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terça-feira, 4 de novembro de 2008

Informativo STF 354 - Supremo Tribunal Federal

Informativo STF


Brasília, 28 de junho a 2 de julho de 2004- Nº354.

Este Informativo, elaborado a partir de notas tomadas nas sessões de julgamento das Turmas e do Plenário, contém resumos não-oficiais de decisões proferidas pelo Tribunal. A fidelidade de tais resumos ao conteúdo efetivo das decisões, embora seja uma das metas perseguidas neste trabalho, somente poderá ser aferida após a sua publicação no Diário da Justiça.

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SUMÁRIO


Plenário
Ação Penal Privada: Princípio da Indivisibilidade

Receptação e Co-autoria em Falso Testemunho
1º Turma
Limite de Cognição em HC - 4

Código Penal Militar e Liberdade Provisória: Recepção
Prerrogativa de Foro de Prefeito e Atos Administrativos do Agente
2º Turma
Conversão de Pena Restritiva de Direitos
ICMS na Importação e Destinatário da Mercadoria - 2
Imposto de Renda Trimestral: Constitucionalidade
Prescrição da Pretensão Executória e Saldo da Pena a Cumprir
IPTU e Progressividade
Transcrições
Princípio da Insignificância - Matéria Penal - Aplicabilidade (HC 84412 MC/SP)
Anencefalia e Aborto (ADPF 54 MC/DF*)
PLENÁRIO


Ação Penal Privada: Princípio da Indivisibilidade

O Tribunal rejeitou queixa-crime formulada contra atual deputado federal e outros, à época funcionários da prefeitura do Rio de Janeiro, pela suposta prática dos crimes de esbulho possessório (CP, art. 161, §1º, II: "Suprimir ou deslocar tapume, marco, ou qualquer outro sinal indicativo de linha divisória, para apropriar-se, no todo ou em parte, de coisa imóvel alheia:...§ 1º - Na mesma pena incorre quem:...II - invade, com violência a pessoa ou grave ameaça, ou mediante concurso de mais de duas pessoas, terreno ou edifício alheio, para o fim de esbulho possessório.") e de dano (CP, art. 163, parágrafo único, IV: "Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia:...Parágrafo único - Se o crime é cometido...IV - por motivo egoístico ou com prejuízo considerável para a vítima:..."), que seriam decorrentes de invasão de imóvel de propriedade da querelante e de demolição do edifício ali existente. Entendeu-se que a ausência de propositura da ação contra o prefeito do Município do Rio de Janeiro, do qual emanara a autorização para a demolição, implicaria em renúncia extensível aos querelados, em razão do princípio da indivisibilidade da ação penal privada.
Inq 2020/RJ, rel. Min. Ellen Gracie, 1º.7.2004.(Inq-2020)

Receptação e Co-autoria em Falso Testemunho

O Tribunal julgou inquérito em que se pretendia o recebimento de denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal contra deputado federal e outras três pessoas pela suposta prática do crime de receptação (CP, art. 180: "Adquirir, receber ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro de boa fé a adquira, receba ou oculte:..."). O parlamentar fora denunciado também pela suposta prática do delito de coação no curso do processo (CP, art. 344: "Usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral:..."), por ter orientado testemunha a prestar declarações inverídicas. Um dos outros três acusados, primo do parlamentar, fora denunciado pela suposta prática de falso testemunho (CP, art. 342: "Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade, como testemunha, perito tradutor ou intérprete em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral:..."). O inquérito policial, instaurado pela Polícia Civil de Colinas/MA, apurara incêndio de uma carreta roubada no Município de Monte Alegre de Minas/MG que, anteriormente, estivera na posse do referido parlamentar, sendo utilizada em sua fazenda. Em relação ao deputado, rejeitou-se a denúncia quanto ao crime de coação no curso do processo, em razão da inexistência de indícios do emprego de ameaça física ou moral, exigidos pelo tipo penal e, por maioria, recebeu-se a denúncia relativamente aos crimes de receptação, por se entender estar demonstrado que o acusado tinha ciência da origem ilícita do veículo, e de falso testemunho, pelo fato capitulado como coação no curso do processo. Vencidos, em parte, os Ministros Carlos Britto, relator, e Marco Aurélio, que rejeitavam a denúncia quanto ao crime de falso testemunho por considerarem que a retratação da testemunha implicaria no desaparecimento do objeto jurídico tutelado, o que alcançaria o co-autor. Quanto ao primo do parlamentar, acusado de receptação e falso testemunho, recebeu-se a denúncia em relação apenas ao primeiro crime, também em face dos indícios do conhecimento pelo acusado da origem ilícita do veículo, e rejeitou-se a denúncia quanto ao segundo, porquanto não teria havido a descrição concreta do testemunho prestado, não sendo possível saber em que depoimento o acusado teria faltado com a verdade, não estando presentes, outrossim, elementos que pudessem caracterizar o relevo do depoimento e suas implicações diante do processo em que prestado. Em relação aos demais acusados, o Tribunal rejeitou a denúncia em sua totalidade por inexistência de indícios mínimos de autoria.
Inq 1667/MA, rel. Min. Carlos Britto, 1º.7.2004.(Inq-1667)

PRIMEIRA TURMA


Limite de Cognição em HC - 4

A Turma concluiu julgamento de habeas corpus, substitutivo de recurso ordinário, impetrado contra acórdão do STJ que denegara igual medida, sob fundamento de inviabilidade de reexame minucioso da prova na sede eleita. Tratava-se, na espécie, de condenado por corrupção ativa, em ação penal originária ajuizada perante o TJ/RJ, que pretendia a anulação da decisão condenatória, sob as alegações de ausência de vinculação entre ele e os fatos que ensejaram a sua condenação e de impossibilidade de condenação do corruptor diante da absolvição do corrompido - v. Informativos 349, 352 e 353. Conheceu-se do pedido, por se entender que o STJ teria analisado o mérito da impetração e, por maioria, denegou-se a ordem por estas razões: 1) a existência de prova suficiente para a condenação do paciente pela prática da participação em crime de corrupção ativa; 2) o fato de ter o paciente gerido um fundo destinado à distribuição de propina que era efetivada por intermediários; 3) a existência de condenação de diversas pessoas por corrupção passiva, tanto nos autos principais quanto nos autos em que o paciente figurou como réu, em razão de terem recebido propina proveniente do fundo gerido pelo paciente, o que afastaria a tese de ofensa ao princípio da bilateralidade. Vencido, em parte, o Ministro Cezar Peluso, que concedia o habeas corpus, de ofício, para devolver o julgamento da impetração ao Superior Tribunal de Justiça para exame do mérito de dois fundamentos do habeas corpus impetrado perante aquela Corte.
HC 83658/RJ, rel. Min. Joaquim Barbosa, 29.6.2004.(HC-83658)

Código Penal Militar e Liberdade Provisória: Recepção

A Turma indeferiu pedido de habeas corpus impetrado em favor de militar acusado da prática de crime de deserção (CPM, art. 187: "Ausentar-se o militar, sem licença, da unidade em que serve, ou do lugar em que deve permanecer, por mais de oito dias..."), no qual se pretendia afastar acórdão do STM - Superior Tribunal Militar que, sob o fundamento de falta de amparo legal, denegara outro writ em que se pleiteava o direito do paciente desertor de não se ver preso e poder responder processo contra ele instaurado em liberdade sob a alegação de falta de justa causa ou abuso de poder em razão de se encontrar com Síndrome de Deficiência Imunológica (SIDA). Rejeitou-se a preliminar de inviabilidade do writ, suscitada pela autoridade impetrada, em face de não haver sido instada a pronunciar-se sobre a matéria constitucional apontada neste processo, tendo em vista a desnecessidade de prequestionamento na espécie. Repeliu-se a alegação da Defensoria Pública no sentido de que o CPM, no que diz respeito à vedação de liberdade provisória, não teria sido recepcionado pela CF (art. 5º, LXVI: "ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;"). Entendeu-se que o art. 5º, LXI, da CF, ao disciplinar a prisão e jungi-la ao flagrante delito ou à ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, ressalvou os casos de transgressão militar ou crime propriamente militar definidos em lei. Concluiu-se, dessa forma, ressaltando o caráter de permanência do delito de deserção, correta a aplicação da legislação especial, salientando-se que o art. 457, do CPPM, estabelece que o desertor sem estabilidade que se apresentar ou for capturado deve ser submetido à inspeção de saúde e, considerado apto para o serviço militar, será reincluído.
HC 84330/RJ, rel. Min. Marco Aurélio, 29.6.2004.(HC-84330)

Prerrogativa de Foro de Prefeito e Atos Administrativos do Agente

A Turma, em razão da pendência do julgamento da ADI 2797/DF, na qual se discute a constitucionalidade da Lei 10.628/2002, que alterou o art. 84 do Código de Processo Penal , decidiu sobrestar julgamento de recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público Federal contra decisão do TRF da 4ª Região, que entendera ser de sua competência o julgamento de ex-prefeito do Município de Londrina, acusado pela suposta prática de crime de responsabilidade (art. 1º, XIV do Decreto-Lei 201/67). O parquet alega que a referida Lei viola os arts. 1º; 2º; 5º, caput e I; 29, X c/c art. 102; 105; 108 e 109, IV, da CF/88, uma vez que tais dispositivos não admitem a manutenção do foro por prerrogativa de função após o término do munus público. O sobrestamento se deu sem prejuízo do andamento do processo no TRF, ao qual se devolverão os autos, ficando cópia no STF, tendo em vista a iminência de prescrição da pretensão punitiva. (Lei 10.628/2002: "Art. 84 - A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade. § 1º - A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública. § 2º - A ação de improbidade, de que trata a Lei nº 8429, de 02 de julho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1º.").
RE 406341/PR, rel. Min. Carlos Britto, 30.6.2004.(RE-4063414)

ICMS na Importação e Destinatário da Mercadoria - 2

A Turma concluiu julgamento de recurso extraordinário no qual se discutia a competência tributária quanto ao sujeito ativo do ICMS, na hipótese de importação de mercadoria, por estabelecimento localizado em determinado Estado, que ingressa no território nacional em outro Estado em que localizado o estabelecimento para o qual houve revenda do produto. Tratava-se, na espécie, de recurso interposto pelo Estado do Rio de Janeiro contra acórdão do tribunal de justiça local que entendera ser o Estado de Pernambuco o beneficiário do referido imposto, haja vista ser o local em que situado o estabelecimento destinatário da mercadoria importada, independentemente do desembaraço aduaneiro ter se dado no Estado recorrente. O recorrente alegava ofensa ao art. 155, §2º, IX, a, da CF, tendo em vista ser a localidade efetiva do estabelecimento destinatário da mercadoria - v. Informativo 353. A Turma negou provimento ao recurso extraordinário por entender que o sujeito ativo da relação tributária é o Estado de Pernambuco, uma vez que, em se tratando de operação iniciada no exterior, o ICMS é devido ao Estado em que está localizado o destinatário jurídico do bem, isto é, o importador. Assim, o ICMS incidente na importação de mercadoria não tem como sujeito ativo da relação jurídico-tributária o Estado onde ocorreu o desembaraço aduaneiro, mas o Estado onde situado o sujeito passivo do tributo, qual seja, aquele que promoveu juridicamente o ingresso do produto.
RE 299079/RJ, rel. Min. Carlos Britto, 30.6.2004.(RE-299079)

SEGUNDA TURMA

Conversão de Pena Restritiva de Direitos

A Turma deu parcial provimento a recurso extraordinário interposto contra acórdão do TJ/RS que convertera imediatamente pena restritiva de direitos em pena privativa de liberdade, em decorrência da notícia de prisão em flagrante do recorrente pela prática de outro delito cometido durante o cumprimento daquela. Entendeu-se que somente após a superveniência de nova condenação seria possível decidir sobre a conversão, a teor do disposto no §5º do art. 44 do CP ("Sobrevindo condenação a pena privativa de liberdade, por outro crime, o juiz da execução penal decidirá sobre a conversão, podendo deixar de aplicá-la se for possível ao condenado cumprir a pena substitutiva anterior."). Em razão da incompatibilidade da continuidade da execução da pena de prestação de serviço, concluiu-se pela suspensão da mesma e a aplicação, relativamente à prescrição, do disposto no parágrafo único do art. 116 do CP ("Depois de passada em julgado a sentença condenatória, a prescrição não corre durante o tempo em que o condenado está preso por outro motivo.").
RE 412514/RS, rel. Min. Carlos Velloso, 29.6.2004.(RE-412514)

Imposto de Renda Trimestral: Constitucionalidade

A Turma deu provimento a recurso extraordinário interposto contra acórdão do TRF da 5ª Região para declarar a constitucionalidade do art. 3º, do Decreto-Lei 2.396/87, e suas modificações pelo Decreto-Lei 2.419/88, que dispuseram sobre a cobrança trimestral do imposto de renda de contribuintes que tenham recebido de mais de uma fonte pagadora. O aresto recorrido, com base nos princípios da legalidade, da anterioridade e da indelegabilidade, inscritos na CF/69, entendera que a regra do mencionado artigo delegara indevidamente ao Ministro da Fazenda competência para fixar alíquota e base de cálculo do imposto de renda, bem como indevida a cobrança trimestral do tributo. Consideraram-se inexistentes a referida delegação e a alegada ofensa ao princípio da reserva legal, uma vez que o item 5º do art. 3º do Decreto-Lei 2.396/87 preconiza expressamente que o cálculo do imposto será feito com base na tabela constante do art. 6º do mencionado diploma legal, estando, por este, devidamente delineados os elementos constitutivos da exação. Esclareceu-se que a locução "baixadas pelo Ministro da Fazenda" refere-se apenas à palavra "instruções", cuja edição não era vedada pela Carta pretérita. Asseverou-se que a Instrução Normativa tida pelo acórdão recorrido como a disciplinar indevidamente o imposto de renda (IN 62/88) nada instituiu em desfavor do contribuinte, revelando-se exclusivamente expletiva dos tipos de rendimentos que não estariam enquadrados na exigência do recolhimento trimestral, reproduzindo fielmente as faixas de alíquotas já estabelecidas pelo Decreto-Lei 2.396/87. Entendeu-se improcedente a assertiva de que a sistemática de recolhimento do imposto de renda - na fonte, mês a mês ou de forma trimestral - consubstanciaria irregular instituição de empréstimo compulsório, porquanto, ao fim de cada ano, o contribuinte realizava o ajuste pertinente, apurando a existência de imposto a restituir ou pagar, e avaliando se o valor recolhido antecipadamente fora inferior ou superior àquele efetivamente devido. Ressaltou-se a constitucionalidade da exigência do recolhimento fracionado (sistema de bases correntes), conforme se concretizem as hipóteses de incidência do imposto durante o ano, desde que mantida a oportunidade de verificação final da imposição tributária (ajuste anual). Afastou-se a apontada violação ao princípio da anterioridade, haja vista que o Decreto-Lei 2.396/87 foi publicado no DOU em 22.12.87 para ser aplicado no ano de 1988, ou seja, somente no exercício seguinte ao da sua veiculação pela imprensa oficial, em total conformidade com a norma do art. 153, §29, da CF/69. Salientou-se que o art. 2º do Decreto-Lei 2.419/88 efetuou a correção monetária dos valores das faixas de rendimentos constantes da tabela do art. 6º do Decreto-Lei 2.396/87, o que não representou majoração da alíquota ou da base de cálculo do tributo, mas beneficio ao contribuinte em razão de adotar valores maiores para cada faixa de rendimento e, conseqüentemente, ampliação do rol dos isentos e redução do valor a ser pago. Concluiu-se que a modificação realizada pelos arts. 4º e 5º do Decreto-Lei 2.419/88 nos itens 4º e 5º do art. 3º do Decreto-Lei 2.396/87 apenas revelou melhora na técnica da redação primitiva, bem como o elastério da faixa de contribuintes que, apesar de possuírem duas fontes de rendimentos, estavam dispensados do recolhimento trimestral.
RE 140671/CE, rel. Min. Ellen Gracie, 29.6.2004.(RE-140671)

Prescrição da Pretensão Executória e Saldo da Pena a Cumprir

A Turma negou provimento a recurso ordinário em habeas corpus no qual se pretendia que a prescrição da pretensão executória fosse calculada com base no saldo da pena a cumprir, descontados os dias em que o réu estivera preso cautelarmente. No caso, o recorrente fora preso em flagrante delito e condenado à pena privativa de liberdade, sendo esta substituída por restritiva de direitos e, posteriormente, convertida em pena privativa de liberdade em virtude do não cumprimento da pena imposta. Considerou-se que a pretensão do recorrente implicaria em alteração da norma prevista no art. 110, caput, do CP ("A prescrição depois de transitar em julgado a sentença condenatória regula-se pela pena aplicada e verifica-se nos prazos fixados no artigo anterior, os quais se aumentam de um terço, se o condenado é reincidente"). Concluiu-se que a norma prevista no art. 113 do CP ("No caso de evadir-se o condenado ou de revogar-se o livramento condicional, a prescrição é regulada pelo tempo que resta da pena") possui aplicação restrita às hipóteses nela previstas e que, na espécie, o recorrente desaparecera antes do cumprimento da pena. Ressaltou-se, ainda, que a detração penal somente é feita quando do cumprimento da pena e esta, no caso, sequer fora iniciada. Precedente citado: HC 69865/PR (DJU de 27.11.93).
RHC 84177/SP, rel. Min. Ellen Gracie, 29.6.2004.(RHC-84177)

IPTU e Progressividade

A Turma aplicou o entendimento firmado no Enunciado 668 da Súmula do STF ("É inconstitucional a Lei municipal que tenha estabelecido, antes da Emenda Constitucional 29/2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo se destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana") e conheceu em parte de recurso extraordinário para, nessa parte, dar-lhe provimento a fim de afastar a cobrança de alíquotas progressivas do IPTU. Tratava-se, na espécie, de recurso interposto por contribuintes contra acórdão do Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul que entendera: a) haver sido aprovada por lei específica a majoração da base de cálculo do IPTU; b) ser constitucional a cobrança do IPTU com a adoção de alíquotas progressivas; e c) inocorrente a ofensa ao princípio isonômico com a isenção parcial ou redução da base de cálculo dos imóveis de uso residencial. Afastou-se o exame da alegação dos recorrentes no sentido de que o Município de Porto Alegre aumentara o tributo sem a necessária edição de lei, ao modificar, mediante decreto, planta genérica de valores do metro quadrado, para efeitos de cálculo do IPTU, uma vez que o Tribunal a quo concluíra que o imposto fora majorado por intermédio de lei complementar editada para esse fim, respeitando, pois, o princípio da legalidade. Assim, tal premissa não poderia ser desconstituída em RE, em face do óbice do Enunciado 280 da Súmula do STF. Ressaltou-se, ademais, que a assertiva de ausência de interesse dos recorrentes na ilegitimidade da norma, no ponto em que estabelecera diferenças nas bases de cálculo do tributo cobrado sobre imóveis residenciais e não-residenciais, a ensejar suposta violação ao princípio da isonomia, deixou de ser impugnada, incidindo o Enunciado 283 da Súmula do STF.
RE 212558/RS, rel. Min. Ellen Gracie, 29.6.2004.(RE-212558)
Sessões  Ordinárias  Extraordinárias  Julgamentos
Pleno  30.6.2004 1º.7.2004 3
1ª Turma 29.6.2004  30.6.2004  417
2ª Turma 29.6.2004 -- 198


T R A N S C R I Ç Õ E S

Com a finalidade de proporcionar aos leitores do INFORMATIVO STF uma compreensão mais aprofundada do pensamento do Tribunal, divulgamos neste espaço trechos de decisões que tenham despertado ou possam despertar de modo especial o interesse da comunidade jurídica.
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Princípio da Insignificância - Matéria Penal - Aplicabilidade (Transcrições)

HC 84412 MC/SP*

EMENTA: PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL. CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL, EM SEU ASPECTO MATERIAL. DELITO DE FURTO. CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM DESEMPREGADO, COM APENAS 19 ANOS DE IDADE. "RES FURTIVA" NO VALOR DE R$ 25,00 (EQUIVALENTE A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR). DOUTRINA. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF. CUMULATIVA OCORRÊNCIA, NA ESPÉCIE, DOS REQUISITOS PERTINENTES À PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO E AO "PERICULUM IN MORA". MEDIDA LIMINAR CONCEDIDA.
DECISÃO: Trata-se de "habeas corpus", com pedido de medida liminar, impetrado contra acórdão emanado do E. Superior Tribunal de Justiça, que, em sede de idêntico processo, por votação majoritária, denegou o "writ" ao ora paciente, em decisão assim ementada (fls. 37):

"PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.
I - No caso de furto, para efeito de aplicação do princípio da insignificância, é imprescindível a distinção entre ínfimo (ninharia) e pequeno valor. Este, ex vi legis, implica eventualmente em furto privilegiado; aquele, na atipia conglobante (dada a mínima gravidade).
II - A interpretação deve considerar o bem jurídico tutelado e o tipo de injusto.
Writ denegado." (grifei)

Os presentes autos registram que o ora paciente, que tinha 19 (dezenove) anos de idade à época do fato, subtraiu, para si, fita de vídeo-game, no valor de R$ 25,00 (vinte e cinco reais), fazendo-o, aparentemente, com a intenção de devolvê-la, consoante relato constante de depoimento testemunhal (fls. 39).

Consta, ainda, segundo essa mesma testemunha, que a vítima "quis retirar a queixa" (fls. 22), o que lhe teria sido negado em face do caráter indisponível da ação penal.

Sustenta-se, nesta ação de "habeas corpus", que é "(...) desproporcional uma pena de 08 meses de reclusão, quando se verifica que o bem objeto de subtração possui o valor de R$ 25,00 (vinte e cinco reais) e foi recuperado, ausente, assim, qualquer prejuízo para a vítima" (fls. 04 - grifei).

O ora impetrante - após afirmar que "Não se pode ignorar que o Direito Penal somente deve incidir naquelas situações em que existir uma real violação ao bem jurídico protegido" (fls. 03) e que, "Em outras palavras, deve haver uma agressão que justifique a incidência da pesada sanção de natureza penal" (fls. 03) -, postula a concessão de medida liminar, para fazer "cessar a coação ilegal, determinando-se a paralisação do feito originário - Processo nº 238/2000, 1ª Vara Criminal de Barretos - (...), até o julgamento do presente 'writ'" (fls. 14 - grifei).

Passo, em conseqüência, a apreciar o pedido de medida cautelar deduzido na presente sede processual.

O exame da presente causa propõe, desde logo, uma indagação: revela-se aplicável, ou não, o princípio da insignificância, quando se tratar de delito de furto que teve por objeto bem avaliado em apenas R$ 25,00 (vinte e cinco reais)?

Essa indagação, formulada em função da própria "ratio" subjacente ao princípio da insignificância, assume indiscutível relevo de caráter jurídico, pelo fato de a "res furtiva" equivaler, à época do delito, a 18% do valor do salário mínimo então vigente (janeiro/2000), correspondendo, atualmente, a 9,61% do novo salário mínimo em vigor em nosso País.

Como se sabe, o princípio da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material, consoante assinala expressivo magistério doutrinário expendido na análise do tema em referência (FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, "Princípios Básicos de Direito Penal", p. 133/134, item n. 131, 5ª ed., 2002, Saraiva; CEZAR ROBERTO BITENCOURT, "Código Penal Comentado", p. 6, item n. 9, 2002, Saraiva; DAMÁSIO E. DE JESUS, "Direito Penal - Parte Geral", vol. 1/10, item n. 11, "h", 26ª ed., 2003, Saraiva; MAURÍCIO ANTONIO RIBEIRO LOPES, "Princípio da Insignificância no Direito Penal", p. 113/118, item n. 8.2, 2ª ed., 2000, RT, v.g.).

O princípio da insignificância - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público em matéria penal.

Isso significa, pois, que o sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificarão quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade.

Revela-se expressivo, a propósito do tema, o magistério de EDILSON MOUGENOT BONFIM e de FERNANDO CAPEZ ("Direito Penal - Parte Geral", p. 121/122, item n. 2.1, 2004, Saraiva):

"Na verdade, o princípio da bagatela ou da insignificância (...) não tem previsão legal no direito brasileiro (...), sendo considerado, contudo, princípio auxiliar de determinação da tipicidade, sob a ótica da objetividade jurídica. Funda-se no brocardo civil minimis non curat praetor e na conveniência da política criminal. Se a finalidade do tipo penal é tutelar um bem jurídico quando a lesão, de tão insignificante, torna-se imperceptível, não será possível proceder a seu enquadramento típico, por absoluta falta de correspondência entre o fato narrado na lei e o comportamento iníquo realizado. É que, no tipo, somente estão descritos os comportamentos capazes de ofender o interesse tutelado pela norma. Por essa razão, os danos de nenhuma monta devem ser considerados atípicos. A tipicidade penal está a reclamar ofensa de certa gravidade exercida sobre os bens jurídicos, pois nem sempre ofensa mínima a um bem ou interesse juridicamente protegido é capaz de se incluir no requerimento reclamado pela tipicidade penal, o qual exige ofensa de alguma magnitude a esse mesmo bem jurídico." (grifei)

Na realidade, e considerados, de um lado, o princípio da intervenção penal mínima do Estado (que tem por destinatário o próprio legislador) e, de outro, o postulado da insignificância (que se dirige ao magistrado, enquanto aplicador da lei penal ao caso concreto), na precisa lição do eminente Professor RENÉ ARIEL DOTTI ("Curso de Direito Penal - Parte Geral", p. 68, item n. 51, 2ª ed., 2004, Forense), cumpre reconhecer que o direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor - por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social.

A questão pertinente à aplicabilidade do princípio da insignificância - quando se evidencia que o bem jurídico tutelado sofreu "ínfima afetação" (RENÉ ARIEL DOTTI, "Curso de Direito Penal - Parte Geral", p. 68, item n. 51, 2ª ed., 2004, Forense) - assim tem sido apreciada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

"ACIDENTE DE TRÂNSITO. LESÃO CORPORAL. INEXPRESSIVIDADE DA LESÃO. PRINCIPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CRIME NÃO CONFIGURADO.
Se a lesão corporal (pequena equimose) decorrente de acidente de trânsito é de absoluta insignificância, como resulta dos elementos dos autos - e outra prova não seria possível fazer-se tempos depois -, há de impedir-se que se instaure ação penal (...)."
(RTJ 129/187, Rel. Min. ALDIR PASSARINHO - grifei)

"Uma vez verificada a insignificância jurídica do ato apontado como delituoso, impõe-se o trancamento da ação penal, por falta de justa causa."
(RTJ 178/310, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - grifei)

"HABEAS CORPUS. PENAL. MOEDA FALSA. FALSIFICAÇÃO GROSSEIRA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CONDUTA ATÍPICA. ORDEM CONCEDIDA.
.......................................................
3. A apreensão de nota falsa com valor de cinco reais, em meio a outras notas verdadeiras, nas circunstâncias fáticas da presente impetração, não cria lesão considerável ao bem jurídico tutelado, de maneira que a conduta do paciente é atípica.
4. Habeas corpus deferido, para trancar a ação penal em que o paciente figura como réu."
(HC 83.526/CE, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA - grifei)

Cumpre advertir, no entanto, que o Supremo Tribunal Federal, em tema de entorpecentes (notadamente quando se tratar do delito de tráfico de entorpecentes) - por considerar ausentes, quanto a tais infrações delituosas, os vetores capazes de descaracterizar, em seu aspecto material, a própria tipicidade penal - tem assinalado que a pequena quantidade de substância tóxica apreendida em poder do agente não afeta nem exclui o relevo jurídico-penal do comportamento transgressor do ordenamento jurídico, por entender inaplicável, em tais casos, o princípio da insignificância (RTJ 68/360 - RTJ 119/453 - RTJ 119/874 - RTJ 139/555 - RTJ 151/155-156 - RTJ 169/976 - RTJ 170/187-188 - RTJ 183/665 - RTJ 184/220).

O caso ora em exame, porém, não versa matéria de tráfico de entorpecentes, referindo-se, apenas, a simples delito de furto de um bem cujo valor é inferior a 10% do vigente salário mínimo.

As considerações ora expostas levam-me a reconhecer, por isso mesmo, que os fundamentos em que se apóia a presente impetração põem em evidência questão impregnada do maior relevo jurídico, consistente na possível caracterização, na espécie, da ausência de justa causa, eis que as circunstâncias em torno do evento delituoso - "res furtiva" no valor de R$ 25,00, equivalente, na época do fato, a 18% do salário mínimo então vigente e correspondente, hoje, a 9,61% do atual salário mínimo - parecem autorizar a aplicação, no caso, do princípio da insignificância.

Sendo assim, considerando as razões expostas, e tendo em vista que concorre, igualmente, na espécie, situação configuradora do "periculum in mora", defiro, até final julgamento da presente ação de "habeas corpus", o pedido de medida liminar ora formulado, para suspender, integralmente, a eficácia da condenação penal imposta ao ora paciente, nos autos do Processo-crime nº 238/2000 (1ª Vara Criminal da comarca de Barretos/SP - fls. 23/30), confirmada, em sede recursal, pelo E. Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo (Apelação nº 1.280.375-3 - fls. 32/35), dispensando o paciente em questão de restrições que lhe hajam sido eventualmente aplicadas pelo magistrado sentenciante.

Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da presente decisão ao órgão ora apontado como coator, ao E. Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo (fls. 32/35) e ao MM. Juiz de Direito da 1ª Vara Criminal da comarca de Barretos/SP (fls. 23/30).

2. Encaminhe-se, por igual, com urgência, cópia desta decisão ao ilustre impetrante (fls. 02), que foi indicado para patrocinar os interesses do paciente, que está desempregado, pela 7ª Subseção da OAB/Barretos - SP (fls. 21).

3. Achando-se adequadamente instruída a presente impetração, ouça-se a douta Procuradoria-Geral da República.

Publique-se.

Brasília, 29 de junho de 2004.

Ministro CELSO DE MELLO
Relator

* decisão publicada no DJU de 2.8.2004


Anencefalia e Aborto (Transcrições)

ADPF 54 MC/DF*

DECISÃO-LIMINAR

ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL - LIMINAR - ATUAÇÃO INDIVIDUAL - ARTIGOS 21, INCISOS IV E V, DO REGIMENTO INTERNO E 5º, § 1º, DA LEI Nº 9.882/99.
LIBERDADE - AUTONOMIA DA VONTADE - DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - SAÚDE - GRAVIDEZ - INTERRUPÇÃO - FETO ANENCEFÁLICO.

1. Com a inicial de folha 2 a 25, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS formalizou esta argüição de descumprimento de preceito fundamental considerada a anencefalia, a inviabilidade do feto e a antecipação terapêutica do parto. Em nota prévia, afirma serem distintas as figuras da antecipação referida e o aborto, no que este pressupõe a potencialidade de vida extra-uterina do feto. Consigna, mais, a própria legitimidade ativa a partir da norma do artigo 2º, inciso I, da Lei nº 9.882/99, segundo a qual são partes legítimas para a argüição aqueles que estão no rol do artigo 103 da Carta Política da República, alusivo à ação direta de inconstitucionalidade. No tocante à pertinência temática, mais uma vez à luz da Constituição Federal e da jurisprudência desta Corte, assevera que a si compete a defesa judicial e administrativa dos interesses individuais e coletivos dos que integram a categoria profissional dos trabalhadores na saúde, juntando à inicial o estatuto revelador dessa representatividade. Argumenta que, interpretado o arcabouço normativo com base em visão positivista pura, tem-se a possibilidade de os profissionais da saúde virem a sofrer as agruras decorrentes do enquadramento no Código Penal. Articula com o envolvimento, no caso, de preceitos fundamentais, concernentes aos princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade, em seu conceito maior, da liberdade e autonomia da vontade bem como os relacionados com a saúde. Citando a literatura médica aponta que a má-formação por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, não apresentando o feto os hemisférios cerebrais e o córtex, leva-o ou à morte intra-uterina, alcançando 65% dos casos, ou à sobrevida de, no máximo, algumas horas após o parto. A permanência de feto anômalo no útero da mãe mostrar-se-ia potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde e à vida da gestante. Consoante o sustentado, impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causa à gestante dor, angústia e frustração, resultando em violência às vertentes da dignidade humana - a física, a moral e a psicológica - e em cerceio à liberdade e autonomia da vontade, além de colocar em risco a saúde, tal como proclamada pela Organização Mundial da Saúde - o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença. Já os profissionais da medicina ficam sujeitos às normas do Código Penal - artigos 124, 126, cabeça, e 128, incisos I e II -, notando-se que, principalmente quanto às famílias de baixa renda, atua a rede pública.

Sobre a inexistência de outro meio eficaz para viabilizar a antecipação terapêutica do parto, sem incompreensões, evoca a Confederação recente acontecimento retratado no Habeas Corpus nº 84.025-6/RJ, declarado prejudicado pelo Plenário, ante o parto e a morte do feto anencefálico sete minutos após. Diz da admissibilidade da ANIS - Instituto de Biotécnica, Direitos Humanos e Gênero como amicus curiae, por aplicação analógica do artigo 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99.

Então, requer, sob o ângulo acautelador, a suspensão do andamento de processos ou dos efeitos de decisões judiciais que tenham como alvo a aplicação dos dispositivos do Código Penal, nas hipóteses de antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos, assentando-se o direito constitucional da gestante de se submeter a procedimento que leve à interrupção da gravidez e do profissional de saúde de realizá-lo, desde que atestada, por médico habilitado, a ocorrência da anomalia. O pedido final visa à declaração da inconstitucionalidade, com eficácia abrangente e efeito vinculante, da interpretação dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal - Decreto-Lei nº 2.848/40 - como impeditiva da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico, diagnosticados por médico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante de assim agir sem a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado. Sucessivamente, pleiteia a argüente, uma vez rechaçada a pertinência desta medida, seja a petição inicial recebida como reveladora de ação direta de inconstitucionalidade. Esclarece que, sob esse prisma, busca a interpretação conforme a Constituição Federal dos citados artigos do Código Penal, sem redução de texto, aduzindo não serem adequados à espécie precedentes segundo os quais não cabe o controle concentrado de constitucionalidade de norma anterior à Carta vigente.

A argüente protesta pela juntada, ao processo, de pareceres técnicos e, se conveniente, pela tomada de declarações de pessoas com experiência e autoridade na matéria. À peça, subscrita pelo advogado Luís Roberto Barroso, credenciado conforme instrumento de mandato - procuração - de folha 26, anexaram-se os documentos de folha 27 a 148.

O processo veio-me concluso para exame em 17 de junho de 2004 (folha 150). Nele lancei visto, declarando-me habilitado a votar, ante o pedido de concessão de medida acauteladora, em 21 de junho de 2004, expedida a papeleta ao Plenário em 24 imediato.

No mesmo dia, prolatei a seguinte decisão:

AÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL - INTERVENÇÃO DE TERCEIRO - REQUERIMENTO - IMPROPRIEDADE.

1. Eis as informações prestadas pela Assessoria:

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB - requer a intervenção no processo em referência, como amicus curiae, conforme preconiza o § 1º do artigo 6º da Lei 9.882/1999, e a juntada de procuração. Pede vista pelo prazo de cinco dias.

2. O pedido não se enquadra no texto legal evocado pela requerente. Seria dado versar sobre a aplicação, por analogia, da Lei nº 9.868/99, que disciplina também processo objetivo - ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade. Todavia, a admissão de terceiros não implica o reconhecimento de direito subjetivo a tanto. Fica a critério do relator, caso entenda oportuno. Eis a inteligência do artigo 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99, sob pena de tumulto processual. Tanto é assim que o ato do relator, situado no campo da prática de ofício, não é suscetível de impugnação na via recursal. 
3. Indefiro o pedido.
4. Publique-se.

A impossibilidade de exame pelo Plenário deságua na incidência dos artigos 21, incisos IV e V, do Regimento Interno e artigo 5º, § 1º, da Lei nº 9.882/99, diante do perigo de grave lesão.

2. Tenho a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS como parte legítima para a formalização do pedido, já que se enquadra na previsão do inciso I do artigo 2º da Lei nº 9.882, de 3 de novembro de 1999. Incumbe-lhe defender os membros da categoria profissional que se dedicam à área da saúde e que estariam sujeitos a constrangimentos de toda a ordem, inclusive de natureza penal.

Quanto à observação do disposto no artigo 4º, § 1º, da Lei nº 9.882/99, ou seja, a regra de que não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade, é emblemático o que ocorreu no Habeas Corpus nº 84.025-6/RJ, sob a relatoria do ministro Joaquim Barbosa. A situação pode ser assim resumida: em Juízo, gestante não logrou a autorização para abreviar o parto. A via-crúcis prosseguiu e, então, no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a relatora, desembargadora Giselda Leitão Teixeira, concedeu liminar, viabilizando a interrupção da gestação. Na oportunidade, salientou:

A vida é um bem a ser preservado a qualquer custo, mas, quando a vida se torna inviável, não é justo condenar a mãe a meses de sofrimento, de angústia, de desespero.

O Presidente da Câmara Criminal a que afeto o processo, desembargador José Murta Ribeiro, afastou do cenário jurídico tal pronunciamento. No julgamento de fundo, o Colegiado sufragou o entendimento da relatora, restabelecendo a autorização. Ajuizado habeas corpus, o Superior Tribunal de Justiça, mediante decisão da ministra Laurita Vaz, concedeu a liminar, suspendendo a autorização. O Colegiado a que integrado a relatora confirmou a óptica, assentando:

HABEAS CORPUS. PENAL. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA A PRÁTICA DE ABORTO. NASCITURO ACOMETIDO DE ANENCEFALIA. INDEFERIMENTO. APELAÇÃO.
DECISÃO LIMINAR DA RELATORA RATIFICADA PELO COLEGIADO DEFERINDO O PEDIDO. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. IDONEIDADE DO WRIT PARA A DEFESA DO NASCITURO.
1. A eventual ocorrência de abortamento fora das hipóteses previstas no Código Penal acarreta a aplicação de pena corpórea máxima, irreparável, razão pela qual não há se falar em impropriedade da via eleita, já que, como é cediço, o writ se presta justamente a defender o direito de ir e vir, o que, evidentemente, inclui o direito à preservação da vida do nascituro.
2. Mesmo tendo a instância de origem se manifestado, formalmente, apenas acerca da decisão liminar, na realidade, tendo em conta o caráter inteiramente satisfativo da decisão, sem qualquer possibilidade de retrocessão de seus efeitos, o que se tem é um exaurimento definitivo do mérito. Afinal, a sentença de morte ao nascituro, caso fosse levada a cabo, não deixaria nada mais a ser analisado por aquele ou este Tribunal.
3. A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é sabido e consabido, tutelam a vida como bem maior a ser preservado. As hipóteses em que se admite atentar contra ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva, tampouco analogia in malam partem. Há de prevalecer, nesse casos, o princípio da reserva legal.
4. O Legislador eximiu-se de incluir no rol das hipóteses autorizativas do aborto, previstas no art. 128 do Código Penal, o caso descrito nos presentes autos. O máximo que podem fazer os defensores da conduta proposta é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da Lei, que se lhe acrescente mais uma hipótese que fora excluída de forma propositada pelo Legislador.
5. Ordem concedida para reformar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, desautorizando o aborto; outrossim, pelas peculiaridades do caso, para considerar prejudicada a apelação interposta, porquanto houve, efetivamente, manifestação exaustiva e definitiva da Corte Estadual acerca do mérito por ocasião do julgamento do agravo regimental.

Daí o habeas impetrado no Supremo Tribunal Federal. Entretanto, na assentada de julgamento, em 4 de março último, confirmou-se a notícia do parto e, mais do que isso, de que a sobrevivência não ultrapassara o período de sete minutos.

Constata-se, no cenário nacional, o desencontro de entendimentos, a desinteligência de julgados, sendo que a tramitação do processo, pouco importando a data do surgimento, implica, até que se tenha decisão final - proclamação desta Corte -, espaço de tempo bem superior a nove meses, período de gestação. Assim, enquadra-se o caso na cláusula final do § 1º em análise. Qualquer outro meio para sanar a lesividade não se mostra eficaz. Tudo recomenda que, em jogo tema da maior relevância, em face da Carta da República e dos princípios evocados na inicial, haja imediato crivo do Supremo Tribunal Federal, evitando-se decisões discrepantes que somente causam perplexidade, no que, a partir de idênticos fatos e normas, veiculam enfoques diversificados. A unidade do Direito, sem mecanismo próprio à uniformização interpretativa, afigura-se simplesmente formal, gerando insegurança, o descrédito do Judiciário e, o que é pior, com angústia e sofrimento ímpares vivenciados por aqueles que esperam a prestação jurisdicional. Atendendo a petição inicial os requisitos que lhe são inerentes - artigo 3º da Lei nº 9.882/99 -, é de se dar seqüência ao processo.

Em questão está a dimensão humana que obstaculiza a possibilidade de se coisificar uma pessoa, usando-a como objeto. Conforme ressaltado na inicial, os valores em discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana. O determinismo biológico faz com que a mulher seja a portadora de uma nova vida, sobressaindo o sentimento maternal. São nove meses de acompanhamento, minuto a minuto, de avanços, predominando o amor. A alteração física, estética, é suplantada pela alegria de ter em seu interior a sublime gestação. As percepções se aguçam, elevando a sensibilidade. Este o quadro de uma gestação normal, que direciona a desfecho feliz, ao nascimento da criança. Pois bem, a natureza, entrementes, reserva surpresas, às vezes desagradáveis. Diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar. No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos. Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como razoável, sendo nenhuma a chance de afastarem-se, na sobrevida, os efeitos da deficiência. Então, manter-se a gestação resulta em impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina. Como registrado na inicial, a gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é - e ninguém ousa contestar -, trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto - que conflita com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade. A saúde, no sentido admitido pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada, envolvidos os aspectos físico, mental e social. Daí cumprir o afastamento do quadro, aguardando-se o desfecho, o julgamento de fundo da própria argüição de descumprimento de preceito fundamental, no que idas e vindas do processo acabam por projetar no tempo esdrúxula situação.

Preceitua a lei de regência que a liminar pode conduzir à suspensão de processos em curso, à suspensão da eficácia de decisões judiciais que não hajam sido cobertas pela preclusão maior, considerada a recorribilidade. O poder de cautela é ínsito à jurisdição, no que esta é colocada ao alcance de todos, para afastar lesão a direito ou ameaça de lesão, o que, ante a organicidade do Direito, a demora no desfecho final dos processos, pressupõe atuação imediata. Há, sim, de formalizar-se medida acauteladora e esta não pode ficar limitada a mera suspensão de todo e qualquer procedimento judicial hoje existente. Há de viabilizar, embora de modo precário e efêmero, a concretude maior da Carta da República, presentes os valores em foco. Daí o acolhimento do pleito formulado para, diante da relevância do pedido e do risco de manter-se com plena eficácia o ambiente de desencontros em pronunciamentos judiciais até aqui notados, ter-se não só o sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, como também o reconhecimento do direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto. É como decido na espécie.

3. Ao Plenário para o crivo pertinente.

4. Publique-se.

Brasília, 1º de julho de 2004, às 13 horas.


Ministro MARCO AURÉLIO
Relator


* decisão publicada no DJU de 2.8.2004



Assessora responsável pelo Informativo
Anna Daniela de A. M. dos Santos e Silva
informativo@stf.jus.br

 
Praça dos Três Poderes - Brasília - DF - CEP 70175-900 Telefone: 61.3217.3000

Informativo STF - 354 - Supremo Tribunal Federal

 



 

 

 

 

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