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terça-feira, 2 de junho de 2009

JURID - Habeas corpus. Súmula 691/STF. [02/06/09] - Jurisprudência


Habeas corpus. Denegação de medida liminar. Súmula 691/STF.
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Supremo Tribunal Federal - STF.

MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 99.289-7 RIO GRANDE DO SUL

RELATOR : MIN. CELSO DE MELLO

PACIENTE(S) : MARIA APARECIDA DAMBRÓS DE CASTILHOS

IMPETRANTE(S) : MARCELO MAYORA E OUTRO(A/S)

COATOR(A/S)(ES) : RELATOR DO HC Nº 103.446 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

EMENTA: "HABEAS CORPUS". DENEGAÇÃO DE MEDIDA LIMINAR. SÚMULA 691/STF. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL QUE AFASTA, NO CASO, A RESTRIÇÃO SUMULAR. RETARDAMENTO EXCESSIVO (UM ANO E 2 MESES) DO JULGAMENTO, PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DO MÉRITO DO "WRIT" LÁ IMPETRADO. PRISÃO CAUTELAR DECRETADA COM FUNDAMENTO NA GRAVIDADE OBJETIVA DO CRIME E NA RECUSA DA PACIENTE EM RESPONDER AO INTERROGATÓRIO JUDICIAL A QUE FOI SUBMETIDA. INCOMPATIBILIDADE DESSES FUNDAMENTOS COM OS CRITÉRIOS FIRMADOS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM TEMA DE PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE INDIVIDUAL. DIREITO DO INDICIADO/RÉU AO SILÊNCIO. DIREITO - QUE TAMBÉM LHE ASSISTE - DE NÃO SER CONSTRANGIDO A PRODUZIR PROVAS CONTRA SI PRÓPRIO. DECISÃO QUE, AO DESRESPEITAR ESSA PRERROGATIVA CONSTITUCIONAL, DECRETA A PRISÃO PREVENTIVA DA ACUSADA. INADMISSIBILIDADE. NECESSIDADE DE RESPEITO E OBSERVÂNCIA, POR PARTE DE MAGISTRADOS, TRIBUNAIS E ÓRGÃOS DE PERSECUÇÃO PENAL, DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS ASSEGURADOS A QUALQUER INVESTIGADO, INDICIADO OU RÉU. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.

- O direito ao julgamento sem dilações indevidas qualifica-se como prerrogativa fundamental que decorre da garantia constitucional do "due process of law".

- O réu - especialmente aquele que se acha sujeito a medidas cautelares de privação da sua liberdade - tem direito subjetivo de ser julgado, pelo Poder Judiciário, dentro de prazo razoável, sem demora excessiva nem dilações indevidas. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência.

- O excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário - não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu - traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas, em tempo razoável e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional. Doutrina. Precedentes.

- A recusa em responder ao interrogatório policial e/ou judicial e a falta de cooperação do indiciado ou do réu com as autoridades que o investigam ou que o processam traduzem comportamentos que são inteiramente legitimados pelo princípio constitucional que protege qualquer pessoa contra a auto-incriminação, especialmente a pessoa exposta a atos de persecução penal.

O Estado - que não tem o direito de tratar suspeitos, indiciados ou réus como se culpados fossem (RTJ 176/805-806) - também não pode constrangê-los a produzir provas contra si próprios (RTJ 141/512).

Aquele que sofre persecução penal instaurada pelo Estado tem, dentre outras prerrogativas básicas, o direito (a) de permanecer em silêncio, (b) de não ser compelido a produzir elementos de incriminação contra si próprio nem constrangido a apresentar provas que lhe comprometam a defesa e (c) de se recusar a participar, ativa ou passivamente, de procedimentos probatórios que lhe possam afetar a esfera jurídica, tais como a reprodução simulada do evento delituoso e o fornecimento de padrões gráficos ou de padrões vocais, para efeito de perícia criminal (HC 96.219-MC/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.). Precedentes.

- O exercício do direito contra a auto-incriminação, além de inteiramente oponível a qualquer autoridade ou agente do Estado, não legitima, por efeito de sua natureza eminentemente constitucional, a adoção de medidas que afetem ou restrinjam a esfera jurídica daquele contra quem se instaurou a "persecutio criminis", notadamente a decretação de sua prisão cautelar.

- A prática do direito ao silêncio, que se revela insuscetível de qualquer censura policial e/ou judicial, não pode ser desrespeitada nem desconsiderada pelos órgãos e agentes da persecução penal, porque o exercício concreto dessa prerrogativa constitucional - além de não importar em confissão - jamais poderá ser interpretado em prejuízo da defesa. Precedentes. Medida cautelar deferida.

DECISÃO: Trata-se de "habeas corpus", com pedido de medida cautelar, impetrado contra decisão emanada de eminente Ministro de Tribunal Superior da União, que, em sede de outra ação de "hábeas corpus" ainda em curso no Superior Tribunal de Justiça (HC 103.446/RS), denegou medida liminar que lhe havia sido requerida em favor da ora paciente.

Presente tal contexto, impende verificar, desde logo, se a situação processual versada nestes autos justifica, ou não, o afastamento, sempre excepcional, da Súmula 691/STF.

Como se sabe, o Supremo Tribunal Federal, ainda que em caráter extraordinário, tem admitido o afastamento, "hic et nunc", da Súmula 691/STF, em hipóteses nas quais a decisão questionada divirja da jurisprudência predominante nesta Corte ou, então, veicule situações configuradoras de abuso de poder ou de manifesta ilegalidade (HC 85.185/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO - HC 86.634-MC/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 86.864-MC/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO - HC 87.468/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO - HC 89.025-MC-AgR/SP, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA - HC 90.112-MC/PR, Rel. Min. CEZAR PELUSO, v.g.).

Parece-me que a situação exposta nesta impetração ajusta-se às hipóteses que autorizam a superação do obstáculo representado pela Súmula 691/STF. Passo, em conseqüência, a examinar a postulação cautelar ora deduzida nesta sede processual.

Os fundamentos em que se apóia esta impetração revestem-se de inquestionável relevo jurídico, especialmente se se examinar o presente "writ" sob os seguintes aspectos: (a) existência de excesso de prazo (um ano e dois meses) no julgamento da ação de "hábeas corpus" pelo Superior Tribunal de Justiça e (b) incompatibilidade das razões subjacentes ao decreto judicial de prisão cautelar da ora paciente com os critérios jurisprudenciais firmados pelo Supremo Tribunal Federal.

Verifica-se, preliminarmente, que o HC 103.446/RS, impetrado em favor da ora paciente, foi distribuído a eminente Ministro do E. Superior Tribunal de Justiça em 02/04/2008 e, passados mais de 01 (um) ano e 02 (dois) meses, ainda não foi julgado por aquela Alta Corte judiciária (fls. 43).

Tenho ressaltado, em diversos julgamentos, que o réu - especialmente aquele que se acha sujeito, como sucede com a ora paciente, a medidas cautelares de privação de sua liberdade - tem o direito público subjetivo de ser julgado, pelo Poder Público, dentro de um prazo razoável, sob pena de caracterizar-se situação de injusto constrangimento ao seu "status libertatis" (HC 84.254/PI, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).

Como bem acentua JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI ("Tempo e Processo - Uma análise empírica das repercussões do tempo na fenomenologia processual - civil e penal", p. 87/88, item n. 3.5, 1998, RT), "o direito ao processo sem dilações indevidas" - além de qualificar-se como prerrogativa reconhecida por importantes Declarações de Direitos (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 7º, n. 5 e 6; Convenção Européia para Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, art. 5, n. 3, v.g.) - representa expressiva conseqüência de ordem jurídica que decorre da cláusula constitucional que a todos assegura a garantia do devido processo legal.

Isso significa, portanto, que o excesso de prazo, analisado na perspectiva dos efeitos lesivos que dele emanam - notadamente daqueles que afetam, de maneira grave, a posição jurídica de quem se acha cautelarmente privado de sua liberdade - traduz, na concreção de seu alcance, situação configuradora de injusta restrição à garantia constitucional do "due process of law", pois evidencia, de um lado, a incapacidade do Poder Público de cumprir o seu dever de conferir celeridade aos procedimentos judiciais e representa, de outro, ofensa inequívoca ao "status libertatis" de quem sofre a persecução penal movida pelo Estado.

Esse entendimento encontra pleno apoio na jurisprudência constitucional que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria ora em exame:

"O JULGAMENTO SEM DILAÇÕES INDEVIDAS CONSTITUI PROJEÇÃO DO PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.

- O direito ao julgamento, sem dilações indevidas, qualifica-se como prerrogativa fundamental que decorre da garantia constitucional do 'due process of law'.

O réu - especialmente aquele que se acha sujeito a medidas cautelares de privação da sua liberdade - tem o direito público subjetivo de ser julgado, pelo Poder Público, dentro de prazo razoável, sem demora excessiva nem dilações indevidas. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência.

- O excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário - não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu - traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional. (...)." (RTJ 187/933-934, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Cumpre registrar, ainda, por necessário, que o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou no sentido de conceder ordem de "habeas corpus", para determinar, ao órgão apontado como coator, que proceda ao imediato julgamento da causa cuja demora injustificada provoca, por ausência de apreciação em tempo razoável, situação caracterizadora de injusto constrangimento ao "status libertatis" do paciente (HC 91.041/PE, Rel. p/ o acórdão Min. CARLOS BRITTO - HC 91.986/RS, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA - HC 95.067/RS, Rel. Min. EROS GRAU):

"'HABEAS CORPUS'. PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. DEMORA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL.

Em que pese o elevado número de processos nesta Corte e no Superior Tribunal de Justiça, a demora em julgar 'habeas corpus' lá impetrado há dois e três anos configura constrangimento ilegal consubstanciado na incerteza de provimento jurisdicional eventualmente ainda útil à pretensão defensiva, especialmente porque se trata de paciente presa.

Ordem concedida."

(HC 93.424/SP, Rel. Min. EROS GRAU - grifei)

"'HABEAS CORPUS'. ALEGAÇÃO DE DEMORA DE JULGAMENTO DO RECURSO ESPECIAL NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.

Deferimento do pedido para recomendar ao Relator a adoção de providências necessárias a que o recurso especial seja levado a julgamento, com a máxima urgência."

(HC 74.138/SP, Rel. Min. ILMAR GALVÃO - grifei)

"'Habeas-corpus': demora injustificada no julgamento de apelação de réu preso: ordem deferida para determinar a pronta decisão do recurso."

(HC 71.759/PA, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - grifei)

Essa circunstância - retardamento excessivo, pelo Superior Tribunal de Justiça, do julgamento da ação de "habeas corpus" - revela-se apta, por si só, para justificar o afastamento, sempre excepcional, da Súmula 691 e possibilitar, conseqüentemente, a imediata apreciação do pedido formulado na presente sede processual.

E, ao proceder a tal exame, verifico que a decretação da prisão preventiva da ora paciente não se ajusta à orientação jurisprudencial que esta Suprema Corte firmou em tema de prisão cautelar.

Eis, no ponto, o teor da decisão, que, emanada da ilustre Juíza de Direito da 2ª Vara do Júri da comarca de Porto Alegre/RS, motivou as sucessivas impetrações de "habeas corpus" em favor da ora paciente (Apenso, fls. 491/494):

"A seguir, pela Doutora Juíza foi dito que, nesse momento, passava a reapreciar o pedido de prisão preventiva formulado em relação aos acusados já quando do oferecimento da denúncia a folha 07 (...). Em relação à acusada Maria Aparecida Dambrós de Castilhos (...), Optou, em data de hoje, pelo silêncio, desfazendo, então, a fundamentação anterior no sentido de que estaria a colaborar com as investigações naquele passo (...). A Doutora Promotora de Justiça signatária denuncial bem pontuou, em relação à acusada ora em análise, que os elementos indiciários que até então haviam aportado demonstravam a maneira abjeta com que fora o fato planejado, culminando por ceifar a morte de seu esposo, que retornava após longos anos em país diverso, trabalhando exatamente com a finalidade de trazer dinheiro aos seus filhos, ceifando-o de um convívio, ainda que breve, com esses descendentes que se encontravam no litoral deste Estado. Tudo isso, com o objetivo, ao que parece, de apoderar-se do patrimônio da vítima, com quem mantinha relacionamento desde longa data. Os ofícios que aportaram ao processo em momento recente dão conta, efetivamente, da remessa de numerário que era procedida pela vítima Anísio Nunes de Castilhos, o que corrobora o que existe no processo até o momento no sentido de que a intenção era efetivamente a de seguir o relacionamento havido com o também acusado Júnior Cezar, apoderando-se do numerário obtido licitamente por seu marido e pai dos seus filhos no exterior. São esses elementos, então, que fazem com que, neste momento, seja revisto o posicionamento anterior no sentido de se decretar a prisão preventiva, neste feito (...), da acusada Maria Aparecida Dambrós de Castilhos devendo ser expedido, imediatamente, mandado prisional (...)." (grifei)

Tenho para mim que a decisão em referência, ao decretar a prisão cautelar da ora paciente, nos termos em que o fez, transgrediu, de modo frontal, a própria declaração constitucional de direitos, pois teve como razão preponderante o fato de a acusada em questão - invocando uma prerrogativa que a Constituição lhe assegura - haver exercido o direito ao silêncio, recusando-se, em conseqüência, de maneira plenamente legítima, a responder ao interrogatório judicial a que foi submetida.

Não se justificava, presente referido contexto, que a magistrada processante, em inadmissível reação ao exercício dessa prerrogativa constitucional, viesse a decretar a prisão cautelar da ora paciente, desrespeitando-lhe, desse modo, sem causa legítima, o direito ao silêncio que o ordenamento positivo garante a todo e qualquer acusado, independentemente da natureza do delito que lhe haja sido atribuído.

O exame do ato decisório em questão permite assim resumir, em seus aspectos essenciais, os fundamentos em que se sustenta a prisão cautelar ora questionada: (a) gravidade do crime e (b) recusa da paciente em colaborar com o Juízo processante, em razão do exercício, por ela, do seu direito constitucional ao silêncio.

Revela-se inconsistente o primeiro fundamento que dá suporte à prisão cautelar em referência, cuja utilização, na espécie, desviou-se da verdadeira função que condiciona o emprego adequado desse excepcional instrumento de tutela cautelar penal.

A invocação, por juízes ou Tribunais, dos próprios fatos que constituem objeto da acusação penal não pode justificar a adoção, pelo Judiciário, da medida extrema da privação cautelar da liberdade individual do indiciado ou do réu.

Impõe-se advertir, por isso mesmo, que a prisão cautelar ("carcer ad custodiam") - que não se confunde com a prisão penal ("carcer ad poenam") - não pode ser utilizada com o objetivo de infligir punição à pessoa que sofre a sua decretação. Não traduz, a prisão cautelar, em face da estrita finalidade a que se destina, qualquer idéia de sanção. Constitui, ao contrário, instrumento destinado a atuar "em benefício da atividade desenvolvida no processo penal" (BASILEU GARCIA, "Comentários ao Código de Processo Penal", vol. III/7, item n. 1, 1945, Forense), tal como esta Suprema Corte tem proclamado:

"A PRISÃO PREVENTIVA - ENQUANTO MEDIDA DE NATUREZA CAUTELAR - NÃO TEM POR OBJETIVO INFLIGIR PUNIÇÃO ANTECIPADA AO INDICIADO OU AO RÉU.

- A prisão preventiva não pode - e não deve - ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia.

A prisão preventiva - que não deve ser confundida com a prisão penal - não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal."

(RTJ 180/262-264, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Daí a clara advertência do Supremo Tribunal Federal, que tem sido reiterada em diversos julgados, no sentido de que se revela absolutamente inconstitucional a utilização, com fins punitivos, da prisão cautelar, pois esta não se destina a punir o indiciado ou o réu, sob pena de manifesta ofensa às garantias constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal, com a conseqüente (e inadmissível) prevalência da idéia - tão cara aos regimes autocráticos - de supressão da liberdade individual, em um contexto de julgamento sem defesa e de condenação sem processo (HC 93.883/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).

Isso significa, portanto, que o instituto da prisão cautelar - considerada a função exclusivamente processual que lhe é inerente - não pode ser utilizado com o objetivo de promover a antecipação satisfativa da pretensão punitiva do Estado, pois, se assim fosse lícito entender, subverter-se-ia a finalidade da prisão preventiva, daí resultando grave comprometimento ao princípio da liberdade (HC 89.501/GO, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

É por isso que esta Suprema Corte tem censurado decisões que fundamentam a privação cautelar da liberdade na gravidade objetiva do delito ou, então, no reconhecimento de fatos que se subsumem à própria descrição abstrata dos elementos que compõem a estrutura jurídica do tipo penal:

"(...) PRISÃO PREVENTIVA - NÚCLEOS DA TIPOLOGIA - IMPROPRIEDADE. Os elementos próprios à tipologia bem como as circunstâncias da prática delituosa não são suficientes a respaldar a prisão preventiva, sob pena de, em última análise, antecipar-se o cumprimento de pena ainda não imposta (...)." (HC 83.943/MG, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - grifei)

Essa asserção permite compreender o rigor com que o Supremo Tribunal Federal tem examinado a utilização, por magistrados e Tribunais, do instituto da tutela cautelar penal, em ordem a impedir a subsistência dessa excepcional medida privativa da liberdade, quando inocorrente hipótese que possa justificá-la:

"Não serve a prisão preventiva, nem a Constituição permitiria que para isso fosse utilizada, a punir sem processo, em atenção à gravidade do crime imputado, do qual (...) 'ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória' (CF, art. 5º, LVII).

O processo penal, enquanto corre, destina-se a apurar uma responsabilidade penal; jamais a antecipar-lhe as conseqüências.

Por tudo isso, é incontornável a exigência de que a fundamentação da prisão processual seja adequada à demonstração da sua necessidade, enquanto medida cautelar, o que (...) não pode reduzir-se ao mero apelo à gravidade objetiva do fato (...)." (RTJ 137/287, 295, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - grifei)

Entendo, por tal razão, que os fundamentos subjacentes ao ato decisório emanado da ilustre magistrada de primeira instância, que decretou a prisão cautelar da ora paciente, conflitam com os estritos critérios que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal consagrou nessa matéria.

Inquestionável, desse modo, que a gravidade do crime não basta, por si só, para justificar a privação cautelar da liberdade individual do paciente.

O Supremo Tribunal Federal tem advertido que a natureza da infração penal não se revela circunstância apta, só por si, para legitimar a prisão cautelar daquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado.

Esse entendimento vem sendo observado em sucessivos julgamentos proferidos no âmbito desta Corte, ainda que o delito imputado ao réu seja legalmente classificado como crime hediondo (RTJ 172/184, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - RTJ 182/601-602, Rel. p/ o acórdão Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - HC 89.503/RS, Rel. Min. CEZAR PELUSO - RHC 71.954/PA, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, v.g.):

"A gravidade do crime imputado, um dos malsinados 'crimes hediondos' (Lei 8.072/90), não basta à justificação da prisão preventiva, que tem natureza cautelar, no interesse do desenvolvimento e do resultado do processo, e só se legitima quando a tanto se mostrar necessária: não serve a prisão preventiva, nem a Constituição permitiria que para isso fosse utilizada, a punir sem processo, em atenção à gravidade do crime imputado, do qual, entretanto, 'ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória' (CF, art. 5º, LVII)." (RTJ 137/287, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - grifei)

"A ACUSAÇÃO PENAL POR CRIME HEDIONDO NÃO JUSTIFICA A PRIVAÇÃO ARBITRÁRIA DA LIBERDADE DO RÉU.

- A prerrogativa jurídica da liberdade - que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) - não pode ser ofendida por atos arbitrários do Poder Público, mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, eis que, até que sobrevenha sentença condenatória irrecorrível (CF, art. 5º, LVII), não se revela possível presumir a culpabilidade do réu, qualquer que seja a natureza da infração penal que lhe tenha sido imputada." (RTJ 187/933-934, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Há, ainda, outro grave equívoco em que incidiu, na espécie, a magistrada local, pois apoiou o decreto de prisão cautelar no fato de a acusada, ora paciente, haver exercido o direito ao silêncio, abstendo-se, legitimamente, desse modo, por efeito do concreto exercício de uma prerrogativa constitucional, de cooperar com o juízo processante.

Com efeito, o decreto de prisão cautelar da ora paciente apoiou-se, extensamente, no fato de essa acusada haver exercido a prerrogativa constitucional de permanecer em silêncio, ainda que perante a própria autoridade judiciária processante (Apenso 03, fls. 492).

Cabe advertir, presentes tais razões, que esses fundamentos - ausência de colaboração da ré com as autoridades públicas e exercício da prerrogativa constitucional contra a auto-incriminação - não podem erigir-se em fator subordinante da decretação ou da preservação da prisão cautelar de qualquer réu, como resulta claro da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

"(...) PRISÃO PREVENTIVA - APLICAÇÃO DA LEI PENAL - POSTURA DO ACUSADO - AUSÊNCIA DE COLABORAÇÃO. O direito natural afasta, por si só, a possibilidade de exigir-se que o acusado colabore nas investigações. A garantia constitucional do silêncio encerra que ninguém está compelido a auto-incriminar-se. Não há como decretar a preventiva com base em postura do acusado reveladora de não estar disposto a colaborar com as investigações e com a instrução processual. (...)." (HC 83.943/MG, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - grifei)

Ao assim proceder, a ilustre magistrada de primeira instância exigiu, de um réu (a ora paciente), comportamento processual que não lhe podia ser exigido nem imposto, eis que o princípio constitucional contra a auto-incriminação, por revestir-se de conteúdo abrangente, compreende diversas prerrogativas jurídicas, dentre as quais a que protege qualquer pessoa submetida a atos de persecução penal, valendo referir, por expressivo, o direito de não produzir provas contra si mesma (LUIZ FLÁVIO GOMES, "Direito Penal - Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos/Pacto de San José da Costa Rica", vol. 4/106, em co-autoria com VALÉRIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI, 2008, RT; SYLVIA HELENA DE FIGUEIREDO STEINER, "A Convenção Americana Sobre Direitos Humanos e Sua Integração ao Processo Penal Brasileiro", p. 125, item n. 4.4.7, 2000, RT, v.g.).

É importante assinalar, neste ponto, que, em virtude do princípio constitucional que protege qualquer pessoa contra a auto-incriminação, ninguém pode ser constrangido a produzir provas contra si próprio (RTJ 141/512, Rel. Min. CELSO DE MELLO - RTJ 180/1125, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - HC 68.742/DF, Rel. p/ o acórdão Min. ILMAR GALVÃO, v.g.), tanto quanto o Estado, em decorrência desse mesmo postulado, não tem o direito de tratar suspeitos, indiciados ou réus como se culpados (já) fossem (RTJ 176/805-806, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Tais conseqüências - direito individual de não produzir provas contra si mesmo, de um lado, e obrigação estatal de não tratar qualquer pessoa como culpada antes do trânsito em julgado da condenação penal, de outro - qualificam-se como direta emanação da presunção de inocência, hoje expressamente contemplada no texto da vigente Constituição da República (CF, art. 5º, inciso LVII).

Não se pode desconhecer, por relevante, que a presunção de inocência, além de representar importante garantia constitucional estabelecida em favor de qualquer pessoa, não obstante a gravidade do delito por ela supostamente cometido, também impõe significativa limitação ao poder do Estado, pois impede-o de formular, de modo abstrato, e por antecipação, juízo de culpabilidade contra aquele que ainda não sofreu condenação criminal transitada em julgado.

Na realidade, ao delinear um círculo de proteção em torno da pessoa do réu - que nunca se presume culpado, até que sobrevenha irrecorrível sentença condenatória -, o processo penal revela-se instrumento que inibe a opressão estatal e que, condicionado por parâmetros ético-jurídicos, impõe, ao órgão acusador, o ônus integral da prova, ao mesmo tempo em que faculta, ao acusado, que jamais necessita demonstrar a sua inocência, o direito de defender-se e de questionar, criticamente, sob a égide do contraditório, todos os elementos probatórios produzidos pelo Ministério Público.

É sempre necessário registrar que a pessoa sob investigação penal do Estado não está obrigada a responder ao interrogatório das autoridades policiais ou judiciárias, podendo exercer, sempre, de modo inteiramente legítimo, em face dos órgãos estatais, o direito ao silêncio (HC 94.016/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), além de não precisar demonstrar a sua inocência, eis que, como se sabe, incumbe, ao Ministério Público, a comprovação plena da culpabilidade dos que sofrem a "persecutio criminis":

"(...) AS ACUSAÇÕES PENAIS NÃO SE PRESUMEM PROVADAS: O ÔNUS DA PROVA INCUMBE, EXCLUSIVAMENTE, A QUEM ACUSA.

- Os princípios constitucionais que regem o processo penal põem em evidência o nexo de indiscutível vinculação que existe entre a obrigação estatal de oferecer acusação formalmente precisa e juridicamente apta, de um lado, e o direito individual à ampla defesa, de que dispõe o acusado, de outro. É que, para o acusado exercer, em plenitude, a garantia do contraditório, torna-se indispensável que o órgão da acusação descreva, de modo preciso, os elementos estruturais ('essentialia delicti') que compõem o tipo penal, sob pena de se devolver, ilegitimamente, ao réu, o ônus (que sobre ele não incide) de provar que é inocente.

É sempre importante reiterar - na linha do magistério jurisprudencial que o Supremo Tribunal Federal consagrou na matéria - que nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete, ao réu, demonstrar a sua inocência. Cabe, ao contrário, ao Ministério Público, comprovar, de forma inequívoca, para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência (Decreto-lei nº 88, de 20/12/37, art. 20, n. 5). Precedentes." (HC 83.947/AM, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Não custa rememorar que aquele contra quem foi instaurada persecução penal tem, dentre outras prerrogativas básicas, o direito de permanecer em silêncio (HC 75.257/RJ, Rel. Min. MOREIRA ALVES - HC 75.616/SP, Rel. Min. ILMAR GALVÃO - HC 78.708/SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - HC 79.244/DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - HC 79.812-MC/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO - RE 199.570/MS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO), o direito de não produzir elementos de incriminação contra si próprio, o direito de não ser compelido a apresentar provas que lhe comprometam a defesa nem constrangido a participar, ativa ou passivamente, de procedimentos probatórios que lhe possam afetar a esfera jurídica, tais como a reprodução simulada do evento delituoso (HC 69.026/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO - RHC 64.354/SP, Rel. Min. SYDNEY SANCHES) e o fornecimento de padrões gráficos (HC 77.135/SP, Rel. Min. ILMAR GALVÃO) ou de padrões vocais (HC 83.096/RJ, Rel. Min. ELLEN GRACIE), para efeito de perícia criminal, consoante adverte a jurisprudência desta Suprema Corte:

"1. AÇÃO PENAL. Prisão preventiva. Réu que não compareceu à delegacia de polícia para depoimento. Fato que lhe não autoriza a custódia cautelar decretada. Ofensa à garantia constitucional de não auto-incriminação. Exercício do direito ao silêncio. Constrangimento ilegal caracterizado. HC concedido. Precedentes. Inteligência do art. 5º, LXIII, da CF, e art. 312 do CPP. O só fato de o réu, quando indiciado ou investigado, não ter comparecido à delegacia de polícia para prestar depoimento, não lhe autoriza decreto da prisão preventiva. (...)." (HC 89.503/RS, Rel. Min. CEZAR PELUSO - grifei)

"PENAL. PROCESSO PENAL. 'HABEAS CORPUS'. COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO - CPI. DIREITO AO SILÊNCIO. TESTEMUNHA. AUTO-ACUSAÇÃO. LIMINAR DEFERIDA PARA DESOBRIGAR A PACIENTE DA ASSINATURA DE TERMO DE COMPROMISSO. PREJUDICIALIDADE SUPERVENIENTE.

I - É jurisprudência pacífica no Supremo Tribunal Federal a possibilidade do investigado ou acusado permanecer em silêncio, evitando-se a auto-incriminação.

II - Liminar deferida para desobrigar a paciente da assinatura de Termo de Compromisso. (...)." (HC 89.269/DF, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI - grifei)

Essa orientação, por sua vez, reflete-se no magistério jurisprudencial de outros Tribunais (HC 57.420/BA, Rel. Min. HAMILTON CARVALHIDO - HC 82.009/BA, Rel. Min. DENISE ARRUDA, v.g.):

"CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. 'HABEAS CORPUS'. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. DETERMINAÇÃO DO JUÍZO 'A QUO' DOS PACIENTES PRODUZIREM PROVA CONTRA SI MESMOS. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA NÃO AUTO-INCRIMINAÇÃO - 'NEMO TENETUR SE DETEGERE'.

1. A auto-incriminação não encontra guarida na norma penal brasileira, nem na doutrina, muito menos na jurisprudência, o que legitima a insurgência dos Pacientes contra a determinação da prática de exercício probatório que possa reverter em eventual condenação penal. 2. Através do princípio 'nemo tenetur se detegere', visa-se proteger qualquer pessoa indiciada ou acusada da prática de delito penal, dos excessos e abusos na persecução penal por parte do Estado, preservando-se, na seara dos direitos fundamentais, especialmente neste caso, a liberdade do indivíduo, evitando que o mesmo seja obrigado à compilação de prova contra si mesmo, sob pena de constrangimento ilegal, sanável por 'habeas corpus'. Cuida-se de prerrogativa inserida constitucionalmente nos princípios da ampla defesa (art. 5º, inciso LV), da presunção de inocência (art. 5º, inciso LVII) e do direito ao silêncio (art. 5º, inciso LXIII)." (HC 2005.04.01.023325-6/PR, Rel. Des. Federal TADAAQUIHIROSE - TRF/4ª Região - grifei)

Mostra-se extremamente precisa, neste ponto a respeito da inadmissibilidade de o Poder Público constranger o indiciado ou acusado a cooperar na investigação penal dos fatos e a produzir provas contra si próprio, a lição ministrada pelo eminente Professor ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO ("O Princípio da Presunção de Inocência na Constituição de 1988 e na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica", "in" Revista do Advogado/AASP nº 42, p. 30/34, 31/32, 1994):

"Outra decorrência do preceito constitucional, ainda no terreno da prova, diz respeito à impossibilidade de se obrigar o acusado a colaborar na apuração dos fatos. O direito ao silêncio, também erigido à categoria de dogma constitucional pela Constituição de 1988 (artigo 5º, LXIII), representa exigência inafastável do processo penal informado pela presunção de inocência, pois admitir-se o contrário equivaleria a transformar o acusado em objeto da investigação, quando sua participação só pode ser entendida na perspectiva da defesa, como sujeito processual. Diante disso, evidente que o seu silêncio jamais pode ser interpretado desfavoravelmente (...)." (grifei)

Não constitui demasia assinalar, por necessário, analisada a função defensiva sob uma perspectiva global, que o direito do réu à não auto-incriminação e à presunção de inocência, especialmente quando preso, além de traduzir expressão concreta do direito de defesa (mais especificamente da prerrogativa de autodefesa), também encontra suporte legitimador em convenções internacionais que proclamam a essencialidade dessa franquia processual, que compõe o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, enquanto complexo de princípios e de normas que amparam qualquer acusado em sede de persecução criminal, mesmo que se trate de réu processado por suposta prática de crimes hediondos ou de delitos a estes equiparados.

A justa preocupação da comunidade internacional com a preservação da integridade das garantias processuais básicas reconhecidas às pessoas meramente acusadas de práticas delituosas tem representado, em tema de proteção aos direitos humanos, um dos tópicos mais sensíveis e delicados da agenda dos organismos internacionais, seja em âmbito regional, como o Pacto de São José da Costa Rica (Artigo 8º, § 2º, "g"), aplicável ao sistema interamericano, seja em âmbito universal, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Artigo 14, n. 2), celebrado sob a égide da Organização das Nações Unidas, instrumentos que reconhecem, a qualquer réu, dentre outras prerrogativas eminentes, o direito de não produzir provas contra si próprio e o de não ser considerado culpado pelo Estado antes do trânsito em julgado da condenação penal, cabendo referir, por relevante, nesse sentido, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia (Artigo 48, n. 1) e a Convenção Européia dos Direitos Humanos (Artigo 6º, n. 2).

Vale registrar, ainda, expressivo fragmento extraído do "Livro Verde" apresentado pela Comissão das Comunidades Européias (Bruxelas, 26.4.2006, p. 5 e 6), que analisa, precisamente, o tema concernente ao princípio da presunção de inocência no âmbito da União Européia:

"A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem ('TEDH') compreende orientações respeitantes aos elementos constitutivos da presunção de inocência. Apenas a pessoa 'objecto de uma acusação penal' dela pode beneficiar. Os arguidos devem ser tratados como inocentes até que o Estado, através das autoridades responsáveis pela acção penal, reúna elementos de prova suficientes para convencer um tribunal independente e imparcial da sua culpabilidade. A presunção de inocência 'exige [...] que os membros de um tribunal não partam da idéia pré-concebida de que o argüido cometeu a infracção que lhe é imputada'. O órgão jurisdicional não pode declarar um arguido culpado antes de estar efectivamente provada a sua culpabilidade. Um argüido não deve ser detido preventivamente excepto por razões imperiosas. Se uma pessoa for sujeita a prisão preventiva, deve beneficiar de condições de detenção compatíveis com a sua inocência presumida. O ónus da prova da sua culpabilidade incumbe ao Estado e todas as dúvidas devem ser interpretadas a favor do arguido. Este deve ter a possibilidade de se recusar a responder a quaisquer perguntas. Normalmente o arguido não deve contribuir para a sua própria incriminação. Os seus bens não devem ser confiscados sem um processo equitativo." (grifei)

Em suma: a invocação do direito ao silêncio é inteiramente oponível a qualquer autoridade ou agente do Estado, e o exercício dessa prerrogativa constitucional não legitima a adoção de medidas que afetem ou restrinjam a esfera jurídica daquele contra quem se instaurou a "persecutio criminis", notadamente a decretação de sua prisão cautelar.

Essa é a razão pela qual não tem sentido decretar-se a prisão cautelar de alguém, como sucedeu na espécie em exame, sob o fundamento (absolutamente equivocado) de que o réu não se mostrou disposto a colaborar com o Estado, recusando-se, até mesmo, a expor a sua versão para os fatos que lhe foram imputados.

Em caso virtualmente idêntico ao que se examina na presente impetração, tive o ensejo de proferir decisão que restou assim ementada:

"PRISÃO CAUTELAR. INCONSISTÊNCIA DOS FUNDAMENTOS EM QUE SE APÓIA A DECISÃO QUE A DECRETOU: GRAVIDADE OBJETIVA DO CRIME, NÃO-VINCULAÇÃO DO RÉU AO DISTRITO DA CULPA E RECUSA DO ACUSADO EM APRESENTAR A SUA VERSÃO PARA OS FATOS DELITUOSOS. INCOMPATIBILIDADE DESSES FUNDAMENTOS COM OS CRITÉRIOS FIRMADOS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM TEMA DE PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE INDIVIDUAL. DIREITO DO INDICIADO/RÉU DE NÃO SER CONSTRANGIDO A PRODUZIR PROVAS CONTRA SI PRÓPRIO. DECISÃO QUE, AO DESRESPEITAR ESSA PRERROGATIVA CONSTITUCIONAL, DECRETA A PRISÃO PREVENTIVA DO ACUSADO. INADMISSIBILIDADE. NATUREZA JURÍDICA E FUNÇÃO DA PRISÃO CAUTELAR. DOUTRINA. PRECEDENTES. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.

- A privação cautelar da liberdade individual - qualquer que seja a modalidade autorizada pelo ordenamento positivo (prisão em flagrante, prisão temporária, prisão preventiva, prisão decorrente de decisão de pronúncia e prisão resultante de condenação penal recorrível) - não se destina a infligir punição antecipada à pessoa contra quem essa medida excepcional é decretada ou efetivada. É que a idéia de sanção é absolutamente estranha à prisão cautelar ('carcer ad custodiam'), que não se confunde com a prisão penal ('carcer ad poenam'). Doutrina. Precedentes.

- A utilização da prisão cautelar com fins punitivos traduz deformação desse instituto de direito processual, eis que o desvio arbitrário de sua finalidade importa em manifesta ofensa às garantias constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal. Precedentes.

- A gravidade em abstrato do crime não basta, por si só, para justificar a privação cautelar da liberdade individual do suposto autor do fato delituoso.

O Supremo Tribunal Federal tem advertido que a natureza da infração penal não se revela circunstância apta a legitimar a prisão cautelar daquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado. Precedentes.

- A ausência de vinculação do indiciado ou do réu ao distrito da culpa não constitui, só por si, motivo autorizador da decretação da sua prisão cautelar. Precedentes.

- A recusa em responder ao interrogatório policial e/ou judicial e a falta de cooperação do indiciado ou do réu com as autoridades que o investigam ou que o processam traduzem comportamentos que são inteiramente legitimados pelo princípio constitucional que protege qualquer pessoa contra a auto-incriminação, especialmente aquela exposta a atos de persecução penal.

O Estado - que não tem o direito de tratar suspeitos, indiciados ou réus como se culpados fossem (RTJ 176/805-806) - também não pode constrangê-los a produzir provas contra si próprios (RTJ 141/512).

Aquele que sofre persecução penal instaurada pelo Estado tem, dentre outras prerrogativas básicas, o direito (a) de permanecer em silêncio, (b) de não ser compelido a produzir elementos de incriminação contra si próprio nem constrangido a apresentar provas que lhe comprometam a defesa e (c) de se recusar a participar, ativa ou passivamente, de procedimentos probatórios que lhe possam afetar a esfera jurídica, tais como a reprodução simulada do evento delituoso e o fornecimento de padrões gráficos ou de padrões vocais, para efeito de perícia criminal. Precedentes.

- O exercício do direito contra a auto-incriminação, além de inteiramente oponível a qualquer autoridade ou agente do Estado, não legitima, por efeito de sua natureza constitucional, a adoção de medidas que afetem ou restrinjam a esfera jurídica daquele contra quem se instaurou a 'persecutio criminis'. Medida cautelar deferida." (HC 96.219-MC/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, "in" Informativo/STF nº 523/2008)

Sendo assim, tendo presentes as razões expostas, defiro o pedido de medida liminar, para, até final julgamento desta ação de "habeas corpus", suspender, cautelarmente, a eficácia da decisão que decretou a prisão preventiva da ora paciente (Processo nº 001/2.07.0045908-2, 2ª Vara do Júri - 2º Juizado da comarca de Porto Alegre/RS, Apenso 03, fls. 487), não obstante mantida pela decisão de pronúncia, que se limitou a reiterar os mesmos (e equivocados) fundamentos (fls. 47/48), expedindo-se, imediatamente, em favor dessa mesma paciente, se por al não estiver presa, o pertinente alvará de soltura.

Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da presente decisão ao E. Superior Tribunal de Justiça (HC 103.446/RS), ao E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (HC 70023011448 - fls. 37) e à MM. Juíza de Direito da 2ª Vara do Júri - 2º Juizado da comarca de Porto Alegre/RS (Processo nº 001/2.07.0045908-2).

Publique-se.

Brasília, 02 de junho de 2009.

Ministro CELSO DE MELLO
Relator




JURID - Habeas corpus. Súmula 691/STF. [02/06/09] - Jurisprudência

 



 

 

 

 

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