Recurso em sentido estrito. Recurso da defesa. Crime doloso contra a vida. Competência do Tribunal do Júri. Pronúncia.
Tribunal de Justiça de Santa Catarina - TJSC.
Recurso Criminal n. 2009.005363-7, de Lages
Relator: Des. Hilton Cunha Júnior
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. RECURSO DA DEFESA. CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA. TENTATIVA DE HOMICÍDIO. ARTIGO 121, CAPUT, C/C ARTIGO 14, AMBOS DO CÓDIGO PENAL. ALEGAÇÃO DE LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA. AUSÊNCIA DE PROVA INEQUÍVOCA. IMPOSSIBILIDADE DE ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA. PLEITO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA O HOMICÍDIO CULPOSO ARTIGO 121, §3º, DO CÓDIGO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. INDÍCIOS PROBATÓRIOS QUE EVIDENCIAM O FATO DE O AGENTE TER ASSUMIDO O RISCO DE PRODUZIR O RESULTADO. DOLO EVENTUAL. NECESSIDADE DE JULGAMENTO PELO TRIBUNAL DO JÚRI POR OBSERVÂNCIA AO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATI. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso Criminal n. 2009.005363-7, da comarca de Lages (1ª Vara Criminal), em que é recorrente Vilmar Rogério Ribeiro, e recorrida A Justiça, por seu Promotor:
ACORDAM, em Primeira Câmara Criminal, por votação unânime, conhecer do recurso e negar-lhe provimento. Custas legais.
RELATÓRIO
Vilmar Rogério Ribeiro foi pronunciado pelo Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal da comarca de Lages pela prática da conduta descrita no artigo 121, caput, c/c 14, inciso II, ambos do Código Penal.
Irresignado, o acusado interpôs o presente Recurso Criminal, no qual pugna, em síntese, pela absolvição sumária ao argumento de que agiu em legítima defesa putativa. Alternativamente, pleiteia a desclassificação do crime de homicídio doloso para a sua forma culposa, por ausência do animus necandi.
Contra-arrazoado o recurso, os autos ascenderam a esta superior instância, e a douta Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer subscrito pelo Exmo. Sr. Dr. Odil José Cota, opinou pelo conhecimento e desprovimento do recurso.
VOTO
Consta dos autos que, no dia 16.4.2005, por volta das 23hs30min., a vítima Denis da Silva dirigiu-se à residência do denunciado, no intuito de convidar a filha deste para saírem juntos e, em razão da recusa, tentou entrar no terreno da casa. Por este motivo, o acusado, de posse de um revólver marca Taurus, calibre 38, devidamente municiado, de propriedade de sua esposa, mediante animus necandi, desferiu um tiro contra a vítima, atingindo-a também com uma coronhada na face, o que produziu os ferimentos descritos no laudo pericial (fl. 27).
Verifica-se que a materialidade do delito está demostrada no boletim de ocorrência (fls. 10-12), recibo de apreensão de arma de fogo (fl. 14), recibo de entrega de arma de fogo (fl. 15), auto de apreensão (fl. 16) e laudos periciais (fls. 27 e 93-94).
Os indícios de autoria, por sua vez, apresentam-se pelos depoimento das testemunhas (fls. 118-124, 134-137 e 160-162).
Portanto, presentes estão os pressupostos da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria, conforme determina o artigo 413 do Código de Processo Penal.
O recorrente pleiteia a sua absolvição sumária ao argumento de que agiu em legítima defesa putativa.
Ocorre que no caderno processual consta que o recorrente admitiu ter dado uma coronhada na vítima, todavia, sustentou que o disparo foi acidental:
[...] no dia dos fatos [...] estava sentado n mesa quando escutou alguém bater palma na frente de casa; que mandou Cleber ver de quem se tratava tendo este dito que um rapaz queria falar com a filha do interrogando; o interrogando mandou a menina ir atender [...] a menina foi e voltou correndo [...] a esposa do interrogando [...] foi até la fora falar com o rapaz que em seguida voltou até dentro de casa e disse ao interrogando que o rapaz havia lhe dito que havia tratado de sair com a filha do interrogando e como esta não queria sair fez o convite a esposa do interrogando para que saísse com ele no lugar da ficha que o interrogando pediu a esposa para pegar o revolver e foi lá fora conversar com o rapaz; que ficou pelo lado de dentro do quintal e o rapaz do lado de fora próximo ao portão grande da garagem; o interrogando perguntou ao rapaz o que era; tendo o rapaz nada respondido e se dirigido ao portão pequeno; que o rapaz abriu o portão e entrou; que o rapaz levou a mão na cintura não dando o interrogando para perceber se o mesmo estava armado; que o interrogando bateu com o cabo e parto do cano contra o rosto do rapaz tendo sido deflagrado um tiro já que o interrogando estava em posição de atirar; que o rapaz caiu com o corpo parte no quintal e parte para fora [...] que o interrogando não sabe onde o tiro atingiu o rapaz [...] que o interrogando deu um único golpe com o revólver no rapaz; que pegou com a coronha, parte do cano e com o guarda mata no rosto do rapaz; que o rapaz não chegou a dizer nada já que quando bateu a arma disparou e o rapaz desmaiou [...] (fls. 105-106)
A vítima afirmou:
[...] no dia dos fatos o declarante passou defronte a residência do denunciado ocasião em que o denunciado chamou pelo declarante; que por sua vez estendeu a mão tendo o denunciado puxado um revólver e desferido um tiro que acertou o pescoço do declarante e na sequência desferido uma coronhada na região do olho esquerdo do declarante [...] que na oportunidade não estava armado [...] o denunciado efetuou o disparo a no máximo um metro de distância do declarante; que não se lembra se primeiro recebeu o tiro ou a coronhada. (fls. 118-119)
Fernando Guimarães, que no dia dos fatos estava no interior da residência do acusado, relatou que "dava para entender que a vítima estivesse armado" e que ouviu um disparo, tendo presenciado o recorrente desferir um um golpe com a arma contra a vítima. (fls. 120-121)
Zenilda Pereira Rosa, esposa do recorrente, confirmou que lhe entregou o revólver e presenciou o momento em que ele teria batido com a arma no rosto da vítima (fls. 122-123).
Kleber Pereira, sobrinho do recorrente, também aduziu que o viu a coronhada ser dada na vítima e ouviu um disparo (fl. 134-135).
A esposa e o sobrinho afirmaram que a vítima levou a mão à cintura, o que teria motivado a ação do recorrente. Todavia, Vilson Jean Varela, outra testemunha ocular, na fase policial, não aventou tal circunstância (fls. 79/80).
Convém esclarecer que a absolvição sumária é o instrumento colocado à disposição do julgador para absolver o acusado desde logo, sem leva-lo ao julgamento perante o Tribunal do Júri, quando estiver convencido da existência de circunstância que exclua o crime ou isente o réu de pena.
Sobre o assunto, Fernando Capez explica:
Para que não haja ofensa ao princípio da soberania dos veredictos, a absolvição sumária somente poderá ser proferida em caráter excepcional, quando a prova for indiscutível. Havendo dúvida a respeito da causa excludente ou dirimente, o juiz deve pronunciar o réu (CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, 6. ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 571).
A legítima defesa putativa, na absolvição sumária, só se admite quando "desponte nítida, clara, de modo irretorquível, da prova dos autos. Mínima que seja a hesitação da prova a respeito, impõe-se a pronúncia, para que a causa seja submetida ao Júri, juiz natural dos crimes dolosos contra a vida, por força de mandamento constitucional" (RT 656/279).
Esse entendimento é o externado por este Tribunal de Justiça:
RECURSO CRIMINAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. PRONÚNCIA. PRETENDIDA A ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA POR TER O RÉU AGIDO EM LEGÍTIMA DEFESA. AUSÊNCIA DE PROVAS INEQUÍVOCAS SOBRE A OCORRÊNCIA DA EXCLUDENTE INVOCADA. DIVERSIDADE DE VERSÕES A RESPEITO DO DESENROLAR DOS FATOS. DECISÃO DE PRONÚNCIA MANTIDA.
A legítima defesa, causa de exclusão de ilicitude, pode ser reconhecida na primeira fase do procedimento escalonado do Tribunal do Júri, desde que clara e absolutamente comprovada (art. 415, IV, do CPP). Do contrário, deve a causa ser submetida à apreciação do Tribunal do Júri, constitucionalmente instituído para julgar os crimes dolosos contra a vida. (Recurso Criminal n. 2008.063737-5, da Capital, rel. Des. Torres Marques, j. em 14.1.2009). (grifei)
PROCESSUAL PENAL - JÚRI - PRONÚNCIA - HOMICÍDIO QUALIFICADO - PRETENDIDA ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA PELA LEGÍTIMA DEFESA - AFASTAMENTO DA QUALIFICADORA DO MOTIVO FÚTIL - IMPOSSIBILIDADE - CIRCUNSTÂNCIAS QUE DEMONSTRAM MOTIVO DESPROPORCIONAL AO RESULTADO PRODUZIDO - DÚVIDAS QUE DEVEM SER REMETIDAS AO TRIBUNAL DO JÚRI - PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE - RECURSO DESPROVIDO.
A absolvição sumária pela legítima defesa só se admite quando a excludente esteja plenamente comprovada.
Em sede de pronúncia, havendo dúvida, prevalece o princípio in dubio pro societate, razão pela qual as qualificadoras só são afastadas quando manifestamente improcedentes. (Recurso Criminal n. 2008.050114-2, de Navegantes, rel. Des. Amaral e Silva, j. em 23.9.2008). (grifei)
No caso em atento, a prova inequívoca da legítima defesa putativa não se encontra nos autos. De outro modo, presentes indícios suficientes da autoria do delito pelo recorrente, não há como, nesta fase processual, absolvê-lo sumariamente.
Assim, deve o acusado ser julgado perante o Tribunal do Júri, mesmo porque:
Convencido da existência do crime e de haver indícios da autoria, o juiz deve proferir a sentença de pronúncia. Essa sentença, e não mero despacho, por ser mero juízo de admissibilidade da acusação, com o objetivo de submeter o acusado ao julgamento pelo júri, tem natureza processual, não produzindo res judicata, mas preclusão pro judicato, podendo o Tribunal do Júri decidir contra aquilo que ficou assentado na pronúncia (MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado, 5. ed., São Paulo: Atlas, 1997, p. 533).
Alternativamente, o recorrente requer a desclassificação do crime de homicídio doloso (artigo 121, caput, do Código Penal) para homicídio culposo (artigo 121, §3º, do Código Penal), em razão de ausência de provas da intenção do agente em cometer o crime em análise.
O recorrente admitiu, no interrogatório, que deu uma coronhada na cabeça da vítima, todavia, sustentou que o disparo foi acidental.
Salienta-se que, para configurar a forma culposa deverá ser analisada a existência de indícios que comprovem a intenção do agente.
O artigo 18, I e II, do Código Penal dispõe:
Art. 18 - Diz-se o crime:
I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;../LEIS/1980-1988/L7209.htm
II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.
Com efeito, não há como nesta fase do processo acolher a alegação de desclassificação para homicídio culposo, uma vez que o recorrente agiu de forma irresponsável ao manusear a arma de fogo, assumindo o risco e permitindo que o resultado ocorresse.
Neste sentido, Luiz Regis Prado leciona:
No dolo eventual, o agente presta anuência, concorda com o advento do resultado, preferindo arriscar-se o a produzi-lo a renunciar à ação. Ao contrário, na culpa consciente, o agente afasta ou repele, embora inconscientemente, a hipótese de superveniência do evento e empreende a ação na esperança de que este não venha ocorrer (prevê o resultado como possível, mas não o aceita, nem o consente) [...].
O ponto nodal em matéria de dolo assenta no fato de que sempre há uma vontade de lesar determinado bem jurídico. Para afirmar-se a existência de dolo eventual é necessário que o autor tenha consciência de que com sua conduta pode efetivamente lesar ou pôr em perigo um bem jurídico e que atue com indiferença diante de tal possibilidade, de modo que implique aceitação desse resultado. Para se caracterizar a indiferença não basta a mera decisão sobre a diretriz a ser seguida, mas é preciso que o autor tenha consciência que a sua forma de agir vai no sentido da possibilidade concreta de lesão ou colocação em perigo do bem jurídico (Curso de Direito Penal Brasileiro, 3. ed. p. 306).
Colhe-se desta Corte:
RECURSO CRIMINAL - TRIBUNAL DO JÚRI - HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO (ART. 121, § 2º, INCISOS III E IV, DO CÓDIGO PENAL) - PROVA DA MATERIALIDADE E INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA - DOLO EVENTUAL QUE PODE PERFEITAMENTE COEXISTIR COM AS QUALIFICADORAS DO PERIGO COMUM E DA SURPRESA - AFASTAMENTO IMPOSSÍVEL NESTA FASE - PRETENDIDA DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO - DÚVIDAS QUE SE RESOLVEM EM FAVOR DA SOCIEDADE - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO DESPROVIDO. (Recurso Criminal n. 2005.037489-0, de Brusque. Relator: Des. Solon d'Eça Neves).
HOMICÍDIO TENTADO - DISPARO DE ARMA DE FOGO ATINGINDO A VÍTIMA NA REGIÃO ABDOMINAL E CAUSANDO-LHE RISCO DE VIDA - MATERIALIDADE COMPROVADA E AUTORIA NÃO NEGADA - (?) DISPARO ACIDENTAL OU TENTATIVA DE HOMICÍDIO (?) - DÚVIDA DO ELEMENTO SUBJETIVO A SER RESOLVIDA PELO TRIBUNAL DO JÚRI - PREVALÊNCIA NA FASE DA PROVISIONAL DO PRINCÍPIO IN DUBIO POR SOCIETATE - SENTENÇA DE PRONÚNCIA MANTIDA - RECURSO DEFENSIVO DESPROVIDO. (Recurso Criminal n. 2004.024722-2 (Réu preso), de São José. Relator: Des. Gaspar Rubik).
Ademais, em relação aos crimes de competência do Tribunal do Júri, prevalece o princípio in dubio pro societatis, ou seja, comprovada a materialidade do delito e havendo indícios da autoria do crime, é prudente remeter a apreciação do caso em concreto ao Tribunal do Júri.
Sobre a matéria, colaciona-se:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - PRONÚNCIA - CRIME CONTRA A VIDA - HOMICÍDIO - LESÕES CORPORAIS GRAVES - MATERIALIDADES COMPROVADAS - INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA - IN DUBIO PRO SOCIETATE - LEGÍTIMA DEFESA E INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA NÃO COMPROVADA EXTREME DE DÚVIDAS - EXCESSO DE LINGUAGEM NÃO CARACTERIZADO - SOBERANIA DO VEREDICTO DO TRIBUNAL POPULAR - RECURSO DESPROVIDO.
Comprovada a materialidade e os indícios da autoria do crime, torna-se mais prudente remeter a apreciação defensiva para o corpo de jurados do Tribunal do Júri, por deter esse competência exclusiva para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Nesses crimes, o princípio in dubio pro reo dá lugar ao princípio in dubio pro societate. (Recurso Criminal n. 2008.050717-5, de Capital, rel. Des. Solon d'Eça Neves, j. em 11.12.2008). (grifei)
RECURSO CRIMINAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. PRONÚNCIA. PRETENDIDA A ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA POR TER O RÉU AGIDO EM LEGÍTIMA DEFESA. AUSÊNCIA DE PROVAS INEQUÍVOCAS SOBRE A OCORRÊNCIA DA EXCLUDENTE INVOCADA. DIVERSIDADE DE VERSÕES A RESPEITO DO DESENROLAR DOS FATOS. DECISÃO DE PRONÚNCIA MANTIDA.
Para que se possa acolher o pedido de absolvição sumária é necessário que haja provas incontroversas, irretorquíveis de que o acusado agiu sob o pálio da legítima defesa. Não havendo prova segura a respeito dessa circunstância, deve a causa ser submetida à apreciação do Tribunal do Júri, constitucionalmente instituído para julgar os crimes dolosos contra a vida. (Recurso Criminal n. 2008.069142-7, de Balneário Camboriú, rel. Des. Torres Marques, j. em 5.12.2008). (grifei)
Ante o exposto, voto no sentido de conhecer do recurso e negar-lhe provimento.
DECISÃO
Nos termos do voto do relator, decide a Primeira Câmara Criminal, por votação unânime, conhecer do recurso e negar-lhe provimento.
Participaram do julgamento realizado no dia 30 de junho de 2009 a Excelentíssima Senhora Desembargadora Marli Mosimann Vargas e o o Excelentíssimo Senhor Desembargador Newton Varella Júnior. Funcionou como Representante da douta Procuradoria-Geral de Justiça, o Excelentíssimo Senhor Doutor Demétrio Constantino Serratine.
Florianópolis, 16 de julho de 2009.
Hilton Cunha Júnior
PRESIDENTE E RELATOR
Publicado em 21/08/09
JURID - Crime doloso contra a vida. Competência do Tribunal do Júri. [24/09/09] - Jurisprudência
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