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terça-feira, 4 de novembro de 2008

Informativo STF 370 - Supremo Tribunal Federal

Informativo STF


Brasília, 15 a 19 de novembro de 2004 - Nº 370.

Este Informativo, elaborado a partir de notas tomadas nas sessões de julgamento das Turmas e do Plenário, contém resumos não-oficiais de decisões proferidas pelo Tribunal. A fidelidade de tais resumos ao conteúdo efetivo das decisões, embora seja uma das metas perseguidas neste trabalho, somente poderá ser aferida após a sua publicação no Diário da Justiça.

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SUMÁRIO


Plenário
Decreto Expropriatório e Princípio da Saisina

Desaparecido Político e Indenização: Sucessão Hereditária
Crimes de Responsabilidade e Reserva de Iniciativa
Desmembramento e Incorporação de Municípios: Plebiscito
Lei 10.304/2001: Transferência de Terras da União
Provimento Derivado e Concurso Público
Sentença Estrangeira e Prazo para Divórcio
Reclamação e Indeferimento de Liminar em ADI
1º Turma
Prisão Civil e Extensão de Penhora sobre Imóvel

Execução Provisória de Pena Restritiva de Direitos
Responsabilidade Civil do Estado e Ato Ilícito Praticado fora das Funções Públicas - 2
2º Turma
Extinção de Punibilidade e Certidão de Óbito Falsa

Cassação de Mandato e Devido Processo Legal
Sociedade Civil de Direito Privado e Ampla Defesa - 2
Responsabilidade Civil do Estado: Prestadores de Serviço Público e Terceiros Não-Usuários - 2
Clipping do DJ
Transcrições
Improbidade Administrativa - Ação Civil - Competência (Pet 3270/SC)
Responsabilidade Civil do Estado: Prestadores de Serviço Público e Terceiros Não-Usuários - 2 (RE 262651/SP)
Prisão Civil: Alienação Fiduciária e Depósito Substitutivo (HC 84873/PR)

PLENÁRIO


Decreto Expropriatório e Princípio da Saisina

O Tribunal deferiu mandado de segurança impetrado contra ato do Presidente da República, consubstanciado em decreto que declarara de interesse social, para fins de reforma agrária, imóvel rural. Declarou-se a nulidade do decreto impugnado por se entender violado o princípio do devido processo legal, uma vez que, pelo princípio da saisina (CC, art. 1.784), com o falecimento do proprietário do imóvel em questão, ter-se-ia gerado o condomínio da propriedade entre os herdeiros e, admitindo-se constituírem as quotas-partes propriedades expropriáveis, cada condômino deveria ter sido notificado previamente para vistoria, o que não fora feito. Asseverou-se, ainda, que cabia à autarquia expropriante (INCRA), por força do previsto no §6º do art. 46 da Lei 4.504/64, proceder ao cadastramento da área que, na partilha, tocaria a cada herdeiro, e, ainda, demonstrar que as frações seriam passíveis de desapropriação, o que também não ocorrera.
MS 24999/DF, rel. Min. Carlos Velloso, 17.11.2004. (MS-24999)

Desaparecido Político e Indenização: Sucessão Hereditária

O Tribunal iniciou julgamento de mandado de segurança em que se pretende obstar ato do Presidente da República consubstanciado no Decreto 2.255/97 que concedera a viúva de desaparecido político o pagamento da indenização prevista no art. 10 da Lei 9.140/95. A impetrante alega ofensa aos artigos 1.526 e 1.603 do Código Civil, e 5º, XXXVI, da Constituição Federal. O Min. Gilmar Mendes, relator, indeferiu o writ por entender que a ordem de beneficiários estabelecida no art. 10 da Lei 9.140/95, apesar de não corresponder à prevista no art. 1.603 do CC, não conflita com texto constitucional, já que se cuida de lei especial da mesma hierarquia da anterior (CC). Ressaltou, ainda, não caber conferir à aludida indenização, a título de reparação, a natureza de bem hereditário, a fim de que incida a regra do art. 1.572 do CC ("Aberta a sucessão, o domínio e a posse da herança transmitem-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários."). Após, o Min. Marco Aurélio pediu vista dos autos.
MS 22879/RJ, rel. Min. Gilmar Mendes, 17.11.2004. (MS-22879)

Crimes de Responsabilidade e Reserva de Iniciativa

Por ofensa à competência privativa da União para legislar sobre direito processual (CF, art. 22, I) e para definir os crimes de responsabilidade (CF, art. 85, parágrafo único), consoante entendimento sumulado, o Tribunal julgou procedente pedido de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Governador do Estado de Rondônia contra diversos dispositivos da Lei 657/96, desse Estado, que definiam os crimes de responsabilidade e regulavam seu processo e julgamento. (Enunciado 722 da Súmula do STF: "São da competência legislativa da União a definição dos crimes de responsabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento.").
ADI 1879/RO, rel. Min. Joaquim Barbosa, 17.11.2004. (ADI-1879)

Desmembramento e Incorporação de Municípios: Plebiscito

Em face da violação ao §4º do art. 18 da CF, haja vista não ter sido realizada a consulta prévia, por meio de plebiscito, à população dos municípios envolvidos, o Tribunal declarou a inconstitucionalidade da Lei 11.361/2000, do Estado de Santa Catarina, que promoveu a anexação, ao Município de Capinzal, de áreas desmembradas do Município de Campos Novos. (CF, art. 18: "§ 4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por Lei Complementar Federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei.").
ADI 3149/SC, rel. Min. Joaquim Barbosa, 17.11.2004. (ADI-3149)

Lei 10.304/2001: Transferência de Terras da União

O Tribunal concedeu mandados de segurança impetrados contra atos do Presidente do Instituto Nacional de Terras do Estado de Roraima - INTERAIMA e dos Oficiais do Cartório de Registro de Imóveis das Comarcas de São Luís do Anauá e de Caracaraí - RR que resultaram na transferência de terras de domínio da União ao Estado de Roraima. Entendeu-se que a transmissão efetivada se dera em confronto com a Lei 10.304/2001, que transfere ao domínio do Estado de Roraima as terras pertencentes à União, e com o art. 20 da CF, haja vista a inexistência da necessária e prévia delimitação das áreas destinadas ao domínio exclusivo da União, nos termos referidos no art. 2º da lei, bem como por não ter sido observado o decurso do prazo de 180 dias estabelecido no art. 4º para que o Poder Executivo procedesse à regulamentação da norma. (Lei 10.304/2001: "Art. 2o São excluídas da transferência de que trata esta Lei as áreas relacionadas nos incisos II, III, IV, VIII, IX e X do art. 20 da Constituição Federal, as terras indígenas pertencentes à União e as destinadas pela União a outros fins de necessidade ou utilidade pública.").
ACO 653/RR e ACO 705/RR, rel. Min. Ellen Gracie, 18.11.2004. (ACO-653) (ACO-705)

Provimento Derivado e Concurso Público

O Tribunal julgou ação direta ajuizada contra diversos artigos de normas catarinenses que, dispondo sobre o plano de carreiras, cargos e vencimentos dos servidores do Tribunal de Contas e do Pessoal do Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina, estabeleceram "a forma de provimento derivado que não a promoção, como o acesso (que corresponde, no plano federal, à ascensão funcional), o enquadramento em cargo distinto do anterior e a transferência". Declarou-se, por unanimidade, a inconstitucionalidade do art. 12, caput, e §§ 1º, 2º e 3º, da LC estadual 78/93 por se entender caracterizada a ofensa ao art. 37, II, da CF, já que os dispositivos impugnados estabeleciam modalidades derivadas de investidura em cargo público sem atendimento à exigência de realização de concurso público. Pela mesma razão, declarou-se, por maioria, a inconstitucionalidade do inciso II e §§ 2º e 3º do art. 17, da Resolução 40/92, da Assembléia Legislativa do referido Estado. Vencido, nesse ponto, o Min. Marco Aurélio que julgava improcedente o pedido, por considerar estar-se diante de hipótese, admitida pela CF, de movimentação dentro da mesma carreira. O Pleno, por unanimidade, ainda, julgou prejudicado o pedido, por perda de objeto, em relação à parte final do inciso XI do art. 4º; do inciso XII do art. 4º; do art. 13 e seus §§ 1º e 2º; do inciso IV do art. 23; dos arts. 29, 30, 31 e 32; e do art. 50 e seus §§ 1º e 2º, todos da LC catarinense 90/93, em face de sua revogação pela LC 239/2002, do referido Estado.
ADI 951/SC, rel. Min. Joaquim Barbosa, 18.11.2004. (ADI-951)

Sentença Estrangeira e Prazo para Divórcio

Diante do disposto no §6º do art. 226 da CF, ficou suplantada a regra do §6º do art. 7º da LICC acerca da exigência do decurso de três anos para reconhecimento de divórcio realizado no exterior (CF, art. 226: "§6º - O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos").Com base nesse entendimento, o Tribunal homologou sentença estrangeira de divórcio, proferida nos Estados Unidos, cuja impugnação apontava a inobservância do aludido prazo da LICC.
SEC 7782/Estados Unidos da América, rel. Min. Marco Aurélio, 18.11.2004. (SEC-7782)

Reclamação e Indeferimento de Liminar em ADI

O Tribunal, por maioria, negou provimento a agravo regimental em reclamação para manter decisão do Min. Marco Aurélio, relator, que negara seguimento ao pedido por entender que o indeferimento de liminar em ação direta de inconstitucionalidade não dá margem ao ajuizamento de reclamação pelo descumprimento do que decidido pela Corte. Na espécie, tratava-se de reclamação proposta contra ato de juiz de 1ª instância que recebera ação de improbidade em face de ex-prefeito. A reclamante sustentava ofensa à autoridade da decisão do Tribunal na ADI 2797/DF - que tem por objeto a Lei 10.628/2002 - sob o fundamento de que a negativa do seu pedido de liminar implicaria a presunção da constitucionalidade da nova redação dada pela referida lei ao art. 84 do CPP. Vencidos os Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau que proviam o recurso por considerarem a ação cabível.
Rcl 2810 AgR/MG, rel. Min. Marco Aurélio, 18.11.2004. (Rcl-2810)

PRIMEIRA TURMA


Prisão Civil e Extensão de Penhora sobre Imóvel

A Turma deferiu habeas corpus preventivo impetrado contra acórdão do STJ que admitira que a penhora de imóvel, em execução fiscal, alcançasse os frutos obtidos com os aluguéis, por entender que o executado teria perdido a posse direta do bem, conservando apenas a posse mediata, não podendo usar e dispor do mesmo em nome próprio. No caso concreto, o juízo federal intimara o paciente a depositar os valores referentes ao aluguel de imóvel penhorado, do qual ele, na qualidade de representante legal da empresa executada, fora nomeado depositário. Entendeu-se que não haveria que se falar em infidelidade do depositário e, tampouco, admitir-se sua prisão, em razão de o auto de penhora e depósito, na espécie, não ter feito nenhuma referência a eventuais frutos, limitando-se a incidir sobre o imóvel ali descrito, e, ainda, por inexistir norma legal a sujeitar os aluguéis ao juízo da execução. Ressaltou-se que a penhora recai ou se estende somente sobre a livre disposição do bem, de ordem a retirar do proprietário apenas a possibilidade do respectivo desfazimento, não constituindo gravame o ato de locar a coisa. Asseverou-se, também, que a prisão civil visa restaurar situações de ruptura do equilíbrio patrimonial existente entre as partes de uma relação jurídica e que, na hipótese, a conduta do paciente não rompera esse equilíbrio, visto que o valor do imóvel, por si só, seria mais do que suficiente para a cobertura do crédito em cobrança. HC deferido para, cassando o acórdão impugnado, sustar todo e qualquer efeito relativo à prisão civil decretada nos autos da execução promovida pela Fazenda Nacional.
HC 84382/SP, rel. Min. Carlos Britto, 16.11.2004. (HC-84382)

Execução Provisória de Pena Restritiva de Direitos

A Turma iniciou julgamento de habeas corpus em que se pretende a suspensão da execução provisória de penas restritivas de direitos, sob a alegação de ofensa aos princípios da ampla defesa, do duplo grau de jurisdição e da presunção de inocência. Na espécie, os pacientes foram condenados pela prática do crime de apropriação indébita previdenciária à pena privativa de liberdade e ao pagamento de multa, tendo sido aquela substituída por duas penas restritivas de direitos, nos termos do art. 44 do CP. O TRF da 4ª Região, em grau de apelação, mantivera a condenação e deferira requerimento do Ministério Público Federal para permitir a execução provisória da sentença condenatória não transitada em julgado, o que ensejara a interposição de recurso especial, não conhecido pelo STJ. Contra essa decisão, foram opostos embargos de divergência, pendentes de julgamento. A defesa impetrara, ainda, habeas corpus no STJ que, concedido, em parte, suspendera apenas a execução provisória da pena de multa, permitindo a execução das penas restritivas de direito, decisão esta objeto do presente writ. O Min. Eros Grau, relator, indeferiu a ordem por considerar possível a execução provisória da condenação, já que esgotados os recursos ordinários com efeito suspensivo. Ressaltou jurisprudência do STF nessa linha, a qual ressalva a viabilidade de reparação, a título pecuniário, do que cumprido, no caso de eventual reforma da sentença pelos recursos de natureza extraordinária. Afastou a assertiva do Ministério Público Federal no sentido de que a execução provisória da pena restritiva de direitos somente poderia ocorrer após o trânsito em julgado da decisão, a teor do disposto no art. 147 da LEP ("Transitada em julgado a sentença que aplicou a pena restritiva de direitos, o juiz da execução, de ofício ou a requerimento do Ministério Público promoverá a execução, podendo, para tanto, requisitar, quando necessário, a colaboração de entidades públicas ou solicitá-las a particulares"), por entender que esse preceito deve ser interpretado não isoladamente, mas em coerência com a unidade sistêmica do ordenamento jurídico brasileiro. Concluiu, por analogia, que, se a jurisprudência do STF admite que a própria liberdade do réu pode ser desde logo atingida se não houver recursos com efeito suspensivo, não obstante o disposto no art. 105 da LEP, nada impede possa ele sofrer também limitações em alguns de seus direitos, tendo em conta, sobretudo, ser essa sanção de natureza menos gravosa do que a privativa de liberdade. Após, pediu vista dos autos o Min. Cezar Peluso.
HC 84677/RS, rel. Min. Eros Grau, 16.11.2004. (HC-84677)

Responsabilidade Civil do Estado e Ato Ilícito Praticado fora das Funções Públicas - 2

A Turma concluiu julgamento de recurso extraordinário interposto pelo Estado de São Paulo contra acórdão do tribunal de justiça daquele Estado que, reconhecendo a existência de responsabilidade objetiva, condenara o ente federativo a indenizar vítima de disparo de arma de fogo, pertencente à corporação, utilizada por policial durante período de folga. Alegava-se, na espécie, ofensa ao art. 37, §6º, da CF, uma vez que o dano fora praticado por policial que se encontrava fora de suas funções públicas - v. Informativo 362. Considerou-se inexistente o nexo de causalidade entre o dano sofrido pela recorrida e a conduta de policial militar, já que o evento danoso não decorrera de ato administrativo, mas de interesse privado movido por sentimento pessoal do agente que mantinha relacionamento amoroso com a vítima. Asseverou-se que o art. 37, §6º, da CF exige, para a configuração da responsabilidade objetiva do Estado, que a ação causadora do dano a terceiro tenha sido praticada por agente público, nessa qualidade, não podendo o Estado ser responsabilizado senão quando o agente estatal estiver a exercer seu ofício ou função, ou a proceder como se estivesse a exercê-la. Entendeu-se, ainda, inadmissível a argüição de culpa, in vigilando ou in eligendo, como pressuposto para a fixação da responsabilidade objetiva estatal, que tem como requisito a prática de ato administrativo pelo agente público no exercício da função e o dano sofrido por terceiro. O relator retificou o voto anterior.
RE 363423/SP, rel. Min. Carlos Britto, 16.11.2004. (RE-363423)

SEGUNDA TURMA


Extinção de Punibilidade e Certidão de Óbito Falsa

A Turma indeferiu habeas corpus impetrado contra acórdão do STJ, que indeferira igual medida, em favor de acusado pela suposta prática do crime de homicídio qualificado, cuja ação penal, arquivada por decisão que extinguira a punibilidade, nos termos do art. 62 do CPP, com base em certidão de óbito, fora desarquivada, posteriormente, após constatação de que o acusado não havia morrido. Pretendia-se, na espécie, o trancamento da ação penal, por ofensa à coisa julgada, pois a decisão que determinara o arquivamento transitara em julgado, e por falta de fundamentação do acórdão impugnado, porquanto os Ministros apenas teriam acompanhado o voto do relator, sem tecer novas considerações. As alegações foram afastadas com base em reiterada jurisprudência do STF. A primeira, em face do entendimento de ser possível a revogação da decisão extintiva de punibilidade, à vista de certidão de óbito falsa, por inexistência de coisa julgada em sentido estrito, pois, caso contrário, o paciente estaria se beneficiando de conduta ilícita. Nesse ponto, asseverou-se que a extinção da punibilidade pela morte do agente ocorre independente da declaração, sendo meramente declaratória a decisão que a reconhece, a qual não subsiste se o seu pressuposto é falso. A segunda, por se presumir que, nos colegiados, os votos que simplesmente acompanham o posicionamento do relator estão adotando a mesma fundamentação. Precedentes citados: HC 55091/SP (DJU de 29.9.78); HC 60095/RJ (DJU de 17.12.82); HC 58794/RJ (DJU de 5.6.81).
HC 84525/MG, rel. Min. Carlos Velloso, 16.11.2004. (HC-84525)

Cassação de Mandato e Devido Processo Legal

A Turma iniciou julgamento de recurso extraordinário em que se pretende a reforma de acórdão do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia que considerara legal o sistema de votação adotado pela Câmara Municipal de Paramirim-BA que cassara o mandato do recorrente, então vereador, por falta de decoro parlamentar. Pretende o recorrente a anulação da sessão de julgamento de sua cassação e sua conseqüente reintegração ao cargo. Alega violação ao devido processo legal, em razão de ter havido quebra de segredo da votação que implicara a cassação do mandato, uma vez que, adotado o sistema de sigilo de votação, e recebendo os votantes duas cédulas, uma com a palavra "não", contra a cassação, e outra com a palavra "sim", a favor, seria imprescindível a existência de uma urna para depósito das cédulas não utilizadas, assim como ocorre nos julgamentos do Tribunal do Júri. Sustenta, ainda, ofensa à autonomia municipal (arts. 1º e 29, caput, da CF), já que, por ser o decoro parlamentar matéria interna corporis do Legislativo, e não havendo norma legal prefixando os critérios de votação no processo de cassação, caberia à Câmara Municipal regular esse procedimento. O Min. Joaquim Barbosa, relator, não conheceu do recurso na parte em que se alega ofensa aos arts. 1º e 29, caput, da CF, ante a falta de prequestionamento. No mais, deu-lhe provimento por entender violado o princípio do devido processo legal, haja vista que, ao se permitir que o votante guardasse consigo a cédula remanescente, não teria sido observada a regra do sigilo do escrutínio formalmente prevista para o caso e adotada pela Câmara Municipal. Ressaltou que, quando se opta pelo sigilo como critério para determinado escrutínio, é imperativo que se adotem medidas aptas a assegurar, em toda a sua extensão e de maneira concreta, o segredo na votação. Após, pediu vista o Min. Gilmar Mendes.
RE 413327/BA, rel. Min. Joaquim Barbosa, 16.11.2004. (RE-413327)

Sociedade Civil de Direito Privado e Ampla Defesa - 2

A Turma retomou julgamento de recurso extraordinário interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que mantivera decisão que reintegrara associado excluído do quadro da sociedade civil União Brasileira de Compositores - UBC, sob o entendimento de que fora violado o seu direito de defesa, em virtude de o mesmo não ter tido a oportunidade de refutar o ato que resultara na sua punição - v. Informativo 351. O Min. Gilmar Mendes, em voto-vista, negou provimento ao recurso por entender ser hipótese de aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas. Ressaltou que, em razão de a UBC integrar a estrutura do ECAD - Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, entidade de relevante papel no âmbito do sistema brasileiro de proteção aos direitos autorais, seria incontroverso que, na espécie, ao restringir as possibilidades de defesa do recorrido, a recorrente assumira posição privilegiada para determinar, preponderantemente, a extensão do gozo e da fruição dos direitos autorais de seu associado. Concluiu que as penalidades impostas pela recorrente ao recorrido extrapolaram a liberdade do direito de associação e, em especial, o de defesa, sendo imperiosa a observância, em face das peculiaridades do caso, das garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Após, o Min. Joaquim Barbosa pediu vista dos autos.
RE 201819/RJ, rel. Min. Ellen Gracie, 16.11.2004. (RE-201819)

Responsabilidade Civil do Estado: Prestadores de Serviço Público e Terceiros Não-Usuários - 2

A Turma concluiu julgamento de recurso extraordinário interposto por empresa privada concessionária de serviço público de transporte coletivo contra acórdão do Tribunal de Alçada do Estado de São Paulo que entendera configurada a responsabilidade objetiva da recorrente em acidente automobilístico envolvendo veículo de terceiro - v. Informativo 358. Deu-se provimento ao recurso por se entender violado o art. 37, §6º, da CF, uma vez que a responsabilidade objetiva das prestadoras de serviço público não se estende a terceiros não-usuários, já que somente o usuário é detentor do direito subjetivo de receber um serviço público ideal, não cabendo ao mesmo, por essa razão, o ônus de provar a culpa do prestador do serviço na causação do dano. Vencidos os Ministros Joaquim Barbosa e Celso de Mello que negavam provimento por entenderem que a responsabilidade objetiva incide ainda que o fato lesivo tenha atingido terceiro não-usuário. Leia o inteiro teor do voto do relator na seção de Transcrições deste Informativo.
RE 262651/SP, rel. Min. Carlos Velloso, 16.11.2004. (RE-262651)

Sessões

Ordinárias

Extraordinárias

Julgamentos

Pleno

17.11.2004

18.11.2004

30

1a. Turma

16.11.2004

----169
2a. Turma

16.11.2004

----118


C L I P P I N G    D O    D J
12 de novembro de 2004


ADI N. 2.665-SC
RELATOR: MIN. CARLOS VELLOSO
EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRÂNSITO: CONTROLADORES DE VELOCIDADE: Lei 12.142, de 2002, do Estado de Santa Catarina.
I. - Constitucionalidade da Lei 12.142, de 2002, do Estado de Santa Catarina.
II. - Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.
* noticiado no Informativo 367

Ext N. 870-RPÚBLICA ITALIANA
RELATOR: MIN. JOAQUIM BARBOSA
EMENTA: PEDIDO DE EXTRADIÇÃO PARA EXECUÇÃO PENAL. GOVERNO DA ITÁLIA. NACIONAL ITALIANO.
1. REFERENCIAL PARA CÁLCULO DA PRESCRIÇÃO. Pedido de extradição para fins de execução de penas em diversas condenações proferidas no Estado requerente. Cálculo de prescrição a partir de cada uma das oito condenações, e não por cálculo cumulativo fundado em documento denominado "medida cumulativa" de execução, elaborado pela Procuradoria da República italiana, anexo à nota verbal; precedentes. Irrelevância, para fins extradicionais, de ter o extraditando descendente de nacionalidade brasileira e negócios no território nacional; precedentes.
2. VÍCIO FORMAL DO PEDIDO DE EXTRADIÇÃO: INDEFERIMENTO. Falta de apresentação, pelo Estado requerente, de original e tradução dos tipos penais correspondentes a três itens da nota verbal. Solicitação, pelo relator, de complementação da documentação. Pedido de prorrogação do prazo para complementação formalizado pelo Estado requerente, mas indeferido pelo relator, considerado o tempo de duração da prisão preventiva. Pedido indeferido em relação aos itens 1, 2 e 3 da nota verbal. Decisão unânime.
3. PRESCRIÇÃO OCORRIDA ANTES DO RECEBIMENTO DO PEDIDO DE EXTRADIÇÃO: INDEFERIMENTO. Pretensão executória prescrita, já no momento do pedido de extradição, em relação a três itens da nota verbal, tanto pela legislação italiana quanto pela brasileira. Pedido indeferido em relação aos itens 4, 5 e 6 da nota verbal. Decisão unânime.
4. CAUSA INTERRUPTIVA DA PRESCRIÇÃO PREVISTA NO TRATADO: APLICAÇÃO NO TEMPO. Suscitada a inaplicabilidade do Tratado (art. III, 1, b, que prevê como causa interruptiva da prescrição o recebimento do pedido de extradição; precedentes), pois, à época da consumação dos crimes referentes à condenação do item 7 da nota verbal, ainda não estava ele em vigor: aplicável a Lei 6.815/1980, que não prevê causa interruptiva dessa natureza. Pedido indeferido quanto ao item 7 da nota verbal. Retificação do voto do relator. Decisão unânime.
5. PRISÃO PREVENTIVA PARA EXTRADIÇÃO E DETRAÇÃO PENAL. Prejudicada a análise do item restante. Pedido de extradição para cumprimento de pena de 1 ano e 4 meses: inviabilidade, tendo em vista que, para efeito da detração penal prevista no Tratado Brasil-Itália, o extraditando já estava preso preventivamente por período equivalente no momento da conclusão do julgamento do pedido de extradição. Pedido indeferido em relação ao item 8 da nota verbal. Voto com fundamentação diversa: indeferimento por ausência de correspondência, na legislação brasileira, do tipo previsto na legislação italiana e pelo qual se deu a condenação.
6. Pedido indeferido, determinando-se a expedição de alvará de soltura, salvo se por outro motivo o extraditando estiver preso.

Ext N. 908-ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
RELATORA: MIN. ELLEN GRACIE
EXTRADIÇÃO. PSEUDOEFEDRINA. SUBSTÂNCIA PRECURSORA DE PSICOTRÓPICO.
A introdução de pseudoefedrina, substância precursora do psicotrópico metanfetamina, embora não incluída da lista de substâncias de uso proscrito no Brasil (Portaria 344/98), caracteriza crime de descaminho (CP, art. 334, § 1º, letra d), porque cuida-se de introdução desacompanhada de documentação legal. Existência, portanto, do requisito da dupla tipicidade, a despeito da incoincidência de sua designação formal no Brasil e nos Estados Unidos. Extradição deferida.
* noticiado no Informativo 347

HC N. 84.408-PE
RELATOR: MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE
EMENTA: I. Habeas corpus e prequestionamento.
Não se sujeita o recurso ordinário de habeas-corpus nem a impetração substitutiva dele ao requisito do prequestionamento na decisão impugnada: para o conhecimento deste, basta que as questões tenham sido suscitadas na impetração ao STJ, o que, contudo, sequer insinua a presente impetração, nem se verifica com a instrução do pedido.
HC não conhecido quanto ao pedido de prisão em domicílio ou transferência de presídio.
II. Prisão em flagrante: inequívoco excesso de prazo, que não é justificado pelos motivos alegados para o retardamento, nem é atribuível à Defesa: liberdade provisória concedida.
* noticiado no Informativo 367

HC N. 84.587-SP
RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO
PENA - EXECUÇÃO - APELAÇÃO - DESPROVIMENTO - EFEITO. Enquanto subordinado a condição, podendo vir a ser alterado em julgamento de recurso, descabe a execução do pronunciamento judicial condenatório, pouco importando haja este sido confirmado mediante o desprovimento de apelação.

HC N. 84.517-SP
RELATOR: MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE
EMENTA: I. Habeas corpus: cabimento: direito probatório.
Não cabe o habeas corpus para solver controvérsia de fato dependente da ponderação de provas desencontradas; cabe, entretanto, para aferir a idoneidade jurídica ou não das provas onde se fundou a decisão condenatória.
II. Chamada dos co-réus na fase policial e o reconhecimento de um deles: inidoneidade para restabelecer a validade da confissão extrajudicial, retratada em Juízo.
Não se pode restabelecer a validade da confissão extrajudicial, negando-se valor à retratação, sob o fundamento de que esta é incompatível e discordante das "demais provas colhidas" (C. Pr. Penal, art. 197), especialmente as chamadas dos co-réus na fase policial e o reconhecimento de um deles, que de nada servem para embasar a condenação do Paciente.
A chamada de co-réu, ainda que formalizada em Juízo, é inadmissível para lastrear a condenação (Precedentes: HHCC 74.368, Pleno, Pertence, DJ 28.11.97; 81.172, 1ª T, Pertence, DJ 07.3.03).
Insuficiência dos elementos restantes para fundamentar a condenação.
III. Nemo tenetur se detegere: direito ao silêncio.
Além de não ser obrigado a prestar esclarecimentos, o paciente possui o direito de não ver interpretado contra ele o seu silêncio.
IV. Ordem concedida, para cassar a condenação.
* noticiado no Informativo 366

HC N. 84.629-PR
RELATOR: MIN. EROS GRAU
EMENTA: HABEAS-CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. EVASÃO DE DIVISAS E LAVAGEM DE DINHEIRO. ATIPICIDADE. REEXAME DE PROVAS. DELITO ANTECEDENTE.
1. O habeas-corpus, por seu rito sumário, não comporta o exame da alegação de ausência do elemento subjetivo, a fim de chegar-se à atipicidade da conduta relativa ao crime de evasão de divisas, se a Juíza afirma que determinada quantia foi remetida ao exterior para quitar contratos de importação de veículos e, ao mesmo tempo, consigna que as operações não foram regularmente efetuadas via Banco Central do Brasil, não havendo como saber se os valores remetidos ao exterior foram efetivamente utilizados no pagamento das importações.
2. Igualmente, o writ não é a via adequada à análise da atipicidade do crime de lavagem de dinheiro, ao argumento de ter ocorrido antes da vigência da Lei 9.613/98, se consta da sentença valoressupostamente lavados após o advento da referida lei; e muito menos ao questionamento a propósito da insignificância, origem e finalidade das quantias posteriores ao marco da lei, por reclamar amplo reexame do material probatório coligido na instrução criminal.
3. Hipótese, ademais, em que não restou comprovada a ausência da prática do crime antecedente, de modo a afastar o delito de lavagem de dinheiro.
Ordem denegada.

Rcl N. 1.086-RS
RELATOR: MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE
EMENTA: Reclamação: improcedência.
1. A decisão do STF que, na linha da jurisprudência da Corte, se adstringe a declarar a própria incompetência e a negar seguimento ao mandado de segurança, não é desautorizada por acórdão de outro tribunal, cujo dispositivo se limita a também declará-lo incompetente para conhecer do pedido.
2. Pretensão do reclamante, ademais, à determinação de que o Tribunal de Justiça "processe e julgue" o mandado de segurança, que iria de encontro à jurisprudência do Tribunal no sentido da competência originária, na hipótese, da própria Turma Recursal.

RE N. 397.872-DF
RELATOR: MIN. CARLOS BRITTO
EMENTA: CONSTITUCIONAL. GRATIFICAÇÃO DE DESEMPENHO DE ATIVIDADES TRIBUTÁRIAS, INSTITUÍDA PELA MEDIDA PROVISÓRIA Nº 1.915, DE 29/06/1999. EXTENSÃO AOS INATIVOS E PENSIONISTAS DE EX-OCUPANTES DO CARGO DE AUDITOR-FISCAL DO TESOURO NACIONAL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ARTIGO 40, § 8º, NA REDAÇÃO DECORRENTE DA EC 20/98.
Vantagem de caráter geral, devida aos aposentados e pensionistas, nos termos da norma constitucional acima referida e em consonância com a jurisprudência desta Suprema Corte, firmada em torno de casos semelhantes.
Além do mais, a primeira edição da MP 1.915/1999 contemplou indistintamente os proventos de aposentadoria e as pensões; por isso, ofendem o postulado da isonomia as reedições da Medida, que limitaram o pagamento do benefício aos servidores aposentados a partir de 1º/07/1999. Por outro lado, como tal restrição foi afastada pela Lei nº 10.593, de 06/12/2002, remanesce o interesse das partes com relação ao período regressivo, até a data da impetração.
Recurso extraordinário conhecido e desprovido.
* noticiado no Informativo 367

RHC N. 82.549-PA
RELATOR: MIN. EROS GRAU
EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS-CORPUS. AÇÃO PENAL PRIVADA. CRIMES CONTRA A HONRA. OFENSA PROPTER OFFICIUM. LEGITIMIDADE CONCORRENTE.
A legitimidade para a propositura da ação penal privada nos crimes contra a honra é, via de regra, do ofendido. Essa regra sofre exceção quando o crime é praticado contra servidor público, em razão do exercício do cargo, dada a necessidade de tutelar outro bem jurídico, que é o prestígio da Administração Pública. Nessa circunstância a ação penal passa a ser pública condicionada à representação. Contudo, para dar efetividade ao preceito constitucional que tutela a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, a legitimidade deve ser concorrente, cabendo tanto a ação penal privada, quanto a ação penal pública condicionada à representação do funcionário.
Recurso ordinário em habeas-corpus ao qual se nega provimento.
* noticiado no Informativo 358

RHC N. 84.844-MG
RELATORA: MIN. ELLEN GRACIE
CONDENAÇÃO RESULTANTE DE PROVIMENTO DE APELAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ALEGAÇÃO DE INTEMPESTIVIDADE DO APELO.
1. Alegação improcedente, tendo em vista os feriados estabelecidos pelo art. 62, I, da Lei 5.010/66, aplicável à Justiça Federal.
2. RHC improvido.


Acórdãos Publicados: 143

T R A N S C R I Ç Õ E S


Com a finalidade de proporcionar aos leitores do INFORMATIVO STF uma compreensão mais aprofundada do pensamento do Tribunal, divulgamos neste espaço trechos de decisões que tenham despertado ou possam despertar de modo especial o interesse da comunidade jurídica.


Responsabilidade Civil do Estado: Prestadores de Serviço Público e Terceiros Não-Usuários (Transcrições)

RE 262651/SP*

RELATOR: MIN. CARLOS VELLOSO

EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO: RESPONSABILIDADE OBJETIVA. PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO PRESTADORAS DE SERVIÇO PÚBLICO. CONCESSIONÁRIO OU PERMISSIONÁRIO DO SERVIÇO DE TRANSPORTE COLETIVO. C.F., art. 37, § 6º.

I. - A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público é objetiva relativamente aos usuários do serviço, não se estendendo a pessoas outras que não ostentem a condição de usuário. Exegese do art. 37, § 6º, da C.F.
II. - R.E. conhecido e provido.

RELATÓRIO: A Terceira Câmara Especial de Julho/94 do Eg. Primeiro Tribunal de Alçada Cível do Estado de São Paulo, em ação sob o rito sumaríssimo, deu provimento à apelação interposta por Elias Farah, entendendo configurada a responsabilidade objetiva de concessionária de linhas de transporte coletivo, Auto Viação Urubupungá Ltda., em acidente automobilístico envolvendo veículo particular conduzido pelo recorrido e ônibus de propriedade da recorrente.

Daí os recursos especial e extraordinário interpostos por Auto Viação Urubupungá Ltda.; no RE, fundado no art. 102, III, a, da Constituição Federal, sustenta-se violação ao art. 37, § 6º, da mesma Carta.

Alega a recorrente, em síntese, o seguinte:

a) a responsabilidade objetiva prevista na Constituição Federal não abarca situações como a discutida nos autos, "limitando-se esse tipo de ônus a incidir sobre a prestação de serviço que a recorrente, como transportadora, realiza perante o passageiro transportado" (fl. 289/290);
b) a premissa que norteou o acórdão recorrido se mostrou incorreta, dado que a distribuição do ônus da prova deve ser ordinária, segundo a qual a prova dos fatos constitutivos da pretensão incumbe ao demandante.

O Eg. Superior Tribunal de Justiça negou provimento ao agravo de instrumento interposto da decisão que inadmitiu o recurso especial.

Inadmitido o recurso extraordinário, subiram os autos em virtude do provimento do agravo de instrumento em apenso.

O ilustre Subprocurador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos, opinou pelo desprovimento do recurso.

Neguei seguimento ao recurso em 10.09.2002. Dessa decisão foi interposto agravo regimental, ao qual, nos termos do voto que proferi quando do julgamento do AI 209.782-AgR/SP, em apenso, dei provimento para possibilitar o exame da matéria pela Turma.

É o relatório.

VOTO: O Sr. Ministro CARLOS VELLOSO (Relator): Dispõe o § 6º do art. 37 da Constituição Federal que "As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa."

"Isto significa", leciona Celso Antônio Bandeira de Mello, "conforme opinião absolutamente predominante no Direito brasileiro, que a responsabilidade em questão é objetiva, ou seja, para que seja instaurada, prescinde-se de dolo ou culpa da pessoa jurídica, bastando a relação causal entre a atividade e o dano." (Celso Antônio Bandeira de Mello, "Curso de Direito Administrativo", Malheiros Ed., 17ª ed., 2004, pág. 699). Esclareça-se que Celso Antônio, no ponto, cuida da "Responsabilidade do concessionário e subsidiária do Estado pelos danos a terceiros causados em razão do serviço." (Ob. e loc. cits.).

Não se discute, no caso, a responsabilidade objetiva da concessionária de serviço público - serviço de transporte coletivo. O que se discute é se a responsabilidade objetiva dos concessionários se estende aos não-usuários do serviço. Essa a questão, aliás, que levou a Turma a dar provimento ao agravo, AI 209.782-AgR/SP, para que subisse o RE.

Na ocasião em que o citado agravo foi julgado, proferi o seguinte voto:

"Sr. Presidente, o caso sob apreciação é este: um ônibus bateu num automóvel. O ônibus é de uma concessionária de serviço público de transporte e o automóvel de um particular. O acórdão recorrido deu pela responsabilidade objetiva da concessionária.
O Ministro Jobim entende que, no caso, não haveria, em princípio, responsabilidade objetiva, dado que, tratando-se de concessionária de serviço público, a responsabilidade objetiva somente ocorreria se o ofendido estivesse sendo transportado, vale dizer, estivesse se utilizando do serviço exercido pela concessionária. No caso, o automóvel abalroado é de terceiro, alheio à relação prestadora de serviço e àquele que se utiliza do serviço público de transporte.
É interessante a distinção feita pelo Ministro Jobim. Realmente, qual seria a finalidade de se estender a responsabilidade objetiva às entidades de direito privado prestadoras de serviço público? Não seria em benefício de quem recebe o serviço? Parece-me, de outro lado, pertinente a indagação: a terceiro, que não está se utilizando do serviço público, alheio ao serviço de transporte, se estenderia, também, a responsabilidade objetiva da concessionária de serviço público?
Essa é uma questão relevante, que merece ser discutida e resolvida pelo Supremo Tribunal Federal.
Peço licença ao Sr. Ministro Marco Aurélio para, aderindo ao voto do Sr. Ministro Nelson Jobim, dar provimento ao agravo e determinar o processamento do recurso extraordinário." ("DJ" de 18.6.99)

Passo ao exame da questão.

Em pesquisa doutrinária que fiz, os doutrinadores abaixo referidos ou não cuidaram da questão ou não fizeram a distinção mencionada: Hely Lopes Meirelles, "Direito Administrativo Brasileiro", Malheiros Ed., 29ª ed., págs. 629 e segs.; Sergio Cavalieri Filho, "Programa de Responsabilidade Civil", Malheiros Ed., 2ª ed., págs. 171/173; Celso Antônio Bandeira de Mello, "Curso de Direito Administrativo", Malheiros Ed., 17ª ed., 2004, págs. 699 e segs.; Rui Stoco, "Tratado de Responsabilidade Civil", Ed. RT, 6ª ed., 2004, págs. 965 e segs.; Guilherme Couto de Castro, "A Responsabilidade Civil Objetiva no Direito Brasileiro", Forense, 3ª ed., 2000, págs. 67 e segs.; João Luiz Coelho da Rocha, "A Concessão de Serviços Públicos e a Responsabilidade Objetiva" in "Boletim - Doutrina: Informações Jurídicas e Empresariais", ano IV, nº 12, dezembro/2001 - ADCOAS, págs. 386 e segs.; Paulo Napoleão Nogueira da Silva, "Breves Comentários à Constituição Federal", Forense, 2002, vol. I, págs. 457 e segs.; Uadi Lammêgo Bulos, "Constituição Federal Anotada", Saraiva, 4ª ed., 2002, págs. 615 e segs.; Diogenes Gasparini, "Direito Administrativo", Saraiva, 6ª ed., 2001, págs. 835 e segs.; Manoel Gonçalves Ferreira Filho, "Comentários à Constituição Brasileira de 1988", Saraiva, vol. I, pág. 254; Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, "Comentários à Constituição do Brasil", vol. 3, Tomo III, Saraiva, págs. 168 e segs.; Sérgio de Andréa Ferreira, "Comentários à Constituição", Freitas Bastos, vol. III, págs. 314 e segs.; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, "Direito Administrativo", Ed. Atlas, 14ª ed., 2002, págs. 523 e segs.

A professora Lúcia Valle Figueiredo parece sustentar que a responsabilidade objetiva dá-se relativamente ao usuário. Ensina: "(...) se a prestação do serviço público foi cometida a concessionário de serviço, pessoa de direito privado, na verdade temos duas situações instauradas: 1) a do concedente e concessionário, nos termos do contrato de concessão; 2) a do concessionário em face de terceiros ou dos usuários do serviço público. Nessa última hipótese a responsabilidade é objetiva do concessionário. Entretanto, se exauridas as forças do concessionário, responderá o concedente, subsidiariamente." ("Curso de Direito Administrativo", Malheiros Ed., 6ª ed., 2003, pág. 279. Os grifos não são do original).

Yussef Said Cahali não faz afirmação peremptória a respeito. Parece, entretanto, que entende que a responsabilidade objetiva ocorre, relativamente ao usuário, ao lecionar: "Em matéria de serviço de transporte coletivo concedido pelo Poder Público, permite-se afirmar que a regra do art. 37, § 6º, da Constituição de 1988 representa simples superfetação, pois já era entendimento assente que 'a responsabilidade das empresas de serviço público, no transporte de passageiros, decorre de culpa presumida, não se podendo nela entrever qualquer cláusula liberatória, especialmente culpa de terceiros' (TJSP, 6ª C., 20.02.89, RT 413/146), o que se compreende, seja considerando-se o transporte de passageiros simples obrigação de resultado, seja tendo em vista o disposto no art. 17 do Decreto 2.681, de 07.12.42, aplicável por analogia, quanto à culpa presumida do transportador." ("Responsabilidade Civil do Estado", Malheiros Ed., 2ª ed., 2ª tiragem, 1996, pág. 156).

Celso Antônio Bandeira de Mello, conforme acima mencionado, não chega a cuidar do tema no seu "Curso de Direito Administrativo". Dirigi-lhe carta, pedindo o seu pronunciamento a respeito. Celso Antônio, gentilmente, respondeu-me:

"(...) Quando o Texto Constitucional, no § 6º do art. 37, diz que as pessoas 'de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes nesta qualidade causarem a terceiros', de fora parte a indispensável causação do dano, nada mais exige senão dois requisitos para que se firme dita responsabilidade: (1) que se trate de pessoa prestadora de serviço público; (b) que seus agentes (causadores do dano) estejam a atuar na qualidade de prestadores de serviços públicos. Ou seja: nada se exige quanto à qualificação do sujeito passivo do dano; isto é: não se exige que sejam usuários, nesta qualidade atingidos pelo dano.

Com efeito, o que importa, a meu ver, é que a atuação danosa haja ocorrido enquanto a pessoa está atuando sob a titulação de prestadora de serviço público, o que exclui apenas os negócios para cujo desempenho não seja necessária a qualidade de prestadora de serviço público. Logo, se alguém, para poder circular com ônibus transportador de passageiros do serviço público de transporte coletivo necessita ser prestadora de serviço público e causa dano a quem quer que seja, tal dano foi causado na qualidade de prestadora dele. Donde, sua responsabilidade é a que está configurada no § 6º do art. 37."

José Cretella Júnior dissertou a respeito. Sua opinião parece-me coincidente com a de Celso Antônio, ao escrever, comentando o § 6º do art. 37 da CF: "326. Terceiros. No texto, 'terceiros' são as pessoas que sofrem dano, causado por agente de pessoa jurídica pública, ou privada, esta última prestando serviços públicos." ("Comentários à Constituição Brasileira de 1988", Forense Universitária, 2ª ed., vol. IV, pág. 2.352).

Ruth Helena Pimentel de Oliveira escreve que "a responsabilidade do concessionário e do permissionário de serviço público é objetiva e direta diante dos usuários e terceiros, informada pela teoria do risco, tal como a responsabilidade do Estado." ("Entidades Prestadoras de Serviços Públicos e Responsabilidade Extracontratual", Ed. Atlas, 2003, pág. 205).

A lição de Romeu Felipe Bacellar Filho, entretanto, parece-me outra: "Resta ainda ressaltar que, em se tratando de concessão de serviço público, existem duas relações jurídicas diversas, como informa Lúcia Valle Figueiredo: a existente entre o poder concedente e o concessionário, que se rege pelo disposto no contrato de concessão, e a que nos interessa em matéria de responsabilidade civil, existente entre o concessionário e o usuário de serviço público." E acrescenta: "Nesta última relação, há incidência de responsabilidade objetiva, respondendo o concessionário por danos decorrentes do serviço por ele executado e concernente à atividade delegada. Isso porque é o usuário detentor do direito subjetivo de receber um serviço público ideal, com todas as garantias e benefícios inerentes à atuação pública, mesmo sendo esse serviço prestado por terceiros que não o Estado."

Registre-se que Romeu Bacellar se refere, primeiro, à relação entre o concessionário e o usuário do serviço público. Nessa relação, acrescenta, é que "há incidência de responsabilidade objetiva", porque "é o usuário detentor do direito subjetivo de receber um serviço público ideal..."

Depois de mencionar a posição de César Chaves, igual a sua, conclui o mestre paranaense:

"Esse especial modo de vinculação entre o usuário e o concessionário deriva da própria relação orgânica decorrente da natureza e finalidade da delegação, de mister público. A conseqüência não pode ser outra: o concessionário deve prestar o serviço de forma ideal, dado que o serviço se reveste de caráter público, assim como deve responder pelo dano objetivamente, por igual razão."
("Responsabilidade Civil Extracontratual das Pessoas Jurídicas de Direito Privado Prestadoras de Serviço Público", in "Interesse Público", obra dirigida pelo Prof. Juarez Freitas, PUC/RS e UFRGS, nº 06, 2000, pág. 11 e segs., especialmente págs. 44-45).

Comungo desse entendimento. A responsabilidade objetiva das pessoas privadas prestadoras de serviço público ocorre em relação ao usuário do serviço e não relativamente a pessoas não integrantes dessa relação. Com propriedade, disse o Ministro Nelson Jobim no voto que proferiu por ocasião do julgamento do AI 209.782-AgR/SP, retromencionado: "(...) a Constituição quer assegurar que os terceiros - contratantes do transporte - sejam indenizados, independente da disputa que possa haver entre o prestador de serviço e o eventual causador do sinistro. (...) a responsabilidade objetiva do § 6º, que foi constitucionalizada, porque dispositivo anterior no sistema de Direito Civil estabeleceu que, nos contratos de transporte, o transportado não tem o ônus de participar da disputa de quem for o culpado, se prestador de serviço ou um outro envolvido no acidente; esse é o sentido. Ou seja: Protegeu-se quem? O titular, aquele que recebeu o serviço prestado pela administração pública. Agora, estender a responsabilidade objetiva é ir muito além e criar uma situação contraditória."
Essa me parece, na verdade, a melhor interpretação do dispositivo constitucional, no concernente às pessoas privadas prestadoras de serviço público: o usuário do serviço público que sofreu um dano, causado pelo prestador do serviço, não precisa comprovar a culpa deste. Ao prestador do serviço é que compete, para o fim de mitigar ou elidir a sua responsabilidade, provar que o usuário procedeu com culpa, culpa em sentido largo. É que, conforme lição de Romeu Bacellar, "é o usuário detentor do direito subjetivo de receber um serviço público ideal". A ratio do dispositivo constitucional que estamos interpretando parece-me mesmo esta: porque o "usuário é detentor do direito subjetivo de receber um serviço público ideal", não se deve exigir que, tendo sofrido dano em razão do serviço, tivesse de provar a culpa do prestador desse serviço.
Fora daí, vale dizer, estender a não-usuários do serviço público prestado pela concessionária ou permissionária a responsabilidade objetiva - CF, art. 37, § 6º - seria ir além da ratio legis.
Do exposto, conheço do recurso e dou-lhe provimento, restabelecida, destarte, a conclusão da sentença de 1º grau.
É o voto.

* acórdão pendente de publicação


Improbidade Administrativa - Ação Civil - Competência (Transcrições)


Pet 3270/SC*

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

EMENTA: IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA (LEI Nº 8.429/92). AÇÃO CIVIL PÚBLICA PROMOVIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. RÉU QUE É DEPUTADO FEDERAL. PRETENDIDO RECONHECIMENTO DE SUA PRERROGATIVA DE FORO PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, MESMO TRATANDO-SE DE PROCESSO DE NATUREZA CIVIL. POSTULAÇÃO QUE BUSCA SUPORTE JURÍDICO NA LEI Nº 10.628/2002. IMPOSSIBILIDADE DE O CONGRESSO NACIONAL, MEDIANTE SIMPLES LEI ORDINÁRIA, REDUZIR, AMPLIAR OU MODIFICAR A COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INTANGIBILIDADE DESSE COMPLEXO DE ATRIBUIÇÕES JURISDICIONAIS MEDIANTE ATIVIDADE LEGISLATIVA ORDINÁRIA, EIS QUE AS HIPÓTESES DEFINIDORAS DA COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DA SUPREMA CORTE RESULTAM DE MATRIZ CONSTITUCIONAL. ENTENDIMENTO QUE TEM APOIO EM ANTIGO PRECEDENTE FIRMADO POR ESTA SUPREMA CORTE (1895). A QUESTÃO DA PRERROGATIVA DE FORO "RATIONE MUNERIS". O SIGNIFICADO REPUBLICANO DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS: UM VALOR NECESSÁRIO À CONSTRUÇÃO DA IGUALDADE. RELEVÂNCIA HERMENÊUTICA DA IDÉIA REPUBLICANA. DOUTRINA. JURISPRUDÊNCIA. A QUESTIONÁVEL CONSTITUCIONALIDADE DA LEI Nº 10.628/2002. IMPOSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DESSE VÍCIO JURÍDICO, POR DECISÃO MONOCRÁTICA DO RELATOR, NO ÂMBITO DOS TRIBUNAIS. NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA, NO CASO, DO POSTULADO CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE PLENÁRIO (CF, ART. 97). PRÉVIA AUDIÊNCIA, PARA ESSE EFEITO, DO SENHOR PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA.

DESPACHO: Trata-se de ação civil pública, por improbidade administrativa, ajuizada pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina, com fundamento na Lei nº 8.429/92, contra o Senhor Paulo Afonso Evangelista Vieira, ora no exercício do mandato de Deputado Federal.
A ação civil pública em questão foi ajuizada perante magistrado estadual de primeira instância (fls. 02/22).
O réu, no entanto, invocando o § 2º do art. 84 do CPP, introduzido pela Lei nº 10.628/2002, argüiu a incompetência absoluta do juízo de primeiro grau e postulou, após declarada a nulidade dos atos decisórios, a remessa do processo ao Supremo Tribunal Federal, por tratar-se de Deputado Federal (fls. 1.024/1.026).
O MM. Juiz de Direito da 2ª Vara da Fazenda Pública da comarca de Florianópolis/SC, por entender aplicável, ao caso, a referida norma legal (CPP, art. 84, § 2º, na redação dada pela Lei nº 10.628/2002), ordenou a remessa dos presentes autos ao Supremo Tribunal Federal, "haja vista que o réu Paulo Afonso Evangelista Vieira é deputado federal (...)" (fls. 1.030).
A decisão em causa suscita graves reflexões em torno da legitimidade constitucional do § 2º do art. 84 do CPP, introduzido pela Lei nº 10.628, de 24/12/2002, notadamente em face do ajuizamento, perante esta Suprema Corte, da ADI 2.797/DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, cujo julgamento final, já iniciado, conta com expressivo voto proferido por seu eminente Relator, no sentido da inconstitucionalidade do diploma legislativo em referência (Lei nº 10.628/2002).
A controvérsia jurídica ora em exame, analisada em seus aspectos essenciais, põe em evidência um ponto que se revela impregnado de inquestionável relevo, consistente no reconhecimento, ou não, da possibilidade de o Congresso Nacional, mediante legislação comum, alterar, reduzir ou ampliar (como na espécie) a competência originária do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça dos Estados.
Ou, em outras palavras, cabe formular a seguinte indagação: pode, o Congresso Nacional, no exercício de sua competência legislativa comum, modificar, sob qualquer aspecto, o rol de atribuições jurisdicionais originárias das Cortes acima referidas, para, nesse complexo de poderes, e mediante legislação de caráter meramente ordinário, introduzir novas competências, sem que, com tais alterações, incida em violação ao texto constitucional?
Tenho para mim que o Congresso Nacional não dispõe de tal poder.
Com efeito, entendo revelar-se desvestida de legitimidade jurídico-constitucional a Lei nº 10.628/2002, especialmente se for ela analisada na perspectiva das atribuições jurisdicionais que a própria Constituição da República deferiu a esta Suprema Corte, considerando-se, para esse efeito, de um lado, razões de ordem doutrinária (ALEXANDRE DE MORAES, "Constituição do Brasil Interpretada", p. 2.681/2.683, item n. 17.3, 2ª ed., 2003, Atlas; RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO, "Ação Popular", p. 120/130, 1994, RT; HUGO NIGRO MAZZILLI, "O Inquérito Civil", p. 83/84, 1999, Saraiva; MARCELO FIGUEIREDO, "Probidade Administrativa", p. 91, 3ª ed., 1998, Malheiros; WALLACE PAIVA MARTINS JÚNIOR, "Probidade Administrativa", p. 318/321, item n. 71, 2001, Saraiva; MARINO PAZZAGLINI FILHO, "Lei de Improbidade Administrativa Comentada", p. 173/175, item n. 3.5, 2002, Atlas; JOSÉ AFONSO DA SILVA, "Curso de Direito Constitucional Positivo", p. 558, item n. 7, 23ª ed., 2004, Malheiros; MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, "Comentários à Constituição Brasileira de 1988", Vol. 2, p. 117, 1992, Saraiva; SÉRGIO MONTEIRO MEDEIROS, "Lei de Improbidade Administrativa", p. 176/177, 1ª ed., 2003, Juarez de Oliveira; FRANCISCO RODRIGUES DA SILVA, "Foro Privilegiado para Julgamento de Atos de Improbidade Administrativa, Seu Casuísmo e Atecnias Flagrantes", "in" Jornal Trabalhista, JTb Consulex, p. 11/12, XX/963, v.g.), e tendo em vista, de outro, que a competência do Supremo Tribunal Federal - precisamente por revestir-se de extração constitucional (à semelhança do que sucede com a competência originária do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais) - submete-se, por isso mesmo, a regime de direito estrito (RTJ 43/129 - RTJ 44/563 - RTJ 50/72 - RTJ 53/766 - RTJ 94/471 - RTJ 121/17 - RTJ 141/344 - RTJ 171/101-102, v.g.), não podendo, desse modo, ser ampliada, nem restringida, por legislação meramente comum (ordinária ou complementar), sob pena de frontal desrespeito ao texto da Lei Fundamental da República.
Vale ter presente, no ponto, ante sua inquestionável pertinência, a precisa lição de ROGÉRIO PACHECO ALVES ("Improbidade Administrativa", p. 734/735, Capítulo II, item n. 7.1.2, 2ª ed., 2004, Lumen Juris):

"Cumpre asseverar, de pronto, a evidente inconstitucionalidade das inovações introduzidas pela Lei nº 10.628/2002 uma vez que não é possível estender as hipóteses de competência originária ratione personae do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais, previstas taxativamente na Constituição Federal (arts. 102, 105 e 108), através de lei ordinária. Nessa linha, é importante perceber que sempre que a Constituição Federal desejou cometer ao legislador ordinário a disciplina do tema fez-se expressa referência neste sentido, bastando verificar, por exemplo, o que estabelecem os seus arts. 111, § 3º, 121 e 124, parágrafo único, relativamente à competência das Justiças do Trabalho, Eleitoral e Militar. Em resumo, somente por intermédio de emenda ao texto constitucional tornar-se-á possível o disciplinamento do foro por prerrogativa de função em moldes diversos dos atuais, havendo caudalosa jurisprudência do STF no sentido de seu caráter de direito estrito (previsão numerus clausus).
Relativamente aos Tribunais de Justiça, também é vedado à lei ordinária federal ampliar sua competência originária, sendo o § 1º do art. 125 da Constituição Federal bastante claro ao estabelecer que 'A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça', o que decorre da própria conformação federativa." (grifei)

Cabe referir, também, quanto ao tema ora em análise, o autorizado magistério doutrinário de CÁSSIO SCARPINELLA BUENO ("O Foro Especial para as Ações de Improbidade Administrativa e a Lei 10.628/02", in "Improbidade Administrativa - questões polêmicas e atuais", p. 438/461, 442, item n. 3, 2ª ed., 2003, Malheiros):

"A competência do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais foi estabelecida, taxativa e restritivamente, pela Constituição Federal. Não há como, sem contrariar os arts. 102, 105 e 108, entender que a lei federal possa definir competência para aqueles Tribunais ou ampliá-las para além dos limites já traçados pelo legislador constituinte. Mudar competência destes Tribunais é objeto de Emenda Constitucional. Nunca de lei ordinária federal." (grifei)

Igual percepção do tema revela o eminente Ministro ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, ("Jurisdição e Competência", p. 63, item n. 46, 13ª ed., 2004, Saraiva), para quem "A competência fixada na Constituição apresenta-se exaustiva e taxativa: dispositivo algum de lei, ordinária ou complementar (salvante, evidentemente, emenda à própria Constituição), poderá reduzir ou ampliar tal competência" (grifei).

O ilustre Professor FÁBIO KONDER COMPARATO ("Competência do Juízo de 1º Grau", in "Improbidade Administrativa - 10 Anos da Lei n. 8.429/92", p. 119/129, 124, 2002, Del Rey - ANPR) também conclui, acertadamente, pela impossibilidade de o legislador comum criar novas hipóteses de prerrogativa de foro "ratione muneris", asseverando, para tanto, que, "no regime constitucional brasileiro em vigor, seguindo a linha diretriz de todas as nossas Constituições republicanas, mas diversamente do que dispunha a Carta Imperial, o sistema é de reserva exclusivamente constitucional para a criação de privilégios de foro. (...). O legislador não tem competência para tanto" (grifei).

Esse mesmo entendimento - que não reconhece ao legislador comum a possibilidade de outorgar prerrogativa de foro, "ratione muneris", a determinados réus, nas ações civis por improbidade administrativa - tem sido prestigiado pela jurisprudência dos Tribunais em geral, como o evidenciam as seguintes decisões:

"COMPETÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Ação de improbidade administrativa. Conselheiro do Tribunal de Contas. Não é da competência originária do Superior Tribunal de Justiça processar e julgar ação de improbidade administrativa fundada na Lei 8429/92, ainda que o réu tenha privilégio de foro para as ações penais.
Nos termos do art. 105, I, a, da Constituição da República, a competência originária deste Tribunal é para a ação penal, o que não se confunde com a ação judicial para apuração de ato de improbidade administrativa, de natureza administrativa. Nesse contexto, também não é do STJ a competência para decidir medida cautelar preparatória daquela ação. Improcedência da reclamação."
(Reclamação 780/AP, Rel. p/ o acórdão Min. RUY ROSADO DE AGUIAR, Corte Especial do E. STJ)


"CONSTITUCIONAL. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO TRF. ART. 84, § 2º, DO CPP, NA REDAÇÃO DA LEI N.º 10.628/02. INCONSTITUCIONALIDADE.

1. A Constituição Federal de 1988, ao prever a responsabilidade dos agentes públicos por ato de improbidade administrativa, concebeu nova esfera de responsabilidade independente das esferas civil, administrativa e penal, tradicionalmente contempladas no ordenamento jurídico pátrio, segundo dispõe o art. 37, § 4º, da Magna Carta:

'Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(...)
§ 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível' (Grifou-se).

O dispositivo acima transcrito evidencia que, muito embora a suspensão dos direitos políticos e a perda da função pública sejam sanções revestidas de um forte cunho penal, com inegáveis repercussões políticas, o legislador constituinte as considerou sanções de natureza civil, tendo conservado a sua plena autonomia em relação às sanções penais, o que foi reafirmado pelo legislador ordinário no art. 12 da Lei nº 8.429/92, não se confundindo, conseqüentemente, as sanções impostas pela Constituição Federal e pela Lei de Improbidade Administrativa com as sanções de caráter criminal que venham a incidir sobre o mesmo fato. (Art. 12. Independentemente das ações penais, civis e administrativas, previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações: ...)
Ocorre que o legislador ordinário, ao acrescentar o § 2º ao art. 84 do Código de Processo Penal, através da Lei nº 10.628/02, instituiu, a partir de um paralelismo com a ação penal, foro especial para o julgamento da ação de improbidade administrativa, nos exatos moldes em que as prerrogativas de foro são asseguradas aos agentes públicos na esfera criminal:

'Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade.

'§ 1º A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.

'§ 2º A ação de improbidade, de que trata a Lei n 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1º'.

No entanto, essa criação de competência cível, além de ter sido veiculada, de forma esdrúxula, em legislação processual penal, deu-se em total afronta à Constituição Federal, que, em momento algum, instituiu foro por prerrogativa de função para o processamento e julgamento das ações de improbidade administrativa, mas, tão-somente, para as ações penais.
Como firmou-se, no direito brasileiro, a tradição de as normas de competência do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça dos Estados serem fixadas pela própria Constituição Federal (arts. 102, inc I, 105, inc. I, 108, inc. 1, 29, inc. X e 83), ou pelas Constituições Estaduais mediante autorização constitucional (125, § 1º), a possibilidade de o legislador ordinário estabelecer normas sobre competência é sempre mencionada expressamente no texto da Constituição, a exemplo do que ocorre com a delimitação da competência do Tribunal Superior do Trabalho e dos demais órgãos da Justiça do Trabalho (art. 111, § 3º, da CF), da Justiça Eleitoral (art. 121, caput, da CF) e da Justiça Militar (art. 124, parágrafo único, da CF).
Afora esses casos de atuação do legislador infraconstitucional na fixação de competência por meio de lei ordinária ou lei complementar, qualquer alteração da competência dos Tribunais Superiores e de Segundo Grau pode apenas decorrer de emenda constitucional, com o que se concluiu que as hipóteses constitucionais de prerrogativa de foro não podem ser ampliadas por lei ordinária ou mesmo por interpretação extensiva, posto constituírem verdadeiras exceções ao princípio da isonomia (art. 5º, caput, da Constituição Federal).
Desse modo, uma vez que a Constituição Federal fixa, de maneira taxativa, as regras de competência dos Tribunais por prerrogativa de função exclusivamente para o processo e julgamento de ações criminais, e uma vez que as Constituições Estaduais determinam a competência dos respectivos Tribunais de Justiça observando o princípio da simetria com os cargos e funções para os quais a Constituição Federal prevê foro especial, a Lei nº 10.628/02 não poderia ter fixado prerrogativa de foro em razão da função para as ações de improbidade administrativa.
2. Incidente de Inconstitucionalidade a que se julga procedente, reconhecida a inconstitucionalidade do art. 84, § 2º, do CPP, na redação da Lei n.º 10.628/02."
(Argüição de Inconstitucionalidade na AC 22/PR, Rel. Juiz CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ, Corte Especial do E. TRF/4ª Região)


"INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE - JULGAMENTO - CORTE SUPERIOR - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA - LEI Nº 10.628/02 - § 2º DO ART. 84 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL - FORO PRIVILEGIADO - INCONSTITUCIONALIDADE. Não pode a lei ordinária modificar ou ampliar competência de Tribunal estadual, prevista de forma exaustiva e restritiva na Constituição do respectivo Estado, conforme mandamento do art. 125, § 1º, da Carta Magna. Não se encontra no rol de competência originária do Tribunal de Justiça o julgamento das matérias relativas a ações por ato de improbidade administrativa praticado por agente público detentor de foro privilegiado. A competência deste Tribunal, no que tange ao julgamento destas autoridades, restringe-se ao processamento e julgamento de crimes comuns e de responsabilidade."
(Processo 1.0000.04.406926-8/000(1)/MG, Rel. Des. CARREIRA MACHADO, TJMG)

Note-se, a propósito da questão pertinente à competência originária dos Tribunais estaduais - cuja definição resulta da própria Constituição do Estado-membro, regulada, no ponto, por lei estadual de organização judiciária, de iniciativa do Tribunal de Justiça local (CF, art. 125, § 1º) - que as únicas exceções decorrem do texto da Constituição Federal, que fixa, diretamente, essa mesma competência originária, nas hipóteses (a) de julgamento de ações penais originárias promovidas contra Prefeitos Municipais (CF, art. 29, X), Juízes estaduais e membros do Ministério Público local, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral (CF, art. 96, III) e (b) de exame da ação direta interventiva ajuizada com a finalidade de viabilizar a intervenção do Estado-membro no Município (CF, art. 35, IV).
O fato é que a competência dos Tribunais de Justiça locais, notadamente aquela de caráter originário, é regida por normas fundadas na Constituição da República, na Carta Política dos próprios Estados-membros e nas respectivas leis de organização judiciária.
É por essa razão, como salientam os autores (CÁSSIO SCARPINELLA BUENO, "op. cit.", p. 444, item n. 3, v.g.) - que o próprio Código de Processo Civil não define as causas sujeitas à competência originária dos Tribunais estaduais (art. 93), precisamente por respeitar, no tema, a cláusula de reserva de Constituição, que exclui, da esfera do legislador comum da União, a definição das matérias que podem ser incluídas no âmbito das atribuições jurisdicionais originárias dessas mesmas Cortes judiciárias estaduais.
Não se pode desconsiderar que a Constituição Federal, no art. 125, § 1º, expressamente outorgou, ao Estado-membro, a possibilidade de definir, no texto de sua própria Constituição, a competência dos Tribunais locais.
Não cabe, desse modo, ao legislador comum da União, modificar, ampliar ou reduzir o rol de competências das Cortes judiciárias locais, pois essa tarefa foi explicitamente deferida, pelo legislador constituinte, com exclusividade, aos Estados-membros.
Cabe ter presente, neste ponto, o autorizado magistério de UADI LAMMÊGO BULOS ("Constituição Federal Anotada", p. 1.074, 5ª ed., 2003, Saraiva), para quem "Cabe à Constituição do Estado regular a competência dos Tribunais de Justiça e, onde houver, dos Tribunais de Alçada", sem prejuízo da regulação, por legislação estadual, dos demais temas pertinentes à organização judiciária local.
Impende referir, de outro lado, a precisa lição de MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO ("Comentários à Constituição Brasileira de 1988", p. 34, 2ª ed., 1999, Saraiva), segundo a qual "Quer a Constituição que a competência dos tribunais estaduais seja fixada pela respectiva Carta Magna, e, assim, não fique a mercê da legislação ordinária. O fito dessa norma é dar maior estabilidade a essas regras" (grifei).
Cumpre assinalar, ainda, por necessário, na linha desse entendimento, que a jurisprudência desta Suprema Corte (RTJ 140/26, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - RTJ 175/548, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA), com fundamento no art. 125, § 1º da Constituição Federal, tem enfatizado caber, às Constituições estaduais, a fixação da competência originária das Cortes judiciárias locais:
"Justiça dos Estados: competência originária dos tribunais locais: matéria reservada às Constituições estaduais.
1. A demarcação da competência dos tribunais de cada Estado é uma raríssima hipótese de reserva explícita de determinada matéria à Constituição do Estado-membro, por força do art. 125, § 1º, da Lei Fundamental da República; o âmbito material dessa área reservada às constituições estaduais não se restringe à distribuição entre os tribunais estaduais da competência que lhes atribua a lei processual privativa da União; estende-se - quando a não tenha predeterminado a Constituição Federal - ao estabelecimento de competências originárias ratione muneris, assim, as relativas ao mandado de segurança segundo a hierarquia da autoridade coatora.
2. Não confiada pela Constituição respectiva a um dos tribunais estaduais, a competência originária para certo tipo de processo, há de seguir-se a regra geral de sua atribuição ao juízo de primeiro grau, que não pode ser elidida por norma regimental."
(RTJ 185/711, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - grifei)

Impende assinalar que a discussão em torno da validade constitucional, ou não, da Lei nº 10.628/2002 - consideradas as premissas em que esse debate se trava, versando a possibilidade, ou não, de a lei ordinária ampliar a competência do Supremo Tribunal Federal (e de outras Cortes judiciárias cujas atribuições também se achem unicamente definidas em sede constitucional) - confere impressionante atualidade ao precedente histórico que a Suprema Corte dos Estados Unidos da América firmou no caso "Marbury v. Madison", em 1803, quando aquela Alta Corte enfaticamente assinalou que o delineamento constitucional de suas atribuições originárias foi concebido pelos "Founding Fathers" com o claro propósito de inibir a atuação do Congresso dos Estados Unidos da América, impedindo-o de proceder, em sede de legislação meramente ordinária, a indevidas ampliações da competência daquele Tribunal, fazendo, do rígido círculo traçado pelo Artigo III da Constituição americana, um instrumento de proteção do órgão de cúpula do Poder Judiciário, em face do Poder Legislativo daquela República.
Vale mencionar, neste ponto, a observação feita por BERNARD SCHWARTZ ("A Commentary on the Constitution of the United States", Part I, p. 367, n. 143, 2ª ed., 1963, The Macmillan Company, New York), a propósito do alto significado político-jurídico de que se revestiu a decisão proferida em "Marbury v. Madison":

"Even more important, as a consequence of the original jurisdiction of the highest Court being derived from the basic document itself, is the placing of such jurisdiction beyond Congressional control. This has been settled ever since Marbury v. Madison. The statute held unconstitutional there was one which was construed as vesting the Supreme Court with the original jurisdiction to issue writs of mandamus. Chief Justice Marshall rejected the contention that, since the organic clause assigning original jurisdiction to the high bench contained no express negative or restrictive words, the power remained in the legislature to assign original jurisdiction in that Court in cases other than those specified. On the contrary, said Marshall, a negative or exclusive sense must be given to the cases of original jurisdiction spelled out in Article III.
......................................................
The statute at issue in Marbury v. Madison, was ruled invalid because it sought to give the Supreme Court original jurisdiction in a case not specified by Article III. Under Marbury v. Madison, then, the Congress may not enlarge the original jurisdiction of the high bench. But the reasoning of that great case applies with equal force to legislative attempts to restrict the Supreme Court's original jurisdiction. The constitutional definition of such jurisdiction deprives Congress of any power to define it. The legislative department may neither extend nor limit the terms of the organic grant." (grifei)

É importante rememorar, neste ponto, que o Supremo Tribunal Federal, há quase 110 anos, em decisão proferida em 17 de agosto de 1895 (Acórdão n. 5, Rel. Min. JOSÉ HYGINO), já advertia, no final do século 19, não ser lícito ao Congresso Nacional, mediante atividade legislativa comum, ampliar, suprimir ou reduzir a esfera de competência originária desta Corte Suprema, pelo fato de tal complexo de atribuições jurisdicionais derivar, de modo imediato, do próprio texto constitucional, proclamando, então, naquele julgamento, a impossibilidade de introdução de tais modificações por via meramente legislativa, "por não poder qualquer lei ordinária aumentar nem diminuir as atribuições do Tribunal (...)" ("Jurisprudência/STF", p. 100/101, item n. 89, 1897, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional - grifei).
Em suma: o Congresso Nacional não pode, simplesmente porque não dispõe dessa prerrogativa, interpretar a Constituição, mediante simples atividade normativa de caráter ordinário, ainda mais quando essa interpretação, veiculada em sede meramente legal, afetar exegese que o Supremo Tribunal Federal, em sua condição institucional de guardião da Lei Fundamental, haja dado ao texto da Carta Política.
Cabe rememorar, no ponto, a esse respeito, a lição do ilustre magistrado ANDRÉ GUSTAVO C. DE ANDRADE ("Revista de Direito Renovar", vol. 24/78-79, set/dez 02), que também recusa, ao Poder Legislativo, a possibilidade de, mediante verdadeira "sentença legislativa", explicitar, em texto de lei, o significado da Constituição:

"Na direção inversa - da harmonização do texto constitucional com a lei - haveria a denominada 'interpretação da Constituição conforme as leis', mencionada por Canotilho como método hermenêutico pelo qual o intérprete se valeria das normas infraconstitucionais para determinar o sentido dos textos constitucionais, principalmente daqueles que contivessem fórmulas imprecisas ou indeterminadas. Essa interpretação de 'mão trocada' se justificaria pela maior proximidade da lei ordinária com a realidade e com os problemas concretos.
O renomado constitucionalista português aponta várias críticas que a doutrina tece em relação a esse método hermenêutico, que engendra como que uma 'legalidade da Constituição a sobrepor-se à constitucionalidade das leis'.
Tal concepção leva ao paroxismo a idéia de que o legislador exercia uma preferência como concretizador da Constituição. Todavia, o legislador, como destinatário e concretizador da Constituição, não tem o poder de fixar a interpretação 'correta' do texto constitucional. Com efeito, uma lei ordinária interpretativa não tem força jurídica para impor um sentido ao texto constitucional, razão pela qual deve ser reconhecida como inconstitucional quando contiver uma interpretação que entre em testilha com este." (grifei)

Entendo que a Lei nº 10.628/2002, ao ampliar, de forma substancial, a esfera de competência originária do Supremo Tribunal Federal e de outras Cortes judiciárias, incide em grave violação ao princípio republicano, que traduz postulado essencial de nossa organização político-constitucional.
A evolução histórica do constitucionalismo brasileiro, analisada na perspectiva da outorga da prerrogativa de foro, demonstra que as sucessivas Constituições de nosso País, notadamente a partir de 1891, têm se distanciado, no plano institucional, de um modelo verdadeiramente republicano.
Na realidade, as Constituições republicanas do Brasil não têm sido capazes de refletir, em plenitude, as premissas que dão consistência doutrinária, que imprimem significação ética e que conferem substância política ao princípio republicano, que se revela essencialmente incompatível com tratamentos diferenciados, fundados em ideações e em práticas de poder que exaltam, sem razão e sem qualquer suporte constitucional legitimador, privilégios de ordem pessoal ou de caráter funcional, culminando por afetar a integridade de um valor fundamental à própria configuração da idéia republicana, que se orienta pelo vetor axiológico da igualdade.
Daí a afirmação incontestável de JOÃO BARBALHO ("Constituição Federal Brasileira", p. 303/304, edição fac-similar, 1992, Brasília), que associa, à autoridade de seus comentários, a experiência de membro da primeira Assembléia Constituinte da República, de Senador da República e de Ministro do Supremo Tribunal Federal:

"Não há, perante a lei republicana, grandes nem pequenos, senhores nem vassalos, patrícios nem plebeus, ricos nem pobres, fortes nem fracos, porque a todos irmana e nivela o direito (...)." (grifei)

Nada pode autorizar o desequilíbrio entre os cidadãos da República. Nada deve justificar a outorga de tratamento seletivo que vise a dispensar determinados privilégios, ainda que de índole funcional, a certos agentes públicos, especialmente quando a lei é editada com propósitos casuísticos e estranhos aos fins autorizados pelo princípio republicano.
Cabe reconhecer, no entanto, que a prerrogativa de foro acha-se instituída em nosso sistema constitucional.
As atribuições constitucionais dos Tribunais, contudo, devem merecer interpretação que impeça a expansão indevida da competência originária do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais, resultante de atividade legislativa ordinária (como sucedeu com a edição da Lei nº 10.628/2002), para que não se privilegiem, de um lado, aqueles que detêm (ou, até mesmo, já não mais detêm), nas mais elevadas instâncias do aparelho de Estado, as prerrogativas de poder e para que se não iniba, de outro, a aplicação ordinária do postulado do juiz natural.
É preciso enfatizar, neste ponto, que a vigente Constituição do Brasil - ao pluralizar, de modo excessivo, as hipóteses de prerrogativa de foro - incidiu em verdadeiro paradoxo institucional, pois, pretendendo ser republicana, mostrou-se estranhamente aristocrática.
Essa paradoxal visão aristocrática e seletiva de poder, no entanto, não podia justificar a censurável distorção em que incidiu o Congresso Nacional, no exercício de atividade meramente ordinária, quando editou norma de caráter legal que se pautou, unicamente, em sua formulação, pela perspectiva do Príncipe ("ex parte principis") e que se afastou, por isso mesmo, do postulado republicano da igualdade.
Ninguém ignora que a Carta Política do Império do Brasil, de 1824, consagrou apenas cinco (5) hipóteses de prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal de Justiça, que era o órgão de cúpula do Poder Judiciário do regime monárquico (art. 164, II).
A Constituição promulgada em 1988, no entanto, não foi capaz de igual parcimônia, ao ampliar, para quase 20 (vinte), as hipóteses de privilégio de foro, além de conferir autorização aos Estados-membros para incluir, nas Cartas estaduais, outras novas hipóteses de prerrogativa de foro perante os respectivos Tribunais de Justiça, com ressalva, apenas, para os casos de competência do Júri.
É certo que a prerrogativa de foro, tal como prevista na Constituição da República, acha-se estabelecida "ratione muneris", destinada a compor o estatuto jurídico de determinados agentes públicos, enquanto ostentarem essa particular condição funcional, porque vocacionada, sempre nas hipóteses definidas em sede constitucional, a proteger aquele que está a exercer ou a titularizar determinada condição funcional.
Não se cuida - e esta Corte já se manifestou nesse sentido - de um privilégio de caráter pessoal, mas, sim, de uma prerrogativa de ordem estritamente funcional, que, prevista em sede constitucional, destina-se a proteger - enquanto derrogação extraordinária dos postulados da igualdade e do juiz natural - aquele que se acha no desempenho de determinado ofício público.
Na verdade, o que deve induzir o reconhecimento da competência originária do Supremo Tribunal Federal (e das demais Cortes judiciárias) deve ser, unicamente, a atualidade do exercício do mandato ou da titularidade de determinadas funções públicas cujo desempenho justifique a prerrogativa de foro. Nada deve conduzir à preservação dessa competência originária, ainda que mediante invocação da "perpetuatio jurisdictionis", quando cessado o desempenho funcional do cargo ou do mandato cuja titularidade legitimava a aplicação, sempre excepcional, da regra constitucional concernente à prerrogativa de foro.
Por isso mesmo, e considerando que o princípio republicano já se encontra por demais mitigado no atual texto constitucional, entendo que não deva ele sofrer, uma vez mais, nova derrogação, notadamente por via legislativa meramente ordinária (Lei nº 10.628/2002), destinada a conferir, a ex-ocupantes de cargos públicos ou de mandatos eletivos, o foro por prerrogativa de função, que traduz, em minha opinião - não obstante sua larga utilização pela Carta da República - situação excepcional que só deve ser permitida nas hipóteses estritamente autorizadas pela própria Constituição Federal.
Revelam-se particularmente expressivas, sob a perspectiva que venho de referir, as observações que o eminente Ministro CARLOS VELLOSO fez quando se manifestou pelo cancelamento da Súmula 394/STF (RTJ 179/946-947):
"O foro por prerrogativa de função constitui, na verdade, um privilégio, que não se coaduna com os princípios republicanos e democráticos. O princípio da igualdade é inerente à República e ao regime democrático. Não é à toa, aliás, que o princípio isonômico é acentuado, mais de uma vez, na Constituição: assim, por exemplo, art. 5º, caput, art. 5º, I, art. 150, II, art. 151, II, art. 7º, XXX, XXXI, XXXII, XXXIV, art. 3º, III, art. 43, art. 170, VII.
O foro por prerrogativa de função é tributo que pagamos pelo fato de termos sido Império. Os norte- -americanos, que sempre foram república, não conhecem esse tipo de foro. O fato de o art. III, Seção 2, da Constituição de Filadélfia, estabelecer que, nas questões relativas a embaixadores e membros das representações estrangeiras, a Suprema Corte exercerá jurisdição privativa, não infirma a tese, tendo em vista o caráter especial dos exercentes de tais funções. Os cidadãos devem ser julgados pelo juiz natural de todos eles. Assim, as normas que estabelecem foro privilegiado, que é o nome correto do foro por prerrogativa de função, devem ser interpretadas em sentido estrito, sem possibilidade de ampliação, certo que a Súmula 394 amplia, consideravelmente, esse foro, quando não mais existente a sua razão, segundo os que o imaginaram, porque já não ocorrente o exercício do cargo, função ou mandato, pelo simples fato de que esse exercício já fora extinto.
Registre-se, aliás, que essa interpretação ampliativa, constante da Súmula 394, foi realizada, bem salientou o Sr. Ministro Relator, quando eram raros os casos de competência do Supremo Tribunal por prerrogativa de função. Na época, os parlamentares, que constituem, hoje, extensa clientela do Supremo Tribunal, eram julgados pelo juiz natural dos cidadãos, o Juiz Criminal de 1º grau. Convém anotar que desde a primeira Constituição republicana, a de 1891, até a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, promulgada esta última pela Junta Militar, os Deputados e Senadores eram julgados pelo Juiz Criminal de 1º grau. É dizer, o privilégio de foro concedido aos Deputados e Senadores o foi pela Emenda Constitucional nº 1, de 1969." (grifei)

Nem se diga, finalmente, que as sanções imponíveis em sede de ação civil por improbidade administrativa revestem-se de natureza penal, em ordem a justificar, com tal qualificação, o reconhecimento, na espécie, da legitimidade constitucional do diploma legislativo em referência (Lei nº 10.628/2002).
Não se questiona que os atos de improbidade administrativa podem induzir a responsabilidade penal de seu autor, assumindo, na diversidade dos tipos penais existentes, múltiplas formas de conduta delituosa.
Ocorre, no entanto, que os atos de improbidade administrativa também se mostram impregnados de qualificação jurídica diversa daquela de caráter penal, aptos, por isso mesmo, a viabilizar, no contexto da pertinente ação civil pública, a imposição das sanções previstas, expressamente, no art. 37, § 4º da Constituição Federal, que assim dispõe:

"Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível." (grifei)

Vê-se, da simples leitura do preceito constitucional em questão, que este distingue, de maneira muito clara, entre as sanções de índole civil e político-administrativa, de um lado, e aquelas de natureza criminal, de outro.
Daí a correta advertência formulada por ALEXANDRE DE MORAES ("Constituição do Brasil Interpretada", p. 2.648, 2ª ed., 2003, Atlas):

"A natureza civil dos atos de improbidade administrativa decorre da redação constitucional, que é bastante clara ao consagrar a independência da responsabilidade civil por ato de improbidade administrativa e a possível responsabilidade penal, derivadas da mesma conduta, ao utilizar a fórmula 'sem prejuízo da ação penal cabível'.
Portanto, o agente público, por exemplo, que, utilizando-se de seu cargo, apropria-se ilicitamente de dinheiro público responderá, nos termos do artigo 9º da Lei nº 8.429/92, por ato de improbidade, sem prejuízo da responsabilidade penal por crime contra a administração, prevista no Código Penal ou na legislação penal especial." (grifei)

As razões que venho de expor justificam, a meu juízo, o reconhecimento de que se revela inconstitucional a Lei nº 10.628/2002, que acresceu, ao art. 84 do CPP, os respectivos §§ 1º e 2º.
Essa declaração de inconstitucionalidade, no entanto, como sabemos, está sujeita ao postulado da reserva de plenário (CF, art. 97), cuja incidência inibe a atuação monocrática do Relator nos órgãos judiciários de deliberação colegiada, consoante reconhece o magistério da doutrina (LÚCIO BITTENCOURT, "O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade das Leis", p. 43/46, 2ª ed., 1968, Forense; MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, "Comentários à Constituição Brasileira de 1988", vol. 2/209, 1992, Saraiva; MARCELO CAETANO, "Direito Constitucional", vol. II/417, item n. 140, 1978, Forense; ALEXANDRE DE MORAES, "Constituição do Brasil Interpretada", p. 1.347/1.349, item n. 97.2, 2ª ed., 2003, Atlas; UADI LAMMÊGO BULOS, "Constituição Federal Anotada", p. 939/943, 5ª ed., 2003, Saraiva, v.g.) e adverte a jurisprudência dos Tribunais em geral, notadamente a deste Supremo Tribunal Federal (RF 193/131 - RTJ 95/859 - RTJ 96/1188 - RTJ 98/877 - RTJ 99/273 - RT 508/217 - RDA 145/140):

"Nenhum órgão fracionário de qualquer Tribunal dispõe de competência, no sistema jurídico brasileiro, para declarar a inconstitucionalidade de leis ou atos emanados do Poder Público. Essa magna prerrogativa jurisdicional foi atribuída, em grau de absoluta exclusividade, ao Plenário dos Tribunais ou, onde houver, ao respectivo Órgão Especial. Essa extraordinária competência dos Tribunais é regida pelo princípio da reserva de Plenário inscrito no artigo 97 da Constituição da República.
Suscitada a questão prejudicial de constitucionalidade perante órgão fracionário de Tribunal (Câmaras, Grupos, Turmas ou Seções), a este competirá, em acolhendo a alegação, submeter a controvérsia jurídica ao Tribunal Pleno."
(RTJ 150/223-224, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Desse modo, e tendo em consideração a alta relevância da questão referida neste despacho, determino a audiência do eminente Procurador-Geral da República, para que se pronuncie sobre a constitucionalidade, ou não, da Lei nº 10.628/2002.

Publique-se.

Brasília, 18 de novembro de 2004.

Ministro CELSO DE MELLO
Relator


* decisão pendente de publicação

Prisão Civil: Alienação Fiduciária e Depósito Substitutivo (Transcrições)

HC 84873/PR*

RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA - DEPÓSITO SUBSTITUTIVO - APRESENTAÇÃO DO BEM - PRISÃO DO DEPOSITÁRIO DO BEM ALIENADO PELA FINANCEIRA - RELEVÂNCIA DAS CAUSAS DE PEDIR DO HABEAS - SALVO-CONDUTO - DEFERIMENTO LIMINAR.

1. Colho da longa e bem fundamentada inicial de folha 2 a 17 que o paciente veio a acompanhar busca e apreensão, atuando como preposto da financeira. O ato de constrição decorreu de inadimplemento do devedor, ante o que pactuado no financiamento para compra de bem móvel. Verificou-se purgação da mora que, segundo o sustentado, mostrava-se insuficiente. O Juízo determinou, prevendo a cominação de prisão, o depósito do bem ou do valor de R$ 10.000,00. A financeira procedeu ao depósito da quantia alcançada com a venda do móvel - R$ 5.200,00. Assevera-se a participação secundária do paciente, que apenas teria assinado o auto de busca e apreensão, sob o ângulo da mera formalidade. A responsável pela venda do móvel seria a própria financeira - a autora da ação de busca e apreensão. Afirma-se ser o paciente profissional autônomo e prestador de serviços à financeira, inexistindo vínculo empregatício ou representação desta última. Implementada a busca e apreensão, a responsabilidade direta recairia sobre a financeira. Daí sustentar-se a inviabilidade de o paciente arcar com os ônus do descumprimento de certo ato judicial. Em passo seguinte, procura-se demonstrar que a venda do veículo se fez conforme o disposto no Decreto-Lei nº 911/69 e no Código Civil, em face do inadimplemento do devedor. A venda do bem visara a estancar o próprio crescimento da dívida. Retomada a posse, ao detentor reservar-se-iam os direitos próprios ao uso, ao gozo e à disposição. Menciona-se a melhor doutrina - Washington de Barros Monteiro -, analisando-se o teor do artigo 3º do Decreto-Lei nº 911/69. Com o depósito do valor obtido, afastadas ficariam as conseqüências referentes à condição de depositário, atendendo-se à norma do artigo 652 do Código Civil, ou seja, logrando-se o ressarcimento de prejuízos. Em momento algum, dera-se a desídia ou a resistência do paciente em adimplir a determinação judicial, mas a comprovação da impossibilidade de devolução do bem, substituída pela consignação do valor de venda. Citam-se precedentes sobre a matéria para, a seguir, aludir-se ao Pacto de São José da Costa Rica, isto é, à limitação da prisão por dívida ao descumprimento inescusável de obrigação alimentícia. O Pacto, ao encerrar balizas próprias à seara dos direitos humanos, teria sido recepcionado com envergadura maior - constitucional - pela Carta da República, conforme o artigo 5º, § 2º, dela constante. De qualquer forma, inserido no ordenamento nacional via Decreto Legislativo nº 226, de 12 de dezembro de 1991, suplantara a legislação ordinária e, portanto, o Decreto-Lei nº 911/69. Argúi-se a impossibilidade de se elastecer os casos relativos à prisão civil contemplados no Diploma Maior, refutando-se a configuração de verdadeiro depósito, em vista do objeto do contrato firmado. Requer-se a concessão de medida acauteladora que implique o salvo-conduto em favor do paciente, declarando-se, alfim, a insubsistência do ato judicial a envolver a prisão. À inicial juntaram-se os documentos de folha 18 a 23, o último a revelar o desprovimento de recurso ordinário constitucional interposto contra acórdão do Tribunal de Alçada do Estado do Paraná que resultou no indeferimento de ordem.

Em 23 de setembro, despachei, assentando a precariedade dos elementos indispensáveis ao exame do pedido de concessão de medida acauteladora. Solicitadas informações ao Superior Tribunal de Justiça, veio ao processo o ofício de folha 34, subscrito pelo ministro Antônio de Pádua Ribeiro, relator do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 16.369/PR, encaminhando o acórdão confirmado pela citada Corte. O processo voltou-me para exame ao fim do dia judiciário de 8 de novembro de 2004 - folha 44.

2. Ao que tudo indica, não se conta ainda com o acórdão formalizado pelo Superior Tribunal de Justiça. Entrementes, é certo que o que decidido pelo Tribunal de Alçada do Estado do Paraná no Habeas Corpus nº 249.322-3 restou corroborado, diante do desprovimento do recurso ordinário constitucional. Assim, para efeito de atuação no campo precário e efêmero que é o da liminar, é dado contar com elementos viabilizadores do necessário exame do caso.

A relevância do que contido na inicial salta aos olhos, quer ante o desdobramento dos fatos alusivos ao contrato de financiamento, chegando-se mesmo ao depósito do valor da venda do bem, quer em face do que apontado acerca da prisão por dívida civil, a contrariar, em princípio, a ordem natural das coisas. O Brasil veio a dar ênfase aos textos dos tratados internacionais, especialmente àqueles voltados à proteção dos direitos humanos - artigos 1º, 4º, 5º, § 2º, todos da Constituição Federal de 1988. Pois bem, o Pacto de São José da Costa Rica - a ser tomado, ao menos, no mesmo patamar da legislação ordinária - estabelece a impossibilidade de se ter a prisão por dívida, a prisão que foi comum no Império Romano, quando o próprio devedor se transformava, em última análise, em coisa, a ser entregue, até mesmo, ao credor. A exceção, à luz dos valores em questão, ficou restrita à prisão por inadimplemento de obrigação alimentícia e se ocorrido sem justificativa plausível, aceitável. Ora, se assim é, a legislação ordinária, dispondo de maneira diversa, ficou revogada, inclusive o famigerado Decreto-Lei nº 911/69. Acresce que não se pode, mediante ficção jurídica, via o sutil jogo de palavras, com modificação da natureza das coisas, chegar ao aditamento do texto constitucional. Conforme votos proferidos, o citado decreto-lei, visando à proteção de certos credores, a busca de parâmetros atinentes ao recebimento de quantias financiadas, acabou por dar à noção técnico-jurídica de depositário contornos alargados, incluindo na previsão constitucional - repita-se, por ficção jurídica - figura diversa - a do devedor que fez financiamento para adquirir certo bem, não sendo objeto do contrato a devolução deste último, mas o pagamento e, portanto, a definitividade da aquisição. Sem adentrar os aspectos ligados à participação do paciente, no que, de imediato, o bem passou à financeira e esta o alienou, empolgando o Decreto-Lei nº 911/69, é certo, impõe-se implementar medida acauteladora que afaste a precipitação de fatos, o risco de o paciente, nesse contexto, ser privado da liberdade de ir e vir.

3. Acolho o pedido de concessão de medida acauteladora e o faço para suspender a cominação relativa à liberdade de ir e vir do paciente e que foi originariamente formalizada pela 1ª Vara Cível da Comarca de Cascavel no Processo nº 598/2002, implicando a providência verdadeiro salvo-conduto, tendo em conta o mencionado ato de constrição.

4. Solicite-se ao Superior Tribunal de Justiça o encaminhamento, a esta Corte, do acórdão concernente ao julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 16.369/PR, realizado em 14 de setembro de 2004. No caso de ainda não haver sido elaborada a peça, requisitem-se as notas taquigráficas do julgamento.

5. Juntado ao processo qualquer dos elementos referidos, colha-se o parecer da Procuradoria Geral da República.

6. Publique-se.

Brasília, 11 de novembro de 2004.

Ministro MARCO AURÉLIO
Relator


* decisão publicada no DJU de 23.11.2004.


Assessora responsável pelo Informativo
Anna Daniela de A. M. dos Santos e Silva
informativo@stf.jus.br



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