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quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Informativo STF 443 - Supremo Tribunal Federal

Informativo STF


Brasília, 2 a 6 de outubro de 2006 - Nº 443.

Este Informativo, elaborado a partir de notas tomadas nas sessões de julgamento das Turmas e do Plenário, contém resumos não-oficiais de decisões proferidas pelo Tribunal. A fidelidade de tais resumos ao conteúdo efetivo das decisões, embora seja uma das metas perseguidas neste trabalho, somente poderá ser aferida após a sua publicação no Diário da Justiça.

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SUMÁRIO



Plenário
Ação Popular contra o CNMP e Incompetência do STF
ADI e Depósitos Judiciais
Substituição Tributária e Restituição - 13
Empresa Pública e Imunidade Tributária - 2
ADI e Norma Antinepotismo
ADI e Princípio do Concurso Público
Recurso Administrativo e Dever de Decidir
ADI e Atividades de Delegado de Polícia
1ª Turma
Prisão Preventiva e Garantia da Ordem Pública - 2
2ª Turma
Corrupção Passiva e Encontro Fortuito de Provas - 3
Corrupção Passiva e Encontro Fortuito de Provas - 4
Fraude Processual e Justa Causa
Transcrições
Denúncia Genérica e Inépcia (HC 86395/SP)


PLENÁRIO


Ação Popular contra o CNMP e Incompetência do STF

O Tribunal, resolvendo questão de ordem em petição, não conheceu de ação popular ajuizada por advogado contra o Conselho Nacional do Ministério Público - CNMP, na qual se pretendia a nulidade de decisão, por este proferida pela maioria de seus membros, que prorrogara o prazo concedido, pela Resolução 5/2006, aos membros do Ministério Público ocupantes de outro cargo público, para que estes retornassem aos órgãos de origem. Entendeu-se que a alínea r do inciso I do art. 102 da CF ("Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal... I - processar e julgar, originariamente:... r) as ações contra o... Conselho Nacional do Ministério Público;"), introduzida pela EC 45/2004, refere-se a ações contra os respectivos colegiados e não aquelas em que se questiona a responsabilidade pessoal de um ou mais conselheiros, caso da ação popular. Salientou-se, tendo em conta o que disposto no art. 6º, § 3º, da Lei 4.417/65 (Lei da Ação Popular), que o CNMP, por não ser pessoa jurídica, mas órgão colegiado da União, nem estaria legitimado a integrar o pólo passivo da relação processual da ação popular. Asseverou-se, no ponto, que, ainda que se considerasse a menção ao CNMP como válida à propositura da demanda contra a União, seria imprescindível o litisconsórcio passivo de todas as pessoas físicas que, no exercício de suas funções no colegiado, tivessem concorrido para a prática do ato, ou seja, os membros que compuseram a maioria dos votos da decisão impugnada. Por fim, ressaltando a jurisprudência da Corte no sentido de, tratando-se de ação popular, admitir sua competência originária somente no caso de incidência da alínea n do inciso I do art. 102, da CF ou de a lide substantivar conflito entre a União e Estado-membro, concluiu-se que, mesmo que emendada a petição inicial no tocante aos sujeitos passivos da lide e do pedido, não seria o caso de competência originária.
Pet 3674 QO/DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 4.10.2006. (Pet-3674)

ADI e Depósitos Judiciais

O Tribunal iniciou julgamento de mérito de ação direta proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil na qual se objetiva a declaração de inconstitucionalidade da Lei federal 9.703/98, que, dispondo sobre os depósitos judiciais e extrajudiciais de tributos e contribuições federais, determina sejam os mesmos efetuados na Caixa Econômica Federal e repassados para a Conta Única do Tesouro Nacional, independentemente de qualquer formalidade, e, em caso de devolução, assegura o acréscimo de juros equivalentes à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia - SELIC. Com base no que decidido na cautelar, orientação reafirmada pela Corte no julgamento da ADI 2214 MC/MS (DJU de 19.4.2002), o Min. Eros Grau, relator, julgou improcedente o pedido formulado, no que foi acompanhado pelos Ministros Ricardo Lewandowski e Joaquim Barbosa. O relator entendeu não haver ofensa ao princípio da harmonia entre os Poderes, porquanto não suprimida ou afetada competência ou prerrogativa ínsita ao magistrado como integrante do Poder Judiciário, haja vista não consubstanciarem o recebimento e a administração dos depósitos judiciais atos da atividade jurisdicional. Afastou, de igual modo, as alegações de violação ao princípio da isonomia, tendo em conta que a lei corrigiu uma discriminação, já que instituiu a taxa SELIC como índice de correção dos depósitos, bem como de irregular instituição de empréstimo compulsório, por não estar o contribuinte obrigado a depositar em juízo o valor do débito em discussão. Rejeitou, por fim, o argumento de ofensa ao devido processo legal, já que a previsão de que o levantamento dos depósitos judiciais dar-se-á depois do trânsito em julgado da decisão que definir o cabimento da exação não inova no ordenamento. Após, pediu vista dos autos o Min. Carlos Britto.
ADI 1933/DF, rel. Min. Eros Grau, 5.10.2006. (ADI-1933)

Substituição Tributária e Restituição - 13

O Tribunal retomou julgamento de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Governador do Estado de São Paulo contra o art. 66-B, II, da Lei estadual 6.374/89, com a redação dada pela Lei 9.176/95, que assegura a restituição do ICMS pago antecipadamente no regime de substituição tributária, nas hipóteses em que a base de cálculo da operação for inferior à presumida - v. Informativos 331, 332, 397, 428. Após o voto-vista do Min. Ricardo Lewandowski, que acompanhava o voto do Min. Cezar Peluso, relator, pediu vista dos autos o Min. Eros Grau.
ADI 2777/SP, rel. Min. Cezar Peluso, 5.10.2006. (ADI-2777)

Empresa Pública e Imunidade Tributária - 2

Em conclusão de julgamento, o Tribunal, por maioria, deu provimento a agravo regimental, interposto contra decisão que indeferira pedido de concessão de tutela antecipada formulado em ação cível originária proposta pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - ECT contra o Estado do Rio de Janeiro, para suspender a exigibilidade da cobrança de IPVA sobre os veículos da agravante - v. Informativo 425. Considerou-se estar presente a plausibilidade da pretensão argüida no sentido de que a imunidade recíproca, prevista no art. 150, VI, a, da CF, estende-se à ECT. Asseverou-se, inicialmente, que a ECT é empresa pública federal que executa, ao menos, dois serviços de manutenção obrigatória para a União, nos termos do art. 21, X, da CF, quais sejam, os serviços postais e de correio aéreo nacional. Entendeu-se que, embora a controvérsia acerca da caracterização da atividade postal como serviço público ou de índole econômica e a discussão sobre o alcance do conceito de serviços postais estejam pendentes de análise no Tribunal (ADPF 46/DF - v. Informativos 392 e 409), afirmou-se que a presunção de recepção da Lei 6.538/78, pela CF/88, opera em favor da agravante, tendo em conta diversos julgamentos da Corte reconhecendo a índole pública dos serviços postais como premissa necessária para a conclusão de que a imunidade recíproca se estende à ECT. Esclareceu-se, ademais, que a circunstância de a ECT executar serviços que, inequivocamente, não são públicos nem se inserem na categoria de serviços postais demandará certa ponderação quanto à espécie de patrimônio, renda e serviços protegidos pela imunidade tributária recíproca, a qual deverá ocorrer no julgamento de mérito da citada ADPF. Vencidos os Ministros Marco Aurélio, relator, e Ricardo Lewandowski, que negavam provimento ao recurso, por reputar ausentes os requisitos para concessão da liminar, concluindo ser inaplicável, à ECT, a imunidade recíproca, por ser ela empresa pública com natureza de direito privado que explora atividade econômica.
ACO 765 AgR/RJ, rel. orig. Min. Marco Aurélio, rel. p/ o acórdão Min. Joaquim Barbosa, 5.10.2006. (ACO-765)

ADI e Norma Antinepotismo

O Tribunal iniciou julgamento de ação direta ajuizada pela Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo, na qual se questiona a constitucionalidade do inciso VI do art. 32 da Constituição Estadual, que estabelece ser "vedado ao servidor público servir sob a direção imediata de cônjuge ou parente até segundo grau civil". O Min. Sepúlveda Pertence, relator, julgou procedente o pedido formulado para, dando interpretação conforme a Constituição, declarar constitucional o dispositivo impugnado somente quando incida sobre os cargos de provimento em comissão, função gratificada, cargos de direção e assessoramento, no que foi acompanhado pelos Ministros Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Joaquim Barbosa, Carlos Britto e Cezar Peluso. O relator entendeu que a vedação não poderia alcançar os servidores admitidos mediante prévia aprovação em concurso público, ocupantes de cargo de provimento efetivo, haja vista que isso poderia inibir o próprio provimento desses cargos, violando, dessa forma, o art. 37, I e II, da CF, que garante o livre acesso aos cargos, funções e empregos públicos aos aprovados em concurso público. Em divergência, o Min. Marco Aurélio julgou improcedente o pedido por considerar que a interpretação conforme dada pelo relator continuaria permitindo situação que não se coaduna com o princípio da moralidade pública. Após, pediu vista dos autos a Min. Ellen Gracie.
ADI 524/ES, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 5.10.2006. (ADI-524)

ADI e Princípio do Concurso Público

Por ofensa ao art. 37, II, da CF, e aplicando o Enunciado da Súmula 685 do STF ("É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido"), o Tribunal julgou procedente pedido formulado em ação direta ajuizada pelo Procurador-Geral da República para declarar a inconstitucionalidade da Resolução 04/96, do Tribunal Regional Eleitoral do Estado de Goiás, que delibera sobre o aproveitamento de servidores requisitados. Preliminarmente, o Tribunal entendeu não haver inconstitucionalidade reflexa, a impedir o conhecimento da ação, porquanto as Leis 7.297/84 e 7.178/83, fundamentos da Resolução 04/96, e que possibilitaram o aproveitamento dos servidores requisitados, sendo anteriores à CF/88 e com ela incompatíveis, teriam sido, conforme orientação fixada pelo Tribunal, revogadas. Assim, não haveria mais o parâmetro infraconstitucional de confronto, fazendo com que a Resolução se tornasse autônoma. No mérito, considerou-se que, vedada pela CF/88 o aproveitamento do servidor em carreira diversa, com mais razão se haveria de reputar inadmissível o aproveitamento de servidor estadual nos quadros da Justiça Eleitoral, que integra o Poder Judiciário da União.
ADI 3190/GO, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 5.10.2006. (ADI-3190)

Recurso Administrativo e Dever de Decidir

O Tribunal concedeu parcialmente mandado de segurança impetrado pelo Estado de Minas Gerais contra ato omissivo do Secretário de Estado da Fazenda e Controle Geral do Rio de Janeiro para determinar que a autoridade coatora, no prazo de trinta dias, julgue o recurso administrativo do impetrante, referente a crédito de ICMS. Entendeu-se haver demora injustificada para apreciação do aludido recurso. Considerou-se, tendo em conta o que disposto nos artigos 48, 49 e 59, § 1º, todos da Lei 9.784/99 - que impõem, à Administração, o dever de emitir, no prazo de trinta dias, decisão nos processos administrativos de sua competência -, que teria transcorrido lapso de tempo suficiente para o julgamento do recurso, já que passados mais de cento e oitenta dias desde a sua interposição.
MS 24167/RJ, rel. Min. Joaquim Barbosa, 5.10.2006. (MS-24167)

ADI e Atividades de Delegado de Polícia

O Tribunal julgou procedente pedido formulado em ação direta proposta pelo Procurador-Geral da República para declarar a inconstitucionalidade da expressão "podem ser exercidas por policial civil ou militar e correspondem, exclusivamente, ao desempenho das atividades de direção e chefia das Delegacias de Polícia do interior do Estado", contida no parágrafo único do art. 4º da Lei 7.138/98, do Estado do Rio Grande do Norte, que extingue cargos em comissão e funções gratificadas na Secretaria de Segurança Pública, estabelece gratificações para os integrantes da carreira de Delegado da Polícia Civil, e dá outras providências. Entendeu-se que a norma impugnada viola o § 4º do art. 144 da CF ("às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares."), pois permite que policiais civis e militares desempenhem funções de Delegados de Polícia de carreira, bem como afronta o § 5º do mesmo artigo, que atribui, às polícias militares, a tarefa de realizar o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública, a qual não se confunde com as funções de polícia judiciária e apuração de infrações penais, de competência das polícias civis.
ADI 3441/RN, rel. Min. Carlos Britto, 5.10.2006. (ADI-3441)


PRIMEIRA TURMA


Prisão Preventiva e Garantia da Ordem Pública - 2

Em conclusão de julgamento, a Turma deferiu, por maioria, habeas corpus impetrado em favor de denunciado, com terceiros, pela suposta prática dos crimes previstos nos artigos 213 e 214, c/c o art. 224, a, na forma dos artigos 71 e 226, III, todos do CP - v. Informativo 440. Considerou-se que os argumentos invocados para a custódia do paciente não demonstrariam o risco para a ordem pública, decorrente da manutenção da liberdade provisória do paciente, e que inexistiria nos autos referência à periculosidade. Salientou-se, também, jurisprudência do STF no sentido de que o término da instrução processual torna desnecessária a custódia preventiva. Vencido o Min. Carlos Britto que indeferia o writ, por entender que a garantia da ordem pública estaria suficientemente fundamentada na incolumidade das vítimas e na insegurança na localidade em que cometido o delito.
HC 89196/BA, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 3.10.2006. (HC-89196)


SEGUNDA TURMA


Corrupção Passiva e Encontro Fortuito de Provas - 3

A Turma retomou julgamento de habeas corpus impetrado em favor de Subprocurador-Geral da República denunciado pela suposta prática do crime de corrupção passiva (CP, art. 317, § 1º, c/c art. 61, II, g), consistente no recebimento de vantagens indevidas, em decorrência de sua participação em processos judiciais, nos quais não poderia atuar como advogado, por intervir, valendo-se do seu cargo, como membro do Ministério Público e por envolver a União e/ou autarquias. No caso concreto, a partir de investigações procedidas na denominada "Operação Anaconda", autorizadas pelo TRF da 3ª Região, surgiram indícios de envolvimento do paciente nesses fatos. Em razão disso, requereu-se ao STJ, em fase preambular de procedimento penal regido pela Lei 8.038/90, a realização de busca e apreensão nos endereços do paciente, bem como a quebra dos seus sigilos bancário, fiscal, telefônico, telemático e de dados - v. Informativo 413.
HC 84224/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, 3.10.2006. (HC-84224)

Corrupção Passiva e Encontro Fortuito de Provas - 4

Em voto-vista, o Min. Joaquim Barbosa deferiu, em parte, o writ para impedir a utilização de provas obtidas após o oferecimento da denúncia. Inicialmente, rejeitou as alegações de inépcia da inicial, por considerá-la cognoscível e respaldada em documentos legalmente apreendidos, bem como de atipicidade e de falta de justa causa, por demandarem análise das provas, viável quando do julgamento da ação penal de origem. No tocante ao argumento de ofensa à garantia de fundamentação das decisões judiciais (CF, art. 93, IX), ao princípio protetor da intimidade (CF, art. 5º, X) e das inviolabilidades do domicílio (CF, art. 5º, XI) e do sigilo de comunicação de dados (CF, art. 5º, XII), acompanhou o voto do relator no sentido de existir base razoável para o prosseguimento das investigações. Por outro lado, dele divergiu em relação à ofensa ao contraditório preambular ao fundamento de que não haveria prejuízo ao direito de defesa do paciente em virtude da decretação de busca e apreensão e de quebra de sigilos em momento anterior à sua resposta. Asseverou que essas medidas não teriam relação com os fatos dos quais o paciente deveria se defender, objetivando apenas a apuração de outros ilícitos. Por fim, reputou que as provas colhidas em decorrência das medidas judiciais não poderiam constar dos autos da ação penal. Após, pediu vista o Min. Cezar Peluso.
HC 84224/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, 3.10.2006. (HC-84224)

Fraude Processual e Justa Causa

A Turma iniciou julgamento de habeas corpus em que se pretende a exclusão do crime de fraude processual (CP, Art. 347: "Inovar artificiosamente, na pendência de processo civil ou administrativo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito:... Parágrafo único: Se a inovação se destina a produzir efeito em processo penal, ainda que não iniciado, as penas aplicam-se em dobro.") da sentença de pronúncia proferida contra o paciente, sob o argumento de falta de justa causa para a imputação. Sustenta-se, na espécie, a atipicidade do delito, a caracterização da conduta como ato de execução ou de exaurimento do crime de ocultação de cadáver, bem como a presença de desistência voluntária ou de arrependimento eficaz. O Min. Gilmar Mendes, relator, indeferiu a ordem. Preliminarmente, entendeu que o writ não seria a via processual adequada para a pretensão deduzida, pois envolvido o exame de elementos fáticos diretamente relacionados com a prática de homicídio qualificado. Ademais, ressaltou a plausibilidade dos fundamentos expendidos no ato decisório impugnado e a necessidade de se conferir máxima efetividade ao princípio constitucional que garante a competência e a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri (CF, art. 5º, XXXVIII). Aduziu que, superada a questão do conhecimento, o caso deveria ser analisado sob a égide do requisito da tipicidade ou não da conduta atribuída ao paciente. No ponto, tendo em conta os documentos juntados aos autos, rejeitou a alegação de constrangimento ilegal por considerar que o crime de fraude processual restara, ao menos em tese, configurado, não sendo cabível habeas corpus para trancar a ação penal. Após, o julgamento foi suspenso em virtude do pedido de vista do Min. Cezar Peluso.
HC 88733/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, 3.10.2006. (HC-88733)


SessõesOrdináriasExtraordináriasJulgamentos
Pleno4.10.20065.10.200614
1ª Turma3.10.2006-- 31
2ª Turma3.10.2006--144



T R A N S C R I Ç Õ E S


Com a finalidade de proporcionar aos leitores do INFORMATIVO STF uma compreensão mais aprofundada do pensamento do Tribunal, divulgamos neste espaço trechos de decisões que tenham despertado ou possam despertar de modo especial o interesse da comunidade jurídica.

Denúncia Genérica e Inépcia (Transcrições)

HC 86395/SP*

RELATOR: MIN. GILMAR MENDES

VOTO: (...) Em síntese, o STJ denegou a ordem tendo em vista a possibilidade de concurso de crimes com a ação voltada a tipos penais diversos e a sujeitos passivos diferentes. Ademais, o acórdão impugnado sustenta a tese de que não poderia ser desprezada a denúncia que menciona as elementares do delito.
A decisão impugnada, portanto, parte da premissa de que, no caso em tela, haveria exposição do fato típico e antijurídico alicerçada por meios informativos idôneos e suficientes à acusação e à defesa, mesmo que não se trate de, nos próprios dizeres do Relator, Min. José Arnaldo da Fonseca, "um primor de elaboração técnica" (fl. 436).
No parecer de fls. 488-509, o Ministério Público Federal, pelo Subprocurador-Geral da República, Dr. Edson Oliveira de Almeida, opina pelo indeferimento da ordem, sob o fundamento de que a denúncia reproduzida às fls. 47-59 seria apta para a persecução penal. Ademais, o Parquet argumenta não haver razão para o trancamento de ação penal quando os fatos narrados configurem, ao menos em tese, crimes, (...)
Conforme exposto na peça acusatória, o ora paciente foi denunciado pelos crimes de: i) ameaça com a agravante genérica do abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, ofício, ministério ou profissão [(Art. 147 do CP: Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave.); c/c (Art. 61, II, 'g', do CP - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime - ter o agente cometido o crime: com abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, ofício, ministério ou profissão.)]; e ii) abuso de autoridade (Art. 3o, alínea 'j', da Lei no 4.898/1965: Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional.).
Em síntese, pode-se dizer que a impetração se baseia nos seguintes fundamentos:

a) ausência de representação quanto ao crime de ameaça; e
b) ausência de justa causa para a ação penal em face da denúncia não descrever as condutas típicas imputadas ao paciente, seja quanto à caracterização do crime de ameaça; seja quanto à tentativa de descrição da elementar do crime de abuso de autoridade.

Quanto à alegada falta de condição de procedibilidade para a ação penal correspondente à ausência de representação específica quanto ao crime de ameaça (item "a" acima), a impetração alega que:

"A representação era, inegavelmente, obrigatória para a hipótese em questão. Sua ausência impõe o reconhecimento de inexistência de condição de procedibilidade para a ação penal" (fl. 18).

Preliminarmente, é válido mencionar que o ato de representação do ofendido, para fins penais, não depende, à primeira vista, de "rigores formalísticos", como dizia o saudoso Min. Cordeiro Guerra, em precedente firmado por esta Segunda Turma no julgamento do RHC no 58.093/SP, assim ementado, verbis:

"A representação ao desencademanto da 'persecutio criminis' não necessita cumprir rigores formalísticos. Basta a caracterização nos autos, da manifestação dos ofentidos, ou de seus representantes legais, ao processamento criminal dos autores do evento. Precedente do STF. Improvimento do recurso.". (RHC no 58.093/SP, Rel. Min. Cordeiro Guerra, 2ª Turma, DJ de 03.10.1980).

É pertinente invocar ainda o clássico precedente, de lavra do Min. Moreira Alves, também firmado por esta Segunda Turma no julgamento do RHC no 54.013/PR (DJ de 26.04.1976), no qual se esclarece que a representação deve expressar vontade inequívoca de que o autor seja processado, desde que indique fato típico, isto é, relevante, ao menos em tese, para o âmbito penal, verbis:

"Habeas Corpus. O inquérito policial não pode ser trancado por meio de habeas corpus quando instaurado em virtude de ato que configura crime em tese. Não se exige da representação rigorismo formalista, bastando, para que seja tida como tal, a inequívoca manifestação de vontade da vítima de que o autor do ato que se apresenta, em tese, como crime seja processado. Recurso Ordinário a que se nega provimento." - (grifo nosso - RHC no 54.013/PR, Segunda Turma, Rel. Min. Moreira Alves, unânime, DJ de 26.04.1976).

No caso concreto, é incontroverso que, por meio da representação formulada, os policiais rodoviários federais envolvidos manifestaram a vontade de incitar a instauração da persecução criminal.
Quanto à alegação de ausência de justa causa para a ação penal em face da denúncia não descrever as condutas imputadas ao paciente, a defesa afirma, inicialmente, que:

"redigida em 12 laudas (doc. 01), a longa e prolixa denúncia fez dezenas de considerações pouco importantes, narrou longamente antecedentes e questões marginais, e falhou no principal: a descrição das condutas que representariam a alegada ameaça ou abuso de autoridade. (...). A denúncia, basicamente, repetiu os termos do relatório. Não se sabe, porém, quais dos trechos das conversas configuram a ameaça ou o abuso de autoridade apontado na inicial. Não foram eles delimitados. (...). Só por isto, o trancamento da Ação Penal já se impunha. Não é apta a inicial que obrigue a defesa a arriscar-se a adivinhar o que os acusadores imaginaram ser a prática criminosa" - (fls. 6/7).

Com relação à legitimidade da imputação do crime de ameaça (CP, art. 147 c/c art. 61, II, "g"), os impetrantes sustentam atipicidade da conduta, nos seguintes termos:

"Ora, que ele não participava da quadrilha já entendeu este Supremo Tribunal Federal. Ausente esta premissa, não teria ele motivos para ameaçar, consoante o próprio raciocínio das procuradoras da República. E, de fato, não ameaçou.
Desta feita, é flagrante a atipicidade da conduta narrada na inicial, perceptível prima facie, já que indiscutível é a ausência da elementar 'promessa de mal injusto', cabível é, desde já, o trancamento da ação penal, poupando o magistrado ALI MAZLOUM do doloroso constrangimento de se ver processado em mais uma Ação Penal carente de justa causa" - (fl. 33).

Com referência ao suposto cometimento do crime de abuso de autoridade (Lei no 4.898/1965, art. 3o, alínea 'j'), os impetrantes afirmam a manifesta inépcia da inicial acusatória pela não descrição de elementar referente ao delito, verbis:

"Tendo-se em mira a doutrina, fácil é a constatação de que o denunciante não narrou, em nenhum momento, qual a garantia ou direito profissional da suposta vítima que foi violado, e muito menos indicou a norma complementar em que tal garantia estaria prevista.
Mais grave do que isso ainda: a exordial nem sequer descreveu o ato atentatório a este direito praticado pelo paciente. Neste ponto, resta claro o vício nela constante.
(...)
Em razão da omissão apontada, a única solução cabível era o trancamento da Ação Penal." (fls. 34-36)

Registradas as principais alegações neste habeas corpus, é necessário estabelecer, antes de tudo, algumas premissas.
Em primeiro lugar, o simples fato de uma conduta ser moralmente reprovável ou até constituir irregularidade administrativa não deve justificar, por si só, a propositura de ação penal. Basta lembrarmos, em um primeiro momento, do feito, ainda sub judice (INQ no 1.145/PB, Rel. Min. Maurício Corrêa), em que se discute a questão da tipicidade ou não da "cola eletrônica".
Outro caso emblemático para a análise da questão é o da apuração painel do Senado (INQ no 1.879/DF, Pleno, unânime, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 07.05.2004), cuja tentativa de criminalização da conduta apenas se realizou após a acontecimento do fato apreciado. Nessa assentada, o Plenário do Supremo Tribunal Federal rejeitou a denúncia por atipicidade da conduta, em decisão assim ementada:

"Supressão de documento (CP, art. 305). Violação do painel do Senado. A obtenção do extrato de votação secreta, mediante alteração nos programas de informática, não se amolda ao tipo penal previsto no art. 305 do CP, mas caracteriza o crime previsto no art. 313-B da Lei 9989, de 14.07.2000. Impossibilidade de retroação da norma penal a fatos ocorridos anteriormente a sua vigência (CF, art. 5º, XL). Extinção da punibilidade em relação ao crime de violação de sigilo funcional (CP, art. 325). Denúncia rejeitada por atipicidade de conduta. Inquérito." (INQ no 1879/DF, Pleno, unânime, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 07.05.2004).

É inegável reconhecer, portanto, que os requisitos para a apresentação e acolhimento de uma denúncia revelam uma dimensão de concretização do direito constitucional de defesa.
Para que se examine a aptidão de uma peça acusatória, portanto, há de se interpretar o disposto no art. 41 do Código de Processo Penal, verbis:

"Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas."

Essa fórmula pode ser encontrada em texto clássico de João Mendes de Almeida Júnior, o qual revela uma bela e pedagógica sistematização. Assevera João Mendes que a denúncia:

"É uma exposição narrativa e demonstrativa. Narrativa, porque deve revelar o fato com tôdas as suas circunstâncias, isto é, não só a ação transitiva, como a pessoa que a praticou (quis), os meios que empregou (quibus auxiliis), o malefício que produziu (quid), os motivos que o determinaram a isso (cur), a maneira porque a praticou (quomodo), o lugar onde a praticou (ubi), o tempo (quando). (Segundo enumeração de Aristóteles, na Ética a Nicomaco, 1. III, as circunstâncias são resumidas pelas palavras quis, quid, ubi, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando, assim referidas por Cícero (De Invent. I)). Demonstrativa, porque deve descrever o corpo de delito, dar as razões de convicção ou presunção e nomear as testemunhas e informantes." (ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo criminal brasileiro, v. II. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1959, p. 183)

São lições que devem ser sempre relembradas!
A denúncia limita-se a reportar, de maneira pouco precisa, os termos de representação formulada pelos policiais rodoviários federais envolvidos.
A despeito de ter especificado a pessoa que supostamente teria cometido o ilícito (o ora paciente, ALI MAZLOUM), a peça acusatória, em momento algum, identifica a ação transitiva específica perpetrada, não descreve o modo pelo qual teria sido cometida a suposta prática delituosa (quomodo), nem identifica o prejuízo ao bem jurídico penal tutelado (quid).
Em outras palavras, a denúncia não narra, em qualquer instante, o ato concreto do paciente que configure ameaça ou abuso de autoridade. Não relata, tampouco, garantias ou direitos profissionais dos policiais supostamente ofendidos que teriam sido especificamente violados.
Trata-se de acusação lastreada em uma peculiar combinação de relatos com um outro amontoado de indícios e suposições que, conforme salientou o próprio voto do Relator do acórdão impugnado, está longe de corresponder a "um primor de elaboração técnica" (fl. 436).
É dizer, a peça acusatória não observou os requisitos que poderiam oferecer substrato a uma persecução criminal minimamente aceitável.
Assim, da leitura da denúncia oferecida contra o paciente, em especial das fls. 49-57, não constato demonstração de mínima descrição dos fatos, nem tampouco concatenação lógica que permita a configuração, ao menos em tese, seja na forma consumada, seja na modalidade tentada, dos elementos dos tipos penais envolvidos (CP, art. 147 c/c art. 61, II, "g"; e Lei no 4.898/1965, art. 3o, alínea 'j').
Essa questão - a da técnica da denúncia observável em casos concretos desse tipo -, como sabemos, tem merecido do Supremo Tribunal Federal reflexão no plano da dogmática constitucional, associada especialmente ao direito de defesa.
No HC no 70.763/DF, é interessante transcrever excerto do voto do Ministro Relator Celso de Mello, verbis:

"O processo penal de tipo acusatório repele, por ofensivas à garantia da plenitude de defesa, quaisquer imputações que se mostrem indeterminadas, vagas, contraditórias, omissas ou ambíguas. Existe, na perspectiva dos princípios constitucionais que regem o processo penal, um nexo de indiscutível vinculação entre a obrigação estatal de oferecer acusação formalmente precisa e juridicamente apta e o direito individual de que dispõe o acusado a ampla defesa. A imputação penal omissa ou deficiente, além de constituir transgressão do dever jurídico que se impõe ao Estado, qualifica-se como causa de nulidade processual absoluta. A denúncia - enquanto instrumento formalmente consubstanciador da acusação penal - constitui peça processual de indiscutível relevo jurídico. Ela, ao delimitar o âmbito temático da imputação penal, define a própria res in judicio deducta. A peça acusatória deve conter a exposição do fato delituoso, em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias. Essa narração, ainda que sucinta, impõe-se ao acusador como exigência derivada do postulado constitucional que assegura ao réu o exercício, em plenitude, do direito de defesa. Denúncia que não descreve adequadamente o fato criminoso é denúncia inepta." (HC no 70.763/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 23.09.1994)

Em outro habeas corpus (HC´s no 73.271/SP), também da relatoria do Ministro Celso de Mello, a ementa consubstancia idêntico entendimento, verbis:

"(...)
PERSECUÇÃO PENAL - MINISTÉRIO PÚBLICO - APTIDÃO DA DENÚNCIA. O Ministério Público, para validamente formular a denúncia penal, deve ter por suporte uma necessária base empírica, a fim de que o exercício desse grave dever-poder não se transforme em instrumento de injusta persecução estatal. O ajuizamento da ação penal condenatória supõe a existência de justa causa, que se tem por inocorrente quando o comportamento atribuído ao réu 'nem mesmo em tese constitui crime, ou quando, configurando uma infração penal, resulta de pura criação mental da acusação' (RF 150/393, Rel. Min. OROZIMBO NONATO). A peça acusatória deve conter a exposição do fato delituoso em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias. Essa narração, ainda que sucinta, impõe-se ao acusador como exigência derivada do postulado constitucional que assegura ao réu o pleno exercício do direito de defesa. Denúncia que não descreve adequadamente o fato criminoso é denúncia inepta." - (HC no 73.271/SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 09.04.1996).

É forçoso reconhecer, portanto, que essa discussão apresenta sérias implicações no campo dos direitos fundamentais.
Denúncias genéricas que, assim como a ora em análise, não descrevem os fatos na sua devida conformação, não se coadunam com os postulados básicos do Estado de Direito. Em outro nível de argumentação, quando se fazem imputações vagas está a se violar, também, o princípio da dignidade da pessoa humana, que, entre nós, tem base positiva no artigo 1o, inciso III, da CF.
Como se sabe, na sua acepção originária, este princípio proíbe a utilização ou transformação do homem em objeto dos processos e ações estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações.
A propósito, é pertinente mencionar os já conhecidos comentários de Günther Dürig ao art. 1º da Constituição alemã, os quais afirmam que a submissão do homem a um processo judicial indefinido e sua degradação como objeto do processo estatal atenta contra o princípio da proteção judicial efetiva (rechtliches Gehör) e fere o princípio da dignidade humana ["Eine Auslieferung des Menschen an ein staatliches Verfahren und eine Degradierung zum Objekt dieses Verfahrens wäre die Verweigerung des rechtlichen Gehörs."] (MAUNZ-DÜRIG, Grundgesetz Kommentar, Band I, München, Verlag C.H.Beck , 1990, 1I 18).
Com esses fundamentos, constata-se, na espécie, que estamos diante de mais um daqueles casos em que a atividade persecutória do Estado orienta-se em flagrante desconformidade com os postulados processuais-constitucionais.
É que denúncia imprecisa, genérica e vaga, além de traduzir persecução criminal injusta, é incompatível com o princípio da dignidade humana e com o postulado do direito à defesa e ao contraditório.
Ressalto, por fim, que não se está a discutir matéria probatória - isto é, se a suposta ameaça ou abuso de autoridade teriam ocorrido ou não. Tal exame transcende, em muito, os estreitos limites cognitivos deste habeas corpus. Ademais, deve-se levar em conta que não há nos autos elementos suficientes para sustentar uma análise categórica a esse respeito.
Todavia, independentemente de qualquer outra consideração, afigura-se inequívoco que a denúncia, tal como formulada, não preenche os requisitos para a regular tramitação de uma ação penal que assegure o legítimo direito de defesa, tendo em vista a ausência de fatos elementares associados às imputações dos crimes de ameaça e abuso de autoridade (respectivamente: CP, art. 147 c/c art. 61, II, "g"; e Lei no 4.898/1965, art. 3o, alínea 'j').
A suposta prática de tais atos pode configurar, quando muito, irregularidade cuja responsabilidade até deveria ser apurada na competente instância civil e/ou administrativa.
Em última instância, ainda que fosse desejável e oportuno, entendo que uma persecução penal não pode ser legitimamente instaurada sem o atendimento mínimo dos direitos e garantias constitucionais vigentes em nosso Estado Democrático de Direito (CF, art. 1o, caput).
Diante de casos como este, em que as instâncias judiciais que se pronunciaram anteriormente reconheceram a legitimidade da denúncia, não estaria o STF equivocado em admitir a sua inépcia.
Não se pode dar curso a ação penal que, a priori, já se sabe inviável. A transformação do processo penal em instituto de penalização é reveladora de uma visão totalitária, muito comum nos países do socialismo real, e não pode ser referendada pelo Judiciário.
A título de obiter dictum, conforme já tive oportunidade de asseverar nesta Segunda Turma, se me fosse permitido aventurar uma consideração antropológica e sociológica, diria que os casos de recebimento de denúncias fortemente ineptas por juízes e tribunais traduzem caso de típica covardia institucional.
Trata-se de situações marcadamente deturpadas nas quais o juízo de acolhimento de denúncias ineptas é norteado pela satisfação de um determinado anseio identificável na opinião pública.
É evidente a erronia dessa orientação e a ameaça que a sua adoção pode trazer para a credibilidade do Judiciário e para o fortalecimento das instituições democráticas.
Como se vê, a questão é extremamente séria e implica o uso indevido do processo criminal para finalidades outras, as quais não são compatíveis com os elementos basilares do Estado de Direito.
A questão crucial neste caso é que o processo penal não pode ser utilizado como instrumento de perseguição.
Não se pode perder a dimensão de que o rigor e a prudência devem ser observados, não somente por aqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais, mas, sobretudo, por aqueles que podem decidir sobre o seu curso.
Conforme se pode constatar, nesses casos de apreciação de constrangimento ilegal, em razão de injusta persecução penal, o Supremo Tribunal Federal tem declarado que não é difícil perceber os danos que a mera existência de uma ação penal impõe ao indivíduo - o qual se vê obrigado a despender todos seus esforços em um campo não meramente cível ou administrativo, mas eminentemente penal, com sérias repercussões para a dignidade pessoal dos investigados e/ou denunciados.
Desse modo, um argumento que não pode ser simplesmente reproduzido é o da pretensa subsistência ou predomínio do juiz natural, interpretação invocada pelo voto vencido da Min. Ellen Gracie no julgamento do HC no 86.424/SP, julgado em 25.10.2005 (acórdão pendente de publicação) - tratava-se daquele caso da substituição de placas particulares de veículo automotor por placas reservadas obtidas junto ao Detran.
Essa tese, no sentido de que o Tribunal Regional Federal e o Superior Tribunal de Justiça já teriam se manifestado pela tipicidade da conduta, somente prolonga o constrangimento ilegal a que o paciente está submetido.
Nesse particular, para uma reflexão abalizada acerca da jurisdição prestada por este Supremo Tribunal Federal nesses casos especificamente quanto às impugnações decorrentes das investigações da "Operação Anaconda", são expressivos os casos de revisão de julgamentos proferidos pelos Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais e pelo Superior Tribunal de Justiça no âmbito desta Corte, os quais considero dignos de registro para fins de sistematização da argumentação até aqui desenvolvida.

"Em diversas oportunidades, tivemos, aqui nesta Segunda Turma, casos da "Operação Anaconda" cuja lembrança chega a ser constrangedora.
No HC no 84.388/SP, de Relatoria do Min. Joaquim Barbosa, este Colegiado reconheceu, por unanimidade, o constrangimento ilegal decorrente de uma denúncia que beirava a irresponsabilidade. Nessa assentada, o Ministro Celso de Mello classificou como "bizarra" a atuação persecutória do Estado. Tratava-se da imputação de um falso, por alguém que, por equívoco, declarara, perante a Receita Federal, que detinha US$ 9.000,00 (nove mil dólares) no Afeganistão e que também declarara possuir o mesmo valor no Brasil. Esse fato constituiria, para o Parquet, o suposto falso imputado.
Nesse mesmo habeas corpus, quanto à imputação do crime previsto no art. 10 da Lei no 9.296/1996, a denúncia limitava-se a transcrever conversas telefônicas, sem a observância dos requisitos mínimos à persecução criminal. Isto é, sem a demonstração dos elementos indispensáveis à configuração do tipo penal. Também, nesse ponto, a ordem de habeas corpus foi concedida. Eis o teor da ementa desse julgado, verbis:

"EMENTA: HABEAS CORPUS. "OPERAÇÃO ANACONDA". INÉPCIA DA DENÚNCIA. ALEGAÇÕES DE NULIDADE QUANTO ÀS PROVAS OBTIDAS POR MEIO ILÍCITO. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. IMPORTANTE INSTRUMENTO DE INVESTIGAÇÃO E APURAÇÃO DE ILÍCITOS. ART. 5º DA LEI 9.296/1996: PRAZO DE 15 DIAS PRORROGÁVEL UMA ÚNICA VEZ POR IGUAL PERÍODO. SUBSISTÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS QUE CONDUZIRAM À DECRETAÇÃO DA INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. DECISÕES FUNDAMENTADAS E RAZOÁVEIS.
A aparente limitação imposta pelo art. 5º da Lei 9.296/1996 não constitui óbice à viabilidade das múltiplas renovações das autorizações.
DESVIO DE FINALIDADE NAS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS, O QUE TERIA IMPLICADO CONHECIMENTO NÃO-AUTORIZADO DE OUTRO CRIME.
O objetivo das investigações era apurar o envolvimento de policiais federais e magistrados em crime contra a Administração. Não se pode falar, portanto, em conhecimento fortuito de fato em tese criminoso, estranho ao objeto das investigações.
INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL DE ALAGOAS PARA AUTORIZAR A REALIZAÇÃO DAS ESCUTAS TELEFÔNICAS QUE ENVOLVEM MAGISTRADOS PAULISTAS.
As investigações foram iniciadas na Justiça Federal de Alagoas em razão das suspeitas de envolvimento de policiais federais em atividades criminosas. Diante da descoberta de possível envolvimento de magistrados paulistas, o procedimento investigatório foi imediatamente encaminhado ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região, onde as investigações tiveram prosseguimento, com o aproveitamento das provas até então produzidas.
ATIPICIDADE DE CONDUTAS, DADA A FALTA DE DESCRIÇÃO OBJETIVA DAS CIRCUNSTÂNCIAS ELEMENTARES DOS TIPOS PENAIS. ART. 10 DA LEI 9.296/1996: REALIZAR INTERCEPTAÇÃO DE COMUNICAÇÕES TELEFÔNICAS, DE INFORMÁTICA OU TELEMÁTICA, OU QUEBRAR SEGREDO DE JUSTIÇA SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL OU COM OBJETIVOS NÃO-AUTORIZADOS EM LEI.
Inexistem, nos autos, elementos sólidos aptos a demonstrar a não-realização da interceptação de que o paciente teria participado. Habeas corpus indeferido nessa parte.
DECLARAÇÃO DE IMPOSTO DE RENDA. DISCREPÂNCIA ACERCA DO LOCAL ONDE SE ENCONTRA DEPOSITADA DETERMINADA QUANTIA MONETÁRIA.
A denúncia é inepta, pois não especificou o fato juridicamente relevante que teria resultado da suposta falsidade - art. 299 do Código Penal. Habeas corpus deferido nessa parte. (HC no 84.388/SP, Segunda Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa, unânime, DJ de 19.05.2006).

Outro caso que demandou idêntica preocupação desta Segunda Turma foi o julgamento HC 84.409/SP, cujo acórdão foi de minha lavra, no qual a denúncia registrava que o agente teria uma "participação peculiar na quadrilha", sem que, em qualquer momento, especificasse em que consistiria essa peculiar participação. Eis o teor da ementa do acórdão desse julgado:

"HABEAS CORPUS. DENÚNCIA. ESTADO DE DIREITO. DIREITOS FUNDAMENTAIS. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP NÃO PREENCHIDOS.
1 - A técnica da denúncia (art. 41 do Código de Processo Penal) tem merecido reflexão no plano da dogmática constitucional, associada especialmente ao direito de defesa. Precedentes.
2 - Denúncias genéricas, que não descrevem os fatos na sua devida conformação, não se coadunam com os postulados básicos do Estado de Direito.
3 - Violação ao princípio da dignidade da pessoa humana. Não é difícil perceber os danos que a mera existência de uma ação penal impõe ao indivíduo. Necessidade de rigor e prudência daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais e daqueles que podem decidir sobre o seu curso.
4 - Ordem deferida, por maioria, para trancar a ação penal." - (HC no 84.409/SP, Segunda Turma, acórdão de minha relatoria, Rel. originária Min. Ellen Gracie, por maioria, DJ de 19.08.2005).

Por último, no julgamento do HC no 86.424/SP (julgado em 25.10.2005, acórdão pendente de publicação), afigurou-se de todo evidente que a conduta imputada ao paciente - substituição de placas particulares de veículo automotor por placas reservadas obtidas junto ao Detran -, não se mostraria apta a satisfazer o tipo do art. 311 do Código Penal. Na oportunidade, afirmei que não haveria qualquer dúvida de que o órgão de controle - Detran - sabia e poderia sempre saber que se cuidava de placas reservadas fornecidas à Polícia Federal. A apuração da prática de tais atos, destaquei, pode configurar irregularidade administrativa certamente passível de responsabilização nessa esfera. Com base nessa linha de argumentação, esta Segunda Turma acompanhou, por maioria, a tese expendida em meu voto e concedeu a ordem para que fosse trancada a ação penal instaurada em face do paciente, por não estarem configurados, nem mesmo em longínqua apreciação, os elementos do tipo em tese.".

Neste Supremo Tribunal Federal, cada vez mais, é lamentável observar a repetição de casos oriundos de denúncias defeituosas, as quais têm sido recebidas pelos Tribunais Regionais Federais e confirmadas pelo Superior Tribunal de Justiça, sem a observância dos pressupostos mínimos de admissibilidade fixados pela Constituição Federal. E esta Corte, como se vê, não se tem eximido de seu papel de guardiã e garante dos direitos fundamentais.
Evidentemente, ao exercer de modo legítimo a função constitucional que lhe é atribuída, o STF não pode ser considerado, apoditicamente, menos juiz natural do que aqueloutras doutas Cortes.
Destarte, em face da manifesta inépcia da denúncia, o meu voto é pela concessão da ordem de habeas corpus para trancar a ação penal instaurada na origem.
Nestes termos, voto pelo deferimento da ordem.
É como voto.


* acórdão pendente de publicação



Assessora responsável pelo Informativo

Anna Daniela de A. M. dos Santos
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