusula abusiva; a revisão dos contratos de todos os consumidores que pactuaram com as empresas rés (direito coletivo) e a vedação da inserção dessa cláusula nos contratos futuros (direito difuso). O Min. Marco Aurélio, relator, considerando que a hipótese abrange direitos e interesses que se irradiam no campo do direito do consumidor, deu provimento ao recurso para, reformando o acórdão proferido pela Corte de origem, assentar a legitimidade do Ministério Público, prosseguindo-se com a ação civil pública proposta. Entendeu que, embora presente a legitimidade dos devedores, a legitimação concorrente do parquet deve ser reconhecida. Após, o julgamento foi adiado em virtude do pedido de vista do Min. Cezar Peluso.
RE 401839/SC, rel. Min. Marco Aurélio, 11.10.2005. (RE-401839)
 
ICMS e Base de Cálculo

Com base na orientação fixada pelo Plenário no julgamento do RE 212209/RS (DJU de 14.2.2003) no sentido de que não ofende o princípio constitucional da não-cumulatividade a base de cálculo do ICMS corresponder ao valor da operação ou prestação somado ao próprio tributo, a Turma manteve decisão monocrática do Min. Sydney Sanches, relator, que negara seguimento a agravo de instrumento em recurso extraordinário, no qual se pretendia a reforma de acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que não divergira dessa orientação. Precedentes citados: RE 209393/SP (DJU de 9.6.2000) e RE 254202/SP (DJU de 4.8.2000).
AI 319670 AgR/SP, rel. Min. Cezar Peluso, 11.10.2005. (AI-319670)


SEGUNDA TURMA


Adulteração de Sinal Identificador de Veículo Automotor - 2

Por atipicidade da conduta, a Turma, por maioria, deferiu habeas corpus para trancar ação penal instaurada contra magistrado, denunciado pela suposta prática do crime previsto no art. 311, § 1º, do CP. No caso, o acusado recebera do Detran um par de placas reservadas à Polícia Federal, em razão de requisição feita por outro magistrado, também denunciado, cuja finalidade consistiria em viabilizar investigações de caráter sigiloso. Posteriormente, apurara-se que referidas placas teriam sido utilizadas para outro fim, tendo substituído placas originais de veículos particulares - v. Informativo 400. Entendeu-se que a substituição de placas particulares por outras fornecidas pelo Detran não pode configurar qualquer adulteração ou falsificação, já que esse órgão sempre tem a possibilidade de verificar a existência da placa reservada, a sua origem e a razão de sua utilização, perante as autoridades públicas ou quem mais tivesse interesse no assunto. Considerou-se que, para a configuração do crime, é imprescindível que a substituição da placa se faça por outra placa, falsa. Ressaltou-se, por fim, que a prática dos citados atos pode consistir em irregularidade administrativa, passível de responsabilização nessa esfera. Vencida a Min. Ellen Gracie, relatora, que denegava a ordem. Leia o inteiro teor do voto vencedor na seção Transcrições deste Informativo.
HC 86424/SP, rel. Min. Ellen Gracie, rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, 11.10.2005. (HC-86424)

Prorrogação de Contrato de Concessão de Serviço Público e Ausência de Licitação - 2

Em conclusão de julgamento, a Turma, por maioria, indeferiu habeas corpus impetrado em favor de prefeito e vice-prefeito de Município do Estado do Rio Grande do Sul, denunciados pela suposta prática do crime previsto no art. 89 da Lei 8.666/93, consistente no fato de terem prorrogado contrato de concessão de serviço público de transporte coletivo urbano sem que fosse efetuada nova licitação - v. Informativo 359. No caso concreto, os pacientes iniciaram e sancionaram projeto de lei que permitiu a prorrogação do referido contrato em benefício de empresa que, de acordo com o Ministério Público, seria de propriedade de genitor de um dos denunciados. Entendeu-se que o fato descrito na denúncia se ajusta, em tese, ao tipo inscrito no referido dispositivo, salientando-se que o elemento subjetivo do ilícito somente poderá ser aferido com a produção de provas, incabível na via eleita. Considerou-se que o administrador que, de forma omissiva, deixa de observar as formalidades pertinentes ao processo licitatório fica sujeito às sanções do delito em questão. Asseverou-se, também, que a Constituição, em seu art. 175, exige licitação, na forma da lei, para a prestação de serviços públicos, e que o administrador público, em sua atuação, está condicionado aos princípios da legalidade e da moralidade pública. Concluiu-se que, a despeito de o ato estar fundamentado em lei municipal controversa, há a concreta possibilidade de se adotar medida judicial com o objetivo de inquinar de nulidade e de responsabilidade o ato eivado do vício de imoralidade. Ressaltou-se, ademais, que o regime de concessão e permissão de serviços públicos é regulado por lei federal, razão por que estaria prejudicada a alegação da incidência de lei municipal, e que é impossível legitimar prorrogação por prazo indeterminado ou discricionariamente dilatado, tal como feito. Vencido o Min. Gilmar Mendes que deferia a ordem por entender atípica a conduta dos pacientes.
HC 84137/RS, rel. Min. Carlos Velloso, 11.10.2004. (HC-84137)

Sociedade Civil de Direito Privado e Ampla Defesa - 4

A Turma, concluindo julgamento, negou provimento a recurso extraordinário interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que mantivera decisão que reintegrara associado excluído do quadro da sociedade civil União Brasileira de Compositores - UBC, sob o entendimento de que fora violado o seu direito de defesa, em virtude de o mesmo não ter tido a oportunidade de refutar o ato que resultara na sua punição - v. Informativos 351, 370 e 385. Entendeu-se ser, na espécie, hipótese de aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas. Ressaltou-se que, em razão de a UBC integrar a estrutura do ECAD - Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, entidade de relevante papel no âmbito do sistema brasileiro de proteção aos direitos autorais, seria incontroverso que, no caso, ao restringir as possibilidades de defesa do recorrido, a recorrente assumira posição privilegiada para determinar, preponderantemente, a extensão do gozo e da fruição dos direitos autorais de seu associado. Concluiu-se que as penalidades impostas pela recorrente ao recorrido extrapolaram a liberdade do direito de associação e, em especial, o de defesa, sendo imperiosa a observância, em face das peculiaridades do caso, das garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Vencidos a Min. Ellen Gracie, relatora, e o Min. Carlos Velloso, que davam provimento ao recurso, por entender que a retirada de um sócio de entidade privada é solucionada a partir das regras do estatuto social e da legislação civil em vigor, sendo incabível a invocação do princípio constitucional da ampla defesa.
RE 201819/RJ, rel. Min. Ellen Gracie, rel p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, 11.10.2005. (RE-201819)

SessõesOrdináriasExtraordináriasJulgamentos
Pleno------
1ª Turma11.10.2005--228
2ª Turma11.10.2005--129


C L I P P I N G   D O   D J

14 de outubro de 2005


ADI N. 2.349-ES
RELATOR: MIN. EROS GRAU
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. § 2º DO ARTIGO 229 DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. TRANSPORTE COLETIVO INTERMUNICIPAL. TRANSPORTE COLETIVO URBANO. ARTIGO 30, V DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. TRANSPORTE GRATUITO. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA. POLICIAIS CIVIS. DIREITO ADQUIRIDO. INEXISTÊNCIA.
1. Os Estados-membros são competentes para explorar e regulamentar a prestação de serviços de transporte intermunicipal. 2. Servidores públicos não têm direito adquirido a regime jurídico. Precedentes.
3. A prestação de transporte urbano, consubstanciando serviço público de interesse local, é matéria albergada pela competência legislativa dos Municípios, não cabendo aos Estados-membros dispor a seu respeito.
4. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado parcialmente procedente.
* noticiado no Informativo 399

ADI N. 3.035-PR E ADI N. 3.054-PR
RELATOR: MIN. GILMAR MENDES
EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada contra a lei estadual paranaense de no 14.162, de 27 de outubro de 2003, que estabelece vedação ao cultivo, a manipulação, a importação, a industrialização e a comercialização de organismos geneticamente modificados. 2. Alegada violação aos seguintes dispositivos constitucionais: art. 1o; art. 22, incisos I, VII, X e XI; art. 24, I e VI; art. 25 e art. 170, caput, inciso IV e parágrafo único. 3. Ofensa à competência privativa da União e das normas constitucionais relativas às matérias de competência legislativa concorrente. 4. Ação Julgada Procedente.
* noticiado nos Informativos 333 e 382
ADI N. 3.332-MA
RELATOR: MIN. EROS GRAU
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 13 DA LEI N. 8.032/03 DO ESTADO DO MARANHÃO. CARGO PÚBLICO. INVESTIDURA POR TRANSPOSIÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE.
1. O texto constitucional em vigor estabelece que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração. É inconstitucional a chamada investidura por transposição. 2. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente.
* noticiado no Informativo 394

AG. REG. NA AR N. 1.583-RJ
RELATOR: MIN. CARLOS BRITTO
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM AÇÃO RESCISÓRIA. INCISO V DO ART. 485 DO CPC. REAJUSTE DE 28,86%. EXTENSÃO AOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS. LEIS Nº 8.622/93 E 86.27/93. COMPENSAÇÃO.
Ao contestar a ação originária, por negativa geral, a União se descurou de pedir a compensação de reajustes eventualmente já concedidos aos servidores. Este fato serviu de fundamento ao acórdão rescindendo, que deu provimento ao apelo extremo dos réus. Logo, como se trata de direito patrimonial, o assunto não pode ser agitado, com força própria, em ação rescisória, a qual, por outro lado, não se presta a corrigir erro material.
Por tais motivos, confirma-se a decisão que negou seguimento ao pedido rescisório.
Agravo regimental desprovido.
* noticiado no Informativo 395

QUEST. ORD. EM AC N. 929-RJ
RELATOR: MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE
EMENTA: 1. Medida cautelar em recurso extraordinário: competência do Supremo Tribunal Federal para o julgamento de medidas cautelares de RE, quando nela se oponha o recorrente à aplicação do art. 542, § 3º, do C. Pr. Civil: incidência do disposto no parágrafo único do art. 800 do C.Pr.Civil ("interposto o recurso, a medida cautelar será requerida diretamente ao tribunal"): hipótese de medida cautelar que visa a afastar óbice ao processamento do recurso na instância a qua, diversa do problema do início da jurisdição cautelar do Supremo para conceder efeito suspensivo ao RE: precedente (Pet. 2222, 1ª T., 9.12.03, Pertence, DJ 12.03.04). 2. Recurso extraordinário: temperamentos impostos à incidência do art. 542, § 3º, C.Pr.Civil, entre outras hipóteses, na de antecipação de tutela que possa tornar ineficaz o eventual provimento dos recursos extraordinário ou especial. 3. Medida cautelar: deferimento: caso que - dados os termos da antecipação de tutela, em particular, a injunção à autarquia de licitar de imediato as linhas objeto da permissão questionada - é daqueles que efetivamente não admitem a retenção do recurso extraordinário.
* noticiado no Informativo 400

QUEST. ORD. EM MED. CAUT. EM HC N. 84.539-SP
RELATOR: MIN. CARLOS BRITTO
EMENTA: HABEAS CORPUS. QUESTÃO DE ORDEM. MEDIDA LIMINAR. PACIENTE CONDENADO A TRÊS ANOS DE RECLUSÃO POR TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. ALEGAÇÃO DE DEMORA EXCESSIVA NO JULGAMENTO DE RECURSO DE APELAÇÃO. SUCESSIVOS PEDIDOS DE INFORMAÇÕES AO TRIBUNAL DE ORIGEM. RISCO DE O ACUSADO VIR A CUMPRIR, EM SEDE CAUTELAR, A INTEGRALIDADE DA SANÇÃO PENAL QUE LHE FOI IMPOSTA.
É de se considerar excessivo o lapso temporal de mais de dois anos para julgamento de recurso de apelação criminal. Notadamente quando se trata de réu preso, com parecer ministerial favorável à sua apelação e que sofre o risco de cumprir integralmente a sanção que lhe foi imposta (reclusão por 3 anos).
Questão de ordem resolvida pelo deferimento do pedido de medida liminar, para que o paciente aguarde em regime de prisão domiciliar o recurso de apelação que interpôs.
* noticiado no Informativo 374

HC N. 84.653-SP
RELATOR: MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE
I. Crime tentado: arrependimento eficaz (CP, art. 15): conseqüências jurídico-penais.
Diversamente do que pode suceder na "desistência voluntária" - quando seja ela mesma o fator impeditivo do delito projetado ou consentido -, o "arrependimento eficaz" é fato posterior ao aperfeiçoamento do crime tentado, ao qual, no entanto, se, em concreto, impediu se produzisse o resultado típico, a lei dá o efeito de elidir a punibilidade da tentativa e limitá-la à conseqüente aos atos já praticados.
II. Denúncia: tentativa de homicídio duplamente qualificado: ausência de descrição de circunstância posterior do fato - o arrependimento do agente -, que implica a sua desclassificação jurídica para um dos tipos de lesão corporal: caso de rejeição.
1. Se se tem, na denúncia, simples erro de direito na tipificação da imputação de fato idoneamente formulada é possível ao juiz, sem antecipar formalmente a desclassificação, afastar de logo as conseqüências processuais ou procedimentais decorrentes do equívoco e prejudiciais ao acusado.
2. Na mesma hipótese de erro de direito na classificação do fato descrito na denúncia, é possível, de logo, proceder-se a desclassificação e receber a denúncia com a tipificação adequada à imputação fática veiculada, se, por exemplo, da qualificação jurídica do fato imputado depender a fixação da competência ou a eleição do procedimento a seguir.
3. A mesma alternativa de solução, entretanto, não parece adequar-se aos princípios, quando a imputação de fato não é idônea: seja (1) porque divorciada - no tocante à classificação jurídica que propõe - dos elementos de informação disponíveis; seja (2) porque a descrição que nela se contenha sequer corresponda à acertada qualificação jurídica do episódio real, segundo os mesmos dados empíricos de convicção recolhidos.
4. De um lado, não pode o órgão jurisdicional, liminarmente, substituir-se ao Ministério Público - titular exclusivo da ação penal - e, a fim de retificar-lhe a classificação jurídica proposta, aditar à denúncia circunstância nela não contida, ainda que resultante dos elementos informativos que a instruam.
5. Por outro lado, carece de justa causa a denúncia, tanto quando veicula circunstância essencial desamparada por elementos mínimos de suspeita plausível da sua realidade, quanto se omite circunstância do fato, igualmente essencial à sua qualificação jurídica, cuja realidade os mesmos elementos de informação evidenciem.
6. Verificada essa última hipótese, não podia ser recebida a denúncia, nem sob a capitulação que formula - fruto da omissão de circunstância do fato, que a inviabiliza -, nem mediante desclassificação que a ajustasse aos dados unívocos do inquérito, solução que implicaria inadmissível aditamento, pelo juízo, de fato não constante da imputação formulada pelo Ministério Público.
7. HC deferido para rejeitar a denúncia, sem prejuízo de que outra seja adequadamente oferecida.
* noticiado no Informativo 395

HC N. 85.096-MG
RELATOR: MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE
EMENTA: Habeas corpus contra decreto de prisão civil de Juiz do Trabalho: coação atribuída ao Tribunal Regional do Trabalho: coexistência de acórdãos diversos para o mesmo caso, emanados de tribunais de idêntica hierarquia (STJ e TST): validade do acórdão do STJ, no caso, dado que as impetrações foram julgadas antes da EC 45/04.
Até a edição da EC 45/04, firme a jurisprudência do Tribunal em que, sendo o habeas corpus uma ação de natureza penal, a competência para o seu julgamento "será sempre de juízo criminal, ainda que a questão material subjacente seja de natureza civil, como no caso de infidelidade de depositário, em execução de sentença"; e, por isso, quando se imputa coação a Juiz do Trabalho de 1º Grau, compete ao Tribunal Regional Federal o seu julgamento, dado que a Justiça do Trabalho não possui competência criminal (v.g., CC 6.979, 15.8.91, Velloso, RTJ 111/794; HC 68.687, 2ª T., 20.8.91, Velloso, DJ 4.10.91).
* noticiado no Informativo 394

HC 85.646-SP
RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO
PRISÃO PREVENTIVA - PARÂMETROS DA AÇÃO PENAL - MATERIALIDADE E AUTORIA. A materialidade do crime e os indícios da autoria não respaldam, por si sós, a prisão preventiva.
PRISÃO PREVENTIVA - GRAVIDADE DO CRIME. A gravidade do crime circunscreve-se ao tipo penal, não autorizando a custódia preventiva.
PRISÃO PREVENTIVA - TRANQÜILIDADE SOCIAL. Juízo sobre a intranqüilidade social, de nítido caráter subjetivo, não serve de base à prisão preventiva.
PRISÃO PREVENTIVA - REPUTAÇÃO DE ÓRGÃO PARLAMENTAR. A preservação da respeitabilidade de órgão do Legislativo - Comissão Parlamentar de Inquérito - prescinde de medidas extremas, como é a prisão preventiva do acusado da prática criminosa.
PRISÃO PREVENTIVA - COMOÇÃO POPULAR - INSUFICIÊNCIA. Por maior que seja a repercussão do crime na vida gregária, o sentimento de indignação do público em geral, descabe, sob essa óptica, implementar a prisão do acusado, invertendo-se a ordem natural das coisas.
PRISÃO PREVENTIVA - PODER ECONÔMICO. O poder econômico quer o individual do acusado, quer do grupo que se diz criminoso, não conduz a pronunciamento no sentido de se ter a prisão precoce do envolvido.
PRISÃO PREVENTIVA - AÇÕES EM CURSO. O princípio da não-culpabilidade exclui a tomada de ações penais em curso como a respaldar a segregação do acusado.

Acórdãos Publicados: 217



T R A N S C R I Ç Õ E S


Com a finalidade de proporcionar aos leitores do INFORMATIVO STF uma compreensão mais aprofundada do pensamento do Tribunal, divulgamos neste espaço trechos de decisões que tenham despertado ou possam despertar de modo especial o interesse da comunidade jurídica.


Sociedade Civil de Direito Privado e Ampla Defesa (Transcrições)

RE 201819/RJ*

RELATOR PARA ACÓRDÃO: MINISTRO GILMAR MENDES

VOTO-VISTA: A eminente Relatora, a Ministra Ellen Gracie, proferiu voto nos seguintes termos:

"A recorrente, União Brasileira de Compositores - UBC, é sociedade civil sem fins lucrativos, dotada de personalidade jurídica de direito privado.
Por motivos irrelevantes para a solução do presente extraordinário, a recorrente excluiu o recorrido de seu quadro de sócios, em procedimento assim narrado no acórdão da origem:

'Embora a sociedade tivesse, de fato, por seu órgão deliberativo, designado uma comissão especial para apurar as possíveis infrações estatutárias atribuídas ao autor, tal comissão, por mais ilibada que fosse, deixou de cumprir princípio constitucional, não ensejando ao apelado oportunidade de defender-se das acusações e de realizar possíveis provas em seu favor.
Conforme se vê de fls. 101/102, a comissão simplesmente reuniu-se e, examinando a documentação fornecida pelo secretário da sociedade, concluiu pela punição do autor. Nada além.
Não se pode, na verdade, pretender que uma entidade de compositores, em sua vida associativa, adote regras ou formas processuais rigorosas, mas também não se pode admitir que princípios constitucionais básicos sejam descumpridos flagrantemente.
Caracterizadas as infrações, ao ver da comissão, o autor tinha de ser, expressa e formalmente, cientificado das mesmas e convocado a apresentar, querendo, em prazo razoável, a sua defesa, facultando-lhe a produção das provas que entendesse cabíveis.
Só depois disso é que poderia surgir o parecer da comissão, num ou noutro sentido.
Como foi feito, o direito defesa do autor foi mesmo violado, sem que se adentre no mérito, na justiça ou injustiça da punição.' (fls. 265 e 266)

Como se vê, o Tribunal a quo, com fundamento no princípio da ampla defesa, anulou a punição aplicada ao recorrido.

O estatuto da recorrida, em seu art. 16, determina que: "a diretoria nomeará comissão de inquérito composta de três Sócios, a fim de apurar indícios, atos ou fatos que tornem necessária a aplicação de penalidades aos Sócios que contrariem os deveres prescritos no Capítulo IV destes Estatutos." (fl. 48).
A leitura do acórdão da apelação revela que a regra acima transcrita foi integralmente obedecida, porém ela foi afastada em homenagem ao princípio da ampla defesa.

Entendo que as associações privadas têm liberdade para se organizar e estabelecer normas de funcionamento e de relacionamento entre os sócios, desde que respeitem a legislação em vigor. Cada indivíduo, ao ingressar numa sociedade, conhece suas regras e seus objetivos, aderindo a eles.
A controvérsia envolvendo a exclusão de um sócio de entidade privada resolve-se a partir das regras do estatuto social e da legislação civil em vigor. Não tem, portanto, o aporte constitucional atribuído pela instância de origem, sendo totalmente descabida a invocação do disposto no art. 5º, LV da Constituição para agasalhar a pretensão do recorrido de reingressar nos quadros da UBC.
Obedecido o procedimento fixado no estatuto da recorrente para a exclusão do recorrido, não há ofensa ao princípio da ampla defesa, cuja aplicação à hipótese dos autos revelou-se equivocada, o que justifica o provimento do recurso.
Diante do exposto, conheço do recurso, e lhe dou provimento. Condeno o recorrido ao pagamento de custas e honorários advocatícios, fixados em 10% do valor atribuído à causa devidamente atualizada."

Após o voto da eminente Relatora pedi vista dos autos por se tratar de um caso típico de aplicação de direitos fundamentais às relações privadas - um assunto que, necessariamente, deve ser apreciado sob a perspectiva de uma jurisdição de perfil constitucional.

O tema versado nos presentes autos tem dado ensejo a uma relevante discussão doutrinária e jurisprudencial na Europa e nos Estados Unidos. Valho-me aqui de estudo por mim realizado constante da obra "Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade - Estudos de Direito Constitucional", sob o título "Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas", desenvolvido com base em conferências proferidas no curso de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, em 20/10/1994, e no 5º Encontro Nacional de Direito Constitucional (Instituto Pimenta Bueno) - Tema: "Direitos Humanos Fundamentais", em 20/09/1996, USP/SP.

No aludido ensaio, teço as seguintes considerações sobre o tema:

"A questão relativa à eficácia dos direitos fundamentais no âmbito das relações entre particulares marcou o debate doutrinário dos anos 50 e do início dos anos 60 na Alemanha. Também nos Estados Unidos, sob o rótulo da 'state action', tem-se discutido intensamente a aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas.
É fácil ver que a doutrina tradicional dominante do Século XIX e mesmo ao tempo da República de Weimar sustenta orientação segundo a qual os direitos fundamentais destinam-se a proteger o indivíduo contra eventuais ações do Estado, não assumindo maior relevância para as relações de caráter privado. Dos dois direitos fundamentais com notória eficácia para os entes privados (art. 118, 1, 1. período - liberdade de opinião; art. 159, 2. período - liberdade de coalizão) extraiu-se um argumentum e contrario.
Um entendimento segundo o qual os direitos fundamentais atuam de forma unilateral na relação entre o cidadão e o Estado acaba por legitimar a idéia de que haveria para o cidadão sempre um espaço livre de qualquer ingerência estatal. A adoção dessa orientação suscitaria problemas de difícil solução tanto no plano teórico, como no plano prático. O próprio campo do Direito Civil está prenhe de conflitos de interesses com repercussão no âmbito dos direitos fundamentais. O benefício concedido a um cidadão configura, não raras vezes, a imposição de restrição a outrem.
Por essa razão, destaca Rüfner que quase todos os direitos privados são referenciáveis a um direito fundamental:

'Os contratos dos cidadãos e sua interpretação, abstraída a jurisprudência do Tribunal Federal do Trabalho, não despertavam grande interesse. O problema da colisão de direitos fundamentais coloca-se também aqui de forma freqüente: a liberdade de contratar integra os direitos fundamentais de desenvolvimento da personalidade (freie Entfaltung der Persönlichkeit) e de propriedade. Por isso, ela deve ser contemplada como elemento constitucional na avaliação jurídica dos contratos. O estabelecimento de vínculos contratuais com base na autonomia privada relaciona-se, pois, com o exercício de direitos fundamentais. Exatamente na assunção de obrigações contratuais reside uma forma de exercício de direitos fundamentais que limita a liberdade para o futuro. A livre escolha de profissão e o seu livre exercício são concretizados dessa forma. O livre exercício do direito de propriedade consiste também em empregar a propriedade para fins livremente escolhidos. A livre manifestação de opinião e a liberdade de imprensa, a liberdade religião e a liberdade artística não são realizáveis sem a possibilidade de livre assunção de obrigações por parte dos cidadãos. Até mesmo a liberdade de consciência não está isenta de vinculações contratuais.'

Também o postulado de igualdade provoca problemas na esfera negocial.
O Estado, que, com os direitos fundamentais, assegura a liberdade do cidadão, não pode retirar essa liberdade com a simples aplicação do princípio da igualdade. O engajamento político e religioso integra o livre exercício do direito de propriedade e o livre exercício do direito de desenvolvimento da personalidade. A liberdade de testar é integrada pela liberdade de diferençar por motivos políticos ou religiosos.
Assim, em face dos negócios jurídicos coloca-se a indagação sobre a sua própria validade como resultado de eventual afronta ou contrariedade aos direitos fundamentais.
É certo, por outro lado, que na relação entre cidadãos não se pode tentar resolver o conflito com a afirmação - duvidosa já na relação com o Poder Público - de que 'in dubio pro libertate', porque não se cuida do estabelecimento de uma restrição ou limitação em sentido estrito.
Canaris observa que o reconhecimento de que os direitos fundamentais cumprem uma tarefa importante na ordem jurídica não apenas como proibição de intervenção (direito de defesa), mas também como postulados de proteção, contribui para explicitar a influência desses postulados no âmbito do direito privado.
Sob o império da Lei Fundamental de Bonn engajou-se Hans Carl Nipperdey em favor da aplicação direta dos direitos fundamentais no âmbito das relações privadas, o que acabou por provocar um claro posicionamento do Tribunal Superior do Trabalho em favor dessa orientação (unmittelbare Drittwirkung).
O Tribunal do Trabalho assim justificou o seu entendimento:

'Em verdade, nem todos, mas uma série de direitos fundamentais destinam-se não apenas a garantir os direitos de liberdade em face do Estado, mas também a estabelecer as bases essenciais da vida social. Isso significa que disposições relacionadas com os direitos fundamentais devem ter aplicação direta nas relações privadas entre os indivíduos. Assim, os acordos de direito privado, os negócios e atos jurídicos não podem contrariar aquilo que se convencionou chamar ordem básica ou ordem pública'.

Esse entendimento foi criticado sobretudo pela sua deficiente justificação em face do disposto no art. 1, III, da Lei Fundamental, que previa apenas a expressa vinculação dos poderes estatais aos direitos fundamentais.
Afirmou-se ainda que a eficácia imediata dos direitos fundamentais sobre as relações privadas acabaria por suprimir o princípio da autonomia privada, alterando profundamente o próprio significado do Direito Privado como um todo. Ademais, a aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas encontraria óbice insuperável no fato de que, ao contrário da relação Estado-cidadão, os sujeitos dessas relações merecem e reclamam, em princípio, a mesma proteção.

É claro que o tema prepara algumas dificuldades.

Poder-se-ia argumentar com a disposição constante do art. 1, da Lei Fundamental, segundo a qual 'os direitos humanos configuram o fundamento de toda a sociedade' (Grundlage jeder Gemeinschaft). Poder-se-ia aduzir, ainda, que a existência de forças sociais específicas, como os conglomerados econômicos, sindicatos e associações patronais, enfraquece sobremaneira o argumento da igualdade entre os entes privados, exigindo que se reconheça, em determinada medida, a aplicação dos direitos fundamentais também às relações privadas.
Esses dois argumentos carecem, todavia, de força normativa, uma vez que tanto o texto da Lei Fundamental, quanto a própria história do desenvolvimento desses direitos não autorizam a conclusão em favor de uma aplicação direta e imediata dos direitos fundamentais às relações privadas.
Em verdade, até mesmo disposições expressas, como aquela constante do art. 18, n. 1, da Constituição de Portugal, que determina sejam os direitos fundamentais aplicados às entidades privadas, ou do Projeto da Comissão Especial para revisão total da Constituição suíça (art. 25) - Legislação e Jurisdição devem zelar pela aplicação do direitos individuais às relações privadas - Gesetzgebung und Rechtsprechung sorgen dafür, dass die Grundrechte sinngeimäss auch unter Privaten wirksam werden [atualmente já incorporado à Constituição suíça, desde 2000, no art. 35 (3), com a seguinte redação: 'Die Behörden sorgen dafür, dass die Grundrechte, soweit sie sich dazu eignen, auch unter Privaten wirksam werden.'], não parecem aptas para resolução do problema.
A propósito da fórmula consagrada na Constituição portuguesa, acentua Vieira de Andrade que 'se é certo que aí se afirma claramente que os preceitos constitucionais vinculam as entidades privadas, não se diz em que termos se processa essa vinculação e, designadamente, não se estabelece que a vinculação seja idêntica àquela que obriga os poderes públicos'.
Em verdade, ensina Dürig que uma aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas poderia suprimir ou restringir em demasia o princípio da autonomia privada. Portanto, é o próprio sistema de direitos fundamentais, ensina o notável constitucionalista tedesco, que autoriza e legitima que os indivíduos confiram aos negócios de direito privado conformação não coincidente com tais direitos.
Idêntica orientação é adotada por Konrad Hesse, que destaca serem as relações entre pessoas privadas marcadas, fundamental­mente, pela idéia de igualdade. A vinculação direta dos entes privados aos direitos fundamentais não poderia jamais ser tão profunda, pois, ao contrário da relação Estado-cidadão, os direitos fundamentais operariam a favor e contra os dois partícipes da relação de Direito Privado.
Não se pode olvidar, por outro lado, que as controvérsias entre particulares com base no direito privado hão de ser decididas pelo Judiciário.
Estando a jurisdição vinculada aos direitos fundamentais, parece inevitável que o tema constitucional assuma relevo tanto na decisão dos tribunais ordinários, como no caso de eventual pronunciamento da Corte Constitucional.
Embora tenha rejeitado expressamente a possibilidade de aplicação imediata dos direitos fundamentais às relações privadas (unmittelbare Drittwirkung), entendeu o Bundesverfassungsgericht que a ordem de valores formulada pelos direitos fundamentais deve ser fortemente considerada na interpretação do Direito Privado.
Os direitos fundamentais não se destinam a solver diretamente conflitos de direito privado, devendo a sua aplicação realizar-se mediante os meios colocados à disposição pelo próprio sistema jurídico.
Segundo esse entendimento, compete, em primeira linha, ao legislador a tarefa de realizar ou concretizar os direitos fundamentais no âmbito das relações privadas. Cabe a este garantir as diversas posições fundamentais relevantes mediante fixação de limitações diversas.
Um meio de irradiação dos direitos fundamentais para as relações privadas seriam as cláusulas gerais (Generalklausel) que serviriam de 'porta de entrada' (Einbruchstelle) dos direitos fundamentais no âmbito do Direito Privado.
A referência a algumas decisões do Bundesverfassungsgericht pode contribuir para esclarecer adequadamente a orientação perfilhada pela Corte Constitucional alemã:

(1) Em 1950, o Presidente do Clube de Imprensa de Hamburgo, Erich Lüth, defendeu um boicote contra o filme 'Unsterbliche Geliebte', de Veit Harlan, diretor do filme 'Jud Süs', produzido durante o 3. Reich. Harlan logrou decisão do Tribunal estadual de Hamburgo no sentido de determinar que Lüth se abstivesse de conclamar o boicote contra o referido filme com base no § 826 do Código Civil (BGB). Contra essa decisão foi interposto recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde) perante o Bundesverfassungsgericht. A Corte Constitucional deu pela procedência do recurso, enfatizando que decisões de tribunais civis, com base em leis gerais de natureza privada, podem lesar o direito de livre manifestação de opinião consagrado no art. 5, 1, da Lei Fundamental. Os tribunais ordinários estariam obrigados a levar em consideração o significado dos direitos fundamentais em face dos bens juridicamente tutelados pelas leis gerais (juízo de ponderação). Na espécie, entendeu a Corte que, ao apreciar a conduta do recorrente, o Tribunal estadual teria desconsiderado (verkannt) o especial significado que se atribui ao direito de livre manifestação de opinião também nos casos em que ele se confronta com interesses privados;
(2) O pequeno jornal 'Blinkfüer' continuou a publicar a programação das rádios da República Democrática Alemã mesmo após a construção do muro de Berlim (13.08.1961). A grande editora Springer dirigiu, por isso, uma circular a todas as bancas e negócios de vendas de jornais, ameaçando-os com a suspensão de fornecimento de jornais e revistas caso continuassem a vender o jornal 'Blinkfüer'. Foram significativos os prejuízos sofridos pela publicação. A pretensão de caráter indenizatório formulada pelo jornal foi rejeitada pelo Bundesgerichtshof - BGH (Supremo Tribunal de Justiça). Apreciando o recurso constitucional interposto pelo pequeno jornal, entendeu o Bundesverfassungsgericht que a editora Springer não poderia valer-se de sua superioridade econômica para fazer prevalecer a sua opinião. As opiniões contrapostas deveriam concorrer em pé de igualdade, com recursos de caráter exclusivamente intelectual (geistige Waffen);
(3) No chamado 'caso Wallraff', um repórter, adotando uma identidade falsa, obteve um emprego como jornalista na redação do jornal sensacionalista 'Bild-Zeitung'. Essa experiência forneceu-lhe material para um livro. A ação movida pela empresa jornalística contra o repórter e seu editor foi rejeitada pelo Superior Tribunal de Justiça (Bundesgerichtshof). A Corte Constitucional acolheu, todavia, o recurso constitucional interposto contra a decisão, entendendo que 'entre as condições da função de uma imprensa livre pertence a relação de confiança do trabalho de redação', sendo lícita, fundamentalmente, a pretensão manifestada no sentido de impedir a publicação de informações obtidas mediante utilização de artifícios dolosos.

A orientação esposada pela Corte em todos esses precedentes parece sinalizar que, embora o Bundesverfassungsgericht extraia a eficácia dos direitos fundamentais sobre as relações privadas do significado objetivo destes para a ordem jurídica total, acaba ele por reconhecer efeito jurídico-subjetivo a essas normas.
Tal como enfatizado no 'caso Blinkfüer', se o juiz não reconhece, no caso concreto, a influência dos direitos fundamentais sobre a relações privadas, então ele não apenas lesa o direito constitucional objetivo, como também afronta direito fundamental considerado como pretensão em face do Estado, ao qual, enquanto órgão estatal, está obrigado a observar.
Assim, ainda que se não possa cogitar de vinculação direta do cidadão aos direitos fundamentais, podem esses direitos legitimar limitações à autonomia privada seja no plano da legislação, seja no plano da Interpretação.
É preciso acentuar que, diferentemente do que ocorre na relação direta entre o Estado e o cidadão, na qual a pretensão outorgada ao indivíduo limita a ação do Poder Público, a eficácia mediata dos direitos fundamentais refere-se primariamente a uma relação privada entre cidadãos, de modo que o reconhecimento do direito de alguém implica o sacrifício de faculdades reconhecidas a outrem.
Em outros termos, a eficácia mediata dos direitos está freqüentemente relacionada com um caso de colisão de direitos. A posição jurídica de um indivíduo em face de outro somente pode prevalecer na medida em que se reconhece a prevalência de determinados interesses sobre outros.
Como enunciado, a teoria da 'eficácia mediata' (mittelbare Drittwirkung) revela também a preocupação do Bundesverfassungsgericht com a aplicação/concretização dos direitos fundamentais pelos Tribunais ordinários. A discussão sobre a eficácia indireta ganha relevo na medida em que as valorações estabelecidas pela Constituição não coincidem com a valoração do direito privado.
Tal como sintetizado por Hesse, a orientação da Corte Constitucional revela que a função dos direitos fundamentais enquanto elementos de uma ordem objetiva impõe tão-somente a preservação de um standard mínimo de liberdade individual. Não se impõe, porém, uma redução generalizada da liberdade individual a esse padrão mínimo. 'Se o Direito Privado deixa maior liberdade do que os direitos fundamentais, não deve a liberdade ser restringida mediante uma vinculação a esses direitos'.
Hesse sustenta que os Direitos Fundamentais não obstam a que os titulares assumam obrigações em face de outros entes privados, uma vez que também a possibilidade de se vincular mediante atos livremente celebrados integra a liberdade individual. Assim, seriam válidos, em princípio, contratos celebrados entre pessoas privadas que limitassem a liberdade opinião e legítimas as decisões de um empregador que selecionasse seus empregados com utilização de referenciais relacionados com a confissão religiosa ou a convicção política.
Não se pode perder de vista, porém, - adverte Hesse - que a liberdade individual pode restar ameaçada pela utilização de mecanismos de poder econômico ou social, o que acabaria por permitir a supressão daquele standard mínimo de liberdade pelo uso (abusivo) de posições dominantes no plano econômico-social.
Assim, entende Hesse que cabe ao legislador e, se este se revelar omisso ou indiferente, ao próprio juiz, interpretar o direito privado à luz dos direitos fundamentais (ïm Licht der Gründrechte), exercendo o dever de proteção (Schutzplicht) que se impõe ao Estado.
A crítica ao entendimento da Corte Constitucional alemã sobre a eficácia mediata dos direitos fundamentais assenta-se tanto na sua débil fundamentação dogmática, quanto na sua eventual desnecessidade.
Quanto à fundamentação dogmática, afirma-se que a doutrina da eficácia mediata dos direitos fundamentais no âmbito das relações privadas padece dos mesmos problemas da jurisprudência sobre Constituição enquanto ordem valorativa (Wertordnungsrechtprechung). A ausência de uma ordem objetiva de valores dificulta senão impossibilita uma decisão clara sobre os valores que hão de prevalecer em uma dada situação de conflito. A incerteza quanto aos critérios de ponderação e a existência de múltiplos critérios quase permitiriam afirmar que uma orientação pelos valores básicos poderia fundamentar qualquer decisão.
O argumento relativo à desnecessidade da jurisprudência sobre a eficácia mediata enfatiza que o recurso a essa teoria seria dispensável em caso de adequada aplicação do direito ordinário. A teoria da aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas decorreria, assim, de necessidade de correção de julgados dos Tribunais ordinários. A discussão que se trava aqui refere-se exatamente à possibilidade de que o ganho obtido com a realização de justiça no caso concreto acabe por comprometer a clareza dogmática nos planos constitucional e legal.
Jürgen Schwabe rejeita tanto a doutrina da aplicação imediata, quanto a aplicação mediata dos direitos fundamentais, entendendo que a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas decorre do próprio caráter estatal do direito privado. No âmbito do direito privado, as pretensões não representariam mais do que o poder estatal sob a forma de proibição ou de prescrição.
Essa orientação, que muito se assemelha à doutrina americana da 'state action', tem algo em comum com a doutrina da aplicação imediata dos direitos fundamentais às relações privadas: ambas admitem uma aplicação direta dos direitos fundamentais no âmbito das relações privadas. A diferença básica entre elas reside no fato de que para Schwabe não há que se cogitar de uma eficácia horizontal (Drittwirkung), porquanto os direitos fundamentais devem ser aplicados até mesmo contra uma decisão estatal (decisão legislativa; decisão judicial; execução judicial).
Qualquer que seja a orientação adotada, importa acentuar que a discussão sobre aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas está muito longe de assumir contornos dogmáticos claros .
É certo, por outro lado, que, a despeito do esforço desenvolvido pela doutrina, não se logra divisar, com clareza, uma distinção precisa entre a questão material da Drittwirkung (eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas) e a questão processual, que alça a Corte Constitucional a um papel de um Supertribunal de Revisão."­ (MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 2ª Ed. rev. e ampliada. Celso Bastos Ed. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999., pp. 218-229).

A propósito da state action, o tema tem sido objeto de instigantes estudos e julgamentos nos Estados Unidos, os quais tem reconhecido a aplicação de direitos fundamentais para os casos em que estão envolvidos diretos civis (The Civil Right Cases), acordos privados (Private Agreements), ou ainda sob a alegação de que a questão decidida demanda um conceito de função pública (The Public Function Concept) (NOWAK, John; ROTUNDA, Ronald. Constitutional Law. 5th Ed. St. Paul, Minn: West Publishing Co., 1995).

No Brasil, a doutrina recente tem se dedicado com afinco ao desenvolvimento do tema. Mencionam-se a propósito os estudos de Daniel Sarmento, Ingo Sarlet, Paulo Gustavo Gonet Branco, Rodrigo de Oliveira Kaufmann, André Rufino Valle, e Thiago Sombra, os quais também enfatizam o amadurecimento dessa questão no Tribunal.

Com base nas raras ocasiões em que a Corte se debruçou sobre o tema, é possível delinear os contornos que a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre privadas pode assumir. (cf. SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2004; SOMBRA, Thiago. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas: A identificação do contrato como ponto de encontro dos direitos fundamentais. Sérgio Antônio Fabris Ed. Porto Alegre: 2004; VALLE, André Rufino. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Sérgio Antônio Fabris Ed. Porto Alegre: 2004; KAUFMANN, Rodrigo. Dimensões e Perspectivas da Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais. Possibilidades e limites de aplicação no Direito Constitucional Brasileiro. Tese para a obtenção do título de Mestre em Direito apresentada em 2004 e orientada pelo Professor José Carlos Moreira Alves; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Associações, Expulsão de Sócios e Direitos Fundamentais, Direito Público v. 1, nº 2 (out. /dez. 2003) Porto Alegre: Síntese; Brasília: Instituto Brasiliense de Direito Público, 2003, pp. 170-174; e SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998).

Muitos desses estudos desenvolveram-se também a partir dos positivos impulsos decorrentes das decisões proferidas por esta Corte.

No RE n° 160.222-RJ (Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 01/09/1995), discutiu-se se cometeria o crime de constrangimento ilegal, o gerente que exige das empregadas de certa indústria de lingeries o cumprimento de cláusula constante nos contratos individuais de trabalho, segundo a qual, elas deveriam se submeter a revistas íntimas, sob ameaça de dispensa. Elucidou a ementa:

"E M E N T A - I. Recurso extraordinário: legitimação da ofendida - ainda que equivocadamente arrolada como testemunha -, não habilitada anteriormente, o que, porém, não a inibe de interpor o recurso, nos quinze dias seguintes ao término do prazo do Ministério Público, (STF, Sums. 210 e 448). II. Constrangimento ilegal: submissão das operárias de indústria de vestuário a revista íntima, sob ameaça de dispensa; sentença condenatória de primeiro grau fundada na garantia constitucional da intimidade e acórdão absolutório do Tribunal de Justiça, porque o constrangimento questionado a intimidade das trabalhadoras, embora existente, fora admitido por sua adesão ao contrato de trabalho: questão que, malgrado a sua relevância constitucional, já não pode ser solvida neste processo, dada a prescrição superveniente, contada desde a sentença de primeira instância e jamais interrompida, desde então." (RE n° 160.222-RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 01/09/1995)

Em outro caso, o RE n° 158.215-RS (Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 07/06/1996), esta Segunda Turma preconizou a incidência direta dos direitos fundamentais sobre relações entre particulares. Tratava-se da hipótese de um membro expulso de cooperativa sem o atendimento da garantia do contraditório e da ampla defesa no âmago do devido processo legal. A ementa explicita tal raciocínio nos seguintes termos:

"DEFESA - DEVIDO PROCESSO LEGAL - INCISO LV DO ROL DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS - EXAME - LEGISLAÇÃO COMUM. A intangibilidade do preceito constitucional assegurador do devido processo legal direciona ao exame da legislação comum. Daí a insubsistência da óptica segundo a qual a violência à Carta Política da República, suficiente a ensejar o conhecimento de extraordinário, há de ser direta e frontal. Caso a caso, compete ao Supremo Tribunal Federal exercer crivo sobre a matéria, distinguindo os recursos protelatórios daqueles em que versada, com procedência, a transgressão a texto constitucional, muito embora torne-se necessário, até mesmo, partir-se do que previsto na legislação comum. Entendimento diverso implica relegar à inocuidade dois princípios básicos em um Estado Democrático de Direito - o da legalidade e do devido processo legal, com a garantia da ampla defesa, sempre a pressuporem a consideração de normas estritamente legais. COOPERATIVA - EXCLUSÃO DE ASSOCIADO - CARÁTER PUNITIVO - DEVIDO PROCESSO LEGAL. Na hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos estatutos, impõe-se a observância ao devido processo legal, viabilizado o exercício amplo da defesa. Simples desafio do associado à assembléia geral, no que toca à exclusão, não é de molde a atrair adoção de processo sumário. Observância obrigatória do próprio estatuto da cooperativa." (RE n° 158.215-RS, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 07/06/1996)

Paulo Gustavo Gonet Branco analisa as tendências jurisprudenciais do Tribunal a partir desse julgamento:

"A segunda turma do Supremo Tribunal enxergou controvérsia constitucional apta a ensejar o conhecimento e provimento de recurso extraordinário em causa em que se discutia a legitimidade formal da expulsão de sócios de uma cooperativa, sem a observância dos preceitos estatutários relativos à defesa dos excluídos. O relator, Ministro Marco Aurélio, dirigiu toda a apreciação do caso para o ângulo da garantia constitucional da ampla defesa. Argumentou que 'a exaltação de ânimos não é de molde a afastar a incidência do preceito constitucional assegurador da plenitude da defesa nos processos em geral. (.) Incumbia à Cooperativa, uma vez instaurado o processo, dar aos acusados a oportunidade de defenderem-se e não excluí-los sumariamente do quadro de associados(.), sem a abertura de prazo para produção de defesa e feitura de prova'.

O acórdão não se deteve em considerações acadêmicas sobre a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, o que o torna ainda mais sugestivo. A decisão tomou como indiscutível que há normas de direitos fundamentais que incidem diretamente sobre relações entre pessoas privadas. Deixou para os comentadores os adornos doutrinários." (BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Associações, Expulsão de Sócios e Direitos Fundamentais, Direito Público v. 1, nº 2 (out. /dez. 2003). Porto Alegre: Síntese; Brasília: Instituto Brasiliense de Direito Público, 2003, pp. 170-174).

Por fim, no RE nº 161.243-DF (Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 19/12/1997), o Tribunal não admitiu que a invocação do princípio da autonomia fosse argumento legítimo para discriminar, nacionais de estrangeiros, no que concerne à percepção de benefícios constantes no estatuto pessoal de determinada empresa. Consignou-se na ementa:

"CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIRO EMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA: APLICABILIDADE AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO. C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput. I. - Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade: C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput). II. - A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional. Precedente do STF: Ag 110.846 (AgRg)-PR, Célio Borja, RTJ 119/465. III. - Fatores que autorizariam a desigualização não ocorrentes no caso. IV. - R.E. conhecido e provido." (RE n° 161.243-DF, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 19/12/1997)

Daniel Sarmento, após analisar detalhadamente a jurisprudência do STF e dos demais tribunais pátrios sobre o assunto, observa:

"..., é possível concluir que, mesmo sem entrar na discussão das teses jurídicas sobre a forma de vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, a jurisprudência brasileira vem aplicando diretamente os direitos individuais consagrados na Constituição na resolução de litígios privados." (SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2004, p.297).

Não estou preocupado em discutir no atual momento qual a forma geral de aplicabilidade dos direitos fundamentais que a jurisprudência desta Corte professa para regular as relações entre particulares.

Tenho a preocupação de, tão-somente, ressaltar que o Supremo Tribunal Federal já possui histórico identificável de uma jurisdição constitucional voltada para a aplicação desses direitos às relações privadas.

O caso em exame apresenta singularidades.

Conforme elucida o parecer da Procuradoria-Geral da República, a Recorrente é "repassadora do numerário arrecadado pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD)" (fls. 307).

Destarte, a exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras.

De outro lado, diante da iminência de expulsão disciplinar, ainda que o recorrido tivesse optado por ingressar em outras entidades congêneres, nacionais ou estrangeiras, o ônus subsistiria em razão da eliminação automática do associado, nos termos do art. 18 do Estatuto Social da recorrente (fls. 48).

Nesse particular, lembro que no julgamento de tema relativo à constitucionalidade do perfil institucional do ECAD (ADI n° 2.054-DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 17.10.2003), o voto condutor do Ministro Sepúlveda Pertence abriu a divergência no sentido de que a entidade representa relevante papel no âmbito do sistema brasileiro de proteção aos direitos autorais, podendo atuar até mesmo como "prestador de serviço público por delegação legislativa". E tal como anotara Pertence naquela oportunidade, a associação que se recusa a filiar-se ao ECAD arcaria com a conseqüência grave de não participar da gestão coletiva de arrecadação e distribuição de direitos autorais e, por conseguinte, não poder fazê-los isoladamente.

Na oportunidade do julgamento da referida ADIn, acompanhei a tese vencedora, nos seguintes termos:

"... não é necessário entrar na discussão sobre a contrariedade ao direito de associação também, como já demonstrou o Ministro Sepúlveda Pertence, o fato de a Constituição de 88 explicitar essa liberdade negativa de associação não significa que ela não fosse existente entre nós nas versões anteriores. Na espécie, disse que está em jogo não apenas a aplicação da liberdade de associação, mas também a própria proteção do direito autoral. Por isso afigura-se-me legítima a decisão legislativa que, ao fixar as normas de organização e procedimento, viabiliza a cobrança de direitos autorais por uma entidade central. É evidente que o legislador considerou que esse seria o modelo mais adequado para proteger um valor constitucional que estava previsto."

Destarte, considerando que a União Brasileira de Compositores (UBC) integra a estrutura do ECAD, é incontroverso que, no caso, ao restringir as possibilidades de defesa do recorrido, ela assume posição privilegiada para determinar, preponderantemente, a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seu associado.

Em outras palavras, trata-se de entidade que se caracteriza por integrar aquilo que poderíamos denominar como espaço público ainda que não-estatal.

Essa realidade deve ser enfatizada principalmente porque, para os casos em que o único meio de subsistência dos associados seja a percepção dos valores pecuniários relativos aos direitos autorais que derivem de suas composições, a vedação das garantias constitucionais de defesa pode acabar por lhes restringir a própria liberdade de exercício profissional.

Logo, as penalidades impostas pela recorrente ao recorrido, extrapolam, em muito, a liberdade do direito de associação e, sobretudo, o de defesa. Conclusivamente, é imperiosa a observância das garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (art. 5°, LIV e LV, da CF).

Tem-se, pois, caso singular, que transcende a simples liberdade de associar ou de permanecer associado. Em certa medida, a integração a essas entidades configura, para um número elevado de pessoas, quase que um imperativo decorrente do exercício de atividade profissional.

Cabe assinalar, ainda, as considerações de Paulo Branco relativamente ao caso específico de aplicação do direito de ampla defesa nas hipóteses de exclusão de sócio ou de membro de associação particular:

"É interessante notar, que também na esfera do direito internacional, vem-se firmando o princípio de que os direitos humanos não somente vinculam os Estados negativamente, impedindo-os de afetar os bens protegidos, como, por igual, criam para eles obrigações de agir, em defesa desses bens. Serve de exemplo o caso X e Y v. Holanda, de 1985, em que a Corte Européia de Direitos Humanos não hesitou em proclamar que os Estados convenentes estavam obrigados à 'adoção de medidas destinadas a assegurar o respeito à vida privada, mesmo na esfera das relações dos indivíduos entre si'.
Um dos direitos fundamentais que se apontam como de incidência no âmbito dos relacionamentos privados é o direito de ampla defesa. Esse direito é tido como de observância obrigatória, em se tratando de exclusão de sócio ou de membro de associação particular.
É certo que a associação tem autonomia para gerir a sua vida e a sua organização. É certo, ainda, que, no direito de se associar, está incluída a faculdade de escolher com quem se associar, o que implica poder de exclusão. O direito de associação, entretanto, não é absoluto e comporta restrições, orientadas para o prestígio de outros direitos também fundamentais. A legitimidade dessas interferências dependerá da ponderação a ser estabelecida entre os interesses constitucionais confrontantes. A apreciação do fundamento dessas interferências, ainda, não pode prescindir de variantes diversas, como o propósito que anima a existência da sociedade. Na jurisprudência da Suprema Corte americana, há precedente distinguindo as sociedades voltadas para expressar um ponto de vista - religioso ou ideológico - e outras, de cunho comercial, nonexpressive. Naquelas, a interferência de outros interesses sobre a sua estrutura e gestão teria admissibilidade consideravelmente mais restrita.
Não somente nos Estados Unidos, mas também em outras latitudes é conferida importância ao tipo de sociedade, com vistas a aferir o grau de controle do Estado sobre as decisões da entidade, como a de expulsão de membro. Ferrer i Riba e Salvador Coderch, com suporte na jurisprudência espanhola e na doutrina, produzem uma taxonomia de associações, conforme o grau de controle possível das causas e procedimentos de exclusão de sócios. Assim, as associações que detêm posição dominante na vida social ou econômica ou que exercem funções de representação de interesses gozam de uma liberdade mais restrita na fixação das causas de sanção e na imposição das mesmas. Para os autores, as entidades 'que promovem fins ideológicos integram o núcleo essencial da autonomia privada coletiva: as resoluções das associações religiosas ou de pessoas que compartilham um certo ideário ou uma ou outra concepção do mundo não estão, no fundamental, sujeitas a controle judicial'. Nas entidades de fins associativos predominantemente econômicos, a expulsão seria revisável em consideração ao dano patrimonial que pode causar ao excluído.
É importante notar - assim o advertem a doutrina e a jurisprudência espanholas - que nem toda pretensão decorrente de relação estatutária, surgida no interior de uma entidade privada, pode ser alçada à hierarquia de questão constitucional. Nem toda disputa em torno do estatuto associativo pode ser vista, primariamente, como controvérsia própria do direito fundamental de associação, o que produz óbvia repercussão sobre a competência da justiça constitucional. Casos, no entanto, de desprezo à garantia de defesa do expulso - defesa que há de abranger a notificação das imputações feitas e o direito a ser ouvido - tendem a ser inseridos na lista dos temas de índole constitucional, em que se admite, ademais, a eficácia dos direitos fundamentais no âmbito das associações particulares.
O direito de defesa ampla assoma-se como meio indispensável para se prevenir situações de arbítrio, que subverteriam a própria liberdade de se associar." (BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Associações, Expulsão de Sócios e Direitos Fundamentais, Direito Público v. 1, nº 2 (out. /dez. 2003) Porto Alegre: Síntese; Brasília: Instituto Brasiliense de Direito Público, 2003, pp. 172-173)

Essas considerações parecem fornecer diretrizes mais ou menos seguras e, até certa parte, amplas, para a aplicação do direito de defesa no caso de exclusão de associados.

Todavia, afigura-se-me decisivo no caso em apreço, tal como destacado, a singular situação da entidade associativa, integrante do sistema ECAD, que, como se viu na ADI n° 2.054-DF, exerce uma atividade essencial na cobrança de direitos autorais, que poderia até configurar um serviço público por delegação legislativa.

Esse caráter público ou geral da atividade parece decisivo aqui para legitimar a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5°, LIV e LV, da CF) ao processo de exclusão de sócio de entidade.

Estando convencido, portanto, de que as particularidades do caso concreto legitimam a aplicabilidade dos direitos fundamentais referidos já pelo caráter público - ainda que não estatal - desempenhado pela entidade, peço vênia para divergir, parcialmente, da tese apresentada pela Eminente Relatora. Voto, portanto, pelo conhecimento do recurso e, no mérito, pelo seu desprovimento.

* acórdão pendente de publicação

Adulteração de Sinal Identificador de Veículo Automotor (Transcrições)

HC 86424/SP*

RELATOR PARA ACÓRDÃO: MINISTRO GILMAR MENDES

VOTO-VISTA: Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de Casem Mazloum contra decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, que considerou correto o enquadramento da conduta do paciente no art. 311, § 1º do Código Penal.

A Relatora, Ministra Ellen Gracie, votou pelo indeferimento da ordem, verbis:

"Ora, em matéria de trancamento de ação penal, pela via do habeas corpus, o entendimento desta Corte é no sentido de que o pedido só é admissível nas hipóteses em que a atipicidade da conduta é flagrante e manifesta, por se tratar de uma medida excepcional (HC 84.738, HC 84.232 e HC 84.943). A regra é a subsistência do juiz natural. Na espécie, dois órgãos judiciários, o Tribunal Regional Federal e o Superior Tribunal de Justiça, admitiram que a substituição de placas comuns por placas reservadas configura alteração de sinal identificador externo de veículo automotor. E portanto a conduta se ajusta ao tipo penal previsto no art. 311 do Código Penal. Ausente a excepcionalidade, e sem adiantar nenhum juízo de valor, inviável é o writ."

Alegam os impetrantes que:

"A denúncia consignou que no curso do ano de 2000 e 2001 o paciente utilizou em seu veículo as placas reservadas de numeração DAP 5361, remetidas pelo Detran à Polícia Federal, substituindo-as pelas placas primitivas, concluindo, então, que houve a configuração do crime do artigo 311, § 1º, do Código Penal.
(...)
O documento ora juntado (doc. 03), que já constava a fls. 21/26 do processo originário, demonstra que o par de placas recebido pelo paciente era proveniente do Detran, órgão este que detinha o devido registro de seu destinatário, não se tratando, portanto, de placas forjadas e alheias ao controle do órgão de fiscalização de trânsito." (fl. 04-05)

Sustentam a atipicidade da conduta, a) por ausência de lesão ao bem jurídico tutelado, b) por não ser o paciente o destinatário da norma penal; e c) por violação da proporcionalidade ou da razoabilidade.

Aduzem, verbis:

"O paciente não remarcou nem adulterou placas. Apenas utilizou placas reservadas provenientes do próprio Detran, o que retira qualquer conotação ilícita de sua conduta, podendo configurar, quando muito, infração administrativa.

O documento expedido pelo Detran (doc. 03), com a informação de que as placas constavam como remetidas à Justiça Federal, comprova: a) que a autoridade de trânsito tinha conhecimento da exata localização das placas cedidas à Polícia Federal, nada tendo questionado à época, o que autoriza a conclusão de que não havia nenhuma irregularidade; e b) que o paciente nunca adulterou ou remarcou sinal de identificação de veículo, apenas usou um par de placas reservadas, devidamente registradas no Detran." (fls. 06-07)

Assim dispõe o art. 311 do Código Penal, com redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996:

"Art. 311 - Adulterar ou remarcar número de chassi ou qualquer sinal identificador de veículo automotor, de seu componente ou equipamento:
Pena - reclusão, de três a seis anos, e multa."

Consoante a lição de Cezar Bitencourt, "o bem jurídico protegido é a fé pública, especialmente a proteção e a segurança no registro de automóveis" (BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 1071).

Ao analisar o tipo, José Silva Júnior, esclarece:

"Os núcleos: adulterar diz com a ação pela qual se acresce, suprime ou se troca parte do original verdadeiro. É, portanto, uma alteração ou modificação, que deve ser capaz de causar prejuízo; remarcar é marcar de novo (alterando). Para melhor compreensão, tenha-se presente que a contrafação diz com a confecção (fabricação) integral de alguma coisa à semelhança de outra, de molde a provocar engano, a respeito da sua autenticidade." (FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui (coord.). Código Penal e sua interpretação jurisprudencial, v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 3804)

Na hipótese dos autos, não parece configurada a tipicidade, como bem ressaltado pela Desembargadora Federal Alda Basto, em sua declaração de voto, verbis:

"Anoto que não há qualquer alegação, nem se suscita, nos autos do inquérito ou no corpo da denúncia, dúvidas quanto à autenticidade das placas utilizadas pelos denunciados em seus veículos particulares. Em nenhum momento se cogita de que qualquer das placas utilizadas pelos denunciados não seja uma daquelas expedidas e entregues, aos denunciados, pelo DETRAN.
(...)
As placas nomeadas na denúncia foram confeccionadas à ordem do DETRAN, órgão competente para mandar expedir as placas e, foram entregues também pelo DETRAN ao Dr. Bellini, através de Ofício do Diretor do DETRAN, ofício no qual textualmente o Diretor do DETRAN, ao entregar as placas reservadas grafou estar entregando 'sob a permanente guarda' e 'critério de utilização' do Diretor do DELOPS." (fl. 124)

Com esse mesmo raciocínio, concluiu o Desembargador Federal Peixoto Júnior:

"Para a caracterização do delito é necessário o elemento ilicitude intrínseca, é necessário que o novo sinal de identificação tenha sido criado como obra do espírito criminal fora dos trâmites oficiais, é preciso que a atividade criminosa já esteja na sua gênese material e eficiente, vale dizer no próprio ato de fabricação ou reaproveitamento, a remarcação não podendo ser confundida com simples utilização de outro sinal de identificação mas apenas com aquele originalmente confeccionado ou reaproveitado com a finalidade criminosa, como tal só se concebendo os providenciados por agentes praticando conduta de falsificação, sejam particulares ou estejam no exercício de função pública no sentido penal." (fls. 109-110)

E continua:

"Não é suficiente substituir o sinal de identificação, é necessário substituir criando, no sentido de fabricar ou reaproveitar, novo sinal de identificação, a tanto não equivalendo a conduta de fraudulenta obtenção de placa no sistema oficial.

A mera substituição de placa original por outra mas no âmbito de procedimento de caráter oficial ainda que viciado não perfaz, enfim, conduta amoldada ao tipo objetivo do delito, podendo sim acarretar a responsabilidade de autores e partícipes pelo delito correspondente ao procedimento de obtenção da vantagem, e é o que ocorre no caso com a denúncia por falsidade ideológica, quanto aos denunciados que apenas se beneficiaram desse suposto delito nessa condição por ele não podendo responder." (fls. 111-112)

No sentido de que, para a configuração do crime, é imprescindível que a substituição da placa se faça por outra placa falsa, é a lição de Luiz Regis Prado:

"Se as placas são lacradas à estrutura do veículo, e constituindo o lacre parte integrante da placa identificadora, a substituição total das placas verdadeiras por outras, falsas, até porque implicaria no rompimento desse lacre, configura o tipo em estudo." [sem grifos no original] (PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal, v. 4. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 416).

De resto, a substituição de placas particulares por outras fornecidas pelo Detran não pode configurar qualquer adulteração ou falsificação, pela simples razão de que este órgão sempre poderia verificar a existência da placa reservada, a sua origem e a razão de sua utilização, perante as autoridades públicas ou quem mais tivesse interesse no assunto.

Nessa hipótese, relativamente à violação do lacre, poderia, eventualmente, subsistir a irregularidade prevista no art. 230 do Código de Trânsito Brasileiro, tal como ressaltado pela Desembargadora Federal Alda Basto.

Com efeito, o entendimento não poderia ser diferente, sob pena de afronta ao princípio da reserva legal em matéria penal.

Não se pode aqui pretender a aplicação da analogia para abarcar hipótese não mencionada no dispositivo legal.

Zaffaroni e Pierangeli são enfáticos:

"Se por analogia, em direito penal, entende-se completar o texto legal de maneira a estendê-lo para proibir o que a lei não proíbe, considerando antijurídico o que a lei justifica, ou reprovável o que ela não reprova ou, em geral, punível o que não é por ela penalizado, baseando a conclusão em que proíbe, não justifica ou reprova condutas similares, este procedimento de interpretação é absolutamente vedado no campo da elaboração científico- jurídica do direito penal. E assim é porque somente a lei do Estado pode resolver em que casos este tem ingerência ressocializadora afetando com a pena os bens jurídicos do criminalizado, sendo vedado ao juiz 'completar' as hipóteses legais. Como o direito penal é um sistema descontínuo, a própria segurança jurídica, que determina ao juiz o recurso à analogia no, direito civil, exige aqui que se abstenha de semelhante procedimento" (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 168).

E continuam agora abordando a temática da interpretação restritiva:

"A partir da rejeição do in dubio pro reo, entende-se que a interpretação da lei pode ser extensiva, literal ou restritiva com relação ao alcance da punibilidade. Cremos que há um limite semântico do texto legal, além do qual não se pode estender a punibilidade, pois deixa de ser interpretação para ser analogia. Dentro dos limites da resistência da flexibilidade semântica do texto são possíveis interpretações mais amplas ou mais restritivas da punibilidade, mas não cremos que isso possa ser feito livremente, mas que deve obedecer a certas regras, como também entendemos que o princípio in dubio pro reo tem vigência penal somente sob a condição de que seja aplicado corretamente.

a) Em princípio rejeitamos a 'interpretação extensiva', se por ela se entende a inclusão de hipóteses punitivas que não são toleradas pelo limite máximo da resistência semântica da letra da lei, porque isso seria analogia.
b) Não aceitamos nenhuma regra apodítica dentro dos limites semânticos do texto. É correto quando se diz 'onde a lei não distingue não se deve distinguir', isto é correto desde que se acrescente 'salvo que haja imperativos racionais que nos obriguem a distinguir e, claro está, sempre que a distinção não aumente a punibilidade saindo dos limites do texto.
c) Há casos em que a análise da letra da lei dá lugar a duas interpretações possíveis: uma, mais ampla e outra, mais restrita da punibilidade. Isso é observado sem superar o plano exegético. Assim, a expressão 'coisa' do art. 155 do CP pode ser interpretada em sentido ordinário (amplo) ou civil (restrito). Nesses casos é que entra em jogo o in dubio pro reo: sempre teremos de inclinar-nos a entendê-las em sentido restritivo, e de acordo com este sentido, ensaiar nossas construções. Não obstante; esse princípio não tem um valor absoluto, porque bem pode ocorrer que o sistema entre em choque com a expressão entendida em seu sentido restrito, e se harmonize com seu sentido amplo, o que, em tal caso, poderemos fazê-lo, porque tem caráter absoluto o princípio da racionalidade da ordem jurídica, que é o próprio pressuposto de nossa atividade científica.

Em síntese: entendemos que o princípio in dubio pro reo nos indica a atitude que necessariamente devemos adotar para entender uma expressão legal que tem sentido duplo ou múltiplo, mas pode ser descartado ante 'a contradição da lei assim entendida com o resto do sistema.'" (op. cit., p. 170-171)

Não se está aqui a apoiar a atuação irregular de magistrado!

A prática de tais atos pode configurar irregularidade administrativa, certamente passível de responsabilização nessa esfera.

Ocorre que o fato de uma conduta ser moralmente reprovável ou até constituir irregularidade administrativa não deve justificar, por si só, a propositura de ação penal. Basta lembrarmos do caso painel Senado (INQ 1.879, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 07.05.04) e do caso ainda inconcluso da cola eletrônica (INQ 1.145, Rel. Min. Maurício Corrêa).

Na espécie, afigura-se de todo evidente que a conduta imputada ao paciente - substituição de placas particulares de veículo automotor por placas reservadas obtidas junto ao Detran - não se mostra apta a satisfazer o tipo do art. 311 do Código Penal. Não há qualquer dúvida de que o órgão de controle - Detran - sabia e poderia saber sempre que se cuidava de placas reservadas fornecidas à Polícia Federal.

Não me abalanço também a subscrever a tese da Relatora sobre a subsistência ou predomínio do juiz natural.

Essa tese, no sentido de que o Tribunal Regional Federal e o Superior Tribunal de Justiça já se manifestaram pela tipicidade da conduta, só faz prolongar o constrangimento ilegal a que está sendo submetido o paciente.

No Supremo Tribunal Federal, cada vez mais, infelizmente, repetem-se casos de denúncias ineptas e aventureiras, recebidas pelos Tribunais Regionais Federais e confirmadas pelo Superior Tribunal de Justiça. Esta Corte não se tem eximido de seu papel de garante dos direitos fundamentais.

E, de resto, o Supremo Tribunal Federal não é menos juiz natural do que aquelas doutas Cortes.

São expressivos os casos de revisão de julgamentos proferidos pelos Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais e pelo Superior Tribunal de Justiça no âmbito desta Corte.

Considero dignos de registro alguns desses precedentes mais recentes, para que possamos fazer uma reflexão abalizada.

Recentemente, tivemos um desses casos da chamada Operação ANACONDA, aqui na Segunda Turma, cuja lembrança chega a ser constrangedora.

Uma denúncia que beirava às raias da total irresponsabilidade e que o Ministro Celso de Mello classificou de "bizarra". Era a imputação de um falso, por alguém que, por equívoco, declarara, perante a Receita Federal, que tinha nove mil dólares no Afeganistão e que também declarara possuir o mesmo valor no Brasil. Esse era o falso imputado (HC 84.388, acórdão ainda não publicado).

Nesse mesmo processo, relativamente à imputação do crime previsto no art. 10 da Lei nº 9.296/96, a denúncia limitava-se a transcrever conversas telefônicas, sem a observância dos requisitos mínimos à persecução criminal, e sem a demonstração dos elementos indispensáveis à configuração do tipo penal. Também aqui a ordem de habeas corpus foi concedida.

Igualmente, o decidido por esta Turma no HC 84.409, no qual constava da denúncia ter o agente "participação peculiar na quadrilha", sem que se dissesse em que consistia essa peculiar participação. Assim restou ementado o acórdão:

"HABEAS CORPUS. DENÚNCIA. ESTADO DE DIREITO. DIREITOS FUNDAMENTAIS. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP NÃO PREENCHIDOS. 1 - A técnica da denúncia (art. 41 do Código de Processo Penal) tem merecido reflexão no plano da dogmática constitucional, associada especialmente ao direito de defesa. Precedentes. 2 - Denúncias genéricas, que não descrevem os fatos na sua devida conformação, não se coadunam com os postulados básicos do Estado de Direito. 3 - Violação ao princípio da dignidade da pessoa humana. Não é difícil perceber os danos que a mera existência de uma ação penal impõe ao indivíduo. Necessidade de rigor e prudência daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais e daqueles que podem decidir sobre o seu curso. 4 - Ordem deferida, por maioria, para trancar a ação penal." (HC 84.409, acórdão de minha relatoria, DJ 19.08.05)

No HC 84.768, a denúncia utilizava-se de um silogismo de feição fortemente artificial para indicar o paciente, um Desembargador de Pernambuco, como autor intelectual de um possível roubo. Esta Segunda Turma também deferiu a ordem nesse caso (HC 84.768, acórdão de minha relatoria, DJ 27.05.05).

Se me fosse permitido fazer uma consideração antropológica e sociológica, diria que tais casos de recebimento de denúncias fortemente ineptas são reveladores de uma típica covardia institucional. Aceita-se a denúncia inepta, porque assim se estará a satisfazer um dado anseio identificado na opinião pública.

É evidente a erronia dessa orientação e a ameaça que a sua adoção traz para o Estado de Direito.

Como se vê, a questão é extremamente séria e implica o uso do processo criminal para finalidades outras, não compatíveis com os elementos basilares do Estado de Direito.

É certo que o processo penal não pode ser utilizado como pena ou sanção.

Daí a necessidade de rigor e prudência por parte daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais e daqueles que podem decidir sobre o seu curso.

Nesses termos, com as vênias de estilo e com as escusas de haver me manifestado pela denegação da ordem em caso similar (HC 82.973, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 25.06.03), o meu voto é no sentido de se conceder a ordem de habeas corpus, para que seja trancada a ação penal contra o paciente, porque entendo não configurados, nem em longínqua apreciação, os elementos do tipo em tese.

* acórdão pendente de publicação

HC e Justiça Trabalhista (Transcrições)

(v. Informativo 394)

HC 85096/MG*

RELATOR: MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE

RELATÓRIO: Trata-se de habeas corpus - com pedido de liminar -, no qual se imputa coação ao Tribunal Superior do Trabalho.
O Juízo da Vara do Trabalho de Santa Luzia/MG, nos autos de reclamação trabalhista, decretou a prisão civil do paciente pelo prazo de "noventa dias".
Denegado o habeas corpus impetrado ao TRT/MG, o paciente interpôs recurso ordinário ao Tribunal Superior do Trabalho e impetrou novo habeas corpus ao Superior Tribunal de Justiça.
O TST negou provimento ao recurso ordinário, mantendo, pois, a decisão que determinou a prisão.
Já o STJ, por unanimidade, concedeu a ordem, sob o fundamento de que o paciente não havia aceitado expressamente o compromisso de depositário judicial, hipótese em que não é legítimo o decreto da prisão (f. 8/12).
Donde a presente impetração, na qual se alega que, com a decisão do TST, a qualquer momento poderá o Juízo da Vara do Trabalho de Santa Luzia/MG dar cumprimento à ordem de prisão.
É que - aduz o impetrante -, embora tenha o STJ oficiado ao TRT e ao Juízo local, existem dois acórdãos "totalmente diversos" para o mesmo caso e emanados por tribunais da mesma hierarquia.
Por fim, alega que o julgamento no TST não obedeceu ao princípio do devido processo legal, pois não foi colhido "o parecer da Procuradoria do Trabalho, apesar de presente o interesse público".
Deferida a liminar, sobreveio o parecer do Ministério Público Federal, da lavra do Il. Subprocurador-Geral Haroldo da Nóbrega, que opinou "pelo conhecimento do feito como conflito de competência - entre o TST e o STJ [CF/88, art. 102, I, o] - e a declaração de validade da decisão do STJ e de invalidade da decisão do TST"; e, se conhecido "como habeas corpus, deve ele ser concedido, nos termos da decisão do STJ (...)".
Ressaltou que as decisões do STJ e do TST foram proferidas em data anterior à edição da EC 45, que alterou o art. 114 da Constituição([1]) e, por isso, "foram indevidas", no caso, "as decisões da Justiça Trabalhista, analisando o pedido de soltura do paciente".
É o relatório.

VOTO: Ao menos até a edição da EC 45, firme a jurisprudência do Tribunal em que, sendo o habeas corpus uma ação de natureza penal, a competência para o seu julgamento "será sempre de juízo criminal, ainda que a questão material subjacente seja de natureza civil, como no caso de infidelidade de depositário, em execução de sentença"; e, por isso, quando se imputa coação a Juiz do Trabalho de 1º Grau, compete ao Tribunal Regional Federal o seu julgamento, dado que a Justiça do Trabalho não possui competência criminal (v.g., CC 6.979, 15.8.91, Velloso, RTJ 111/794; HC 68.687, 2ª T., 20.8.91, Velloso, DJ 4.10.91).
Esse entendimento é de ser aplicado ao caso, pois os habeas corpus foram julgados em data anterior à EC 45/04.
Assim, não cabia ao TRT/MG conhecer da impetração que lhe fora dirigida, nem ao TST, em conseqüência, o julgamento do recurso ordinário interposto da sua denegação.
Ao paciente, contudo, somente aproveita o reconhecimento da nulidade do acórdão do TST, único impugnado.
Este o quadro, defiro a ordem, para cassar o acórdão do TST e declarar válido o do Superior Tribunal de Justiça: é o meu voto.

*acórdão publicado no DJU de 14.10.2005

Presunção Constitucional de Não-Culpabilidade - Maus Antecedentes (Transcrições)

RE 464947/SP*

RELATOR: MINISTRO CELSO DE MELLO


EMENTA: PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE NÃO-CULPABILIDADE (CF, ART. 5º, LVII). MERA EXISTÊNCIA DE INQUÉRITOS POLICIAIS EM CURSO (OU ARQUIVADOS), OU DE PROCESSOS PENAIS EM ANDAMENTO, OU DE SENTENÇA CONDENATÓRIA AINDA SUSCETÍVEL DE IMPUGNAÇÃO RECURSAL. AUSÊNCIA, EM TAIS SITUAÇÕES, DE TÍTULO PENAL CONDENATÓRIO IRRECORRÍVEL. CONSEQÜENTE IMPOSSIBILIDADE DE FORMULAÇÃO, CONTRA O RÉU, COM BASE EM EPISÓDIOS PROCESSUAIS AINDA NÃO CONCLUÍDOS, DE JUÍZO DE MAUS ANTECEDENTES. PRETENDIDA CASSAÇÃO DA ORDEM DE "HABEAS CORPUS". POSTULAÇÃO RECURSAL INACOLHÍVEL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO IMPROVIDO.

- A formulação, contra o sentenciado, de juízo de maus antecedentes, para os fins e efeitos a que se refere o art. 59 do Código Penal, não pode apoiar-se na mera instauração de inquéritos policiais (em andamento ou arquivados), ou na simples existência de processos penais em curso, ou, até mesmo, na ocorrência de condenações criminais ainda sujeitas a recurso.

É que não podem repercutir, contra o réu, sob pena de transgressão ao postulado constitucional da não-culpabilidade (CF, art. 5º, LVII), situações jurídico-processuais ainda não definidas por decisão irrecorrível do Poder Judiciário, porque inexistente, em tal contexto, título penal condenatório definitivamente constituído. Doutrina. Precedentes.

DECISÃO: O Ministério Público Federal, ao interpor o presente recurso extraordinário contra decisão emanada do E. Superior Tribunal de Justiça, objetiva a cassação da ordem de "habeas corpus" concedida em favor do ora recorrido, sustentando, em suas razões recursais (fls. 65/81), que a mera existência "de ações penais em curso, com sentenças condenatórias não transitadas em julgado", revela-se bastante para configurar a ocorrência de "maus antecedentes" (fls. 81), sem que tal qualificação - consoante alega o "Parquet" - implique transgressão à presunção constitucional de não-culpabilidade.

Entendo não assistir razão ao Ministério Público Federal, pois tenho para mim, na linha de diversas decisões que já proferi nesta Suprema Corte (RTJ 136/627 - RTJ 139/885, v.g.), que a mera sujeição de alguém a simples investigações policiais, ou a persecuções criminais ainda em curso, não basta, só por si - ante a inexistência de condenação penal transitada em julgado - para justificar o reconhecimento de que o réu seja portador de maus antecedentes:

"'HABEAS CORPUS' - INJUSTIFICADA EXACERBAÇÃO DA PENA COM BASE NA MERA EXISTÊNCIA DE INQUÉRITOS OU DE PROCESSOS PENAIS AINDA EM CURSO - AUSÊNCIA DE CONDENAÇÃO PENAL IRRECORRÍVEL - PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA NÃO-CULPABILIDADE (CF, ART. 5º, LVII) - PEDIDO DEFERIDO, EM PARTE.
- O princípio constitucional da não-culpabilidade, inscrito no art. 5º, LVII, da Carta Política não permite que se formule, contra o réu, juízo negativo de maus antecedentes, fundado na mera instauração de inquéritos policiais em andamento, ou na existência de processos penais em curso, ou, até mesmo, na ocorrência de condenações criminais ainda sujeitas a recurso, revelando-se arbitrária a exacerbação da pena, quando apoiada em situações processuais indefinidas, pois somente títulos penais condenatórios, revestidos da autoridade da coisa julgada, podem legitimar tratamento jurídico desfavorável ao sentenciado. Doutrina. Precedentes."
(RTJ 187/646, Rel. p/ o acórdão Min. CELSO DE MELLO)

"Impossibilidade de considerar-se como maus antecedentes a existência de processos criminais pendentes de julgamento, com o conseqüente aumento da pena-base.
Recurso parcialmente provido para, mantida a condenação, determinar que nova decisão seja proferida, com a observância dos parâmetros legais."
(RHC 83.493/PR, Rel. p/ o acórdão Min. CARLOS BRITTO - grifei)

Na realidade, e como já decidiu esta Suprema Corte (RTJ 139/885), a simples existência de situações processuais ainda não definidas revela-se insuficiente para agravar a situação jurídico-penal do réu ou para legitimar a recusa jurisdicional de determinados benefícios legais, que só podem ser negados àqueles que já sofreram condenação penal irrecorrível.

O Código Penal, ao definir as circunstâncias judiciais que deverão orientar o magistrado na fixação da pena-base (CP, art. 59), determina que se considerem, dentre outros elementos, os antecedentes do réu.

O ato judicial de fixação da pena, contudo, não poderá emprestar relevo jurídico-legal a circunstâncias que meramente evidenciem haver sido (ou estar sendo), o réu, submetido a procedimento penal-persecutório, sem que deste haja resultado, com definitivo trânsito em julgado, qualquer condenação de índole penal.

A submissão de uma pessoa a meros inquéritos policiais - ou, ainda, a persecuções criminais de que não haja derivado, em caráter definitivo, qualquer título penal condenatório - não se reveste de suficiente idoneidade jurídica para justificar ou legitimar a especial exacerbação da pena. Tolerar-se o contrário implicaria admitir grave e inaceitável lesão ao princípio constitucional que consagra a presunção "juris tantum" de não-culpabilidade dos réus ou dos indiciados em geral (CF, art. 5º, LVII).

Expressivas opiniões doutrinárias, pronunciando-se a respeito do tema ora em exame, rejeitam, sumariamente, a possibilidade de se fixar a pena-base com fundamento em situações de absoluta neutralidade condenatória, que só evidenciem a existência de simples "persecutio criminis", sem qualquer e definitivo pronunciamento jurisdicional contra o acusado.

Por isso mesmo, o eminente Professor DAMÁSIO E. DE JESUS, em conhecida obra doutrinária ("Código Penal Anotado", p. 199/200, 11ª ed., 2001, Saraiva), assinala, com absoluto acerto, que "Não devem ser considerados como maus antecedentes, prejudicando o réu, processos em curso (...); inquéritos em andamento (...); sentenças condenatórias ainda não confirmadas (...); simples indiciamento em inquérito policial (...); fatos posteriores não relacionados com o crime (...); crimes posteriores (...); fatos anteriores à maioridade penal (...); sentenças absolutórias (...); referência feita pelo delegado de polícia de que o indivíduo tem vários inquéritos contra si (...); simples denúncia (...); periculosidade (...); e revelia, de natureza estritamente processual (...)" (grifei).

Também perfilha igual orientação o autorizado magistério de CELSO DELMANTO, ROBERTO DELMANTO, ROBERTO DELMANTO JUNIOR e FÁBIO M. DE ALMEIDA DELMANTO ("Código Penal Comentado", p. 107, 5ª ed., 2000, Renovar), cuja lição acentua, com inteira propriedade, que, na dosagem das sanções penais, "não devem ser considerados autos de flagrante (...), inquéritos, mesmo com indiciamento (...) e processos em andamento (...), ou, ainda, sentenças pendentes de recurso (...), sendo necessário o trânsito em julgado destas (...), em face do princípio constitucional da presunção de inocência (...)" (grifei).

Definitiva, no ponto, a douta lição expendida por ROGÉRIO GRECO ("Curso de Direito Penal - Parte Geral", vol. I/626, item n. 11.3.2, 5ª ed., 2005, Editora Impetus), eminente Professor e membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais:

"Entendemos que, em virtude do princípio constitucional da presunção de inocência, somente as condenações anteriores com trânsito em julgado, que não sirvam para forjar a reincidência, é que poderão ser consideradas em prejuízo do sentenciado, fazendo com que a sua pena-base comece a caminhar nos limites estabelecidos pela lei penal.
.......................................................
Se somente as condenações anteriores com trânsito em julgado, que não se prestem para afirmar a reincidência, servem para conclusão dos maus antecedentes, estamos dizendo, com isso, que simples anotações na folha de antecedentes criminais (FAC) do agente, apontando inquéritos policiais ou mesmo processos penais em andamento, inclusive com condenações, mas ainda pendentes de recurso, não têm o condão de permitir que a sua pena seja elevada." (grifei)

Esse entendimento - que presta obséquio à presunção constitucional de não-culpabilidade (CF, art. 5º, LVII) - adverte, corretamente, com apoio na jurisprudência dos Tribunais (RT 418/286 - RT 422/307 - RT 572/391 - RT 586/338), que processos penais em curso, ou inquéritos policiais em andamento, ou, até mesmo, condenações criminais ainda sujeitas a recurso não podem ser considerados, enquanto episódios processuais suscetíveis de pronunciamento judicial absolutório, como elementos evidenciadores de maus antecedentes do réu.

Desse modo, torna-se inquestionável que somente a condenação penal transitada em julgado pode justificar a exacerbação da pena (ou a aplicação de tratamento jurídico mais gravoso ao sentenciado), pois, com o trânsito em julgado, descaracteriza-se a presunção "juris tantum" de não-culpabilidade do réu, que passa, então, a ostentar o status jurídico-penal de condenado, com todas as conseqüências legais daí decorrentes.

Tendo presentes as considerações expostas, e ausente, na espécie, contra o ora recorrido, qualquer título penal condenatório definitivamente constituído, reputo inacolhível a pretensão recursal extraordinária ora deduzida pelo Ministério Público Federal, por entendê-la conflitante com o postulado constitucional, que, positivado no art. 5º, inciso LVII, da Constituição da República, consagra o princípio fundamental da não-culpabilidade dos réus.

Sendo assim, e pelas razões expostas, conheço do presente recurso extraordinário, para negar-lhe provimento, mantendo, em conseqüência, por seus próprios fundamentos, o v. acórdão emanado do E. Superior Tribunal de Justiça.

Publique-se.

Brasília, 17 de outubro de 2005.

Ministro CELSO DE MELLO
Relator

*decisão pendente de publicação




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