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quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Informativo STF 451 - Supremo Tribunal Federal

Informativo STF


Brasília, 4 a 8 de dezembro de 2006 - Nº 451.

Este Informativo, elaborado a partir de notas tomadas nas sessões de julgamento das Turmas e do Plenário, contém resumos não-oficiais de decisões proferidas pelo Tribunal. A fidelidade de tais resumos ao conteúdo efetivo das decisões, embora seja uma das metas perseguidas neste trabalho, somente poderá ser aferida após a sua publicação no Diário da Justiça.

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SUMÁRIO



Plenário
Férias Coletivas: Resolução do CNJ e Ato Regimental do TJDFT
Número Excessivo de Réus e Desmembramento - 3
Partidos Políticos e Cláusula de Barreira - 1
Partidos Políticos e Cláusula de Barreira - 2
1ª Turma
Prisão Preventiva e Fundamentação
Conflito de Competência e Decisão Individual
2ª Turma
Concurso de Agentes e Reclassificação Tipológica
Crime contra a Ordem Econômica: CADE e Prejudicial
Transcrições
Crime de Redução a Condição Análoga à de Escravo e Competência (RE 398041/PA)


PLENÁRIO


Férias Coletivas: Resolução do CNJ e Ato Regimental do TJDFT

O Tribunal deferiu medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Procurador-Geral da República para suspender a eficácia do Ato Regimental 5/2006, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios - TJDFT, e da Resolução 24/2006, editada pelo Conselho Nacional de Justiça - CNJ, que dispõem sobre as férias coletivas nos juízos e tribunais de 2º grau. O Ato Regimental 5/2006 estatui o regime de férias para o ano de 2007 dos membros do TJDFT e dos juízes a ele vinculados e a Resolução 24/2006 revoga o art. 2º da Resolução 3/2005, também do CNJ, que determinava que os Tribunais fossem cientificados quanto à inadmissibilidade de quaisquer justificativas, relativas a período futuro, quanto à concessão de férias coletivas, ficando estas definitivamente extintas, nos termos fixados na Constituição. Entendeu-se que os atos normativos impugnados violam, a princípio, o art. 93, XII, que prescreve que a atividade jurisdicional será ininterrupta, sendo vedado férias coletivas nos juízos e tribunais de 2º grau, e o art. 103-B, § 4º, que trata das atribuições do CNJ, ambos da CF. No tocante à resolução questionada, considerou-se que, apesar de não ter o alcance de revogar a norma constitucional proibitiva das férias coletivas - que, pelo seu conteúdo, é auto-aplicável -, a revogação do art. 2º da Resolução 3/2005 conduz à equivocada suposição de que o CNJ admitiria justificativas relativas a férias coletivas dos magistrados. Asseverou-se que o CNJ ou qualquer outro órgão, do Judiciário ou de outro poder, não têm competência para tolerar, admitir ou considerar aceitável prática de inconstitucionalidade. Ressaltou-se, ainda, não haver embasamento para que o CNJ, órgão de controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, expeça normas sobre o direito dos magistrados ou admita como providência legítima o gozo de férias coletivas desses agentes públicos.
ADI 3823/DF, rel. Min. Cármen Lúcia, 6.12.2006. (ADI-3823)

Número Excessivo de Réus e Desmembramento - 3

O Tribunal, por maioria, em questão de ordem suscitada em inquérito instaurado para apurar a suposta prática dos crimes de quadrilha, peculato, lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta, corrupção ativa e passiva e evasão de divisas, envolvendo quarenta denunciados, revisou deliberação da sessão plenária de 9.11.2006, para manter íntegro o aludido inquérito sem desmembramento - v. Informativo 447. Entendeu-se não haver vantagem prática, em termos de instrução do feito, na adoção do critério objetivo de desmembramento proposto pelo Min. Sepúlveda Pertence no voto que proferira naquela assentada e que fora acompanhado pela maioria do Tribunal. Vencidos os Ministros Sepúlveda Pertence, que mantinha seu voto, e Marco Aurélio, que o acompanhava.
Inq 2245 QO/MG, rel. Min. Joaquim Barbosa, 6.12.2006. (Inq-2245)

Partidos Políticos e Cláusula de Barreira - 1

O Tribunal julgou procedente pedido formulado em duas ações diretas ajuizadas, uma pelo Partido Social Cristão - PSC, e outra pelo Partido Comunista do Brasil - PC do B, pelo Partido Democrático Trabalhista - PDT, pelo Partido Socialista Brasileiro - PSB e pelo Partido Verde - PV, para declarar a inconstitucionalidade do art. 13; da expressão "obedecendo aos seguintes critérios", contida no caput do art. 41; dos incisos I e II do art. 41; do art. 48; da expressão "que atenda ao disposto no art. 13", contida no caput do art. 49, com redução de texto; e da expressão "no art. 13", constante do inciso II do art. 57, todos da Lei 9.096/95. O Tribunal também deu ao caput dos artigos 56 e 57 interpretação que elimina de tais dispositivos as limitações temporais deles constantes, até que sobrevenha disposição legislativa a respeito, e julgou improcedente o pedido no que se refere ao inciso II do art. 56, todos da referida lei. Os dispositivos questionados condicionam o funcionamento parlamentar a determinado desempenho eleitoral, conferindo, aos partidos, diferentes proporções de participação no Fundo Partidário e de tempo disponível para a propaganda partidária ("direito de antena"), conforme alcançados, ou não, os patamares de desempenho impostos para o funcionamento parlamentar.
ADI 1351/DF e ADI 1354/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 7.12.2006. (ADI 1351) (ADI-1354)

Partidos Políticos e Cláusula de Barreira - 2

Entendeu-se que os dispositivos impugnados violam o art. 1º, V, que prevê como um dos fundamentos da República o pluralismo político; o art. 17, que estabelece ser livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana; e o art. 58, § 1º, que assegura, na constituição das Mesas e das comissões permanentes ou temporárias da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, a representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares que participam da respectiva Casa, todos da CF. Asseverou-se, relativamente ao inciso IV do art. 17 da CF, que a previsão quanto à competência do legislador ordinário para tratar do funcionamento parlamentar não deve ser tomada a ponto de esvaziar-se os princípios constitucionais, notadamente o revelador do pluripartidarismo, e inviabilizar, por completo, esse funcionamento, acabando com as bancadas dos partidos minoritários e impedindo os respectivos deputados de comporem a Mesa Diretiva e as comissões. Considerou-se, ainda, sob o ângulo da razoabilidade, serem inaceitáveis os patamares de desempenho e a forma de rateio concernente à participação no Fundo Partidário e ao tempo disponível para a propaganda partidária adotados pela lei. Por fim, ressaltou-se que, no Estado Democrático de Direito, a nenhuma maioria é dado tirar ou restringir os direitos e liberdades fundamentais da minoria, tais como a liberdade de se expressar, de se organizar, de denunciar, de discordar e de se fazer representar nas decisões que influem nos destinos da sociedade como um todo, enfim, de participar plenamente da vida pública.
ADI 1351/DF e ADI 1354/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 7.12.2006. (ADI 1351) (ADI-1354)


PRIMEIRA TURMA


Prisão Preventiva e Fundamentação

A Turma, por maioria, indeferiu habeas corpus em que condenado por homicídio qualificado e aborto (CP, artigos 121, § 2º, I e 125, c/c 61, II, a), que permanecera solto durante toda a instrução criminal, pleiteava a anulação de decreto prisional para aguardar, em liberdade, o julgamento de apelação. Alegava-se, na espécie, a ausência dos requisitos autorizadores para a custódia cautelar, decretada para garantir a aplicação da lei penal, sob o argumento de que a motivação consistente na sua suposta comunicação com os jurados - anteriormente à primeira designação para o julgamento pelo júri, suspenso pelo juiz - restaria ultrapassada com a realização da sessão, e de que a presunção de fuga não seria razão bastante para a segregação. Asseverou-se que o fundamento da comunicação, de fato, não mais subsistiria, haja vista o posterior julgamento pelo conselho de sentença. Quanto à fuga, entretanto, entendeu-se que a base fática em que se apoiara o magistrado não seria apenas a fuga do paciente, mas, principalmente, o seu não comparecimento à aludida primeira sessão, quando ainda desconhecia o seu adiamento e a ordem de prisão contra ele determinada, o que reforçara a sua justificação. Vencidos os Ministros Marco Aurélio e Sepúlveda Pertencem que deferiam o writ por considerar que o segundo fundamento também não persistiria, uma vez que o exame da apelação independeria da presença ou não do acusado.
HC 89074/RS, rel. Min. Carlos Britto, 5.12.2006. (HC-89074)

Conflito de Competência e Decisão Individual

A Turma indeferiu habeas corpus impetrado contra decisão singular de ministro do STJ que, entendendo tratar-se de ato de ofício de servidor público, conhecera de conflito de competência para declarar a justiça federal competente para processar e julgar professor de universidade federal que exigira, de paciente do Sistema Único de Saúde - SUS, pagamento para realização de cirurgia oficialmente reconhecida como aula prática de clínica cirúrgica. Alegava-se, na espécie, ausência de previsão legal para a resolução, por decisão individual do relator, de conflito de competência no STJ. Inicialmente, ressaltou-se que o parágrafo único do art. 120 do CPC - que somente autoriza o relator a decidir monocraticamente conflito de competência quando houver jurisprudência dominante no tribunal sobre a questão suscitada - aplica-se, por analogia, ao processo penal (CPP, art. 3º). Considerou-se que, embora o ministro do STJ não tenha citado precedentes, seria manifesta a jurisprudência daquela Corte no sentido da competência da justiça federal para a ação penal movida contra servidor público no caso de solicitação ou exigência de vantagem indevida para a prática de ato de ofício, como na hipótese, a qual não fora refutada pela impetração.
HC 89951/RS, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 5.12.2006. (HC-89951)



SEGUNDA TURMA


Concurso de Agentes e Reclassificação Tipológica

A Turma deferiu, parcialmente, habeas corpus apenas para determinar que Vara de Execuções Criminais do Estado do Rio de Janeiro analise se o paciente preenche os requisitos necessários à progressão de regime, já que o § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90 veio a ser declarado inconstitucional pelo STF. No caso, o paciente fora denunciado com co-réu, também militar, perante juízo de auditoria militar, pela suposta prática do crime de roubo qualificado e de atentado violento ao pudor, sendo o feito remetido, em relação ele, para a justiça criminal comum, uma vez que não se encontrava em serviço na ocasião dos fatos. Em razão disso, procedera-se à recapitulação, pelo Código Penal, dos crimes a ele imputados. A impetração alegava diferença de tratamento entre os acusados decorrente da diversa capitulação típica dos mesmos fatos, uma vez que o delito de atentado violento ao pudor previsto no CP comum (art. 214) é classificado como hediondo (Lei 8.072/90), impondo vedações que o co-réu não sofrerá no cumprimento da condenação. Em que pese a diferença de tratamento legal entre crimes comuns e militares, mesmo que impróprios, rejeitou-se a alegação de inconstitucionalidade, haja vista não se tratar de diploma instituidor de privilégio para determinado grupo, consoante já reconhecido pelo STF. Considerou-se que a pretensão violaria os princípios da reserva legal e da separação de poderes, porquanto pretendia-se, na espécie, a criação de tertium genus, um misto entre Código Penal e o Código Penal Militar, aplicando-se ao paciente somente os pontos benéficos de ambos.
HC 86459/RJ, rel. Min. Joaquim Barbosa, 5.12.2006. (HC-86459)

Crime contra a Ordem Econômica: CADE e Prejudicial

A Turma iniciou julgamento de habeas corpus em que se pretende a suspensão de ação penal instaurada contra o paciente pela suposta prática de crime contra a ordem econômica (Lei 8.137/90, art. 4º, I, a e f, II, a, b e c, VII, c/c art. 12, na forma do art. 71 do CP), sob o argumento de que a pendência de processo administrativo em trâmite no Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE, no qual se discute a existência do aludido delito, constitui questão prejudicial heterogênea (CPP, art. 93), a implicar a suspensão da ação penal e do curso do prazo prescricional. O Min. Joaquim Barbosa, relator, indeferiu o writ por considerar que inexiste, na hipótese, a condição objetiva de punibilidade para a constituição do tipo penal. Inicialmente asseverou que o referido processo administrativo encontra-se pendente de julgamento e que o caso seria diverso do precedente fixado pelo STF no HC 81611/DF (DJU de 15.3.2005) - no qual fixada a orientação no sentido de que, nos crimes do art. 1º da Lei 8.137/90, a decisão definitiva do processo administrativo consubstancia condição objetiva de punibilidade. Entendeu que os dispositivos em que incurso o paciente apenas descreveriam os elementos do tipo, no qual se enquadra a descrição das condutas constantes da denúncia. Por fim, afastou a aplicação do art. 93 do CPP, ao fundamento de que a suspensão do processo configura faculdade de competência do juízo cível, que não se coaduna com questão concernente a processo administrativo, como na espécie. Após, pediu vista dos autos o Min. Eros Grau.
HC 88521/RS, rel. Min. Joaquim Barbosa, 5.12.2006. (HC-88521)

SessõesOrdináriasExtraordináriasJulgamentos
Pleno7.12.20068.12.20064
1ª Turma6.12.2006--13
2ª Turma6.12.2006--128



T R A N S C R I Ç Õ E S


Com a finalidade de proporcionar aos leitores do INFORMATIVO STF uma compreensão mais aprofundada do pensamento do Tribunal, divulgamos neste espaço trechos de decisões que tenham despertado ou possam despertar de modo especial o interesse da comunidade jurídica.

Crime de Redução a Condição Análoga à de Escravo e Competência (Transcrições)

(v. Informativo 450)

RE 39804l/PA*

RELATOR: MIN. JOAQUIM BARBOSA

VOTO-VISTA: MIN. GILMAR MENDES

Cuidam os autos de recurso extraordinário, interposto pelo Ministério Público Federal, contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região que decidiu ser da competência da Justiça Comum Estadual o processo e julgamento do crime de redução à condição análoga à de escravo, previsto no art. 149 do Código Penal Brasileiro.
O eminente relator assim expôs a seqüência dos fatos processuais:

"Em 15 de janeiro de 1992, o Ministério Público Federal denunciou Silvio Caetano de Almeida, fazendeiro, e Raimundo Simião Filho, preposto, por infração aos artigos 149 e 203 do Código Penal.
A denúncia foi recebida em 17 de setembro de 1992 pelo Juiz Federal de Marabá-PA.
Em decisão de 18 de março de 1998, o juiz monocrático determinou a separação do processo relativamente ao co-réu Raimundo Simião Filho, prosseguindo, portanto, a ação contra Sílvio Caetano de Almeida.
A sentença, de 23 de junho de 1998, absolveu o réu quanto ao crime do art. 203 do Código Penal, por entender que os atos caracterizadores dessa conduta constituem elementos necessários à configuração do crime de redução à condição análoga à de escravo, aplicando ao caso, por conseguinte, o princípio da consunção. No que se refere ao crime do art. 149 do Código Penal, o juiz condenou o réu, fixando a pena privativa de liberdade em quatro anos de reclusão, a serem cumpridos inicialmente em regime aberto.
Na apelação, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, antes de proceder ao exame de mérito, declarou a incompetência absoluta da justiça federal e anulou todo o processo a partir da decisão que recebera a denúncia, inclusive. A ementa do acórdão tem o seguinte teor:

'PENAL E PROCESSO PENAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL NÃO EVIDENCIADA. ART. 149 DO CP. CRIME CONTRA A LIBERDADE PESSOAL. INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA.
1. O tipo do art.149 do CP, redução de trabalhador à condição análoga à de escravo, classificado como crime contra a liberdade individual, não é considerado como crime contra a organização do trabalho, coletivamente considerada, não configurando, portanto, a competência da Justiça Federal - art. 109, VI da CF, Súmula 115 do TFR.
2. Em se tratando de incompetência absoluta, deve ser reconhecida de ofício, com a anulação do processo, a partir do ato de recebimento da denúncia, inclusive. Precedentes deste Regional.
3. Apelação do Réu prejudicada.' (fls. 485)

Inconformado, o Ministério Público Federal interpôs o presente recurso extraordinário, alegando, em suas razões, que o acórdão recorrido viola o disposto no art. 109, VI, da Constituição, visto que, no presente caso, é flagrante a existência de crime contra a organização do trabalho e de crime contra a coletividade dos trabalhadores, justificando-se, portanto, a competência da justiça federal para processar e julgar a infração criminal em exame."

A questão central versada no presente recurso extraordinário, portanto, cinge-se à definição da competência - se da Justiça Comum Estadual ou da Justiça Federal - para processo e julgamento do crime de redução de trabalhadores à condição análoga à de escravo. A controvérsia surge, e encontra sua solução, na interpretação do art. 109, inciso VI, da Constituição, que assim dispõe:

"Art. 109 - Aos juízes federais compete processar e julgar:
(...)
VI - os crimes contra a organização do trabalho (...)"

A competência da Justiça Federal é induvidosa com relação a alguns dos crimes descritos no Título IV do Código Penal Brasileiro ("Dos Crimes contra a Organização do Trabalho"); porém, no caso do crime de redução a condição análoga à de escravo, previsto no "Capítulo dos Crimes contra a Liberdade Individual", especificamente pelo art. 149, ainda persistem as divergências doutrinárias e jurisprudenciais.
A orientação predominante nos tribunais pátrios é no sentido de que compete em regra à Justiça Comum Estadual o processo e julgamento do referido delito. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal está baseada na decisão prolatada nos autos do RE n° 90.042, de relatoria do eminente Min. Moreira Alves, que fixou entendimento segundo o qual "são da competência da Justiça Federal apenas os crimes que ofendam o sistema de órgãos e instituições que preservam, coletivamente, os direitos e deveres dos trabalhadores".
O relator, Min. Joaquim Barbosa, proferiu voto no sentido de afastar a aplicação do referido leading case, visto que, naquela oportunidade, o Tribunal teria analisado mera irregularidade na anotação na carteira de trabalho de um único trabalhador, o que justificaria o afastamento da competência da Justiça Federal para julgar o caso. Considerou o relator, no entanto, que, no processo em exame, "cuida-se de inúmeros trabalhadores a laborar sob escolta, alguns acorrentados, em situação de total violação da liberdade e da autodeterminação de cada um", o que estaria a exigir a aplicação do art. 109, VI, da Constituição. Colho trechos da fundamentação do voto do eminente relator:

"Em realidade, a expressão 'crimes contra a organização do trabalho' comporta outras dimensões, que vão muito além dos aspectos puramente orgânicos até hoje levados em conta pela doutrina e jurisprudência nacionais. Não se cuida apenas de velar pela preservação de um 'sistema de órgãos e instituições' voltados à proteção coletiva dos direitos e deveres dos trabalhadores.
A meu sentir, a 'organização do trabalho' a que alude o dispositivo em discussão deve necessariamente englobar um outro elemento: 'o homem', compreendido na sua mais ampla acepção, abarcando aspectos atinentes à sua liberdade, autodeterminação e dignidade.
Com isso quero dizer que quaisquer condutas que possam ser tidas como violadoras não somente do sistema de órgãos e instituições com atribuições para proteger os direitos e deveres dos trabalhadores, mas também do homem trabalhador, atingindo-o nas esferas que lhe são mais caras, em que a Constituição lhe confere proteção máxima, são, sim, enquadráveis na categoria dos crimes contra a organização do trabalho, se praticadas no contexto de relações de trabalho."

Após tecer considerações doutrinárias sobre o princípio da dignidade humana, o relator assim conclui:

"Ora, diante de tão clara opção pelo homem enquanto tal, pela preservação da sua dignidade intrínseca, é inadmissível pensar que o respectivo sistema de organização do trabalho, atividade que dignifica o homem e em que ele se aperfeiçoa completamente, possa ser concebido unicamente à luz do que tradicionalmente se passou a caracterizar como 'órgãos e instituições', excluindo-se dessa relação o ator principal de todo o sistema, isto é, o homem, esse ser dotado de dignidade intrínseca.
Não. Data vênia dos que esposam pontos de vista diferentes, entendo que o componente humano, sobretudo em virtude da proteção elevada que a Constituição outorga à sua dignidade, deve, sim, ser considerado elemento indissociável da organização do trabalho.
(...)
Assim, Senhor Presidente, entendo que, no contexto das relações de trabalho - contexto esse que, como já disse, sofre o influxo do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, o qual ilumina todo o nosso sistema jurídico-constitucional - , a prática do crime previsto no art. 149 do Código Penal se caracteriza como crime contra a organização do trabalho, atraindo, portanto, a competência da justiça federal, na forma do art. 109, VI, da Constituição."

Após os votos dos Ministros Eros Grau, Carlos Britto e Sepúlveda Pertence, que acompanharam o relator, e dos Ministros Cezar Peluso e Carlos Velloso, que negaram provimento ao recurso, pedi vista dos autos para melhor analisar o problema.
Instigou-me o fato de que o Tribunal, até o momento deste julgamento, tenha justificado a competência da Justiça Federal na necessidade de se dar uma pronta e rígida resposta ao problema do trabalho escravo em nosso país. Está-se a partir da premissa de que o combate ao trabalho escravo somente será eficaz se protagonizado pelas autoridades federais, criando para o Tribunal quase que uma obrigação moral de decidir nesse sentido. Assim está expresso no voto proferido pelo Ministro Relator:

"Senhor Presidente, transcendendo em muito a mera questão de competência, creio que estamos diante de uma das mais dolorosas feridas de nossa sociedade: a incrível e inadmissível persistência de trabalho escravo em nosso país. Subjacente à análise do presente processo, portanto, teremos uma tomada de posição desta Corte em relação ao combate ao trabalho escravo, realidade social que se choca frontalmente com diversos princípios fundamentais da Constituição Federal, de que esta Corte é guardiã."

Em outras palavras, está-se a partir do pressuposto, a meu ver equivocado, de que a polícia e a justiça estaduais, por razões de ordem histórica e cultural, econômica, social ou política, não se mostram dispostas ou não estão aptas para investigar, processar e julgar fatos criminosos cometidos em detrimento dos direitos fundamentais dos trabalhadores. Apenas as autoridades federais - polícia, membros do Ministério Público e juízes - reputadas, dessa forma, mais competentes e confiáveis, poderiam ficar a cargo de tão relevante missão, a de coibir as violações de direitos humanos nas relações de trabalho.
Em suma, a idéia - a meu sentir, preconceituosa - é de que a Justiça Estadual não funciona.
Está claro que o trabalho escravo é uma prática condenada pela sociedade, violadora de toda a ordem constitucional, que possui na dignidade da pessoa humana a sua norma-base (Häberle) e seu valor jurídico supremo (Dürig).
O exercício laboral em condições degradantes e desumanas, como é o caso dos autos, tem sido reprimido nos planos nacional e internacional, por meio dos tratados e convenções de direitos humanos.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1948, por exemplo, prescreve que "ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas". Do mesmo modo, a Organização Internacional do Trabalho, por meio da Convenção n° 29, aprovada na 14a reunião da Conferência Internacional do Trabalho (Genebra, 1930), adotou diversas proposições relativas ao combate ao trabalho forçado ou obrigatório sob todas as suas formas.
O Estado brasileiro, portanto, está comprometido, nos planos interno e externo, com a erradicação de todo tipo de escravidão, servidão e trabalho forçado que venham a afrontar a dignidade humana. O Estado está incumbido, dessa forma, do dever de criar mecanismos eficazes para a realização desse mister, dentre os quais sobressai a edição de normas de organização e procedimento destinadas a regular a investigação, processo e julgamento dos fatos transgressores dos direitos fundamentais dos trabalhadores.
Porém, isso não leva à conclusão, apodítica, de que o processo e julgamento dos fatos que impliquem situação análoga à escravidão de trabalhadores tenham de estar necessariamente na incumbência da Justiça Federal. Significa apenas que cabe ao Estado brasileiro a criação de mecanismos eficazes para reprimir as lesões aos direitos humanos dos trabalhadores.
Assim, em atenção às exigências internacionais decorrentes dos tratados e convenções dos quais o Brasil é signatário, e em exercício de concretização dos direitos fundamentais assegurados na Constituição de 1988, foi editada a Lei n° 10.803/2003, que modificou o art. 149 do Código Penal, dando nova conformação, mais específica, ao tipo do crime de redução à condição análoga à de escravo. No plano processual, a legislação já conta com normas reguladoras da investigação, processo e julgamento desse crime.
É bem verdade, por outro lado, que é sobre a União que recai a responsabilidade internacional diante do compromisso que tem o Brasil de combater as violações contra os direitos humanos delimitados nos tratados e convenções dos quais é signatário.
O ordenamento jurídico, no entanto, já prevê os mecanismos processuais necessários para os casos - frise-se, excepcionais - nos quais a Justiça Estadual, por motivos vários (insuficiência do aparato persecutório, manipulação política, etc.), não esteja funcionando de forma eficiente.
A Lei n° 10.446, de 8 de maio de 2002, por exemplo, prevê a possibilidade de investigação, pelo Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça, sem prejuízo dos órgãos de segurança pública estaduais, dos crimes de repercussão interestadual ou internacional que exijam repressão uniforme, como aqueles relativos "à violação a direitos humanos, que a República Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais de que seja parte" (Art. 1o, inciso III).
Ademais, a Emenda Constitucional n° 45/2004 estabeleceu a hipótese de deslocamento da competência para a Justiça Federal do julgamento dos crimes contra os direitos humanos, concedendo à União a responsabilidade nacional para investigar, processar e punir os crimes que incorram em grave ofensa aos direitos humanos.
Assim, o art. 109, V-A e § 5º, dispõem que, nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.

O art. 109, V-A e § 5º, inserido na Constituição pela EC n° 45/2004, é objeto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n°s 3.486 e 3.493 (Rel. Min. Sepúlveda Pertence), que aguardam julgamento neste Tribunal. Não obstante, é preciso lembrar que a própria Constituição de 1988, em seu art. 34, VII, "b", sempre previu a hipótese, também excepcional, de intervenção da União nos Estados-membros para assegurar a observância dos direitos da pessoa humana, medida esta igualmente dependente de representação do Procurador-Geral da República (art. 36, III).
Faço essas considerações para esclarecer que não se pode partir do pressuposto equivocado de que o resultado do presente julgamento representará uma tomada de posição deste Tribunal a respeito do trabalho escravo em nosso país, como parece ter pretendido fazer crer, data venia, o voto do relator.
O ordenamento jurídico brasileiro já prescreve os mecanismos necessários para a repressão desse tipo de conduta expressamente definida como crime no Código Penal.
A definição da competência - se da Justiça Comum Estadual ou da Justiça Federal - não alterará esse quadro. Aliás, é possível até se cogitar, como o fizeram Velloso e Peluso na sessão anterior, de que as autoridades estaduais, por estarem próximas ao local do crime, podem realizar esse trabalho de forma mais eficiente. Não quero me comprometer com tal argumento, mas tenho como certo de que tanto a Justiça Estadual como a Justiça Federal estão plenamente aptas a processar e julgar o crime de redução à condição análoga à de escravo.
Some-se a isso o entendimento, já perfilhado por esta Corte no julgamento da ADI n° 3.367/DF, DJ 17.3.2006, segundo o qual o Poder Judiciário não é federal, nem estadual, mas um Poder de âmbito nacional, como bem esclarecido pelo seguinte trecho do voto do relator, Ministro Cezar Peluso:

"(...) O pacto federativo não se desenha nem expressa, em relação ao Poder Judiciário, de forma normativa idêntica à que atua sobre os demais Poderes da República. Porque a Jurisdição, enquanto manifestação da unidade do poder soberano do Estado, tampouco pode deixar de ser una e indivisível, é doutrina assente que o Poder Judiciário tem caráter nacional, não existindo, senão por metáforas e metonímias, "Judiciários estaduais" ao lado de um "Judiciário federal".
A divisão da estrutura judiciária brasileira, sob tradicional, mas equívoca denominação, em Justiças, é só o resultado da repartição racional do trabalho da mesma natureza entre distintos órgãos jurisdicionais. O fenômeno é corriqueiro, de distribuição de competências pela malha de órgãos especializados, que, não obstante portadores de esferas próprias de atribuições jurisdicionais e administrativas, integram um único e mesmo Poder. Nesse sentido fala-se em Justiça Federal e Estadual, tal como se fala em Justiça Comum, Militar, Trabalhista, Eleitoral, etc., sem que com essa nomenclatura ambígua se enganem hoje os operadores jurídicos."

O problema posto ao Tribunal no presente recurso diz respeito à interpretação do art. 109, inciso VI, da Constituição, para definir qual o âmbito normativo do dispositivo que prescreve a competência da Justiça Federal para processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho.
A solução, a meu ver, está em definir quais são os bens jurídicos penais tutelados. Por isso, também não me impressiona o argumento, igualmente levantado pelo eminente relator, de que a "organização do trabalho" a que se refere a norma constitucional deve "englobar outro elemento: o homem, compreendido na sua mais ampla acepção, abarcando aspectos atinentes à sua liberdade, autodeterminação e dignidade".
A própria noção de bem jurídico penal já engloba essa idéia, na medida em que faz referência aos valores da comunidade, que possuem seu núcleo no valor supremo da dignidade da pessoa humana. A função ético-social do Direito Penal, como ensina Hans Welzel, é proteger os valores elementares da vida em comunidade. Dentre esse valores, o penalista alemão ressalta o valor do trabalho, da seguinte forma:

"(...) uno de los valores humanos más elementales es el trabajo. Su significación puede apreciarse, por una parte, a partir del producto material - de la obra - que genera (valor de resultado del trabajo). Por outra parte, el trabajo posee, ya independientemente de si la obra se logra o no, una significación positiva en la existencia humana. El trabajo como tal, en el ritmo de actividad e inactividad, da plenitud a la vida humana (...).

Em seguida, prossegue Hans Welzel:

"Ambas formas de valor (valor de resultado y valor del acto) son importantes para el Derecho Penal. El Derecho Penal quiere proteger antes que nada determinados bienes vitales de la comunidad (valores materiales), como, por ejemplo, la integridad del Estado, la vida, la salud, la libertad, la propiedad, etc. (los llamados bienes jurídicos), de ahí que impone consecuencias jurídicas a su lesión (al desvalor del resultado). Esta protección de los bienes jurídicos las cumple en cuanto prohíbe y castiga las acciones dirigidas a la lesión de bienes jurídicos. Luego, se impide el desvalor material o de resultado mediante la punición del desvalor de acto. Así asegura la vigencia de los valores de acto ético-sociales de carácter positivo, como el respecto a la vida ajena, a la salud, a la libertad, a la propiedad, etc.
Estos valores del actuar conforme a derecho, arraigados en la permanente conciencia jurídica (es decir, legal, no necesariamente moral) constituyen el transfondo ético-social positivo de las normas jurídico-penales. El Derecho Penal asegura su real acatamiento, en cuanto castiga la inobservancia manifestada a través de acciones desleales, de rebeldia, indignas, fraudulentas. La misión central del Derecho Penal reside, pues, en asegurar la vigencia inquebrantable de estos valores de acto, mediante la comunicación penal y el castigo de la inobservancia de los valores fundamentales del actuar jurídico manifestada efectivamente."

Enfim, conforme as lições de Franz Von Liszt, "se a missão do Direito é a tutela de interesses humanos, a missão do Direito Penal é a reforçada proteção desses interesses, que principalmente a merecem e dela precisam, por meio da cominação e da execução da pena como mal infligido ao criminoso". A proteção de bens jurídicos (valores fundamentais) como missão principal do Direito Penal também encontra-se na doutrina de Claus Roxin e Winfried Hassemer.
Nesse sentido, se pudermos afirmar, seguindo Prieto Sanchís, que "toda norma penal constitui um desenvolvimento de direitos", na medida em que, como ensina Peces-Barba, "as normas penais fazem parte do subsistema de Direito Penal e ao mesmo tempo do subsistema de direitos fundamentais", podemos também concluir, agora com Häberle, que "o Direito Penal pertence ao conteúdo essencial dos direitos fundamentais".
Portanto, cada norma penal, ao visar à proteção de bens jurídicos fundamentais, está em permanente conexão com a norma fundamental da dignidade da pessoa humana. Trata-se de um "dar e receber", como ensina Häberle, entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais individualmente considerados.
Cada norma penal, dessa forma, está marcada por uma diferenciada amplitude e intensidade no que diz com sua conexão com a dignidade humana. Assim, não é preciso muito esforço hermenêutico para concluir que os crimes contra a organização do trabalho constituem o desenvolvimento e a proteção, através do Direito Penal, do valor do trabalho e, com isso, do valor supremo da dignidade da pessoa humana. Isso não é novidade.
A questão, portanto, está em identificar a teleologia da norma constitucional que define a competência da Justiça Federal para processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho.
Para tanto, não creio que seja necessária uma mudança de posição do Tribunal em relação ao entendimento que vem sendo construído desde o precedente do RE n° 90.042/SP. Na ocasião, o Ministro Moreira Alves, relator, interpretando o art. 125, VI, das Constituição de 1967/69, assim deixou consignado:

"Com efeito, não me parece que o texto constitucional em causa tenha por objetivo carrear para a competência da Justiça Federal Comum todos os crimes que, de alguma forma, digam respeito à relação de trabalho, pelo fato de que os litígios concernentes aos aspectos não criminais dessa relação estão sujeitos, por via de regra, a uma Justiça Federal especializada: a Justiça do Trabalho. Esta se justificaria pelas peculiaridades de natureza processual e de organização de seus órgãos - como a representação paritária de empregadores e empregados nas diferentes instâncias - que não existem no processo comum, nem na organização judiciária estadual. Não é isso o que ocorre em se tratando de crimes de alguma forma vinculados ao trabalho, que se acham capitulados no Código Penal - direito comum - , cuja apuração judicial se faz pelo Código de Processo Penal - também direito comum -, e, com relação aos quais, não se modifica a organização dos órgãos judicantes para o processo e julgamento da ação penal. O que, em realidade, justifica a atribuição de competência, nessa matéria, à Justiça Federal Comum é um interesse de ordem geral - e, por isso mesmo, se atribui à União sua tutela - , na manutenção dos princípios básicos sobre os quais se estrutura o trabalho em todo o país, ou na defesa da ordem pública ou do trabalho coletivo. Daí, aliás, a razão de o texto constitucional haver distinguido o crime contra a organização do trabalho do delito decorrente de greve. Nesse interesse que justifica, a meu ver, a competência da Justiça Federal, em tal terreno, não se enquadram crimes como o de que tratam os presentes autos: deixar o empregador, fraudulentamente, de pagar o salário-mínimo a um determinado empregado. Trata-se, aqui, de ato que atenta contra direito individual, mas que não coloca em risco a organização do trabalho. Competente para apreciá-lo é a Justiça Estadual.Em síntese, tenho para mim como certo que o artigo 125, VI, da Constituição Federal atribui competência à Justiça Federal apenas para processar e julgar ações penais relativas a crimes que ofendem o sistema de órgãos e instituições que preservam, coletivamente, os direitos e deveres dos trabalhadores."

Estou certo de que os crimes contra a organização do trabalho aos quais faz referência o art. 109, VI, da Constituição, não estão resumidos taxativamente no Título IV do Código Penal. Se é possível encontrar crimes definidos nesse título que não correspondem à norma constitucional do art. 109, VI, também é certo que outros crimes definidos na legislação podem configurar, dependendo do caso, crime contra a organização do trabalho.
A questão está, portanto, em identificar qual o bem jurídico afetado; ou seja, como o Ministro Moreira Alves deixou delimitado, se na hipótese existe ofensa ao interesse de ordem geral na manutenção dos princípios básicos sobre os quais se estrutura o trabalho em todo o país.
O Ministro Peluso bem observou em seu voto que o crime de redução de alguém à condição análoga à de escravo nem sempre ocorre no âmbito de uma relação de trabalho. Assim sendo, segundo Peluso, apenas na hipótese de haver um vínculo trabalhista entre criminoso e vítima é que estaria justificada a competência da Justiça Federal. Assim está consignado em seu voto:

"Creio que, quando a norma se refere a crimes contra a organização do trabalho, está a tratar daqueles que, típica e essencialmente, dizem respeito a relações de trabalho, e não, aos que, eventualmente, podem ter relações circunstanciais com o trabalho. É que só no primeiro caso se justifica a competência da Justiça Federal, perante o interesse da União no resguardo da específica ordem jurídica concernente ao trabalho."

O raciocínio do eminente Ministro é plenamente válido para a redação anterior do art. 149 do Código Penal, sem as alterações trazidas pela Lei n° 10.803/2003. O Código Penal, antes da referida alteração, definia a redução à condição análoga à de escravo como crime comum e lhe dava a seguinte redação: "Reduzir alguém à condição análoga à de escravo". O crime poderia ocorrer ou não no âmbito de uma relação de emprego, e qualquer pessoa poderia ser sujeito ativo ou passivo do delito, pois a norma penal não fazia qualquer exigência nesse sentido.
A Lei n° 10.803/2003 deu a seguinte redação ao dispositivo:

"Art. 1o O art. 149 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940, passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I - contra criança ou adolescente;
II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem."

Como se vê, além de especificadas as condutas, foram definidos os sujeitos ativos e passivo do crime, que agora passam a ser apenas o empregador e o empregado. Crime próprio, tanto em relação ao sujeito ativo quanto ao passivo, apenas estará configurado quando houver uma relação de trabalho.
Não obstante, se a modificação do preceito primário - que descreve o tipo penal - teve o condão de transformar o crime comum em crime próprio, de forma que, definidos os sujeitos do delito, este apenas ocorrerá no âmbito de uma relação de trabalho, não se pode daí concluir que houve alteração do bem jurídico tutelado pela norma penal, que continua sendo, em princípio, a liberdade individual do trabalhador.
Não vislumbro, portanto, que todo fato que possa ser configurado em tese como crime de redução à condição análoga à de escravo implique uma ofensa ao bem jurídico "organização do trabalho", justificando, em todos os casos, a competência da Justiça Federal, conforme a determinação do art. 109, inciso VI, da Constituição da República.
É certo, deve-se reconhecer, que, tendo em vista o potencial caráter pluriofensivo desse crime, em muitos casos de trabalho escravo de que se tem conhecimento - infelizmente, ainda muito comuns em regiões interioranas rurais deste país - há, indubitavelmente, afronta também a todo um conjunto de princípios de proteção dos direitos trabalhistas.
Existem casos específicos em que o crime - tendo em vista a forma como é cometido, a quantidade de sujeitos envolvidos e a repercussão social causada - deixa de ser uma violação apenas à liberdade individual do trabalhador, passando a constituir uma grave ofensa a vários bens e valores constitucionais que dizem respeito à organização do trabalho.
Não se deve olvidar, porém, as hipóteses, muito comuns, nas quais, configurado o crime de redução à condição análoga à de escravo, não se pode sequer vislumbrar qualquer tipo de ofensa aos princípios que regem a organização do trabalho. Por exemplo, nos casos em que apenas um indivíduo, trabalhador, tem sua liberdade locomoção restringida por qualquer meio em razão de dívida contraída com o empregador. Ou no caso de retenção momentânea de um único trabalhador no local de trabalho por cerceamento de meios de transporte. Há, aqui, ofensa à liberdade individual do trabalhador, mas não à organização do trabalho como um todo. Não há, portanto, transgressão de normas e instituições voltadas à tutela coletiva dos trabalhadores, mas apenas a direitos e interesses individualmente considerados.
Da mesma forma, não se pode perder de vista que a própria estrutura normativa do tipo penal descrito no art. 149 do Código Penal pode dar ensejo à qualificação como "crime de trabalho escravo" de inúmeras condutas que, a princípio, analisando bem as condições concretas envolvidas, não poderiam ser tidas como criminosas.
Como efeito, o preceito penal primário do art. 149 do CP contém cláusulas indeterminadas - como, por exemplo, "condições degradantes de trabalho" - que podem ser utilizadas indevidamente para permitir um alargamento exacerbado do suporte fático normativo, abrangendo todo e qualquer caso em que trabalhadores são submetidos a condições aparentemente indignas de trabalho. Tenha-se em mente, por exemplo, os fatos muito comuns em que as autoridades relatam como sendo caso de "trabalho escravo" a existência de trabalhadores em local sem instalações adequadas, como banheiro, refeitório etc., sem levar em conta que o próprio empregador utiliza-se das mesmas instalações e que estas são, na maioria das vezes, o retrato da própria realidade interiorana do Brasil.
Há que se estar atento, portanto, para a possibilidade de abusos na tipificação de fatos tidos como de "trabalho escravo".
Por isso, entendo que a regra de competência fixada pelo art. 109, inciso VI, da Constituição, deve incidir apenas naqueles casos em que esteja patente a ofensa a princípios básicos sobre os quais se estrutura o trabalho em todo o país.
Outro não tem sido o entendimento desta Corte quanto à interpretação de dispositivos constitucionais constantes do art. 109, que definem a competência ratione materiae da Justiça Federal.
Por exemplo, no recente julgamento do RE 419.528/PR, Rel. orig. Min. Marco Aurélio, rel. p/ o acórdão Min. Cezar Peluso, em 3 de agosto de 2006, o Tribunal fixou o entendimento, já delineado em outros precedentes (RE n° 263.010-1/MS, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 10.11.2000; HC n° 81.827/MT, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 23.8.2002), segundo o qual a competência da Justiça Federal para processar e julgar os crimes praticados por índios ou contra índios configura-se apenas quando estiverem em jogo questões ligadas aos elementos da cultura indígena e aos direitos e interesses sobre terras, não alcançando delitos isolados praticados individualmente e sem envolvimento com toda a comunidade indígena. O Tribunal entendeu que a expressão "disputa entre direitos indígenas", contida no inciso XI do art. 109 da Constituição, deve ser interpretada em conjunto com o art. 231 da Constituição, justificando a competência da Justiça Federal apenas em casos em que haja um atentado contra a existência do grupo indígena como um todo (Informativo STF n° 434, de 9 de agosto de 2006).
Como se vê, o Tribunal tem fixado seu entendimento jurisprudencial no sentido de que a incidência das normas constitucionais que definem a competência da Justiça Federal depende da análise casuística sobre a configuração da ofensa ao bem jurídico protegido, que deve levar em conta, como na espécie, o elemento coletivo ou transindividual.
Entendo, portanto, que a competência da Justiça Federal para processar e julgar o crime de redução de alguém à condição análoga à de escravo configura-se apenas nas hipóteses em que esteja presente a ofensa aos princípios que regem a organização do trabalho.
Esse entendimento não discrepa totalmente da orientação já perfilhada por esta Corte em outros precedentes. Além do já citado RE n° 90.042/SP, Rel. Min. Moreira Alves, recordo também o RE n° 156.527-6/PA, Rel. Min. Ilmar Galvão, cuja ementa possui o seguinte teor:

"EMENTA: COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. CRIMES CONTRA A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO. INTERPRETAÇÃO DO ART. 109, VI, PRIMEIRA PARTE, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Em face do mencionado texto, são da competência da Justiça Federal tão-somente os crimes que ofendem o sistema de órgãos e institutos destinados a preservar, coletivamente, os direitos e deveres dos trabalhadores. Acórdão que decidiu em conformidade com essa orientação. Recurso não conhecido."

Não se deve esquecer que, nos casos em que esteja configurada a grave violação de direitos humanos, e em que, por razões variadas, a Justiça Comum não esteja atuando de forma eficiente, pode o Procurador-Geral da República suscitar ao Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou do processo penal, o incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal, com base no que dispõe o art. 109, § 5o, da Constituição Federal, com a redação determinada pela EC n° 45/2004. Poderá também o Procurador-Geral da República, tendo em vista as circunstâncias do caso, sempre em hipóteses excepcionais, formular, ao Supremo Tribunal Federal, pedido de intervenção federal no Estado para assegurar a observância de direitos da pessoa humana, conforme o disposto no art. 34, inciso VII, alínea "b", da Constituição.
Toda essa análise tem o objetivo de fixar, em tese, a interpretação adequada do art. 109, inciso VI, da Constituição da República, para definir objetivamente em quais hipóteses estará configurada a competência da Justiça Federal para processar e julgar o crime de redução à condição análoga à de escravo.
Como já tive a oportunidade de pronunciar em outras ocasiões nesta Corte e em trabalhos doutrinários, é tênue a linha que separa os mecanismos processuais subjetivos e objetivos de proteção da Constituição. O recurso extraordinário, a meu ver, também é instituto processual de caráter marcadamente objetivo, na medida em que possibilita a esta Corte não apenas a solução do caso concreto, mas a delimitação da tese objetiva.
Fixada a tese quanto à interpretação do art. 109, inciso VI, da Constituição, passo a analisar o caso concreto.
O recurso em exame - e isso o Ministro Relator deixou bem claro - cuida de fatos que configuram redução de vários trabalhadores à condição análoga à de escravos, assim relatados na petição do Ministério Público:

"A Fazenda do Silva/PA, cenário macabro dos fatos noticiados nestes autos, foi palco - talvez ainda o seja - desta absoluta ausência de lei, onde cerca de 20 trabalhadores, na maioria analfabetos, eram mantidos sob forte segurança, de modo a realizarem as tarefas determinadas e não empreenderem fuga, submetidos a torturas e sevícias, reféns de uma dívida sempre superior ao 'ajuste' inicial do preço a ser pago pela força de trabalho, posto que obrigados a adquirirem, por valores exorbitantes, produtos alimentícios e de necessidades pessoais em cantinas montadas no próprio local de trabalho, além de despesas de hospedagem."

A denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal (fls. 3-6) descreve os fatos da seguinte maneira:

"Por volta do mês de junho de 1990, o primeiro denunciado, como proprietário que é da Fazenda do Silva, localizada no Município de Marabá, Km 32 da Estrada da Serra de Carajás, contratou o segundo denunciado para recrutar trabalhadores que deveriam ser levados para suas terras onde executariam trabalhos de roçagem, e como tal, rotineiros em uma propriedade rural.
Atendendo ao convite do primeiro réu - o maior beneficiário da situação - o acusado Raimundo Simião, que atua como 'Gato' na região de Marabá, levou cerca de 20 trabalhadores para a fazenda de Silvio, não procedendo a elementar direito trabalhista que é a anotação de contrato de trabalho na CTPS.
Para recrutar pessoal, o 'gato' promete remuneração altíssima, que funciona como fator de indução de conduta. Todavia, mantém no local de trabalho uma cantina onde os trabalhadores são obrigados a fazer suas compras sempre por valores superiores ao mercado, de tal forma que no momento do pagamento todos sempre estão em débito para com o armazém, que é mantido com recursos repassados pelo proprietário da fazenda.
Visando o lucro fácil, os trabalhadores são proibidos de deixar o local até que terminem o trabalho e quitem suas dívidas. Qualquer tentativa de fuga é reprimida com violência física, chegando até mesmo à ameaça de morte.
E, ainda, para os trabalhadores que 'ousam' reclamar da situação, o 'gato' e seus capangas aplicam verdadeiras torturas físicas e psicológicas, chegando ao ponto de acorrentar trabalhadores como autênticos escravos.(...) As barbaridades chegavam ao ponto de utilizarem os próprios trabalhadores para torturar os companheiros.(...)"

Esse breve relato dos fatos faz transparecer, a meu ver, a afronta aos valores estruturantes da organização do trabalho e da proteção do trabalhador.
Assim, diante da patente violação, no caso concreto, ao bem jurídico "organização do trabalho", entendo como justificada a competência da Justiça Federal para processar e julgar o crime descrito nos autos, em aplicação do disposto no art. 109, VI, da Constituição.
Nesses termos, conheço e dou provimento ao recurso.

*acórdão pendente de publicação


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Anna Daniela de A. M. dos Santos
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