Apelação cível e remessa necessária. Alegação de nulidade da sentença por ausência de chamamento aos autos de litisconsortes passivos necessários.
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte - TJRN.
Processo: 2009.001688-0
Julgamento: 25/08/2009 Órgao Julgador: 1ª Câmara Cível Classe: Apelação Cível
Remessa Necessária e Apelação Cível nº 2009.001688-0.
Remetente:4ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Natal
Apelante:Estado do Rio Grande do Norte
Procurador:Dr. Francisco Ivo Cavalcanti Neto (1812/RN)
Apelada:Antônia Alcineide Raulino
Advogado:Dr. Francisco Marcos de Araújo (2359/RN)
Relator:Desembargador Expedito Ferreira
EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL E REMESSA NECESSÁRIA. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DA SENTENÇA POR AUSÊNCIA DE CHAMAMENTO AOS AUTOS DE LITISCONSORTES PASSIVOS NECESSÁRIOS. DEVER DE ASSEGURAR À SAÚDE DOS CIDADÃOS IMPOSTO GENERICAMENTE AOS ENTES DA FEDERAÇÃO. OBRIGAÇÃO PRETENDIDA NA INICIAL QUE PODE SER EXIGIDA ISOLADAMENTE DE QUALQUER UM DESTES. INOCORRÊNCIA DE VÍCIO PROCESSUAL. APELADO PORTADOR DE CARDIOPATIA QUE DEMANDA A REALIZAÇÃO DE EXAME COMPLEXO PARA DIAGNÓSTICO ADEQUADO. RECUSA DO ESTADO EM FORNECÊ-LO. ARGÜIÇÃO DE QUE NÃO SE ENCONTRAM ELENCADOS ENTRE OS EXAMES DE AUTO CUSTO RELACIONADOS NA PORTARIA Nº 1.318/2009 DO MINISTÉRIO DA SAÚDE. RESTRIÇÃO ILEGÍTIMA. AFRONTA A DIREITOS ASSEGURADOS PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. OBRIGAÇÃO ESTATAL DE FORNECIMENTO DE EXAMES IMPRESCINDÍVEIS AO TRATAMENTO DE SAÚDE DO CIDADÃO. REMESSA NECESSÁRIA E RECURSO VOLUNTÁRIO CONHECIDOS E DESPROVIDOS.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos em que são partes as acima nominadas:
Acordam os Desembargadores da Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, à unanimidade de votos, em consonância com o parecer da 10ª Procuradoria de Justiça, em conhecer e negar provimento ao apelo e à remessa necessária, mantendo-se inalterada a sentença hostilizada, nos termos do voto do relator.
RELATÓRIO
Trata-se de Remessa Necessária e Apelação Cível interposta pelo Estado do Rio Grande do Norte em face de sentença prolatada pelo Juízo da 4ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Natal, às fls. 112-122, que julgou parcialmente procedente a pretensão autoral.
Em sua petição inicial de fls. 02-19, aduz a autora que é portadora de uma cardiopatia que só pode ser plenamente avaliada, diagnosticada e tratada após realização de exames complementares, sobretudo o exame de Holter 24 horas.
Ressalta que, por diversas vezes, a rede pública de saúde para realização do exame, mas o mesmo não é ofertado pela rede pública de saúde.
Informa que é emprega doméstica e não condições de arcar com os custos do exame, ressaltando que a saúde do cidadão é dever do Estado, devendo o mesmo fornecer o exame em questão.
Requer, inicialmente, a antecipação da tutela pretendida, no sentido de que o Estado seja obrigado a fornecer o exame necessário ao seu tratamento de saúde, no mérito, que seja julgada procedente a sua pretensão, mantendo-se a tutela antecipada.
Deferiu-se a antecipação dos efeitos da tutela às fls. 40-43.
O Estado oferta contestação às fls. 49-57, alegando, preliminarmente, ausência de interesse processual, uma vez que a tutela tornou-se satisfativa com o cumprimento da decisão antecipatória, devendo ser extinto o processo sem julgamento de mérito.
No mérito, aduz que nem sempre é do Estado a obrigação de promover o combate preventivo ou repressivo das doenças ou males do organismo, sendo a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios os co-responsáveis pela atividade pública de saúde.
Acentua que o exame em questão é de média complexidade, sendo a competência e a responsabilidade para sua realização do Município de Natal, consoante dispõe a Programação Pactuada Integrada.
Alega que o cumprimento da decisão ofende ao princípio da legalidade orçamentária, tendo em vista que, sendo integrante da Programação Pactuada Integrada, está adstrito aos seus termos, sobretudo no que se refere aos recursos, sob pena de responder junto ao Tribunal de Contas.
Ao final, requer, em caráter preliminar, a extinção do processo sem julgamento do mérito, por faltar à parte interesse processual. No mérito, pugna pela improcedência do pedido inicial.
Em parecer de fls. 105-110, a 32ª Promotoria de Justiça, opinou pela extinção do processo sem julgamento do mérito, por entender que o objeto da demanda se exauriu com o deferimento e cumprimento da decisão antecipatória, sem ônus de sucumbência, tendo em vista o interesse processual no momento do ajuizamento da ação.
Sobreveio sentença às fls. 112-122, que julgou parcialmente procedente o pedido, para confirmar a tutela antecipada e condenar o Estado do Rio Grande do Norte a realizar o exame de Holter 24 horas, deixando de condenar em honorários advocatícios tendo em vista a sucumbência recíproca.
Irresignado com o teor do decisum, o Estado interpôs apelação às fls. 123-138, arguindo a nulidade do julgado pela ausência de chamamento à lide da União e do Município no pólo passivo da demanda, os quais seriam litisconsortes necessários.
Informa que não é o responsável pela execução do exame requerido pela apelada.
Sustenta que a execução das políticas públicas de saúde constitui responsabilidade tripartite entre União, Estado e Município, cabendo a cada ente federativo dispor acerca de suas próprias políticas, sob pena de afronta ao princípio da autonomia que os regem.
Pondera que a obrigação do Estado na prestação de serviço de saúde é residual, cabendo-lhe a execução de procedimentos de alto custo, relacionados pela Portaria do Ministério da Saúde, o que não lhe permite aplicar os recursos destinados a tal fim fora dos parâmetros determinados legalmente, sob pena de responder junto ao Tribunal de
Assegura que a decisão, nos termos em que foi proferida, ingressou na autonomia estatal de governar e aplicar as políticas públicas legitimamente eleitas pelo governante, passando a ditar o direcionamento da ação executiva do Estado, ferindo o princípio da divisão dos poderes assegurado constitucionalmente.
Aponta que a decisão recorrida rechaçou as limitações orçamentários constitucionais e legais, tendo em vista que nenhuma despesa pública pode ser realizada extrapolando os créditos orçamentários ou adicionais.
Por fim, solicita que seja anulada a sentença, por não terem sido convocados os litisconsortes necessários e, no mérito, que a mesma seja reformada, julgando-se improcedente a pretensão autoral, assim como a revogação da tutela antecipatória concedida, condenando o demandante ao pagamento dos ônus sucumbenciais.
Intimada, a apelada oferta contrarrazões às fls. 142-153, nas quais refuta os argumentos expostos no recurso, sobretudo a alegação de litisconsórcio passivo necessário da União e Município, finalizando com o pedido de desprovimento da apelação.
Instado a se manifestar, o Ministério Público, através da 10ª Procuradoria de Justiça, em parecer de fls. 158-170, opina pelo conhecimento e desprovimento do recurso.
É o que importa relatar.
VOTO
Presentes os requisitos de admissibilidade, voto pelo conhecimento da apelação cível e da remessa necessária.
Conforme relatado em linhas anteriores, suscita o Estado que não pode ser o único responsável pelo fornecimento do exame pretendido pela parte autora, havendo litisconsórcio passivo necessário com a União e o Município.
Ocorre que o feito em tela não se trata de litisconsórcio passivo necessário, não havendo, porquanto, a imprescindibilidade de figurar também no pólo passivo da demanda a União e o Município, como mencionado pelo Estado.
Dispõe a Constituição Federal, em seu art. 198, § 1º, sobre o Sistema Único de Saúde, estabelecendo in litteris:
"O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes."
Da análise do dispositivo mencionado, constata-se que a obrigação de prestação de serviços e a prática de ações que visem a resguardar a saúde dos cidadãos é solidária entre a União, os Estados, os Municípios e Distrito Federal, podendo, porquanto, ser exigida conduta de cada um dos entes ora elencados isoladamente.
Neste sentido, é o entendimento desta Corte de Justiça:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO CONTRA LIMINAR QUE DETERMINOU O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO PELO ESTADO- PRELIMINARES DE ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM E LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO DA UNIÃO TRANSFERIDAS PARA O MÉRITO. MÉRITO: OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA DA UNIÃO, ESTADOS E MUNICÍPIOS QUANTO AO PROVIMENTO DE REMÉDIOS À POPULAÇÃO- RESPONSABILIDADE QUE PODE SER EXIGIDA EM CONJUNTO OU ISOLADAMENTE- LEI ESTADUAL DE Nº 8.607/04 QUE IMPÕE AO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE O DEVER DE DISPONIBILIZAR MEDICAMENTOS PRA O CONTROLE DO DIABETES, INCLUSIVE COM ORDEM DE PREVISÃO DA DESPESA NA DOTAÇÃOORÇAMENTÁRIA- PRECEDENTES DA CORTE E DO STF- RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO " (AC nº 2006.001108-7, da 3ª Câmara Cível do TJRN, Rel. Des. Aécio Marinho, j. 20.07.06).
Ultrapassada tal questão, cumpre examinar se existe ou não a obrigação do Estado em fornecer o exame almejado pela parte apelada.
Conforme se depreende pelo estudo das peças que compõem o presente caderno processual, a apelada é portadora de uma cardiopatia, necessitando para o adequado tratamento do exame Holter 24 horas, consoante documentos de fls. 25-33.
O exame prescrito e necessário ao tratamento da apelada não foi fornecido pelo sistema de saúde do Estado e a recorrida não possui condições para o pagamento do mesmo.
Por sua vez, aduz o apelante que o exame solicitado não está elencado no rol de exames de alto custo a serem fornecidos pelo Estado, conforme Portaria 1318, de 23.07.2002, do Ministério de Estado da Saúde.
No entanto, inaceitável se apresenta tal justificativa, uma vez que se constata evidente afronta a direitos e princípios resguardados pela nossa Constituição Federal, com expressão mais marcante sobre o direito à vida e à saúde.
Ademais, a portaria citada, pela sua posição hierarquicamente inferior, deveria se coadunar à Carta Magna, e não afrontá-la diretamente, limitando o dever do Estado em proteger a vida do cidadão.
O direito à saúde é direito do cidadão e dever do Estado, conforme consta nos arts. 5º e 6º da CF/88, que prescrevem in verbis:
"Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição".
Assim, incumbe ao ente estatal prestar toda a assistência devida ao cidadão que se ache acometido de moléstia grave e não possua condições de tratar-se por seus próprios meios, conforme também prevê o art. 196 da nossa Carta Maior, a saber:
"Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação."
Não fossem suficientes tais comandos legais, a Lei nº 8.080/90, conhecida como Lei Orgânica da Saúde, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, determina, em seu art. 2º, o dever do Estado em dar condições para o exercício do direito à saúde, nos seguintes termos:
"Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.
§ 2º O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade".
Não foge a esse entendimento esta Egrégia Corte de Justiça, ao julgar questões correlatas, como apontam o aresto abaixo transcrito:
EMENTA: Constitucional. Mandado de Segurança. Direito à saúde. Realização de exame médico. Alto custo. Preliminar de ausência de litisconsórcio passivo necessário, suscitada pelo Estado do Rio Grande do Norte. Obrigação solidária do Estado. Possibilidade de se exigir de qualquer um dos Entes Federativos a obrigação em destaque. Legitimidade do Estado para figurar no pólo passivo da ação. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça e deste Tribunal. Mérito. Impetrante com recurso financeiro incapaz de arcar com os custos do tratamento da sua saúde. Direito à vida e saúde a ser tutelada pela via eleita. inteligência dos artigos 5º caput, 6º, 196 e 197, da Constituição Federal, bem como da Lei 8.080/90. Norma auto-aplicável. Direito líquido e certo violado. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça e desta Corte. Conhecimento e concessão do writ. - A obrigação, em fornecer tratamento à saúde da Impetrante, entre os entes federativos é solidária, podendo, a demanda ser interposta contra um ou dois deles, ou até mesmo contra todos. - O Estado tem o dever de promover a assistência integral à saúde, inclusive com o fornecimento de meios adequados para o restabelecimento da mesma ou prolongamento da vida, seja por medicamentos, tratamentos médicos, exames ou quaisquer outros meios terapêuticos. (MS nº 2007.009142-8, Pleno do TJRN, Relª. Dra. Maria Zeneide Bezerra (Juíza Convocada), j. 24/09/2008).
Cumpre examinar a asserção feita pelo apelante de que a pretensão da parte autora encontra óbice no princípio da legalidade orçamentária.
Todavia, ao contrário do que informa o recorrente, tal princípio não pode ser utilizado como obstáculo ao deferimento do pedido autoral.
Esse preceito demanda uma obediência restrita às diretrizes orçamentárias. Entretanto, estas precisam conter previsões que alcancem situações como a dos autos, visto que também é mandamento constitucional o direito à saúde, sendo dever do Estado garantir, mediante políticas próprias, à redução do risco de doença e outros gravames relativos à saúde, devendo, por este motivo, ter-se previsão orçamentária para este fim.
Adite-se, ainda, que o direito à saúde, na nova ordem constitucional, foi elevado ao nível de direito e garantia fundamental, tornando-o, assim, de aplicação imediata.
Importante destacar, por conveniente, que a determinação judicial de realização do exame pretendido não significa ingerência ilegítima do Poder Judiciário em matéria de mérito de ato administrativo, mas, ao revés, traduziu-se em controle da legalidade do ato negatório discutido, analisando-o segundo os preceitos constitucionais vigentes.
Ante o exposto, em consonância com o parecer da 10ª Procuradoria de Justiça, voto pelo conhecimento do apelo e da remessa necessária para, no mérito, negar-lhes provimento, mantendo-se inalterada a sentença hostilizada, nos termos do voto do relator.
É como voto.
Natal, 25 de agosto de 2009.
DESEMBARGADOR CRISTÓVAM PRAXEDES
Presidente
DESEMBARGADOR EXPEDITO FERREIRA DE SOUZA
Relator
Dra. MARIA DE LOURDES MEDEIROS DE AZEVEDO
15ª Procuradora de Justiça
JURID - Apelação cível e remessa necessária. Alegação de nulidade. [24/09/09] - Jurisprudência
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