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segunda-feira, 9 de novembro de 2009

JURID - Ação penal. Prisão preventiva. [09/11/09] - Jurisprudência


Ação penal. Prisão preventiva. Decreto fundado na necessidade de restabelecimento da ordem pública


Supremo Tribunal Federal - STF.

DJe nº 195 Divulgação 15/10/2009 Publicação 16/10/2009 Ementário nº 2378 - 3

SEGUNDA TURMA

HABEAS CORPUS 98.776-1 SANTA CATARINA

RELATOR: MIN. CEZAR PELUSO

PACIENTE(S): ROSINEI FERRARI

IMPETRANTE(S): ROSINEI FERRARI

ADVOGADO(A/S): ANDREAS OTTO WINCKLER E OUTRO(A/S)

COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1. AÇÃO PENAL. Prisão preventiva. Decreto fundado na necessidade de restabelecimento da ordem pública, abalada pela gravidade do crime, na conveniência da instrução criminal, por morar o réu em outra comarca, e na necessidade de garantia de aplicação da lei penal, para evitar o desaparecimento do acusado. Exigência do clamor público e da credibilidade da Justiça. Inadmissibilidade. Inexistência de elementos concretos de perturbação ao regular andamento do processo, ou de fatos que representem risco à aplicação da lei penal. Razões que não autorizam a prisão cautelar. Ofensa ao artigo 5º, LVII, da CF. Precedentes. É ilegal o decreto de prisão preventiva baseado em suposta exigência do clamor público e da credibilidade da Justiça, para restabelecimento da ordem social abalada pela gravidade do fato, bem como aquele fundado na conveniência da instrução criminal ou na garantia de aplicação da lei pena, sem elementos concretos de perturbação ao regular andamento do processo ou de risco de fuga do acusado.

2. HABEAS CORPUS. Ação penal. Pronúncia. Homicídio doloso. Desclassificação para a forma culposa. Necessidade de exame da prova. Questão dependente de cognição plena. Inadmissibilidade na via excepcional. HC denegado. Precedentes. Pedido de desclassificação de delito proclamado em sentença de pronúncia não cabe no âmbito do processo de habeas corpus, quando dependa de reexame da prova.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência da Senhora Ministra ELLEN GRACIE, na conformidade da ata de julgamento e da notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em deferir, em parte, o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, os Senhores Ministros CELSO DE MELLO e JOAQUIM BARBOSA.

Brasília, 08 de setembro de 2009.

Ministro CEZAR PELUSO - Relator

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - (Relator): 1. Trata-se de habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado em favor de ROSINEI FERRARI, contra decisão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que lhe denegou a ordem no HC nº 96.847.

O paciente foi preso em flagrante e, posteriormente, denunciado como incurso nas penas dos artigo 121, caput, por 16 vezes, 129, caput, parágrafos 1º e 2º e 163, parágrafo único, III, todos do Código Penal. Segundo a acusação, o réu dirigia um caminhão de grande porte, ciente de problemas nos freios, quando chegou a local onde houvera acidente na pista. Completamente desgovernado, "colheu todas as pessoas que se encontravam na pista, ocasionando a morte de 16 pessoas, lesões corporais leves em mais de 12 pessoas e lesões corporais graves e gravíssimas em mais de 50 pessoas" (fl. 89).

A defesa requereu a concessão de liberdade provisória, que lhe foi negada pelo juízo de primeiro grau. Sustentou a decisão que, além das induvidosas materialidade e autoria do delito, a prisão está fundamentada na garantia da ordem pública, uma vez que "a tragédia ensejada pelo requerente trouxe repercussão local, regional e nacional, e está sendo divulgada em todos os meios de comunicação, há dias seguidos" (fl. 24).

Após transcrever algumas das notícias divulgadas sobre o fato em diversos veículos de comunicação, reiterou o magistrado que "a soltura do requerente causará revolta, comoção social e descrédito da população NACIONAL para com a JUSTIÇA CATARINENSE" (fl. 27). Além disso, afirmou que a prisão se mostra necessária para "evitar-se que o indiciado cometa mais delitos, isto na condução de veículo automotor, já que sua conduta demonstrou um alto grau de irresponsabilidade e a prática de um ato criminoso e suicida" (fl. 28).

Aduziu, ainda, que a prisão se justifica pela conveniência da instrução criminal, "porque a comunidade necessita receber uma resposta rápida, muito antes que os fatos caiam no esquecimento". Alega que "se o requerente for libertado, retornará para Cascavel/PR, o que exigirá deste juízo a expedição de inúmeras cartas precatórias (..). Logo, não resta a menor dúvida de que a soltura do indiciado atrasará sobremaneira o trâmite do processo-crime" (fl. 29).

Sustentou, ademais, que também se encontra presente no caso o fundamento da garantia da aplicação da lei penal, para "impedir o desaparecimento do autor da infração" (fl. 29).

Por fim, alegou que o Código de Processo Penal, no artigo 323, proíbe, expressamente, a concessão de liberdade provisória nos crimes punidos com reclusão em que a pena mínima cominada seja superiora dois anos (fls. 31-33).

Pronunciado o réu, na modalidade de dolo eventual (fls. 88-170), foi mantida a prisão cautelar pelos mesmos fundamentos.

A defesa impetrou habeas corpus ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina, requerendo a concessão de liberdade provisória. A ordem foi também indeferida, verbis:

"PRISÃO EM FLAGRANTE. ACIDENTE DE TRÂNSITO COM INÚMERAS VÍTIMAS. DESNECESSIDADE DO ENCARCERAMENTO. PROVA DA MATERIALIDADE E INDÍCIOS SUFICIENTES DA AUTORIA. PACIENTE RESIDENTE EM COMARCA DIVERSA AO DISTRITO DA CULPA. CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL E GARANTIA DE APLICAÇÃO DA LEI PENAL E DA ORDEM PÚBLICA. OFENSA AO PRINCIPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. INOCORRÊNCIA. ANÁLISE DE PROVA, PARA AVERIGUAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE EXCLUDENTE DE ILICITUDE E INEXISTÊNCIA DE DOLO. IMPOSSIBILIDADE NA VIA ESTREITA DO WRIT.

ALEGAÇÃO DE PREGARIAS CONDIÇÕES DE SAÚDE. ATENDIMENTO MEDICO NO PRESÍDIO, SE NECESSÁRIO, QUANDO FOR RECOLHIDO, HAJA VISTA QUE PERMANECE EM ENTIDADE HOSPITALAR DESDE O ACIDENTE. INEXISTÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM DENEGADA" (fls. 36-44).

Impetrou-se, então, habeas corpus ao Superior Tribunal de Justiça. A ordem foi indeferida, nos termos da ementa:

"HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO. PACIENTE DENUNCIADO POR DIVERSOS HOMICÍDIOS DOLOSOS E LESÕES CORPORAIS. ACIDENTE DE TRÂNSITO. PACIENTE MOTORISTA DE CAMINHÃO QUE, DESGOVERNADO, ATROPELOU VÁRIAS PESSOAS. PROVÁVEL EXISTÊNCIA DE 15 A 20 VÍTIMAS FATAIS E INÚMEROS FERIDOS. PRISÃO PREVENTIVA. AUTORIA E PROVA DA MATERIALIDADE. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E APLICAÇÃO DA LEI PENAL. EXTREMA GRAVIDADE E REPERCUSSÃO SOCIAL. PARECER DO MPF PELA DENEGAÇÃO DA ORDEM DENEGADA.

1. Ao contrário do que sustenta a impetração, encontram-se presentes os requisitos necessários para a decretação da custódia cautelar do paciente - garantia da ordem pública e conveniência da instrução criminal -, a par de indícios suficientes de autoria e prova da materialidade dos delitos.

2. O indiciado teve sua CNH expedida em data próxima ao do acidente e realizava sua segunda viagem na condição de motorista profissional. Assim, pelo alto grau de irresponsabilidade da conduta perpetrada - já que, segundo informações colhidas durante a lavratura do presente APF, conduzia o veículo em alta velocidade, desrespeitando flagrantemente as normas de trânsito -, sua liberação no presente momento representa um aval à sua conduta e, quiçá, a autorização para que continuasse exercendo sua atividade de motorista profissional, situação que ameaçaria a ordem pública.

3. Em princípio, foram 15 ou 20 os mortos pelo acidente, havendo, também, inúmeros feridos; portanto, a soltura do requerente causará grande comoção social e descrédito da população nacional para com a Justiça Catarinense.

4. As condições subjetivas favoráveis do paciente, tais como primariedade, bons antecedentes, residência fixa e trabalho licito, por si sós, não obstam a decretação da prisão provisória, se há nos autos elementos hábeis a recomendar a sua manutenção, como se verifica no caso em apreço. Precedentes.

5. Parecer do MPF pela denegação da ordem.

6. Ordem denegada." (fls. 186-187)

Sustenta, aqui, a defesa, a inexistência de fundamentos para a prisão provisória. Aduz que a fase de colheita de provas e oitiva de testemunhas já está concluída, não havendo nenhum prejuízo à instrução criminal que possa ser provocado pela liberdade do paciente. Alega, ainda, inexistirem elementos concretos a sustentar a presunção de que o paciente se furtará a comparecer aos atos do processo.

Com relação ao fundamento de garantia da ordem pública, salienta que a prisão foi decretada com o propósito explícito de satisfazer o clamor social, o que tem sido repelido por este Tribunal.

Argumenta, ainda, com a inexistência de elementos capazes de indicar ocorrência de dolo eventual no caso, o que afastaria o julgamento do feito da competência do Tribunal do Júri. Justifica o pedido com base nas conclusões da perícia oficial, bem como de outras provas produzidas durante a instrução.

Requer, liminarmente, a expedição de alvará de soltura em favor do paciente. No mérito, requer: (i) a confirmação da liminar; e (ii) seja cassada a decisão de pronúncia, para, reconhecida a inexistência de dolo eventual no caso, remeter o processo ao juízo singular.

A liminar foi concedida (fls. 195-201).

A Procuradoria-Geral da República manifestou-se pela concessão da ordem (fls. 212-218).

É o relatório.

VOTO

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - (Relator): 1. Quanto à prisão preventiva do paciente, concedi a liminar nos seguintes termos:

"Como se cansa esta Corte de proclamar, a prisão preventiva, medida extrema, que implica sacrifício á liberdade individual, deve ordenar-se com redobrada cautela, á vista, sobretudo, da sua função meramente instrumental, enquanto tende a garantir a eficácia de eventual provimento definitivo de caráter condenatório, bem como perante a garantia constitucional da presunção de não-culpabilidade, devendo fundar-se em razões objetivas e concretas, capazes de corresponder ás hipóteses legais (fattispecie abstratas) que a autorizem.

Daí, já ter notado este Tribunal:

'A PRISÃO PREVENTIVA ENQUANTO MEDIDA DE NATUREZA CAUTELAR NÃO TEM POR FINALIDADE PUNIR, ANTECIPADAMENTE, O INDICIADO OU O RÉU.

- A prisão preventiva não pode - e não deve - ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia. A prisão preventiva - que não deve ser confundida com a prisão penal - não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerte, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal'. (HC nº 79.857, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ 04/05/2001)

Como já se viu, a decisão que negou a liberdade provisória ao paciente apóia-se em três supostas causas concorrentes de custódia cautelar. (i) exigência do clamor popular e da credibilidade da justiça, necessidade de prevenção de novos acidentes de trânsito e garantia da ordem pública; (ii) necessidade de rápida prestação jurisdicional e conveniência da instrução criminal; (iii) risco de fuga e conveniência da instrução criminal. Fundamenta-se, ainda, em alegada vedação legal (artigo 323, CPP).

Nenhuma procede.

Segundo jurisprudência imperturbável da Corte, o chamado clamor público provocado pelo fato atribuído ao paciente, sobretudo quando confundido, como no caso, com sua repercussão nos veículos de comunicação de massa, não substancia fundamento idôneo á decretação da prisão preventiva (cf. HC nº 87.343, Rel. Min. CEZAR PELUSO, DJ 22/06/2007; HC nº 79.781, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ 09/06/2000; HC rP 84.662, Rel. Mn. EROS GRAU, DJ 22/10/2004; HC nº 83.828, Rel. Min. SEPÚLLVEDA PERTENCE, DJ 20/20/2004 e onde se invocam os HC nº 71.289, Rel. Min. ILMAR GALVÃO; HC nº 78.425, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA; HC nº 79.200, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE; HC nº 80.719, Rel. Min. CELSO DE MELLO). A idéia de revolta da população como fonte legitimados da prisão cautelar, por assimilação á idéia de desordem, cuja eliminação custaria a liberdade do acusado, transpira a inconstitucionalidade e, salvo precedentes isolados, nunca foi tolerada pelo Supremo Tribunal Federal (cf. FAUZI HASSAN CHOUKR, Código de Processo Penal - Comentários Consolidadas e Crítica Jurisprudencial, Rio de janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 499-500).

Na verdade, o fundamento da prisão preventiva nesse caso é antecipar a punição ao trânsito em julgado de sentença condenatória. Mas encarceramento cautelar deve obedecer ao critério da indispensabilidade sob a ótica instrumental, a não ser que se presuma a lesão criminosa antes de julgada a causa. E esta Corte tem afirmado que tal presunção afronta diretamente a garantia inscrita no artigo 5º, LVII, da Constituição da República, que não permite impor ao réu, enquanto pendente a causa penal, nenhuma consequência danosa fundada ou vinculada diretamente a um juízo definitivo de culpabilidade:

'EMENTA: AÇÃO PENAL. Prisão preventiva. Decreto fundado na necessidade de restabelecimento da ordem pública, abalada pela gravidade do crime. Exigência do clamor público e da credibilidade da Justiça. Inadmissibilidade. Razão que não autoriza a prisão cautelar. Ofensa ao artigo 5º, LVII, da CF. Precedentes. É ilegal o decreto de prisão preventiva baseado em suposta exigência do clamor público e da credibilidade da justiça, para restabelecimento da ordem social abalada pela gravidade do fato' (HC Nº 93.315, Rel. Min. CEZAR PELUSO, DJ 27/06/2008. No mesmo sentido: HC 86.758, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ 01/09/2006; HC 69.950, Rel. Min. FRANCISCO REZEK, RTJ 128/147; HC 84.997, Min. Rel. CEZAR PELUSO, DJ 08/06/2007; HC 83.806, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, DJ 18/06/2004; HC 84.073, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJ 28/05/2004; HC 85.036, Rel. Min. EROS GRAU, DJ 25/02/2005; HC 85.268, Rel. Min. GILMAR MENDES, DJ 15/04/2005; HC 86.371, Rel. Min. CEZAR PELUSO, JSTF 331/477; HC 89.501, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ 16/03/2007).

Além disso, no que toca ao clamor público, como já se advertiu com alqueires de mão, a incompatibilidade entre a presunção de periculosidade a prisão cautelar 'se revela ainda mais grave quando se tem em conta a referência à fundão de pronta reação ao delito como forma de aplacar o alarme social; aqui se parte de um dado emotivo, instável e sujeito a manipulações, para impor à consciência do juiz uma medida muito próxima à idéia de justiça sumária' (GOMES FILHO, ANTONIO MAGALHÃES. Presunção de Inocência e Prisão Cautelar, São Paulo: Saraiva, 1991, p. 68. Grifei).

A esse respeito, afirmei, no HC 84.311, que:

Aceitar a comoção como justificativa hábil á decretação da prisão preventiva significa antecipar, para a prisão processual, funções que são próprias da pena de prisão, sanção que somente pode ser imposta por decisão condenatória com trânsito em julgado, o que não é o caso.

A garantia da ordem pública ainda se justificaria pela necessidade de se evitar que o acusado retome o ofício de motorista profissional, dado o seu 'alto grau de irresponsabilidade e a prática de um ato criminoso e suicida'. Ora, além de se basear em fatos sobre os quais ainda não há juízo definitivo de culpabilidade, a ordem pública, sob tal fundamento, poderá ser resguardada por medida assecuratória diversa da prisão preventiva, como a suspensão da permissão ou da habilitação paria dirigir veículo automotor (artigo 294 do CTB), o que lhe põe em evidência a completa desnecessidade.

Já com relação á conveniência da instrução criminal, a aceitar-se o constrangedor argumento de que a prisão se justifica para evitar a demora processual decorrente da expedição de cartas precatórias, a conclusão inevitável é a de que todos os processados fora da comarca de sua residência devem ser obrigatoriamente acautelados. A evidente incompatibilidade de tal argumento com os princípios constitucionais reguladores do sistema processual penal dispensa maiores considerações. Basta, aqui, reafirmar que a prisão processual somente se justifica, ao fundamento da conveniência da instrução criminal, quando houver elementos concretos de perturbação ao regular andamento do processo,imputáveis ao acusado (HC 86.371, Rel. Min. CEZAR PELUSO, JSTF 331/477)

Quanto ao risco de 'desaparecimento do acusado', que justificaria a cautela a fim de assegurar a aplicação da lei penal, noto que a decisão que manteve a custódia não aponta nenhum elemento concreto que indique o risco de fuga do paciente. E, como tenho decidido, quando desajudado ou carente de base factual, o apelo retórico a possível risco á aplicação da pena não pode sustentar decretação de prisão preventiva (HC nº 83.516, Rel. Min. CEZAR PELUSO, DJ 23/05/2008).

Finalmente, a decisão alude ao artigo 323, I, do CPP, para sustentar a ilegalidade da concessão de liberdade provisória aos acusados por delitos cuja pena mínima seja superior a dois anos.

Veja-se, a propósito, o teor do mencionado artigo:

'Art. 323. Não será concedida fiança:

I - nos crimes punidos com reclusão em que a pena mínima cominada for superior a 2 (dois) anos.'

De início, ressalto que o parágrafo único do artigo 310 do mesmo diploma legal determina a concessão de liberdade provisória nos casos de não ocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva. Assim, diversamente do que afirma a decisão impugnada, há previsão legal expressa para a concessão do benefício, seja a infração afiançável ou não.

Dito isto, é caso de lembrar que a Constituição Federal estatui, em seu artigo 5º, LXVI, que 'ninguém será levado à prisão eu nela mantida quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança' (grifei). Diante da prescrição constitucional, e da expressa autorização legal, não vejo como prosperar o argumento esposado na decisão.

Sobre o assunto, leciona Vicente GRELO FILHO:

'Problema que o legislador e o intérprete deverão enfrentar é o de se saber se a proibição de fiança atinge, também, nessas infrações, a liberdade provisória sem fiança, conforme prevista no Código de Processo Penal (artigo 310, parágrafo único), hipótese em que o juiz pode colocar o réu em liberdade se, em situação análoga, ele, juiz, não decretaria a prisão preventiva. Essa forma de liberdade aplica-se a qualquer infração penal, inclusive as inafiançáveis (...). [O] próprio constituinte, em outro inciso, faz a distinção entre liberdade provisória com ou sem fiança (inc. LXVI), de modo que, se desejasse abranger as duas hipóteses com a proibição, teria a elas se referido expressamente' (Tutela Constitucional das Liberdades. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 135, grifei).

Mantidas as circunstâncias que determinaram a concessão da liminar, deve esta ser confirmada.

2. Quanto ao argumento de que o paciente está sendo processado por autoridade incompetente, não assiste razão aos impetrantes.

O paciente responde à ação penal perante o Tribunal do Júri, uma vez pronunciado por homicídio praticado na modalidade de dolo eventual. Pretendem os impetrantes a desqualificação do crime para homicídio culposo, pelos argumentos expendidos às fls. 13-18, sustentando não haver necessidade de análise do conjunto probatório para concluir pela procedência das alegações (fl. 14).

Analisar tal pretensão, no entanto, parece-me tarefa que refoge ao alcance e propósito da estreita via do habeas corpus.

Aplicam-se ao caso as mesmas razões adotadas pela Corte para não admitir trancamento de ação penal na via de habeas corpus, salvo em casos de patente atipicidade do comportamento, inocência do acusado, ou incidência de causa extintiva de punibilidade.

Para acolher a pretensão da defesa, seria necessária, aqui, a reabertura de contraditório de provas, desde as conclusões da perícia técnica até os depoimentos das testemunhas, coisa de todo inviável em habeas corpus. Nesse sentido:

"PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. JÚRI. DESCLASSIFICAÇÃO DO DELITO DE HOMICÍDIO QUALIFICADO PARA LESÕES CORPORAIS SEGUIDAS DE MORTE. ALEGAÇÃO DE DEFEITO NA FORMULAÇÃO DOS QUESITOS: INOCORRÊNCIA I. - Inexistência do alegado constrangimento, dado que os quesitos foram formulados tendo em vista a tese de negativa de autoria, única sustentada pela defesa. II. - O pedido de desclassificação de homicídio qualificado para lesões corporais demanda análise de prova, inviável nos estreitos limites do habeas corpus. III. - Recurso improvido." (RHC nº 84.176, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, DJ 25.06.2004)

Ademais, tenho que a discussão acerca do elemento subjetivo da conduta do paciente lhe impõe o julgamento perante o juízo competente, o Tribunal do Júri:

"HOMICÍDIO - TENTATIVA - DESCLASSIFICAÇÃO - LESÕES CORPORAIS. Exsurgindo a ambiguidade, impõe-se a submissão do acusado ao juiz natural, que é o tribunal do júri. A este, então, cabe decidir pela existência, ou não, de crime doloso contra a vida." (HC nº 75.433, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJ 13103/1998)

3. Ante o exposto, concedo parcialmente a ordem, para, confirmando a liminar, determinar que o paciente aguarde em liberdade o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória, se por ai não estiver preso.

Ministro CEZAR PELUSO - Relator

EXTRATO DE ATA

HABEAS CORPUS 98.776-1

PROCED.: SANTA CATARINA

RELATOR: MIN. CEZAR PELUSO

PACTE.(S): ROSINEI FERRARI

IMPTE.(S): ROSINEI FERRARI

ADV.(A/S): ANDREAS OTTO WINCKLER E OUTRO (A/S)

COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Decisão: A Turma, à unanimidade, deferiu, em parte, o pedido de habeas corpos, nos termos do voto do Relator. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, os Senhores Ministros Celso de Mello e Joaquim Barbosa. 2ª Turma, 08.09.2009.

Presidência da Senhora Ministra Ellen Gracie. Presentes à sessão os Senhores Ministros Cezar Peluso, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Ausente, justificadamente, o Senhor Ministro Celso de Mello.

Subprocurador-Geral da República, Dr. Francisco Adalberto Nóbrega.

Carlos Alberto Cantanhede - Coordenador




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