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terça-feira, 4 de maio de 2010

JURID - ACP: Celesc e Aneel [04/05/10] - Jurisprudência


Celesc e Aneel devem pagar R$ 5 milhões por apagão na Ilha



AÇÃO CIVIL PÚBLICA Nº 2004.72.00.015310-2/SC

AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA
ADVOGADO: MAX ZUFFO e VANESSA WENDHAUSEN CAVALAZZI GOMES
AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
RÉU: CENTRAIS ELÉTRICAS DE SANTA CATARINA S/A - CELESC
ADVOGADO: FÁBIO VALENTIM DA SILVA, MILTON DE QUEIRÓZ GARCIA, OTÁVIO LUíZ FERNANDES, MONIQUE PITSICA
RÉU: AGêNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA ANEEL


SENTENÇA

I - RELATÓRIO

O Ministério Público do Estado de Santa Catarina e o Ministério Público Federal, em litisconsórcio, após o insucesso das investidas extrajudiciais pertinentes, propõem a presente ação civil pública contra os réus supranominados, afirmando, em síntese:

a) Em 29/10/03 uma equipe de técnicos da CELESC, composta por cinco funcionários, foi designada "... para efetuar emendas em um cabo isolado de alumínio, de 400mm², de um dos alimentadores de 13,8Kv (CQS-12), que havia sido recém instalado na Ponte Colombo Machado Salles, em substituição ao cabo até então existente que foi danificado por uma descarga atmosférica em março de 2003, a qual causou danos ao seu isolamento elétrico..." (fls. 04), tendo o trabalho comportado duas etapas, a primeira consistindo em emendas fora da galeria da Ponte, para o que se utilizou soprador térmico para a solda, alimentado por gerador posicionado no solo, enquanto na segunda etapa, em razão do espaço reduzido do túnel de acesso à galeria, optou-se "... por levar um maçarico alimentado por GLP (Gás Liquefeito de Petróleo), vulgarmente denominado 'liquinho', com a finalidade de efetuar a 'solda' daquela última emenda termocontrátil" (fls. 06)

b) O trabalho consistia na emenda de quatro tubos de material termocontrátil, sendo que, no momento em que o funcionário Evaldo Rocha Florianos aquecia a terceira emenda, e segundo suas declarações, surgiu " 'fogo do lado esquerdo do depoente' 'de baixo para cima' 'entre os cabos e a parede' e que o fogo 'parecia uma bola'. (fls. 07), todos os funcionários empreenderam fuga do local, abandonando o "liquinho" aceso, estando impedidos de enfrentarem o fogo em razão de não portarem extintor de incêndio, ocasionando o salto dos funcionários Evaldo e Jaques para as águas da Baía Sul, onde foram resgatados pelos Bombeiros depois de 1h15min.

c) O incêndio provocou a interrupção do fornecimento de energia elétrica na parte insular de Florianópolis, por duas vezes, a primeira entre 13h30min do dia 29/10/03 e 20h30min do dia 31/10/03, e a segunda entre 19h30min até às 23h do dia 01/11/03, atingindo 79,5% da população da Capital, ou 135.432 unidades consumidoras, tudo "devido a fragilidades do sistema de distribuição de energia elétrica" (fls. 07), causando o "caos generalizado" (fls. 09) e comprometendo inúmeras atividades, conforme noticiado pelos meios de comunicação e integrantes do material ora oferecido à Justiça Federal em suportes digitais, o que motivou a decretação do estado de emergência no Município, conforme o Decreto Municipal 2.067/03.

d) Após 55 horas de trabalho de equipe dos técnicos da CELESC e outras concessionárias restabeleceu-se, de forma precária, a energia elétrica, iniciando-se diversas investigações a fim de apurar as causas do blecaute, discriminando as apurações realizadas pelo Ministério Público Federal e Estadual (inquérito civil nº 01/2003/29ªPJ), ainda em andamento, o realizado pelo Corpo de Bombeiros de Santa Catarina, pela Delegacia Regional do Trabalho em Santa Catarina, e, finalmente, o realizado pela ANEEL, todos conformes em apontar a responsabilidade da CELESC, isto porque "apurou-se que a interrupção no fornecimento de energia elétrica decorreu do incêndio/explosão ocorrido justamente em virtude dos trabalhos de solda e emenda termocontrátil efetuados por funcionários da CELESC em um dos cabos de média tensão que passa no interior da ponte, e que, operado o sinistro, seus efeitos deletérios não foram evitados..." (fls. 15) emergindo os pressupostos da responsabilidade civil da concessionária do serviço público.

e) O Relatório de Investigação e Acidente de Trabalho "Apagão" e Anexos, elaborado pela Delegacia Regional do Trabalho, subscrito pelos engenheiros Geraldo Mollick Brandão e Rui Camillo Ruas Filho, a partir da ótica da proteção ao trabalhador, concluiu pelo descumprimento de normas trabalhistas, notadamente o item 18.20 da NR 18 do MTE, concluindo que "o ocorrido não foi um fato eventual, de causas fortuitas, mas sim um fato de causas diversas, conforme identificadas e especificadas anteriormente. Ou seja, foram identificados os seguintes tipos de fatores causais: 1) do ambiente; 2) da tarefa; 3) da organização e gerenciamento - das atividades, de pessoal, de materiais, da empresa; 4) do material - máquinas, ferramentas, equipamentos, matérias-primas; 5) do indivíduo; 6) de manutenção." (fls. 19)

f) O Laudo Pericial elaborado pelo Corpo de Bombeiros (nº 7/2003), a partir de ótica estritamente técnica e relacionada aos agentes físico-químicos, concluiu que "o agente ígneo que determinou o surgimento do incêndio foi a chama do maçarico utilizado nos serviços de manutenção na galeria da ponte... promoveu a ignição dos gases e vapores acumulados na parte confinada da galeria, produzidos pelo processo de combustão dos serviços de recomposição do isolamento dos cabos." (fls. 20), ligando tais fatos à atividade dos funcionários da CELESC, acrescentando-se ainda que a referida corporação, por meio do ofício nº 01/2004/BPM, esclareceu sobre as divergências entre os depoimentos prestados no momento do resgate dos funcionários e aqueles prestados após, durante a investigação e por escrito, o que torna o laudo, ainda que partindo das declarações escritas dos funcionários, e que divergiram das primeiras declarações, inequívoco ao apontar a relação entre o incêndio na galeria e a atividade desenvolvida pela CELESC.

g) O Relatório de Fiscalização "RF-CELESC-02/2003-SFE" elaborado pela ANEEL no âmbito do processo administrativo nº 48500.004.004194/03-98, que, além de investigar as causas do acidente, também partiu das repercussões sobre o Contrato de Concessão, além de considerar os aspectos técnicos, concluiu: "constatou-se que a Celesc tinha conhecimento prévio da fragilidade do sistema de transmissão de 138 KV para atendimento à ilha de Santa Catarina tanto que estavam previstas obras de fechamento do anel de 138 Kv dentro da ilha, bem como de um novo suprimento. A fiscalização constatou que a interrupção no fornecimento de energia elétrica à ilha de Santa Catarina ocorreu devido a não observância, por parte dos técnicos da Celesc, das normas e procedimentos da empresa para este tipo de manutenção e, em decorrência disto, ocorreu a explosão e a danificação dos cabos de 138 KV que atendem a Ilha. É importante também destacar que, a empresa não possuía um plano de emergência para atendimento, à Ilha de Santa Catarina, no caso de perda de qualquer uma das linhas de 138 KV, apesar de ter conhecimento prévio que haveria corte de carga de até a 120 MW nesta situação." (fls. 24)

h) Apontam os autores a inobservância das normas e procedimentos adequados, referindo-se ao não uso dos equipamentos necessários e inobservância dos procedimentos obrigatórios para a operação em locais confinados, ferindo o art. 39 do CDC e subcláusula primeira da cláusula segunda do contrato de concessão nº 56/99, além da NBR 14787 e, finalmente, as próprias advertências do fabricante das emendas e constantes do manual de procedimento.

i) Afirmam ainda a inexistência de um plano prévio de trabalho, eis que no inquérito civil apurou-se, a partir dos depoimentos dos cinco funcionários envolvidos, "os quais foram uníssonos em esclarecer que as funções que seriam lá desenvolvidas não foram pré-determinadas e nem distribuídas entre eles, bem como que referida equipe não tinha nem sequer um coordenador pré-definido para dirigir os trabalhos... que ninguém testou o liquinho antes de usá-lo, no local do acidente, e que ninguém ficou previamente responsável por tal tarefa." (fls. 30 e 32), o que, inclusive, motivou o auto de infração expedido pela ANEEL no processo administrativo nº 48500.004195/03-98, multando a CELESC em R$ 7.917.512,87 (sete milhões, novecentos e dezessete mil, quinhentos e doze reais e oitenta e sete centavos).

j) Aduzem a falta de treinamento para execução do serviço, contrariando frontalmente a cláusula quinta, item XIII, do contrato de concessão nº 56/99, conforme extrai-se dos depoimentos dos funcionários da CELESC e do Relatório produzido pela Delegacia Regional do Trabalho em Santa Catarina, de modo que "a ausência de capacitação para aquela operação em particular teve reflexos negativos não só na ocorrência do incêndio/explosão propriamente ditos, como também na falta de preparo para evitar ou minimizar as conseqüências do evento." (fls. 37), acrescentando que, embora ciente, a CELESC deixou de adquirir equipamento detector de gás.

l) Dizem que não havia um plano de emergência para a hipótese de perda de uma linha de transmissão, o que foi admitido pela própria CELESC na resposta ao ofício nº 586/2003 da ANEEL e destacado por esta autarquia em seu Relatório de Fiscalização, segundo o qual " 'A Celesc não tinha alternativa preparada, não possuía todos os materiais necessários para a construção e não tinha um trajeto definido para a linha de transmissão provisória' circunstância que a levou a 'realizar várias adaptações de materiais e de trajeto da linha de transmissão provisória'." (fls. 39)

m) Esclarecem que não havia seguro das linhas de transmissão, descumprindo a obrigação prevista na cláusula quinta, item IV, do contrato de concessão nº 56/99, permitindo o prejuízo aos consumidores de energia.

n) Constatam que a CELESC tinha prévio conhecimento sobre a vulnerabilidade do sistema de distribuição de energia para a "Ilha de Santa Catarina", eis que os dois únicos sistemas de transmissão são localizados no mesmo ponto, no interior da Ponte Colombo Machado Salles, pelo "fato de as duas únicas linhas que ligam o continente à ilha passarem por um mesmo ponto, no interior da ponte Colombo Salles, apesar de existir outras possibilidades, como, por exemplo, por via da ponte Pedro Ivo Campos, sugeriam já desde aquela época a ocorrência do evento", com o que era previsível que um acidente da natureza do presente atingisse ambos os sistemas, sendo o tema da ampliação e modificação das instalações abordado já no próprio contrato de concessão nº 56/99 em sua cláusula quarta, conforme a própria constatação da ANEEL, a qual concluiu que "No plano decenal de expansão 1998/2007 do GCPS-Eletrobrás (página 285) estava prevista a entrada em operação da obra para o ano de 1999, sendo postergada constantemente pela Celesc, e finalmente prevista no planejamento qüinqüenal da empresa ciclo 2003-2007, para fevereiro de 2004. Na fiscalização realizada nos dias 3 e 4 de novembro de 2003 em Florianópolis, constatou-se que a referida obra ainda não tinha sido licitada e, portanto, não iniciada... Cabe ainda ressaltar que, na ação de fiscalização realizada em dezembro de 2002 na Celesc, em resposta ao ofício nº 512/2002-SFE-Aneel, de 18 de novembro de 2002, que solicitava da empresa a apresentação dos pontos críticos e obras previstas, a empresa informou que não considerava o atendimento a Ilha de Santa Catarina um ponto crítico e os demais já haviam sido diagnosticados e as soluções estão sendo implantadas." (fls. 42), salientando os autores que o problema técnico, segundo a ANEEL, "se dá 'devido ao fato de não existir a interligação entre a subestação de Ilha Centro e Trindade', deficiência que poderia ser solucionada pela 'construção da subestação Mauro Ramos e interligações', pois 'irá proporcionar maior confiabilidade ao sistema elétrico pelo fechamento do anel entre a subestação Ilha Centro e Trindade' ", sendo ainda necessário providenciar-se uma "nova fonte de alimentação, que segundo o planejamento qüinqüenal ciclo 2002-2006, era a construção da LT 230 Kv Palhoça Eletrosul-Ilha Sul, prevista para novembro de 2004.", culminando a ANEEL por concluir que "Na avaliação da ocorrência de 29 de outubro de 2003, constatou-se que a Celesc tinha conhecimento prévio da fragilidade do sistema de transmissão de 138 KV para atendimento à ilha de Santa Catarina tanto que estavam previstas obras de fechamento do anel de 138 Kv dentro da ilha, bem como de um novo suprimento... a empresa não possuía um plano de emergência para atendimento, à ilha de Santa Catarina, no caso de perda de qualquer uma das linhas de 138 KV, apesar de ter conhecimento prévio que haveria corte de carga de até 120 MW nesta situação" (fls. 43), mesma conclusão do Sr. Engenheiro Carlos Gallo, que elaborou parecer requisitado pelo Ministério Público, ao dizer que "O que se conclui de todo este episódio é a pouca importância dada, pela Direção da CELESC, aos estudos elaborados pelos órgãos de planejamento e o descompromisso com as datas ali avençadas, pouco importando as conseqüências advindas de seu não cumprimento" (fls. 46)

o) Discorrem sobre a responsabilidade da ANEEL, que "não agiu de forma eficaz para instar a Concessionária a suprir suas omissões e, por conseqüência, a evitar os danos aos consumidores, ou ao menos amenizá-los de sobremaneira." (fls. 46), marcando a ineficiência na fiscalização preventiva daquelas atividades, além do que, acrescentam, a multa aplicada em desfavor da CELESC deve ser revertida em favor da cidade de Florianópolis.

p) Sustentam a responsabilidade civil objetiva pela interrupção do fornecimento de energia elétrica em razão dos danos de vultosa monta aos consumidores, com fundamento nos artigos 37 § 6º da CF, 43 do CC e 2º, 3º, 14, 17 e 22 do CDC, uma vez que os inúmeros pedidos de indenização dirigidos à CELESC por consumidores foram afastados, ilegalmente, por documento padrão, que teria considerado o evento um caso fortuito, quando, em verdade, "houve defeito na prestação do serviço por parte da fornecedora, circunstância apta a ensejar sua responsabilização civil." (fls. 53)

q) Dizem que o serviço público foi prestado de modo inadequado, ferindo os artigos 6º e 7º da Lei 8.987/95 e 22 do CDC.

r) Quanto à indenização, postulam por indenização líquida a cada uma das unidades consumidoras, em valor mínimo, com a definição do quantum debeatur, expediente não vedado pela lei e que simplifica e acelera a execução do julgado, tudo porque já há uma "fórmula prevista no Apêndice 4 do Anexo III do Contrato de Concessão celebrado pela CELESC... a qual tem por objeto a fixação de multa para os casos de corte indevido no fornecimento da energia elétrica por parte da Concessionária." (fls. 59/60), denominada fórmula DIC (duração de interrupção por consumidor), que deve aplicar-se por analogia e em favor do consumidor e já em tutela antecipada, e, sucessivamente apenas, postulam a condenação genérica tal como prevista no artigo 95 do CDC.

s) Esclarecem que a referida fórmula DIC "tem natureza indenizatória e foi concebida justamente para ser aplicada quando a Concessionária transgride padrão de continuidade no fornecimento de energia elétrica, ou seja, exatamente para a hipótese presente... tanto é verdade que a CELESC, por força da Resolução nº 24/2000 da Aneel, aplicou-a automática e compulsoriamente, só que apenas em benefício dos consumidores enquadrados na opção de faturamento do Grupo A... não o fazendo para os consumidores enquadrados no Grupo B... pois a obrigação de indenizar automática e compulsoriamente só existe para aqueles...", (fls. 65), sendo mediante solicitação para os do Grupo B, ocorrendo violação ao princípio da isonomia, mesmo porque não foram tais consumidores informados deste seu direito, motivo pelo qual, "o que se pretende... a título de antecipação de tutela, é satisfazer um direito líquido e certo dos consumidores que ainda não foram indenizados pela aplicação (automática) da aludida fórmula, cujos pagamentos podem se operar mediante compensação dos valores creditados nas faturas de energia elétrica." (fls. 67), pedindo, sucessivamente, contra a CELESC, "a obrigação de fazer (art. 84, § 3º do CDC e art. 461 do CPC) consubstanciada em informar aos consumidores (enquadrados no 'Grupo B') que, segundo determinação judicial acolhida por ação do Ministério Público, possuem o direito de serem indenizados... dos danos materiais... mediante a aplicação de fórmula prevista no contrato de Concessão, desde que haja solicitação expressa no prazo de até 60 contado do dia que encerrar a divulgação abaixo explicitada." (fls. 71)

t) Pugnam pelo reconhecimento judicial dos danos morais coletivos decorrentes dos "momentos de angústia cujas incontáveis dificuldades não podem ser fielmente retratadas por frias palavras impressas nesta petição." (fls. 71), com amparo no art. 5º, V e X, da CF, ressaltando que, "a justa e completa penalização de ambas as demandas será um marco na história nacional, pois nesse universo em que há inúmeros e diversificados serviços públicos concedidos, tanto as Concessionárias quanto as Agências Reguladoras, de fato submetidas ao império das leis e alheias ao manto da impunidade, certamente atuarão com mais eficiência e respeito aos destinatários dos serviços." (fls. 84)

u) Pugnam ainda pela concessão da antecipação de tutela, com fulcro no art. 461 do CPC, para impor obrigações de fazer às rés, consistentes: 1) na construção da subestação Mauro Ramos e interligação da subestação Ilha Centro com a Subestação Trindade, com o fechamento da rede em anel, a fim de dar confiabilidade ao sistema, eis que "a renitente ausência de interligação da subestação Ilha Centro com a subestação Trindade para o fechamento do sistema em anel pode ocasionar nova interrupção de grande parte do fornecimento de energia elétrica..." (fls. 89); 2) no treinamento para aperfeiçoamento de pessoal; 3) elaboração de plano de emergência a fim de garantir o fornecimento contínuo e ininterrupto de energia; 4) contratação de seguro das linhas de transmissão; 5) instalação de sistema de monitoramento por câmeras de vídeo do acesso às galerias da ponte Colombo Machado Salles e outras medidas protetivas.

v) Desenvolvem a tese da juridicidade da reversão da multa imposta pela ANEEL à CELESC e destinada à ELETROBRÁS em favor dos consumidores de Florianópolis, ou, sucessivamente, aos consumidores do Estado de Santa Catarina, uma vez que baseada no inciso IV do art. 6º da Resolução 318, de 06/10/98 e art. 1º da Resolução Normativa 46, de 10/03/04, que deu nova redação ao art. 1º da Resolução Normativa nº 459, de 05/09/03, todas passíveis da declaração incidental da inconstitucionalidade na ação civil pública, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal no julgamento da Reclamação nº 1733/MC/SP, relatado pelo Ministro Celso de Mello, apontando a inconstitucionalidade formal na afronta direta aos artigos 2º, 5º, II e 84, IV, da Constituição Federal, que limita ao Chefe do Poder Executivo o poder regulamentar, conforme doutrina de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, e traçando a distinção entre o exercício do poder regulamentar e o poder de regulamentação, esclarecendo ainda a afronta aos princípios da legalidade e da separação de funções, culminando por dizer que "O ato normativo em questão, a pretexto de dar destino aos recursos arrecadados pela agência com a imposição de multas às concessionárias, extrapolou os limites da Lei nº 9.648/98, que acometeu à ANEEL a atribuição de fixar multas administrativas aos concessionários, permissionários e autorizados de instalações e serviços de energia elétrica (art. 4º), e bem assim do Decreto Presidencial nº 2.335/97, que regulamentou a lei instituidora da agência, entregando-lhe a competência para impor a sanção de multa e definir os procedimentos administrativos necessários a sua aplicação, cobrança e pagamento (art. 17, parágrafo primeiro). O art. 1º da Resolução nº 459/03, alterado pelo art. 1º da Resolução nº 46/04, ao determinar que os recursos arrecadados com a cobrança de multas devem ser utilizados, enquanto requerido, exclusivamente, para dar suporte à implantação do Programa Nacional de Universalização do Acesso e Uso da Energia Elétrica - 'Luz Para Todos', ultrapassou os limites técnicos sobre os quais lhe era lícito dispor, fazendo inserir no ordenamento, por meio absolutamente inadequado, critérios político-administrativos em evidente intromissão na esfera de decisões do Chefe do Poder Executivo, quiçá do Legislativo. A respeito, aliás, realça o Professor José Maria Pinheiro Madeira: 'Ultrapassar os limites técnicos ao acrescentar as normas reguladoras critérios político-administrativos onde não deviam existir, caracterizará invasão de poder próprio à esfera de decisões do poder legislativo." (fls. 103), pedindo a providência em tutela antecipada.

x) Deduzem ainda a tese da inconstitucionalidade material do art. 1º da Resolução nº 459/03, alterado pelo art. 1º da Resolução Normativa nº 46/04, ambas da ANEEL, uma vez que, na destinação dos valores arrecadados a título de multa, discrimina inconstitucionalmente os consumidores brasileiros, afrontando o artigo 5º da Constituição Federal, além de ferir a razoabilidade e a proporcionalidade, com espeque no artigo 5º LIV da Constituição Federal.

z) Com fulcro no artigo 6º VIII do CDC, requerem a inversão do ônus da prova.

Requerem, em antecipação de tutela:

"5.1. condenar as Centrais Elétricas de Santa Catarina S/A - CELESC, a indenizar, desde logo, parte dos prejuízos ocasionados pelo blecaute aos consumidores da ilha de Florianópolis enquadrados no "Grupo B" - pois os do "Grupo A" já o foram -, mediante a aplicação da fórmula referente à Duração de Interrupção por Consumidor (DIC) prevista no art. 21, I, da Resolução da ANEEL nº 24/00 (doc. 455), ou seja, tripla aplicação da fórmula DIC: para a violação de padrões mensal, trimestral anual.

O pagamento dessa indenização parcial poderá ser feito mediante compensação do respectivo valor a ser creditado nas suas faturas de energia elétrica dos consumidores enquadrados no "Grupo B" - procedimento idêntico ao adotado pela Concessionária para os do "Grupo A" -, obrigatoriamente no prazo de até 2 (dois) meses imediatos e subseqüentes ao mês em que se operar a intimação do deferimento deste pedido, prazo este a ser respeitado sob pena de imposição de multa diária de R$ 1.000,00 (mil reais) para cada consumidor que não for indenizado tempestivamente (vide subitem " 2.6.1.2" retro).

Sucessivamente (art. 289 do CPC), na hipótese de não ser acolhida essa pretensão antecipatória, pede-se a antecipação da tutela, sem justificação prévia, para efeito de impor à CELESC a obrigação de fazer (art. 84, § 3º do CDC e art. 461 do CPC) consubstanciada em informar aos consumidores (enquadrados no "Grupo B") que, segundo determinação judicial acolhida por ação do Ministério Público, possuem o direito de serem indenizados (ainda que parcialmente) dos danos materiais suportados pelo "apagão" iniciado em outubro de 2003, mediante a aplicação de fórmula prevista no contrato de Concessão, desde que haja solicitação expressa no prazo de 60 (sessenta) contado do dia que encerrar a divulgação abaixo explicitada, referente ao texto auto-explicativo que deverá acompanhar as faturas para pagamento de energia elétrica.

Divulgação: Referida informação deverá se dar de forma adequada, clara e precisa, com texto inteligível mesmo para o leigo, no prazo de até 30 (trinta) dias contado da intimação da medida, sob pena de multa diária (§ 4º do art. 84 do CDC) de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais) por atraso, mediante ampla divulgação semanal na imprensa escrita e televisionada, por 3 (três) dias consecutivos a cada semana, num período de 1 (um) mês, bem como por via de texto auto-explicativo que deverá acompanhar por 2 (dois) meses ininterruptos as faturas para pagamento da energia elétrica dos consumidores enquadrados no "Grupo B", juntamente com formulário contendo texto padrão com requerimento para aplicação da fórmula, independentemente e sem prejuízo de quaisquer outras medidas indenizatórias, sob pena de multa diária aqui estabelecida (vide subitem "2.6.1.2" retro).

5.2. imposição de obrigação de fazer às Centrais Elétricas de Santa Catarina S/A - CELESC, consistente na:

5.2.1. apresentação, em até 30 (trinta) dias contado da intimação, de cronograma de obras e providências necessárias à construção da subestação Mauro Ramos e a interligação da subestação Ilha-Centro (conectada à subestação Palhoça - que fica no continente) com a subestação Trindade (igualmente conectada à subestação de Palhoça), ou seja, fechamento em rede do sistema, sob pena de multa diária de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais) por atraso; e

5.2.2. conclusão das obras e início de operação tanto da subestação Mauro Ramos como da subestação Ilha-Centro coma subestação Trindade, ou seja, fechamento em rede do sistema, no prazo de até 2 (dois) anos contados da intimação do deferimento da medida, sob pena de multa mensal de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) por atraso (vide subitem "2.6.2.1" retro)

5.3. imposição de obrigação de fazer à Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, consiste na fiscalização da CELESC no que tange à implementação das obras e providências indicadas no tópico anterior (5.2), sob pena de imposição de multa diária de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais) por atraso no primeiro caso (subitem 5.2.1) e de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) por atraso na segunda hipótese (subitem 5.2.2).

5.4. imposição de obrigação de fazer às Centrais Elétricas de Santa Catarina S/A - CELESC, consubstanciada em apresentar, em até 60 (sessenta) dias contados da intimação do deferimento da medida, cronograma de realização de cursos de treinamento e capacitação para aperfeiçoamento de pessoal, notadamente àqueles funcionários cuja atividade é a instalação e manutenção do sistema de distribuição de energia elétrico em "pontos estratégicos", sob pena de imposição de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por atraso (vide subitem 2.6.2.2 retro).

5.5. imposição de obrigação de fazer à Agência Nacional de Energia Elétrica ANEEL, consubstanciada na fiscalização da CELESC no que tange a implementação da providência indicada no tópico anterior (5.4), sob pena de imposição de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por atraso (vide subitem 2.6.2.2 retro).

5.6. imposição de obrigação de fazer às Centrais Elétricas de Santa Catarina - CELESC, concernente em apresentarem, em até 60 (sessenta) dias contados da intimação do deferimento da medida, um plano de emergência com parâmetros genéricos de modo a atender situações simulares à vivenciada em outubro e novembro de 2003, sob pena de imposição de multa diária de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais) por atraso (vide subitem 2.6.2.3 retro).

5.7. imposição de obrigação de fazer à Agência Nacional de Energia Elètrica - ANEEL, concernente na fiscalização da CELESC no que tange a implementação da providência indicada no tópico anterior (5.6), sob pena de imposição de multa diária de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais) por atraso (vide subitem 2.6.2.3 retro).

5.8. imposição de obrigação de fazer às Centrais Elétricas de Santa Catarina S/A - CELESC, consiste em promover, em até 60 (sessenta) dias contados da intimação do deferimento da medida, a contratação do seguro das linhas de transmissão de energia elétrica, nos termos da Cláusula Quinta, inciso IV, do Contrato de Concessão (doc. 21), sob pena de imposição de multa diária de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais) por atraso (vide subitem 2.6.2.4 retro).

5.9. imposição de obrigação de fazer à Agência Nacional de Energia Elétrica- ANEEL, consistente na fiscalização da CELESC no que tange à implementação da providência indicadas no tópico anterior (5.8), sob pena de imposição de multa diária de R$ 50.000,00(cinqüenta mil reais) por atraso (vide Subitem 2.6.2.4 retro).

5.10. imposição de obrigação de fazer às centrais Elétricas de Santa Catarina S/A - CELESC, consubstanciada instalar, em até 45 (quarenta e cinco) dias contados da intimação do deferimento do pedido, sistema de monitoramento e controle de acesso às galerias por via de câmeras de vídeo, além de outras medidas de segurança igualmente pertinentes, a critério compatíveis com o bom senso da Concessionária, sob pena de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por atraso (vide subitem 2.6.2.5).

5.11. imposição de obrigação de fazer à Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, consubstanciada na fiscalização da CELESC no que tange à implementação da providência indicadas no tópico anterior (5.10.), sob pena de imposição de multa diária de R$ 10.000,00(dez mil reais) por atraso (vide subitem 2.6.2.5).

5.12. antecipar todos os efeitos da declaração incidental de inconstitucionalidade do art. 1º da Resolução nº 459/03, alterado pelo art. 1º da Resolução nº 46/04 - igualmente inconstitucional -, por vício formal e material, e impor a obrigação de não fazer à Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, consistente em determinar que a ANEEL deixe de destinar o valor resultante da aplicação da multa proveniente do Auto de Infração nº 001/2004 (doc. 25) ao "Programa nacional de Universalização do Acesso e Uso da Energia Elétrica - LUZ PARA TODOS" previsto no art. 1º da Resolução nº 459/03, alterado pelo art. 1º da Resolução nº 46/04, sob pena de multa de R$ 8.000.000,00 (oito milhões de reais) (vide tem "3" retro)

5.13. antecipar os efeitos da declaração incidental de inconstitucionalidade do art. 1º da Resolução nº 459/03, alterado pelo art. 1º da Resolução nº 46/04 - igualmente inconstitucional -, por vício formal e material, e impor a obrigação de fazer à Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, consistente em promover a destinação do valor emergente da aplicação da multa proveniente do Auto de infração nº 001/2004 (doc. 25) em benefício dos consumidores de Florianópolis ou, não sendo esse o entendimento desse Juízo, sucessivamente (art. 489 do CPC), em prol dos consumidores catarinenses, sob pena de multa de R$ 8.000.000,00 (oito milhões de reais) em quaisquer das hipóteses dos pedidos sucessivos (vide tem "3" retro)." (fls. 111/114)

Por fim, ainda deduzem, de modo definitivo, os pedidos discriminados em fls. 114/116.

Determinado o cumprimento do disposto no art. 2º da Lei 8.437/92, o representante legal da CELESC ofereceu as informações de fls. 1970/1973, esclarecendo que possui um planejamento de execução de obras qüinqüenal, o qual vinha sendo implementado de acordo com sua capacidade financeira, com acompanhamento diário da demanda energética, que tem crescido, "para que sejam planejadas, projetadas e executadas as grandes obras imprescindíveis ao atendimento do citado crescimento." (fls. 1971)

Acrescentou que a transmissão de energia elétrica para a parte insular de Florianópolis sempre foi preocupação da empresa pública que, inclusive, investiu em materiais "consagrados no Setor Elétrico", mantendo elevado padrão de qualidade dos serviços, esclarecendo ainda que os planos e projetos de expansão vinham ocorrendo normalmente durante o ano de 2003 e que o "episódio do dia 29 de outubro de 2003, constituiu-se, sem dúvida, em um lamentável caso isolado que atingiu todos os consumidores da Celesc localizados na Ilha, deixando-os sem energia elétrica." E que "foi surpreendida pelo fato ocorrido na corriqueira manutenção..." (fls. 1971)

O evento provocou a reavaliação do cronograma de investimentos para melhoria e expansão do sistema insular, optando-se, primeiramente, por duas formas de precaução, "a primeira - que tem o condão de impedir, totalmente, que acidente idêntico àquele ocorrido em 29/10/03 venha a se repetir - que é a separação das Linhas de Transmissão de alta tensão (138.000 V.) das de baixa tensão (13.800 V.), já que estas (agora sem emendas, em cabos fabricados especialmente para a Celesc) foram deslocadas para a Ponte Governador Colombo Machado Salles..." e "a segunda... constitui na mantença da Linha de Transmissão alternativa, ligando a Ilha ao Continente, Linha esta construída em tempo recorde pelos técnicos da Celesc na citada oportunidade." (fls. 1972)

Disse que a multa aplicada pela ANEEL encontra-se em fase de discussão na esfera administrativa e que poucos consumidores solicitaram indenização, sendo que, em relação a alguns pleitos de indenização por danos ocorridos por oscilação no momento do retorno da energização das linhas, foram indeferidos por ausência de nexo de causalidade.

Concluiu dizendo que continua tomando as providências exigíveis para impedir novos fatos como estes.

Juntou ofício encaminhado originalmente à SFE/ANEEL e ainda cópia da defesa apresentada contra a multa aplicada pela Agência Reguladora.

Das informações juntadas extrai-se a conclusão do Relatório elaborado por Comissão Especial, instituída pela Resolução da Presidência da Celesc nº 752, de 03/11/03, cuja conclusão consiste:

"1. Os técnicos estavam perfeitamente aptos e habilitados para a execução das emendas dos cabos;

2. Os técnicos tinham experiência e treinamento específicos adequados;

3. As normas operacionais, inclusive as de segurança, aplicáveis à natureza dos trabalhos em curso, eram de conhecimento dos técnicos, sendo inclusive da autoria de um deles, Téc. Jacques W. Naschenweng, o principal manual da CELESC adotado para o planejamento e a execução daquele tipo de trabalho. O Manual de Procedimentos sobre REDE DE DISTRIBUIÇÃO SUBTERRÂNEA - ARFLO/DVDI/SPMD, 1999/2000, constitui o ANEXO 3 da correspondência;

4. Qualquer que seja a explicação que se admita para a origem do incêndio ou o inesperado 'clarão' conforme relatado, encontra, sem dúvida, no abandono do maçarico ligado e do 'liquinho' de 5 Kg com GLP, a causa da sua extensão e das graves conseqüências do sinistro;

5. Muito pouco se poderia exigir dos técnicos, naquele cenário, cuja descrição detalhada é apresentada no item a - DESCRIÇÃO DO CENÁRIO, com locomoção prejudicada pelas limitadas dimensões da galeria, tendo como agravantes, as consideráveis distâncias a percorrer em caso de fuga para alcançar a terra firme, a Ilha ou o Continente, e tendo abaixo as águas profundas do Oceano Atlântico. Como não reconhecer a reação natural de pânico dos técnicos em buscar a retirada mais rápida para preservação das suas vidas, que sentiram em risco?

6. Os serviços de manutenção propriamente ditos - emenda de um cabo de 13,8 KV desenergizado - se tratavam de atividade rotineira com os riscos inerentes, circunscritos aos condicionantes do local, cobertos pelos conhecimentos dos técnicos, não requerendo, portanto, a mobilização de outros recursos que não a sua delegação a cinco experientes técnicos;

7. A utilização de maçarico a base de GLP, opção dos técnicos face às limitações de espaço e impossibilidade de uso de sopradores térmicos, é prática usual no setor elétrico brasileiro e mundial para a execução de emendas termocontráteis. Nas duas emendas externas realizadas a céu aberto, foi utilizado na mesma data, o soprador térmico.

8. A hipótese de existência de gases inflamáveis residentes na galeria, anteriormente ao início dos trabalhos de emenda, como causadores do processo de combustão inicial. As condições de ventilação existentes são reduzidas, mas não impeditivas para a dissipação de gases para a atmosfera; e

9. A liberação de gases inflamáveis por ocasião do aquecimento para execução das emendas é fenômeno químico não reconhecido pelos fabricantes de cabos e emendas. Ressalte-se que emendas de mesma natureza, que esta em análise, são freqüentes em galerias estanques e não geram gases inflamáveis no seu processo (Refinaria da PETROBRÁS)." (fls. 1975/1976)

Juntaram documentos em fls. 116/2008.

Embora notificada a ANEEL, não houve informações.

Liminar parcialmente deferida (fls. 2013/2083).

Embargos de declaração, pelos autores (fls. 2091/2093).

Decisão nos embargos de declaração (fls. 2095/2097).

Agravo aviado por CELESC (fls. 2098/2099), assim como pelos autores (fls. 2133), restou conferido efeito suspensivo ao primeiro (fls. 2494/2496), assim como convertido em retido o segundo (fls. 2645).

Contestação da CELESC em fls. 2191/2249, defendendo, preliminarmente, a impossibilidade de litisconsórcio ativo entre o Ministério Público Estadual e Ministério Público Federal, com a conseqüente exclusão do órgão estadual; a ilegitimidade do Ministério Público Federal, pois só se tem admitido a atuação ministerial no pólo ativo "... quando presente o interesse social apontado... vedando categoricamente sua iniciativa quando presentes direitos divisíveis, individualizáveis e identificáveis..." (fls. 2209), certo que no caso os interesses são disponíveis, daí porque inadequada a ação, revelando a ausência de interesse do órgão federal; a descabida intervenção do Poder Judiciário na administração da empresa, nos termos do art. 2º da Constituição Federal, pois, se é "... cediço que o serviço prestado pela Requerida é essencial e requer prestação contínua, e que o direito a tais serviços é de natureza coletiva... isso não dá ao Ministério Público ou até mesmo o Poder Judiciário, legitimidade para administrar a Requerida da forma que lhes melhor convir, pois tais atos são discricionários..." (fls. 2220), evidenciando mais uma vez a falta de interesse de agir, esclarecendo que no momento do infortúnio havia planos e projetos de expansão e modernização do sistema elétrico em execução, tendo o episódio, "... único na história da Requerida..." (fls. 2222), oportunizado a reavaliação do cronograma então em execução.

No mérito, entende ausente a responsabilidade por inexistência do nexo causal, a partir da teoria da imputação que expôs, aduzindo, ademais da inexistência do nexo, também a inexistência do dano certo, o que, correlatamente, impede pedido genérico de indenização, concluindo que, no caso, "... tamanha a imprecisão e 'vaguidad' (como diria GENARO CARRIÒ) da inicial e o grau de generalidade do pedido formulado, que a hipotética sentença condenatória seria de liquidação impossível, desaguando na situação que a doutrina houve por bem denominar 'liquidação zero'." (fls. 2241/2242), concluindo pela improcedência da ação.

A Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL apresentou informações em fls. 2315/2361, postulando o descabimento da antecipação de tutela, por ausentes os requisitos, por satisfativa, e, finalmente, porque nos dias 03 e 04 de novembro de 2003 realizou ação fiscalizatória, seguindo-se a emissão, em 09/02/04, do Termo de Notificação nº 132/2003-SFE e extração do Auto de Infração nº 001/2004, inclusive com a imposição de multa, no valor de R$ 7.917.512,87, ainda pendente de reapreciação em grau de recurso junto à Diretoria da ANEEL.

Alegou que, "... neste momento, é imperioso demonstrar que a interrupção do fornecimento de energia elétrica na porção insular de Santa Catarina ocorrido no dia 29/10/03, às 13h51 min., foi causado por culpa exclusiva da CELESC e não da ANEEL." (fls. 2328), conforme apurou-se na já referida autuação, onde, por meio da Superintendência de Fiscalização de Eletricidade, "ao proceder a sua investigação acerca da causa do acidente ocorrido no interior da ponte Colombo Machado Salles, que ocasionou a interrupção no fornecimento de energia elétrica na porção insular de Santa Catarina, constatou que embora os técnicos da CELESC estivessem devidamente habilitados para poderem operar na manutenção de redes de distribuição isoladas subterrâneas, pois os referidos técnicos possuíam certificado de qualificação para a realização dessa atividade, os mesmos não agiram com a prudência e cautela necessários para proceder a manutenção em um dos circuitos de média tensão (13,8 KV) que possibilita o remanejamento de carga entre as Subestações próximas a cabeceiras das pontes que ligam o Continente à Ilha, SE COQUEIROS, SE ILHA CENTRO.

Porquanto, (i) não obedeceram as regras estabelecidas no manual de procedimento da empresa para procederem à manutenção de cabos subterrâneos; (ii) não atenderam às advertências do fabricante das emendas Raychen Produtos Irradiados LTDA; (iii) não realizaram a verificação da existência de gases no ambiente de manutenção; (iv) não realizaram o planejamento das atividades a serem executadas; e (v) não avaliaram os riscos na manutenção do cabo alimentador (CQS-12) dentre outras ações preventivas, que poderiam sem sombra de dúvidas, ter evitado o acidente em questão." (fls. 2329/2330), ressaltando que "... o fato dos técnicos da CELESC ao se utilizarem do maçarico (liquinho) para proceder a emenda termocontrátil, ao invés de um soprador térmico, foi significativo para a eclosão do evento telado, na medida em que tal instrumento foi o indutor do incêndio ocorrido no interior da Ponte Colombo Machado, conforme se verifica do Laudo de Investigação de Incêndio nº 007/CAT/CCB/2003 do Corpo de Bombeiros do Estado de Santa Catarina..." (fls. 2331), bem como não portavam os trabalhadores extintor de incêndio e não planejaram corretamente a tarefa.

Demonstrando-se "... que o referido evento decorreu exclusivamente da culpa de servidores da CELESC, não se pode admitir como pretendem os Autores em imputar responsabilidade a ANEEL por não ter fiscalizado adequadamente a concessionária, sob pena de se desconsiderar todo esforço procedido por esta Agência Reguladora ao longo desses anos no sentido de acompanhar o serviço público de distribuição da CELESC." (fls. 2331).

Relacionou todas as suas imediatas inspeções, entre os anos de 1998 e 2003, dizendo que "... a maioria dos pontos críticos relacionados nos Relatórios de fiscalização foram prontamente regularizados, cumpridos e atendidos pela Celesc e os demais foram objetos de aplicação de Autos de Infração..." (fls. 2332).

Teceu considerações sobre o processo de planejamento da expansão dos sistemas elétricos, esclarecendo que a Ilha de Santa Catarina é atendida por dois circuitos na tensão 138 Kv, suprindo as subestações Ilha Centro e Trindade, sendo que nos planos qüinqüenais da CELESC ciclos 2002/2006 e 2003/2007 havia previsão de obras importantes para o abastecimento destes sistemas, destacando-se a construção de uma linha de transmissão de 230 Kv entre Palhoça Eletrosul-Ilha Sul e a construção da subestação Mauro Ramos, aduzindo que "... ambas as construções foram adiadas pela CELESC." (fls. 2335), cabendo à concessionária "... realizar os estudos necessários para detectar os pontos críticos da sua rede de distribuição e transmissão e adotar as providências necessárias para garantir a prestação adequada do serviço público de energia elétrica a seus consumidores." (fls. 2335), aliás, nos termos do Contrato de Concessão nº 56/99, no qual "... há a previsão de encargos a serem cumpridos pela concessionária para manter a prestação do serviço público de forma adequada..." (fls. 2336), citando as cláusulas quarta e quinta e concluindo caber à "... concessionária, dentro do seu plano de gestão e de acordo com o seu planejamento elétrico, determinar o momento adequado para a construção das obras necessárias para o atendimento do seu mercado consumidor." (fls. 2338).

Aduziu que, no seu trabalho de fiscalização, buscava averiguar os pontos críticos e as providências da concessionária para saná-los, alertando que, nas fiscalizações que promoveu na concessionária durante os anos de 2000, 2001 e 2002, não constatou descumprimento das metas, "... o que indicava uma adequada prestação do serviço público realizado pela CELESC na porção insular de Santa Catarina..." (fls. 2338) e que "... a postergação da construção da Subestação Mauro Ramos, mesmo que prevista nos planejamentos qüinqüenais da Celesc nos ciclos 2002-2006 e 2003-2007, é um ato de exclusiva responsabilidade da empresa..." (fls. 2339).

Agregou aos argumentos a assertiva segundo a qual instou a concessionária a elaborar planos de emergência, dever seu, conforme art. 31, I, da Lei 8.987/95.

Defendeu que, se passível de ser responsabilizada, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição Federal, sua responsabilidade só poderia ser subjetiva, e não objetiva, pois estaria cogitando de omissão da Agência.

Apontou que o acolhimento do pedido viola o princípio da separação dos poderes, conforme art. 2º da Constituição Federal, marcando a discricionariedade da administração.

Disse que o modo de recomposição dos consumidores do Grupo B era regulado pela Resolução nº 24/2000, sendo alterado a partir de 2005, quando a indenização passou a ser compulsória, sem necessidade de solicitação de apuração individual, daí porque "... os autores ao pretenderem que os consumidores do Grupo B fossem indenizados de forma automática, sem que tal possibilidade estivesse prevista na Resolução nº 24/2000, para o ano em que ocorreu a aludida interrupção, ou seja, em 2003, agiu como legislador positivo..." (fls. 2349).

Entendeu constitucional a Resolução 459/03 ANEEL, pois a destinação dos recursos de multa ao Programa Luz Para Todos não foi arbitrária escolha da Agência, mas amoldada ao que dispõe a Lei 10.438/02, em seu artigo 13, que busca a universalização dos serviços de distribuição de energia elétrica.

Por último, destacou que não deu causa ao evento e, portanto, não se lhe pode pretender imputar responsabilidade objetiva pela pretensa omissão no dever de fiscalização, marcando a inexistência dos requisitos para a antecipação dos efeitos da tutela.

Juntou documentos de fls. 2362/2434.

A mesma Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL apresentou contestação em fls. 2438/2481, repisando, rigorosamente, os argumentos desferidos nas informações, defendendo ainda o descabimento da indenização por danos morais coletivos, primeiramente porque genéricas as alegações da existência de dano coletivo, "... sem demonstrar efetivamente o dano moral sofrido pelos consumidores do Estado de Santa Catarina pela suposta inadequação do atendimento prestado pela concessionária de serviço público local..." (fls. 2478/2479), citando precedentes que requerem a efetiva comprovação do dano moral, que não se pode apoiar em meras suposições.

Juntou documentos em fls. 2482/2493.

O Ministério Público Federal e o Ministério Público Estadual de Santa Catarina, autores, apresentaram impugnação às contestações em fls. 2498/2579, apontando, nos pontos mais relevantes, que "... a CELESC limitou-se a negar a eficácia jurídica de uma parcela extremamente limitada dos fundamentos de direito expostos pelo Ministério Público na inicial, tendo silenciado a respeito de todo o substrato fático da ação e de inúmeros fundamentos jurídicos dos pedidos formulados no feito, não tendo sequer impugnado a validade dos documentos acostados à inicial, dentre os quais destacam os laudos do Corpo de Bombeiros de Santa Catarina, o Relatório de Fiscalização 'RF-CELESC-02/2003-SFE' da ANEEL e o Relatório da Delegacia Regional do Trabalho, os quais apontaram a responsabilidade da CELESC pelo 'apagão' de 29 de outubro de 2003." (fls. 2528), concluindo então que "... a única questão em que a CELESC fez surgir uma controvérsia nessa lide foi a possibilidade, ou não de indenização dos danos advindos da interrupção no fornecimento de energia elétrica... sendo os demais fundamentos de fato e de direito incontroversos..." (fls. 2530), sendo notório o fato, e os prejuízos inerentes, consistente na longa interrupção do fornecimento de energia elétrica à Ilha de Santa Catarina.

Em tais hipóteses, segundo os autores, já houve o reconhecimento da responsabilidade civil das concessionárias, conforme precedentes do Superior Tribunal de Justiça, assim como também no direito comparado se encontra precedentes no mesmo sentido.

Quanto à ANEEL, entendem os autores que "... se a Agência possui competência para sancionar a Concessionária pela interrupção na distribuição de energia a que deu causa, com mais razão a tem para obrigá-la a implementar programas e a realizar obras no intuito pra impedir eventos daquela natureza." (fls. 2542), tendo sido demonstrada a passividade da Agência, conforme exemplifica seu Relatório de Fiscalização 02/2003, daí porque "... o descaso da CELESC era marcante e abrangente, compatível, aliás, com o da própria ANEEL que, a par de ter a atribuição de exercer a fiscalização da Concessionária, não obrou de modo eficaz em seu mister também neste aspecto." (fls. 2547), dizendo ainda que a Agência dispunha de poderes para tornar eficaz sua atuação, conforme as cláusulas 9ª e 10ª do Contrato de Concessão nº 56/99 c/c art. 29 da Lei 8.987/95, dispositivos que lhe retiraram, no caso concreto, "... a discricionariedade... em optar por não agir de modo a fazer com que a empresa concessionária (CELESC) cumprisse as disposições regulamentares e contratuais do serviço concedido, tampouco deixasse de adotar as medidas necessárias para garantir a adequada prestação do serviço de distribuição de energia elétrica." (fls. 2550), certo que a mera postura de expedir recomendações, inócuas, não retira a responsabilidade da Agência.

Quanto à indenização postulada, esclarecem que "... teve por justificativa a utilização de um parâmetro de condenação já existente e previsto no Contrato de Concessão firmado pela ré CELESC, de modo a evitar que o julgador se valha de critérios indesejadamente abstratos que só tendem a dificultar a liquidação do quantum debeatur..." (fls. 2562), dizendo ainda que "... não há dúvidas que os malefícios gerados pelo evento ocasionado pelas Rés transcende a esfera patrimonial de seus atingidos, que seja o cidadão individualmente considerado, que seja o consumidor difusa (art. 17 do CDC) e coletivamente (parágrafo único do art. 2º do CDC) considerado." (fls. 2570), cabendo a indenização pelos danos morais coletivos.

Determinada especificação de provas (fls. 2580), embargada de declaração pelos autores (fls. 2581/2590), houve acolhimento parcial (fls. 2593), seguindo-se embargos de declaração, agora pela ré CELESC (fls. 2597/2603), rejeitados pela decisão de fls. 2605/2609.

Deferidas as provas requeridas (fls. 2616 verso), em face da propositura de duas outras ações coletivas (2003.72.00.16220-2 e 2006.72.00.000618-7), sobreveio decisão a respeito da conexão (fls. 2629/2638).

A CELESC manifestou-se em fls. 2710.

Realizada audiência de instrução (fls. 2746/2765), exortada a ré CELESC a respeito da prova pericial (fls. 2792), anteriormente protestada, alegou a ré desistência pela impossibilidade de sua realização, seguindo-se manifestação dos autores (fls. 2799/2804), esclarecimentos da ré CELESC (fls. 2807/2809), e, finalmente, alegações finais, pelo autor em fls. 2812, pela Agência Nacional de Energia Elétrica em fls. 2816/2819, e pela Centrais Elétricas de Santa Catarina em fls. 2828/2833, vindo-me os autos conclusos para sentença.


II - FUNDAMENTAÇÃO

Ao apreciar o pedido de antecipação de tutela, em decisão que acolheu parcialmente o pedido (fls. 2013/2083), foram tecidas considerações sobre todos os pontos considerados relevantes e submetidos a Juízo, valendo reproduzi-la:

"Pretendem os autores a condenação das rés na indenização por danos decorrentes do evento consistente na interrupção no fornecimento de energia elétrica aos consumidores localizados na parte insular da cidade de Florianópolis, por aproximadamente 55 horas, em decorrência dos fatos apurados em inquérito civil público, além da imposição de obrigações de fazer e não fazer, nos termos expostos no relatório circunstanciado.


1. SERVIÇO PÚBLICO. ENERGIA ELÉTRICA. ESSENCIALIDADE.

Meticulosamente relatada a inicial e informações, oportuno bem identificar o cenário em que se dá a presente discussão, da retirada do Estado no fornecimento de determinados serviços e sua entrega à iniciativa privada, eis que da própria inicial se extrai, a partir do evento, não apenas a postulação de indenização, mas ainda mais, eis que formula pedidos no sentido de fazer e não fazer, estreitamente vinculados à política aplicada ao setor energético pelas rés especificamente em relação à Ilha de Florianópolis, motivo pelo qual deve-se aclarar, já de início, o atual estágio jurídico da administração brasileira na prestação desses serviços, com os exatos contornos dos serviços de distribuição da energia elétrica e a regulação do setor, além de marcar exatamente os limites de atuação do Judiciário no exercício do controle desse serviço.

Embora a concessionária CELESC seja empresa pública estadual, considerando que, na geração de energia elétrica há evidente movimento de privatização, ora tendente também às distribuidoras, além do que a responsabilidade da agência reguladora só se justifica a partir da ótica das privatizações, iniciadas a partir da EC 6/95, pois são concebidas exatamente para monitorar os serviços concedidos, valho-me então, inicialmente, das razões por mim desferidas quando do julgamento da Ação Popular nº 2000.72.6614-5:

"Não se olvida o intenso embate ideológico que marca qualquer discussão em torno do tema amplo das privatizações, devendo aqui referir-se ao artigo Privatizações, de Ives Gandra da Silva Martins (Revista Consulex, ano II, nº 24, dez/98), bem como as oscilações históricas experimentadas pelos diversos países quanto à maior ou menor intervenção do Estado, reconhecendo-se que fatores de economia global são determinantes a impelir a adoção de políticas públicas mais ou menos intervencionistas, as quais são fadadas a avanços e recuos. Considera-se, contudo, que tal embate, no Brasil, tem foro legítimo de discussão no Congresso Nacional, evidenciando-se ainda que há, desde a Lei 8.031/90, normas que se sucederam no tempo cuidando da redução da atividade do Estado, importando, para o caso, o Programa Nacional de Desestatização - PND, aprovado no Congresso Nacional e em fase de gradual implementação.

Marca-se a atuação judicial então simplesmente por dizer o direito no caso concreto... sem qualquer linha relacionada ao embate ideológico...

Ainda como pano de fundo da complexa questão ora em discussão, anote-se que no final da década de 80, com a criação no Brasil do Conselho de Desestatização, em 29-03-88, antenando-se com os movimentos políticos mundiais então em franca aplicação, como a perestroika soviética, culminando com a queda do Muro de Berlim, buscou-se melhor delimitar o campo de atuação do Estado, no intuito de reduzi-lo às funções que lhe são essenciais, reservando-se maior campo de atuação à iniciativa privada, numa política social e econômica expansora dos mercados, fiando-se na sua capacidade de regulamentação, o que levou alguns cultores de tais valores a afirmações de impacto, tal como o mestre Tomás-Ramón Fernandez, quando expôs que "... já não existem duas religiões no mundo, em matéria política social e econômica; já não existem duas fés contrapostas, duas distintas concepções do mundo. Desde setembro de 1989, em que, simbolicamente, se derruba o Muro de Berlim, não existe mais que uma religião, não existe mais que um só sistema político e econômico; não existe mais que uma fé, é a fé no mercado... No mundo em que vivemos, não há mais receita, não há medicina, a não ser o mercado... (Revista de Direito Público, 1990, vol. 90, p 156)."

Arnoldo Wald, jurista renomado, dizia, à mesma época, que "A revolução que se inicia é, pois, uma mudança de mentalidade, substituindo-se a rigidez do Estado burocrático e tecnocrata, o coronelismo econômico dos 'donos do poder' e o paternalismo obsoleto e anacrônico da autoridade centralizadora, pelo espírito de empresa, pela livre competição e pela flexibilidade, inovação e dinâmica da iniciativa privada. Prevalecerá, assim, um clima de regulação de mercado pelas leis naturais e pelos costumes consolidados, mas de desregulamentação e redução do ritmo inflacionário das normas estatais, que acabam prejudicando a estabilidade e o progresso da sociedade. (Revista de Direito Mercantil, vol 74, p 6)."

Tais idéias são de excelente inspiração. Sobretudo quando considerado o momento histórico e o anacronismo que o gigantismo do Estado brasileiro vinha proporcionando, tornando-se inevitável a discussão quanto à redução de sua atuação, certo que a democracia iniciava seu desenvolvimento em nosso país e que as idéias centralizadoras eram sempre e sempre repudiadas pela consciência nacional, portanto, a privatização, além do aspecto econômico a permitir o afastamento do Estado de atividades que não lhe são típicas, e que consomem indevidamente recursos públicos, ainda apresenta o aspecto político de descentralização das decisões referidas à atividade econômica, então francamente sob dependência do poder central.

Prometia-se a mitigação da ditadura política sobretudo na economia, embora não houvesse ingenuidade quanto aos riscos de sua substituição por uma ditadura do mercado, considerada mais branda posto que sob a influência de mecanismos mais dinâmicos de controle.

Após uma década de implementação gradual do Programa Nacional de Desestatização houve resultados positivos e outros negativos, sendo que a forma das privatizações mereceram críticas, como a lembrada pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça, José Augusto Delgado, já em 1996, (BDA outubro de 1996, p 644), quando disse o Ministro, em aula magna: "Na privatização, as transferências de ativo têm caráter de irreversibilidade, transferindo o patrimônio, ou o ativo do patrimônio - é interessante observar que não podemos falar em patrimônio porque o patrimônio é o conjunto do ativo e passivo, então só podemos falar em ativo, só podemos falar na transferência da parte boa do patrimônio. A parte má do patrimônio não é transferida na privatização, outra crítica que está sendo feita especialmente pelos estudiosos do Direito Administrativo. Porque está a se defender que o Estado, ao privatizar uma empresa pública, uma sociedade de economia mista, deverá privatizar tanto a parte ativa como a parte passiva, não somente a parte ativa, e ficando com a responsabilidade da parte passiva. De outro lado, os defensores da iniciativa privada afirmam que se assim for não haverá atrativo para as empresas privadas; as empresas privadas não irão participar porque não irão ficar para o ativo. Mas chamo a atenção dos senhores que quando a empresa privada compra uma outra empresa privada, em regra essa compra se dá de todo o patrimônio: a empresa privada, em regra, assume também o passivo da outra empresa, da empresa vencedora. A empresa compradora assume o patrimônio total, ativo e passivo, direitos e obrigações da empresa vendedora. E por que no serviço público brasileiro a privatização está sendo feita somente pela metade? Está sendo privatizada somente a parte boa, a parte ruim continua a ficar com o Estado..."

Na presente ação, como demonstrado à saciedade, tais discussões transitam longe..."

Nesta ação, igualmente, embora a amplitude dos pedidos da inicial, não haverá qualquer apreciação política sobre, exatamente, as políticas públicas de fornecimento de energia elétrica na Ilha de Santa Catarina levadas a efeito pelas rés, mas se debruçará sobre a obrigação legal e contratual de tais entes em relação às ações empreendidas, tudo a partir da perfeita identificação do evento.

Frise-se que tal enquadramento da questão é primordial, pois agora se trata de apreciar a responsabilidade do Estado em razão de uma de suas mais novedosas funções, a reguladora, se é que realmente essa função não se confunde, in totum, com o velho conhecido "poder de polícia" da administração ou do Estado, que já há muito intervém na prestação de atividades sob regime privado ou não com poderes fiscalizatórios certos.

Quanto ao "novo serviço" público que ora se desenha no Brasil, não evolui o mesmo de modo diverso do que se dá em todo o mundo, eis que marca essencial dos serviços públicos é exatamente a mutabilidade, que implica na viabilidade de prestá-lo de modos cambiantes, de acordo com as exigências sociais e demandas tecnológicas atuais, por isso que serviço público é conceito em constante evolução.

Para posicionamento do problema, na evolução dos conceitos de serviço público, veja-se que o direito administrativo passa a ter o melhor fundamento de sua cientificidade exatamente no que se convencionou chamar "Escola do Serviço Público", de Bordeaux, capitaneada por Duguit, cujo entusiasmo é explicado, nas palavras de Franck Moderne, porque "permitia justificar y construir um sistema original (fuertemente criticado em los países Del common law), poniendo de manifiesto los princípios de solidaridad social y igualdad entre los administrados; uma Administración al servicio del público y no uma Administración de poder público, tal era el mensaje de la doctrina entonces dominante, que se refería de buen grado a los valores revolucionários y republicanos para sostener ideologicamente su discurso." (El Concepto de Servicio Público Frente al Desafio de La Unión Europea. In Derecho Administrativo. Obra Colectiva en Homenaje al Profesor Miguel S. Marienhoff. Ed Abeledo-Perrot, 1998, p. 810), e que, a partir de um conceito de relevância determinada para a coletividade, sofreu a evolução a partir das obras de Maurice Hauriou e Gaston Jèze, que o firmaram a partir da submissão a um regime jurídico.

Importante notar que a Escola do Serviço Público não forneceu um conceito pronto e acabado de serviço público, certo que, se é possível tomar como ponto de partida, por exemplo, o conceito do renomado Hely Lopes Meirelles, para quem serviço público "é todo aquele prestado pela administração ou pelos seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade, ou simples conveniências do Estado." (Direito Administrativo Brasileiro, p. 297), fato é que jamais se poderá tomar tal conceito como ponto de chegada, o que levou o atual Ministro Eros Roberto Grau, a partir do confronto entre a "atividade econômica em sentido estrito" e a "atividade econômica em sentido amplo", a dizer que "É a partir deste confronto - do estado em que tal confronto se encontrar, em determinado momento histórico - que se ampliarão ou reduzirão, correspectivamente, os âmbitos das atividades econômicas em sentido estrito e dos serviços públicos" (A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 138)

Vale então concluir que serviço público será o que a Lei tratar como tal, encontrando-o o estudioso na própria Constituição Federal e nas Leis, pelo que é um conceito positivado, contudo titularizado sempre no Estado, que os presta direta ou indiretamente, conforme art. 175 da Constituição Federal, encontrando-se determinados serviços cuja prestação se tornará obrigatória para o Estado.

Fato é que, na maioria dos ordenamentos, se confia ao legislador a definição dos serviços essenciais, tal como fez o constituinte espanhol ao dizer que "mediante ley se podrá reservar al sector público recursos o servicios esenciales...", levando a doutrina a tentar identificar um núcleo de serviços essenciais, sem êxito, o que levou o Prof. Marienhoff a dizer que "la determinación de cuáles sean las necesidades o cuáles sean los intereses 'generales' pueden constituir, a los fines de su satisfacción, um servicio público, es uma cuestión circunstancial que depende del país que se trate, Del grado de evolución de dicho país, de sus costumbres, de su ambiente físico y social." (Tratado de Derecho Administrativo, T. II, 4ª ed. Abeledo-Perrot, 1993, p. 33).

No ordenamento brasileiro, como salienta Odete Medauar, em Direito Administrativo Brasileiro, há um núcleo pacífico de serviços públicos, dentre os quais os serviços de água, luz, iluminação pública, coleta de lixo, limpeza de ruas, esgotos, correio, entre outros, sendo que a doutrina tem adotado como serviços essenciais os enumerados na Lei 7.783/89, que, em seu artigo 10, dispõe:

"Art. 10. São considerados serviços ou atividades essenciais:

I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis..."

Na verdade, os serviços e instalações de energia elétrica são serviços a serem explorados pela União, conforme art. 21, XII, "b" da Constituição Federal, cuja competência legislativa também é consagrada de modo exclusivo (art. 22, IV), cabendo aos demais entes apenas a competência comum (art. 23, XI), devendo-se, inclusive, alertar para o fato de que há Lei Federal cuidando exatamente do regime de concessão de tais serviços, essenciais, como ressai da Lei 9.427/96.

Como ensina José Cretella Júnior, "serviços ou atividades essenciais são aqueles que a regra jurídica ordinária define como tal. E a lei tem de ser federal." (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, I. ed. 1989, Forense Universitária, v. II, n. 198, p. 1.063), motivo pelo qual, não bastasse a Lei 7.783/89, que poderia ser questionada em razão de eventual antinomia, pelo critério da especialidade, agora tem-se lei federal cuidando da essencialidade dos serviços.

Ainda o magistério de Marçal Justen Filho é no sentido de que "não seria exagero afirmar que a garantia do funcionamento do Estado e da realização dos fins consagrados constitucionalmente para a sociedade civil pressupõe o fornecimento de energia elétrica." (Concessões de Serviços Públicos. Ed. Dialética. 1997)

Se não bastasse, ainda é de ver que a interpretação dos Tribunais Superiores é francamente favorável à essencialidade, bastando a citação do seguinte precedente:

"... A energia é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável, subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção. (STJ ROMS nº 8.915/MA. Rel. Min. José Delgado. 1ª T. DJU de 17/08/98) "

De fato, como diz Alessandro Segalla, "A energia elétrica é, atualmente, bem de uso vital à qualquer pessoa, e não meramente facultativo como se pensava anteriormente. É impensável a sobrevivência digna de qualquer ser humano ou a manutenção e desenvolvimento de qualquer atividade econômica sempre que dela se faça uso. A vida moderna sem energia elétrica é impensável. Por isso as concessionárias de serviço, os quais exercem funções delegadas pelo Poder Público, não possuem o direito (=poder) de deixarem de prestar um serviço que na atualidade se apresenta de vital importância à sociedade. Atualmente, podemos denominar o fornecimento de energia elétrica de serviço existencial." (A Suspensão do Fornecimento de Energia Elétrica a Usuária Inadimplente à Luz da Constituição Federal, in Ver. De Direito do Consumidor, nº 37, p. 145)

Tal menção é importante, permitindo que se identifique, desde já, o direito à energia elétrica como resguardo, hoje, do que a doutrina tem chamado de "mínimo existencial", daí porque inserido na previsão do art. 22 da Lei 8.078/90, que diz que, quanto aos serviços essenciais, deve a administração prestá-lo de modo contínuo, temas que serão tratados adiante, ao cuidar da responsabilidade da administração.

Frise-se ainda que a falta da prestação do serviço essencial de energia elétrica por dezenas de horas ocasionou também o colapso em diversos outros serviços considerados essenciais, como ficou sobejamente demonstrado a partir das inúmeras provas juntadas aos autos com relação aos serviços de abastecimento de água, o qual é considerado absolutamente essencial, como disse o Min. Garcia Vieira, em precedente envolvendo a fornecedora dos serviços de água no Estado de Santa Catarina, para quem "A água é bem essencial e indispensável à saúde e higiene da população. Ser fornecimento é serviço público indispensável, subordinado ao princípio da continuidade, sendo impossível a sua interrupção e muito menos por atraso no seu pagamento." (STJ. RESP nº 201.112/SC. Rel. Min. Garcia Vieira. 1ª T. DJU de 10/05/99)

Demonstrado que os serviços ora em apreciação constituem serviços públicos e, mais ainda, serviços públicos essenciais, resta ainda delimitar a natureza da relação consumerista, o que se cuidará, inicialmente, ao tratar do cabimento da presente ação civil pública e, em segundo momento, ao tratar da responsabilidade das rés, eis que há regramento próprio de responsabilidades em relação a estes direitos.

2. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL E ESTADUAL PARA PROPOR AÇÃO CIVIL PÚBLICA. NATUREZA DO DIREITO. RELAÇÃO DE CONSUMO.

Desnecessário, nesta fase processual, aprofundar-se quanto à viabilidade do litisconsórcio ativo, sendo apenas cabível referir-se à posição refratária pelos Tribunais Regionais Federais, conforme os precedentes no AI 102.717/RJ, do TRF 2ª Região; no AI 1238026/GO, do TRF 1ª Região, posição esta corroborada pela doutrina mais abalizada, bastando aqui referir-se ao trabalho do Juiz Federal Walter Nunes da Silva Júnior, todos posicionamentos que se fixam na interpretação dos princípios da unicidade e indivisibilidade, que, ao mesmo tempo que são prerrogativas, sujeitam igualmente à instituição.

O art. 1º da Lei nº 7.347/85 contempla as hipóteses de cabimento da Ação Civil Pública como as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados ao meio ambiente, consumidor, bens e direitos de valor histórico, turístico e paisagístico, qualquer outro interesse difuso ou coletivo, infração da ordem econômica.

O Código do Consumidor ampliou a abrangência desta lei, incluindo também a defesa de direitos individuais homogêneos.

A legitimidade do Ministério Público para a causa há de ser analisada à luz dos dispositivos constitucionais pertinentes à matéria, bem como em razão do fundamento da própria demanda.

Segundo o art. 127 da Constituição Federal "O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis." Dentre as funções institucionais do Ministério Público, elencadas no art. 129 da Constituição da República, está a de promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos ou coletivos.

Preciso seja traçado o contorno exato sobre a natureza do direito dos consumidores dos serviços de energia elétrica, uma vez que é a natureza do direito que se pretende defender coletivamente capaz de definir, não apenas a legitimidade do Ministério Público, mas, também, os limites da eficácia e efetividade do julgado.

Hugo Nigro Mazzili, em sua obra "A Defesa dos interesses difusos em juízo", 8ª ed., Saraiva, p. 3/11, ensina: "(...) O Código do Consumidor considerou difusos os interesses ou direitos transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato (...) Para conceituar interesses coletivos, o art. 81 do Código do Consumidor considerou sua indivisibilidade entre o grupo reunido por uma relação jurídica básica comum (...) Os interesses coletivos e os interesses individuais homogêneos têm também um ponto de contato: reúnem grupo, categoria ou classe de pessoas; contudo, só estes últimos são divisíveis e supõem origem de fato comum (...) Inovando na terminologia legislativa, o Código do Consumidor mencionou os interesses individuais homogêneos, 'assim entendidos os decorrentes de origem comum.' Encontram-se reunidos por essa categoria de interesses os integrantes determinados ou determináveis de grupo, categoria ou classe de pessoas que compartilhem prejuízos divisíveis, oriundos das mesmas circunstâncias de fato."

As evolução das ações coletivas no Brasil é tema tratado de modo proficiente pelo Dr. Alcides Alberto Munhoz da Cunha (Revista da Procuradoria-Geral da República. São Paulo. Revista dos Tribunais, nº 08, jan/jun 1996), onde registra o autor, que "... o processo civil desde que surgiu como ciência no final do século XIX até as últimas décadas foi estruturado ou forjado para exercer a tutela jurisdicional dos interesses individuais em situações de conflito.". Também Galeno Lacerda, (Eficácia da Prestação Jurisdicional no Atendimento às Demandas Sociais, Revista Ajuris), acentua esta característica do processo brasileiro, dizendo que, "... como exemplo de preceitos individualistas em nosso sistema, podemos apontar o art. 76 do CC, segundo o qual 'para propor ou contestar uma ação, é necessário ter interesse econômico ou moral'; o art. 3º do CPC, que fala em 'interesse e legitimidade', e o art. 6º do mesmo Código: 'Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei'. Acrescente-se, nesse modelo individualista, o art. 472 do CPC: 'A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros'." Ambos os autores citados, em breve histórico sobre a introdução da processualística em demandas coletivas, como ação popular e ação civil pública, partem da Constituição de 1988, sendo lícito falar em processo coletivo social, pois, conforme Galeno, "uma das marcas mais características do Direito brasileiro, na atualidade, consiste em sua abertura para o social, acentuada, principalmente, a partir da CF de 1988... essa abertura para o social supera, em definitivo, a formação individualista que sempre caracterizou a cultura jurídica da Europa continental, retratada de modo geral, em nossas instituições. (op. cit.)."

Pode-se concluir, portanto, que toda a apreciação que se faz da legitimidade processual em demandas coletivas tem gênese constitucional.

Segundo Teori Albino Zavascki (in Defesa de Direitos Coletivos e Defesa Coletiva de Direitos. Revista de Informação Legislativa, nº 127, p. 83), a classificação que permite a distinção entre os direitos coletivos lato sensu, sob os aspectos objetivo e subjetivo são: "difusos: sob o aspecto subjetivo são transindividuais, com indeterminação absoluta dos titulares (não têm titular individual e a ligação entre os vários titulares difusos decorre de mera circunstância de fato); indivisíveis (não podem ser satisfeitos nem lesados senão em forma que afete a todos os possíveis titulares); (...) coletivos: transindividuais, com determinação relativa dos titulares (não têm titular individual e a ligação entre os vários titulares coletivos decorre de uma relação jurídica-base); indivisíveis (não podem ser satisfeitos nem lesados senão em forma que afete a todos os possíveis titulares)."

Finalmente, quanto aos direitos individuais homogêneos são, sob o aspecto subjetivo, "individuais: (há perfeita identificação do sujeito, assim da relação dele com o objeto do seu direito. A ligação que existe com outros sujeitos decorre da circunstância de serem titulares - individuais - de direitos com 'origem comum'." e, sob o aspecto objetivo, "divisíveis: (podem ser satisfeitos ou lesados em forma diferenciada e individualizada, satisfazendo ou lesando um ou alguns titulares sem afetar os demais)".

Alcides Munhoz da Cunha, em trabalho já mencionado, alertando o objetivo da distinção legal entre os direitos por ele chamados de meta-individuais está na extensão subjetiva dos efeitos da coisa julgada, assim coloca as distinções: "... tanto os interesses difusos como os coletivos são transindividuais e de natureza indivisível... incidem necessariamente sobre bens ou utilidades indivisíveis, no plano fático ou jurídico... a distinção básica entre interesses difusos e coletivos reside na estrutura subjetiva dos interesses convergentes sobre o mesmo bem: é que enquanto os titulares do interesses difusos são indeterminados, os titulares dos interesses coletivos são determináveis... haverá determinação dos sujeitos sempre que os interesses digam respeito especificamente a grupo, classe ou categoria de pessoas que podem ser identificadas, através de dados jurídicos." Assim, remata o autor, enquanto nos interesses difusos os sujeitos estão ligados apenas por circunstâncias de fato, e, por isso a coisa julgada opera efeitos erga omnes, "... pois, se não é possível localizar qual a classe de pessoas que é parte na lide, tem-se que a coisa julgada deve atingir a todos indistintamente.", temos que a coisa julgada, quanto aos direitos coletivos, opera efeitos ultra-partes, conforme art. 101, II, do CDC, "... porque deve atingir não apenas as partes formais da ação (autor e réu), mas todas as partes da lide, isto é, todos os componentes do grupo, classe ou categoria que compartilham o interesse coletivo. (Alcides, op. cit.)."

Finalmente, o autor conceitua os interesses individuais homogêneos, também protegíveis por demanda coletiva, conforme inovação do CDC, e que, passa conceituar, "torna-se necessário associar o contido no art. 81, III, com o contido no art. 91, do Código do Consumidor. O art. 81, III, dispõe que interesses individuais homogêneos são aqueles decorrentes de origem comum, o que sem dúvida é insuficiente para a qualificação. Não obstante, o art. 91 sugere que são interesses na obtenção de uma indenização pessoal para aqueles que se qualificam como vítimas ou sucessores das vítimas que sofreram danos imputáveis à mesma parte, em virtude de um único fato ou fatos conexos (daí a origem comum). Tem-se dito que nestes casos os interesses são individuais e não meta-individuais, porque a própria lei os qualifica como individuais, porém homogêneos, por terem origem comum. Todavia, a despeito deste nomem in iuris, pode-se afirmar que são interesses meta-individuais, enquanto pressupõe interesses coordenados e justapostos que visam a obtenção de um mesmo bem, de uma mesma utilidade indivisível. O que se pretende é uma condenação genérica, um utilidade processual indivisível, em favor de todas as vítimas ou seus sucessores, em virtude de danos que têm origem comum. A divisibilidade se opera apenas no momento da liquidação (quantificação) dos danos pessoalmente sofridos e da execução. (Alcides, op. cit.)."

Feitas estas considerações doutrinárias sobre o conceito legal de direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, protegíveis por ação civil pública, ao que se poderiam acrescentar as distinções realizadas por Galeno Lacerda (op. cit.) e pela Juíza do TRF 4ª Região, Dr. Luíza Dias Cassales (Revista Ajufe, nº 48, p. 40), pode-se afirmar que, no caso dos autos, tem o Ministério Público legitimação para a defesa dos interesses dos consumidores dos serviços de energia elétrica na cidade de Florianópolis, pois age na defesa de direito coletivo, visto que, com origem comum, a incidência da norma atinge, de modo absolutamente igual, todo aquele que demonstrar ser titular de uma das 135.432 unidades consumidoras atingidas pela interrupção.

Importante para marcar a natureza do direito ora defendido é identificar que os pedidos referem-se à indenização de acordo com uma fórmula prévia, denominada DIC - Duração de Interrupção ao Consumidor (DIC), conforme art. 21, I, da Resolução nº 24 da ANEEL, que prevê uma indenização idêntica entre os consumidores do "Grupo B" e "Grupo A", já que se baseia no número de horas de interrupção, de modo que a satisfação dos consumidores ocorrerá, necessariamente, da mesma forma para todos os consumidores, assim como os demais pedidos de obrigações de fazer ou não fazer, igualmente, afeta a todos os consumidores da mesma forma, não sendo outra a definição legal para estes direitos que não a de direitos coletivos.

Ressalte-se que nesta ação não se busca título executivo apto a amparar a execução individualizada, por cada consumidor e a partir de prejuízos especificamente experimentados, caso em que seria plenamente cabível cogitar-se de direitos individuais homogêneos, eis que meramente decorrentes da origem comum.

Pacífica a admissão de direitos difusos e coletivos pelo Ministério Público em ação civil pública, amparado no artigo 1º IV da Lei 7.347/85.

Ainda, para os que entendam que o direito em tela é individual, pois divisível, ao menos no momento da execução do julgado, o que qualificaria então o direito ora em discussão como direito individual homogêneo, não há dúvida quanto à relevância social do direito ora em discussão, o que, por si só autorizaria sua defesa coletiva em ação civil pública.

E, aqui, relembro o Juiz Teori Albino Zavascki, que, a despeito de entender que não cabe ao Ministério Público a defesa de direitos individuais homogêneos, acentua que, "... no entanto, como se fez ver acima, há certos interesses individuais - de pessoas privadas e de pessoas públicas - que, quando visualizados em seu conjunto, em forma coletiva e impessoal, têm a força de transcender a esfera de interesses puramente individuais e passar a representar, mais que a soma de interesses dos respectivos titulares, verdadeiros interesses da comunidade como um todo... tais interesses individuais, visualizados nesta dimensão coletiva, constituem interesses sociais para cuja defesa se legitima o Ministério Público... a identificação destes interesses sociais compete tanto ao legislador (como ocorreu, v.g. nas Leis nº 8.078/90, 7.913/89 e 6.024/74), como ao próprio Ministério Público, caso a caso, mediante o preenchimento valorativo do conceito, decorrente da interpretação de atos, fatos e normas jurídicas, e à luz dos valores e princípios consagrados no sistema jurídico, tudo sujeito ao crivo do Poder Judiciário, a quem caberá a palavra final sobre a adequada legitimação. (in Ministério Público, ação civil pública e defesa de direitos individuais homogêneos. RF 333/123)."

Ora, o direito em apreciação foi erigido a direito do consumidor, além de essencial, como melhor se explicitará ao cuidar da responsabilidade civil, tudo por força da Lei 8.078/90, em seu artigo 22, com o que mais ainda se reforça o cabimento de sua proteção por meio da ação civil pública, conforme expressa o art. 1º da Lei 7.347/85.

Quanto a direito individual homogêneo, que se caracteriza pela origem comum e divisibilidade, segundo majoritária jurisprudência, pode o Ministério Público agir em sua defesa em ação civil pública apenas quando o direito em discussão versar sobre questão de significativo interesse social. Neste sentido, com especial atenção ao RESP nº 49272/94/RS, abaixo reproduzido:

"O Ministério Público tem legitimidade para promover ação civil pública em defesa de direitos individuais homogêneos nos casos expressamente previstos em lei e, por construção jurisprudencial, nos casos que alcançam significação social relevante. (RTRF 4ª Região, nº 37/316)."

"Os interesses individuais homogêneos, embora pertinentes a pessoas naturais, se visualizados em seu conjunto, em forma coletiva e impessoal, transcendem a esfera de interesses puramentes individuais e passam a constituir interesses da coletividade como um todo, impondo-se a proteção por via de um instrumento processual único e de eficácia imediata - 'a ação coletiva (STJ, REsp. nº 49.272-6-RS, rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJU 17.10.94)."

"EMENTA: Pocessual Civil. Ação Civil Pública para defesa de interesses e direitos individuais homogêneos. Taxa de iluminação pública. Possibilidade. A Lei n. 7.345, de 1985, é de natureza essencialmente processual, limitando-se a disciplinar o procedimento da ação coletiva e não se entremostra incompatível com qualquer norma inserida no titulo III do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90). É princípio de hermenêutica que, quando uma lei faz remissão a dispositivos de outra lei de mesma hierarquia, estes se incluem na compreensão daquela, passando a constituir parte integrante do seu contexto. O artigo 21 da Lei n. 7.345, de 1985 (inserido pelo artigo 117 da Lei n. 8.078/90) estendeu, de forma expressa, o alcance da ação civil pública a defesa dos interesses e "direitos individuais homogêneos", legitimando o Ministério Público, extraordinariamente e como substituto processual, para exercitá-la (artigo 81, parágrafo único, III, da Lei 8.078/90). Os interesses individuais, "in casu", (suspensão do indevido pagamento de taxa de iluminação pública), embora pertinentes a pessoas naturais, se visualizados em seu conjunto, em forma coletiva e impessoal, transcendem a esfera de interesses puramente individuais e passam a constituir interesses da coletividade como um todo, impondo-se a proteção por via de um instrumento processual único e de eficácia imediata - "a ação coletiva". O incabimento da ação direta de declaração de inconstitucionalidade, eis que, as Leis Municipais nos. 25/77 e 272/85 são anteriores à Constituição do Estado, justifica, também, o uso da ação civil pública, para evitar as inumeráveis demandas judiciais (economia processual) e evitar decisões incongruentes sobre idênticas questões jurídicas. Recurso conhecido e provido para afastar a inadequação, no caso, da ação civil pública e determinar a baixa dos autos ao tribunal de origem para o julgamento do mérito da causa. decisão unânime." (RESP 0049272/94-RS, Relator Ministro DEMÓCRITO REINALDO, un., 1ª T., DJ de 17.10.94, p. 27868)."

Ademais, veja-se que o interesse coletivo ou social é o que se irradia, ou difunde-se pela sociedade, transcendendo aos interesses de grupos específicos, por isso, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que:

"O interesse de grupos não se confunde com o interesse coletivo. No primeiro, mesmo contando com pluralidade de pessoas, o objetivo é comum e limitado, ao passo que no segundo está afeto a difusão do interesse, alcançando os integrantes da sociedade como um todo. (STJ. MS 256-6/DF. Rel. Min. Pedro Acioli, DJU 04-06-90, p. 5.045)."

Ante todas as considerações, reconhecendo que o Judiciário, por várias ocasiões tem agido timidamente no processamento da ação constitucional, prevista em lei, que já há bastante tempo traça os procedimentos para proteção de valores socialmente relevantes, fixa-se a natureza dos direitos ora em proteção como coletivos e, ainda que homogêneos fossem, em face da relevância social que representam, só resta acatar a presente ação, absolutamente cabível, sem qualquer dificuldade no seu processamento.

Ciente das dificuldades de execução das demandas coletivas, o que nasce, sobretudo, da ausência de uma tradição das ações de massa, como ocorre, em certa medida, com as class action nos Estados Unidos da América, e ciente de que a dificuldade na execução não pode importar em desproteção aos direitos do consumidor, reafirma-se ainda que se está a discutir direitos coletivos, cuja legitimação do Ministério Público é pacificada na doutrina e jurisprudência, o que, por si só, confere às presentes considerações sabor de esclarecimento sobre efeitos de eventual julgado de procedência.

Quanto a este ponto, registro, finalmente, a inconstitucionalidade do artigo 16 da Lei 7.347/85, fruto de lei nova que confundiu os conceitos de âmbito da eficácia de uma decisão judicial e competência territorial, buscando limitar a atuação dos órgãos jurisdicionais de Primeira Instância, atentando contra os princípios constitucionais da inafastabilidade e unidade da jurisdição (art. 5º, inciso XXV, da Carta de 1988) e da unidade do Poder Judiciário (art. 92 do mesmo diploma normativo), matérias não entregues ao trato do legislador ordinário, sendo que ainda assim, para o caso, os consumidores atingidos pelo evento são residentes nesta cidade.

3. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MANDADO DE INJUNÇÃO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEGITIMIDADE PASSIVA DA ANEEL. COMPETÊNCIA.

Pretende a ação civil pública proteger direito coletivo, em favor de todas as pessoas consumidoras atingidas pelo evento, com a responsabilização das rés nas obrigações de fazer, não fazer e indenizar.

Conclui-se que o fundamento da ação é que propiciou o manejo da ação civil pública.

Ora, o fundamento essencial da presente ação civil pública, além dos dispositivos do CDC sobre responsabilidade do fornecedor de serviços públicos, é o próprio artigo 37, § 6º da Constituição Federal, dispositivo auto-aplicável, de modo que, apesar de estar-se tratando de direito fundamental, não se está diante sequer da discussão quanto à falta de regulamento, quando então caberia mandado de injunção coletivo, e não a ação civil pública, com o que, além de impertinente a presente ação, também incompetente seria este Juízo, tudo em face da norma prevista no artigo 102, I, "q", da Constituição Federal.

Diz a Constituição Federal: "conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora tome inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania".

Quanto ao mandado de injunção, é instrumento de garantia que permite ao Judiciário o acerto no caso concreto quando ocorra omissão do elaborador da norma, cabível para a defesa de interesses individuais ou coletivos. Neste sentido: "Ele permite o desfrute, em toda a latitude do termo, dos direitos e liberdades constitucionais e, nesse sentido, a realização prática do disposto no art. 5.º, § 1.º, da CF. É o caso de imediatamente afirmarmos que o mandado de injunção é apto à tutela dos direitos individuais, dos direitos coletivos e, eventualmente, até dos direitos difusos.", conforme Roque Carrazza, in RTJE 101, junho de 1992, p. 18.

Ainda, em citação, diz o autor mencionado: "... De regra, o mandado de injunção não se presta à defesa dos direitos coletivos, pois esses exigem norma aplicável a um número indeterminado de pessoas ou situações. Exemplificando, para melhor esclarecer, digamos que a flora de uma certa região não esteja sendo preservada. Isto fere do direito coletivo a tal preservação (art. 23, VII, cc. o art. 225, § 1.º, VII, ambos da CF). Para que o direito coletivo seja atendido é necessária a edição de lei que regule, abstratamente, a proteção à flora, o que não é possível nem em ação de inconstitucionalidade por omissão, quanto mais em mandado de injunção. Todavia, situações há em que a tutela de direitos coletivos é possível, por via deste remédio constitucional. É o que demonstrou Carlos Ari Sundfeld, que depois de lembrar que, nos termos do art 37, VIII, da CF, as pessoas portadoras de deficiência têm direito a que as leis lhes reserve uma porcentagem de cargos e empregos públicos e as favoreça com critérios especiais de admissão acrescentou: 'Faltando a lei exigida pelo dispositivo e sendo iniciado concurso público é possível a impetração do mandado de injunção, em defesa do direito coletivo dos deficientes. Reconhecendo que a omissão inviabiliza o exercício do direito, o Judiciário estabelecerá um percentual (5%; 10% etc.) dos cargos postos em concurso, para serem preenchidos pelos deficientes em geral (Mandado de Injunção, in Revista de Direito Público, 94:147/8)'."

José Afonso da Silva, em seu Curso de Direito Constitucional Positivo, também faz menção ao cabimento de mandado de injunção coletivo, embora mencione apenas os sindicatos (17ª ed. p. 461).

Contudo, sob pena de tornar-se sucedâneo da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, não cabe ao Judiciário apenas comunicar o órgão faltante para que preencha o vazio normativo, mas sim preencher a lacuna no caso concreto, a fim de se atingir concretamente os promoventes da injunção.

Assim, também Roque Carrazza, em trabalho já citado: "... Na realidade, pensamos que a Constituição aponta para outro caminho: a decisão judicial, no mandado de injunção, opera efeitos inter partes. Vale para o caso concreto, sem, porém, interferir na generalidade dos casos, que continuarão aguardando a regulamentação integradora da norma constitucional. (op. cit. p. 22)"

Correta esta última corrente, não obstante esvaziada pelo entendimento do Supremo Tribunal no sentido de que ao Juiz não cabe integrar a norma.

Na presente ação civil pública, contudo, o que pretende o Ministério Público é a implementação do direito constitucional violado a partir da responsabilidade do Estado, como se denota dos fundamentos e pedido, daí porque não se chega ao ponto de pedir medida integradora, o que contrariaria o próprio fundamento da auto-aplicabilidade, mas apenas que se reconheça os fundamentos de responsabilidade.

Evidentemente, então, nenhuma viabilidade no manejo do mandado de injunção coletivo para o caso.

Traz então a ação evidente cunho condenatório, sendo cabível a discussão da obrigação de fazer ou não fazer na ação civil pública, como emerge dos artigos 1º e 11 da Lei 7.347/85.

Correta, pois, a propositura de ação civil pública,

De outro lado, certa a preocupação sobre o uso da ação civil pública como pretexto de usurpar competências do Supremo Tribunal Federal, exercitáveis apenas no bojo do controle concentrado de constitucionalidade, tal questão já ensejou entendimentos antagônicos dentro do próprio Tribunal Regional Federal da 4ª Região, como anoto:

"ACP não é via adequada à obtenção da declaração de inconstitucionalidade incidenter tantum, de lei ou ato normativo, isso porque, pela identidade dos seus vereditos, haveria confusão com o objeto da ação direta de inconstitucionalidade, bem como usurpação da competência privativa do STF e dos Tribunais de Justiça, para fazer desaparecer o comando legal colidente com a Constituição Federal e Estaduais, respectivamente. (AC nº 438.388-4/RS. 6ª Turma. DJU 12-05-99, p. 597. Rel. Juiz Carlos Sobrinho)."

"a eventual procedência da ação não significa usurpação da competência do STF, tendo em vista que esta somente levará a aplicação no salário dos servidores atingidos do percentual de aumento que lhes fora inconstitucionalmente suprimido, não retirando do ordenamento jurídico qualquer norma legal. (AC nº 401.025353-9/RS. 3ª Turma. DJU 25-12-98, p. 483. Rel. Juíza Maria de Fátima Freitas Labarrère)."

É certo que a presente hipótese pretende o afastamento dos efeitos de atos normativos expedidos pela autarquia especial (ANEEL), por inconstitucionalidade, eis que teriam invadido espaço reservado à edição de Lei.

No entanto, é de ver que o último julgado é que se coaduna com o tratamento constitucional e o regime de garantias conferidos aos direitos de tamanha envergadura, eis que o Juiz, na verdade, está a exercer o seu controle difuso de constitucionalidade, pouco importando os efeitos da ação civil pública, já que esta não é da competência do Pretório Excelso, importando a primeira interpretação num esvaziamento da ação civil pública que a inutiliza como instrumento de defesa de direitos.

Ademais, é o próprio art. 2º da Lei 7.347/85 que elegeu a primazia do Juízo do local do dano, ao dispor:

"Art. 2º. As ações previstas nesta lei serão propostas no foro do local onde ocorrer o dano, cujo juízo terá competência funcional para processar e julgar a causa."

Ante a clareza do dispositivo, que demonstra a disposição do legislador em atribuir ao Juízo do próprio local do dano o processamento da ação civil pública, uma vez que, prestigiando o status, hoje constitucional, que goza o mecanismo de garantias de direitos de alto valor na hierarquia constitucional, tudo para propiciar a melhor averiguação possível da prova, seria interpretação francamente reacionária imaginar que, toda vez que se tivesse que superar uma inconstitucionalidade, no âmbito do controle difuso, o Juízo do local do dano seria o Supremo Tribunal Federal.

Por último, uma vez fixada a competência do Juízo do local do dano, ainda resta considerar sobre a competência da Justiça Federal.

Os autores justificam a legitimidade passiva da autarquia especial em razão dos pleitos identificados com a reversão dos valores de multa aplicados pela ANEEL à CELESC, quanto à sua destinação, bem como no fato de que "... a responsabilidade da ANEEL é indissociável a da CELESC em diversos pontos, na medida em que sua fiscalização (preventiva) não foi eficaz nesses aspectos." (fls. )

Em relação à primeira justificativa, é certo que não é o pedido que marca a competência, mas sim o fundamento.

Aqui vale recordar que os fundamentos, no que pertine, estão discriminados nos itens "v" e "x", uma vez que baseada no inciso IV do art. 6º da Resolução 318, de 06/10/98 e art. 1º da Resolução Normativa 46, de 10/03/04, que deu nova redação ao art. 1º da Resolução Normativa nº 459, de 05/09/03, todas passíveis da declaração incidental da inconstitucionalidade na ação civil pública, o que se pede é o reconhecimento forma e material da inconstitucionalidade do referido art. 1º da Resolução nº 459/03, alterado pelo art. 1º da Resolução Normativa nº 46/04, ambas da ANEEL.

O pedido, então, é de inconstitucionalidade de atos normativos expedidos pela ANEEL e, mais, atos estreitamente vinculados com os pressupostos da responsabilidade pública e indenização dela decorrente, pois basta verificar que o efeito da declaração da inconstitucionalidade, segundo os autores, importa em imprimir diverso destino à multa aplicada pela ANEEL para a CELESC.

Em caso a tudo semelhante, na apreciação da exceção de competência 2003.72.00.005540-9, envolvendo normas expedidas pela ANTT, foi reconhecida a competência desta Justiça Especializada, pois o pedido do reconhecimento da inconstitucionalidade, naquela oportunidade, do Decreto nº 2.521/98 e NC 18/01 da ANTT, era o pressuposto lógico do direito que se buscava.

Tal constatação é suficiente para justificar a competência da Justiça Federal, sem que seja necessário, nessa quadra, aprofundar-se nas funções da ANEEL, previstas nos art. 2º e 3º da Lei 9.427/96, principalmente nos seus incisos II e IV, assim como as funções discriminadas no Decreto nº 2.335/98, valendo, para esta fase, dizer que, se é verdade que a ANEEL não deverá compor o pólo passivo tão-somente em decorrência do exercício de seu poder normativo, por outro lado não se pode desconsiderar que é a ANEEL uma autarquia especial, portanto, sujeita ao regime jurídico administrativo e responsável por ações e omissões, sendo que, a partir da seriedade dos fundamentos da presente inicial, também sob o ângulo da omissão da Agência Reguladora é possível cogitar-se da competência desta Justiça Federal, pois imputam-se a Agência inúmeras omissões na fiscalização obrigatória sobre a execução do contrato de concessão dos serviços de distribuição de energia elétrica pela concessionária, omissões estas que teriam, também, dado causa ao evento.

Veja-se que os danos que se buscam ver indenizados não decorrem apenas da ação da distribuidora CELESC, mas também das omissões perpetradas pela CELESC e pela ANEEL, cujos fundamentos, além da Constituição Federal e da Lei 8.078/90, decorrem também do contrato de concessão nº 56/99, motivo pelo qual a mera invocação do artigo 25 da Lei 8.987/95 em nada implica na impossibilidade de invocação dessa responsabilidade.

Correta, pois, a propositura de ação civil pública e marcado, à saciedade, a competência da Justiça Federal.

4. SERVIÇO DE ENERGIA ELÉTRICA. DISTRIBUIÇÃO. PRESTAÇÃO INDIRETA. CONCESSÃO DO SERVIÇO PÚBLICO.

Delineada a matriz constitucional dos serviços de fornecimento de energia elétrica, cabe adicionar que se cuida de serviço primário do Estado, de modo que deve ser prestado pelo Estado direta ou indiretamente, obedecido o princípio da continuidade na sua prestação.

Para bem compreender a evolução dos serviços inerentes ao fornecimento de energia elétrica, vale citar o trabalho de David A. M. Waltenberg (O Direito da Energia Elétrica e a ANEEL, in Direito Administrativo Econômico, vários autores, 1ª ed 2ª tiragem. Malheiros, p. 352), que traça um didático e realista quadro evolutivo da organização do setor elétrico brasileiro, esclarecendo que, no setor, "Em um primeiro período histórico, como visto, houve uma ênfase, até legal, no segmento de geração. Posteriormente, em um segundo período, o segmento da distribuição passou a ter a atenção do legislador. No terceiro período, muitas décadas depois, a legislação passou a tratar do terceiro segmento, resultante do desmembramento dos anteriores: a transmissão. Finalmente, em um quarto momento, bastante recente, iniciado em maio de 1998, com a Lei 9.648, surgiu o quarto segmento setorial, também fruto de um desmembramento: o da comercialização."

No Estado de Santa Catarina tem-se, muito claramente, a transmissão confiada à Eletrosul, cuja cisão, com criação de empresa Gerasul, teve o efeito de confiar a essa última empresa a geração de energia elétrica, cisão esta atualmente discutida na Justiça Federal de Santa Catarina, sendo de rememorar que o primeiro episódio de blecaute ou "apagão" ocorrido no Brasil se deu exatamente em relação a uma das subestações de transmissão, mais precisamente no dia 11/03/99, quando boa parte das Regiões Sul/Sudeste/Centro-Oeste foram afetadas pela interrupção do fornecimento de energia elétrica em razão de fatos ocorridos na subestação de Bauru, então de propriedade da CESP.

A distribuição, que consiste no sistema capilarizado que permite ofertar energia de baixa tensão para os usuários finais, é modalidade de serviço público prestado predominantemente por meio de contrato de concessão, ressalvados casos de distribuição por cooperativas de eletrificação rural, e que, conforme trabalho produzido pela Academia Brasileira de Direito Constitucional - Grupo de Estudo em Direito Constitucional Econômico, "com as privatizações das empresas estatais deste segmento, Maria João C. Pereira Rolim sustenta a necessidade de se regulá-lo fortemente, por ser distribuição a ligação final entre os consumidores."

Em relação ao serviço de distribuição de energia elétrica, não há dúvida que optou a União por delegá-lo, certo que a descentralização na execução dos serviços ocorreu, no caso, por meio do contrato de concessão nº 56/99, onde, em linhas clássica, delegou a União, por meio da ANEEL, a execução de serviços à empresa pública do Estado de Santa Catarina, CELESC, criada para essa finalidade já há muito, e delegou para que tal empresa o executasse nas condições por impostas pelo titular, garantindo-lhe, de outro lado, o equilíbrio econômico-financeiro, o que se efetiva mediante a imposição da política tarifária, nos moldes da Lei 8.987/95.

Para o desiderato, cumpre residir no contrato de concessão nº 56/99, juntado em fls. 472/488, sendo estas regras as impositivas para a concessionária, seja ela empresa privada ou pública, além do que é o mesmo contrato que evidencia as responsabilidades da ANEEL.

Veja-se que a concessão na prestação dos serviços públicos constituiu-se num mecanismo de alta relevância na mobilização, sobretudo, de recursos privados para a consecução dos serviços públicos, uma vez que, no direito brasileiro, já a Constituição Federal de 1967 passou a garantir o equilíbrio econômico e financeiro dos contratos, conforme seu art. 160, II, o que consta no art. 31, XXI, da atual Constituição, e cujo substrato legal está atualmente na Lei dos Contratos 8.666/93, art. 5º e §§; art. 7º; art. 40, XI e XIV, "a" e "c"; art. 57 § 1º; art. 58, §§ 1º e 2º; art. 65, § 5º e art. 65, II, "d", gerando o que foi identificado como o "renascimento da concessão" por Arnoldo Wald, em artigo publicado na RDA 171/1, certo que tais contratos são a natural alternativa à simples privatização dos serviços, e ainda mais certo que a promulgação das Leis 8.987/95 e 9.074/95 são tradutoras da opção do legislador brasileiro quanto à concessão.

Diógenes Gasparini (in Direito Administrativo, 7a ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 561) define o equilíbrio econômico-financeiro como sendo "a relação de igualdade entre os encargos do contratante particular e a correspondente remuneração a que faz jus, fixada no contrato administrativo para a justa compensação do pactuado. (...) Desse modo, qualquer alteração unilateral que onere ou desagrave a execução da prestação a cargo do particular, feita pela Administração Pública, deve ser levada em conta para o restabelecimento desse equilíbrio. Tal alteração impõe ao Poder Público contratante a imediata obrigação de promover o reajustamento correspondente, de forma que, de pronto, ocorra o reequilíbrio da avença."

Tais considerações são absolutamente harmônicas com o direito brasileiro, eis que já a Constituição Federal prevê o equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo como princípio, ao dispor, em seu artigo 37, XXI:

"XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações."

Além do mais, tal direito foi expressamente consagrado na Lei 8.987/95, em seu art. 9º, § 2º, sem discriminar entre concessionários pessoas privadas ou públicas, motivo pelo qual perfeitamente viável cogitar-se da aplicação da regra no presente contrato.

Correlatamente ao asseguramento do equilíbrio econômico e financeiro do contrato, que, de fato, não se confunde com a garantia dos lucros, mas sim com a proteção quanto à álea extraordinária que envolve a prestação pela concessionária, confere-se ao poder público o que se convencionou chamar jus variandi, já que se assegura à administração instabilizar o contrato a qualquer momento, certo que a virtual existência das cláusulas exorbitantes é absolutamente necessária, pois a titularidade do serviço continua sendo do Estado, sendo tais cláusulas exorbitantes, as quais são, segundo lição de Hely Lopes Meirelles (op. cit, p. 178), "(...) as que excedem do Direito Comum para consignar uma vantagem ou uma restrição à Administração ou ao contratado. As cláusulas exorbitantes não seriam lícitas num contrato privado porque desigualariam as partes na execução do avençado, mas são absolutamente válidas no contrato administrativo, uma vez que decorrem da lei ou dos princípios que regem a atividade administrativa e visam a estabelecer prerrogativas em favor de uma das partes para o perfeito atendimento ao interesse público que se sobrepõe sempre aos interesses particulares." Tais cláusulas, conquanto impliquem em desigualdade de tratamento, conferem aos contratantes diversas prerrogativas, somente admissíveis nos contratos firmados com a Administração Pública. Ocorre que a existência das cláusulas exorbitantes não implicam num poder desmesurado do poder público, eis que é naturalmente limitado, motivo porque destaca Hely Lopes Meirelles (in Direito Administrativo Brasileiro, 24a ed., São Paulo: Malheiros, 1999, p. 196) que "O poder de modificação unilateral do contrato administrativo constitui preceito de ordem pública, não podendo a Administração renunciar previamente à faculdade de exercê-lo (...) a alteração só pode atingir as denominadas cláusulas regulamentares ou de serviço, isto é, aquelas que dispõem sobre o objeto do contrato e o modo de sua execução."

Ademais, da própria transcrição do art. 37, XXI, ressai que também é correlato a esta garantia do concessionário a manutenção das condições efetivas da proposta.

É por esse motivo que o contrato de concessão não é desempenhado ao talante do concessionário e nem mesmo com poder arbitrário do poder concedente, mas, em todo momento, sob a tutela do Estado, que hoje ocorre pela ANEEL, de modo que é absolutamente fundamental que se investigue se na execução do contrato de concessão ora sob apreciação tanto a concessionária quanto a autarquia reguladora o cumpriram fielmente, uma vez que é só cumprindo estritamente os ditames contratuais que tais entes públicos estariam cumprindo também a Lei porque a única garantia do usuário do serviço público é exatamente a certeza de que há um "mínimo" de serviço público garantido pela estreita obediência às cláusulas do contrato de concessão.

Falar em mínimo de prestação dos serviços públicos é admitir que, ainda na construção teórica sobre o Estado, este só se justifica enquanto mantém a capacidade em prestar esses serviços públicos, pois é certo que, em relação a estes serviços, a disciplina do serviço público admite prejuízo, ou, em outras palavras, reconhecendo que o direito à água e luz, por exemplo, compõem direitos afetos à própria dignidade humana, inscrita no artigo 3º da Constituição Federal, o Estado deverá oferecê-lo ainda que, numa simples equação econômica, esta prestação apresente prejuízo, eis que as fontes de financiamento destes serviços públicos não se limitam às tarifas, estas preços públicos pagas pelos usuários diretos, mas também às taxas e impostos.

Já se discorreu suficientemente sobre a essencialidade dos serviços de fornecimento de energia elétrica. Adiante se retomará a qualificação do direito ora em apreciação para justificar seu enfrentamento sob a ótica dos direitos fundamentais.

É propagada a perda da capacidade de investimento do Estado em setores do serviço público extremamente sensíveis, com o que se tem buscado a via da privatização, a qual, por outro lado, como bem ressaltado por Carlos Antonio Morales, no seu importante trabalho (Nem Privado nem Estatal. Em busca de uma Nova Estratégia para a Provisão de Serviços Públicos, in Revista do Serviço Público, out/dez 1998, p. 117), também apresenta o seu ponto de fragilidade quanto à prestação de alguns serviços essenciais quando diz que "O calcanhar de Aquiles dos defensores da via privatista tem sido os serviços públicos sociais. Não que nestes setores também não haja grandes ineficiências, desperdícios e incapacidades que possam ser tranformados em lucros. Há, e muitos. Entretanto, uma vez conquistados os primeiros ganhos de eficiência, as taxas de lucro passam a cair na mesma proporção que diminui a renda da população atendida."

No que respeita à energia elétrica, nos seus diversos segmentos e em razão dos inúmeros "fatores históricos multifacetários" que importaram numa redução de investimentos, iniciado na década de 80 e aprofundada drasticamente na década de 90, ficou evidenciada a falta de investimentos no setor e o aprofundamento da chamada "crise energética", que encontrou seu auge no ano de 2001, quando, inclusive, o Chefe do Executivo Federal optou por expedir a Medida Provisória 2.148/2001, criando, em regime de urgência, a Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica - CGCE, com poderes que extrapolaram até mesmo os conferidos à ANEEL e com missão bem demarcada pelo art. 2º da MP, valendo dizer que tal Medida Provisória teve sua constitucionalidade acolhida pelo Supremo Tribunal Federal ao decidir a Ação Direta de Constitucionalidade nº 9.

Ainda como medida de combate à referida "crise de energia elétrica" criou-se, por meio da MP 14/02, convertida na Lei 10.438/02 o que se pretendeu fosse um adicional de tarifa, popularizado com o nome de "seguro apagão", julgado constitucional pelo Plenário do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, na AMS nº 2002.72.05.2803-3/SC.

A despeito das deficiências aparentes no setor, uma vez marcada a sua jurídica essencialidade, com o que se discorrerá adiante sobre sua natureza de direito fundamental, não se pode olvidar a importante lição da Professora Carmen Rocha, quando, em passagem a tudo amoldada ao presente caso, diz que "Serviços públicos são, quase sempre, correlatos aos direitos sociais, frutos de tantas e tão laboriosas lutas. De nada adiantará manterem-se em textos normativos, mesmo que constitucionais, direitos arrolados, se do Estado se retirar a obrigação de prestar os serviços sem os quais eles não se tornam efetivos." (Carmen Lúcia Antunes Rocha, in Estudo sobre a Concessão e Permissão de Serviço Público no Direito Brasileiro. Saraiva, 1996, p. 16)

Fixe-se ainda que a doutrina, de há muito, cuidava de definir que os serviços públicos devem ser prestados de modo adequado, abrangendo no conceito a eficiência, generalidade, cortesia, modicidade e permanência, requisitos reforçados pelo disposto no art 175, IV, da Constituição Federal, o que está atualmente positivado no art. 6º Lei 8.987/95 e também na Lei 9074/95.

Assim, ante a existência de Leis que cuidam das obrigações do poder concedente e concessionária, traduzida na Lei 8.987/95, em primeira ótica, e ainda ante a própria existência do contrato de concessão que, na mesma toada, igualmente prevê obrigações recíprocas, e, finalmente, considerando o pagamento pelo serviço por meio de tarifa, e mais recentemente por adicional de tarifa, viabiliza-se a discussão quanto ao cumprimento das obrigações da concessionária e da agência reguladora, para o que se aprofundará na natureza de consumo da relação em tela e dos limites do controle judicial, tanto no que respeita à responsabilidade inerente a tais relações envolvendo o serviço público essencial quanto em relação à atuação das agências reguladoras.

5. DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA. REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS. RELAÇÃO DE CONSUMO. RESPONSABILIDADE DO ESTADO. AÇÃO E OMISSÃO. RESPONSABILIDADE NA RELAÇÃO DE CONSUMO. PROVAS.

Suficientemente esclarecido que a distribuição de energia elétrica constitui serviço público essencial, nenhuma dúvida pode subsistir quanto à sua conformação ao regime jurídico administrativo, ou seja, aos preceitos de direito público, ainda que prestado indiretamente pelo Estado, por meio de concessão ou permissão.

De outro lado, sendo a ANEEL autarquia especial, exercendo primordialmente o poder de polícia, evidentemente que o único regime jurídico de seus atos é o regime público.

A Lei 8.078/90 instituiu o Código de Defesa do Consumidor e, no seu artigo 22, dispôs:

"Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos."

Referido conceito perfectibiliza-se a partir do conceito de fornecedor, já no artigo 3º do CDC, que abarca também a pessoa pública prestadora de serviços, o que tem ensejado entendimentos de que as regras da relação de consumo se aplicam a todos os serviços prestados pelo poder público, direta ou indiretamente, tal como Antônio Herman Benjamin, que diz: "Não é mérito do art. 22 responsabilizar civilmente a Administração Pública pelos serviços de consumo. Tal decorre da própria inclusão do Estado no elenco dos sujeitos que compõem o gênero 'fornecedor' (art. 3º caput). Na falta do art. 22, o Estado ainda seria responsável pelos serviços que prestasse, só que por força do art. 20. Portanto, a ratio principal da prescrição comentada é tão-só apartar o Estado do tratamento jurídico-padrão fixado para outros serviços de consumo. Mas nem por isso o preceito deixa de ter inovações. A primeira delas consiste em estabelecer uma obrigação especial de adequação, eficiência e segurança para os serviços públicos, independentemente da sua forma de prestação ou do sujeito que os forneça. Mostra que o legislador, pelo menos quanto aos serviços públicos, entendeu mais prudente repetir a regra geral imposta a todos os fornecedores (art. 4º, II, 'd'). A segunda inovação importante é a determinação de que os serviços essenciais - e só eles - não podem ser interrompidos. Cria-se para o consumidor um direito à continuidade do serviço." (citação de Porto Macedo Júnior, in Comentários ao Código de Proteção do Consumidor. S. Paulo. Saraiva, 1991, p. 110).

Também este amplo conceito de consumidor é admitido por Álvaro Lazzarini (Serviços Públicos nas Relações de Consumo, in Revista do Consumidor nº 29, p. 25, quando ensina que "Como destinatário final dos serviços prestados pelo Estado, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de fornecimento desses serviços, sujeito que está ao pagamento de tributos, o consumidor, pessoa física ou jurídica, está ao abrigo do Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078, de 11.09.1990, cujas normas de ordem pública e interesse social foram impostas nos termos dos arts. 5º, inc. XXXII, e 170, inc. V, da CR e art. 48 de suas Disposições Transitórias."

A jurisprudência firmou-se quanto à aplicação do CDC aos serviços públicos e, em especial, aos serviços de fornecimento de energia elétrica (STJ RESP 223778/RJ e AG 307905/PB).

Se a aplicação do CDC a tais relações emerge da própria Lei do Consumidor, é de ver que a extensão dessa aplicação ainda é matéria entregue à evolução doutrinária e pretoriana, havendo a defesa no sentido de que, uma vez que o art. 3º do CDC diz que "serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração...", só estaria abrangido pelo CDC os serviços públicos remunerados e jamais os gratuitos, sendo que o mero pagamento dos impostos não seria suficiente para ter o usuário como consumidor, eis que a relação deveria ser direta. Neste sentido o trabalho de Regina Helena Costa (A Tributação e o Consumidor, in Revista de Direito do Consumidor, 21/97. S. Paulo, Ed. RT)

Tal distinção parte da usual classificação entre os serviços prestados uti universi e uti singuli, mas ainda não é suficiente à perfeita compreensão do ponto, eis que não se pode olvidar o disposto no art. 2º da Lei 8.078/90, que diz:

"Art. 2º. Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final."

As relações que se buscou proteger com a Lei 8.078/90 foram, indubitavelmente, as relações contratuais, de modo que, onde não se puder falar em contrato, igualmente não se pode falar na aplicação de tal lei, francamente protetiva.

Ampliar sem qualquer critério a aplicação do CDC às relações que envolvem o serviço público apresenta efeito deletério, a partir de equivocada percepção quanto ao usuário dos serviços públicos, eis que, de fato, aquele que se "serve" do serviço público é administrado, e não consumidor por princípio, certo que, segundo a doutrina especializada, o consumidor é o que tem a capacidade econômica de consumir, enquanto o administrado é mais ainda do que isso, eis que dele não se exige qualquer capacidade econômica para consumir como destinatário final, exigindo-se dele tão apenas a "mera" condição de cidadão.

Ser cidadão é mais do que ser consumidor. E ser cidadão usuário de serviços públicos confere a este os direitos inerentes ao regime público, e não ao regime privado tal como ocorre nas relações consumeristas.

Desde já, então, posiciono-me dentre os que entendem que a relação de consumo do serviço público somente se estabelece quando o serviço público é remunerado por tarifa ou preço público, na esteira do entendimento de José Geraldo Brito Filomeno, citado por Ronaldo Porto Macedo Júnior (A Regulação e os Direitos do Consumidor, in Direito Administrativo Econômico, 1ª ed. 2ª tiragem, 2002, p. 239), que, acolhendo tais ensinamentos, conclui que "Eis a aparente vantagem da solução restritiva do professor Filomeno, que restringe o âmbito de incidência do Código de Defesa do Consumidor aos serviços públicos em que há o pagamento de uma tarifa (diretamente). Qual é a conveniência? A conveniência é que, ao se restringir o Código ao âmbito das relações jurídicas remuneradas mediante tarifa ou preço público, estamos no âmbito de relações jurídicas de Direito Privado, ao passo que se entendemos que a remuneração pode ser feita mediante taxa (como quer Regina Helena) já ingressamos no âmbito do Direito Público e saímos do âmbito de uma relação contratual de consumo."

Também a esta conclusão chegou o Centro de Apoio às Promotorias de Defesa do Consumidor de São Paulo, que, após estudos, destacou sua súmula nº 6, como segue:

"CENACON nº 6 - SERVIÇO PÚBLICO - OBJETO DE PROTEÇÃO PELO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - 'UTI SINGULI': São objeto de tutela pelo Código do Consumidor, e de atribuição das Promotorias de Justiça do Consumidor, os serviços públicos prestados uti singuli e mediante retribuição por tarifa ou preço público, quer pelo Poder Público diretamente, quer por empresas concessionárias ou permissionárias, sobretudo para os efeitos do seu art. 22. Não o são, porém, os serviços públicos prestados uti universi como decorrência da atividade precípua do Poder Público e retribuídos por taxa ou pela contribuição a título de tributos em geral. Nesse caso, tais serviços poderão ser objeto de inquérito civil e ação civil pública pelo Ministério Público, mas por intermédio do setor de defesa dos direitos do cidadão (Junho de 1992, atualizada em maio de 1996)."

Ilustrador indício da aplicação do CDC emerge exatamente do art. 25 da MP 2.148-5/2001, que pretendeu afastar a aplicação das normas do CDC às relações disciplinadas pela MP e confiadas à CGCE, dispositivo considerado constitucional porque trataria de relação trilateral comum aos contratos de concessão, onde o usuário assume papel distinto do de consumidor (v. ADC 9), com o que, ao menos quanto à relação usuário/fornecedor direto do serviço, reforçado está a sua condição de consumidor.

Tal definição é importante para o correto deslinde do presente caso, onde se questiona a aplicação do CDC quanto aos serviços prestados pela distribuidora e pela Agência Reguladora, eis que, em relação às distribuidoras concessionárias, como é o caso, uma vez que a remuneração ocorre por tarifa, fica evidente a aplicação do CDC, e, de outro lado, não havendo remuneração direta pelos serviços desempenhados pela Agência, autarquia especial, de tais regras consumeristas não se pode cogitar nessa relação.

Por último, fixe-se que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (AMS nº 2002.72.05.2803-3/SC), ao decidir por maioria e, no meu modo de ver, equivocadamente, sobre a constitucionalidade da sobretarifa (conhecido como "seguro apagão") imposta pela MP 14/2001, convertida na Lei 10.438/02, e uma vez que tais tarifas não são destinadas às concessionárias, mas sim, nas palavras do voto vencedor, do Des. Fed. Luiz Fernando Wowk Penteado, ao próprio "... Sistema Elétrico Interligado Nacional, composto por agentes atuando nas três etapas distintas, todas remuneradas pelo preço pago pelo consumidor final ao distribuidor...", certo ainda que entre tais agentes se encontra a ANEEL, poder-se-ia, ad argumentandum, e a partir de tal julgamento, estender à própria ANEEL as regras do CDC, ficando fora de qualquer dúvida que os serviços da distribuidora são remunerados pela tarifa e, portanto, relações de consumo.

Concluo que em relação à CELESC, distribuidora de energia elétrica e remunerada por tarifas, aplicam-se as regras do consumidor e, quanto à ANEEL, agência reguladora, não havendo tal contraprestação direta, inaplicam-se as regras do consumidor, certo contudo que, em ambos os casos, a responsabilidade é objetiva, seja por força do art. 14 do CDC, seja por força do art. 37, § 6º, da CF.

Fica claro então que, em última ratio, o fundamento da presente ação reside no artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, consagradora da responsabilidade objetiva (confira-se Georghio A. Tomelin. Responsabilidade dos Agentes Públicos por Condutas Omissivas após a Vigência do Código de Defesa do Consumidor, in RDA 213/165), e aqui, para o presente caso, sob o crivo da responsabilidade objetiva sob a modalidade da culpa anônima ou do serviço, também chamada teoria do acidente administrativo, certo que há muitos nomes para marcar um fenômeno que a jurisprudência vem aceitando pacificamente, qual seja, a de que no mau funcionamento do aparelho da administração vale a teoria da culpa, sob a modalidade anônima, por isso que não é necessário identificar qual agente causou o dano, eis que basta a faute du service, ou seja, demonstrar-se que o serviço não funcionou, funcionou mal ou ainda tarde.

Esta a teoria aplicável ao caso, como melhor será explicitado.

Bem verdade que há resistência na doutrina sobre a aplicação da teoria da culpa anônima na falta do serviço, tal como emerge da lição do Prof. Romeu Felipe Baccelar, quando diz que "é possível inserir a falta de serviço dentre a doutrina objetiva, na exata medida que, entre outros, pelo dever de eficiência imposto ao Poder Público, prescinde-se de qualquer perquirição de culpa, ainda que especial" (Responsabilidade Civil Extracontratual das Pessoas Jurídicas de Direito Privado Prestadoras de Serviço Público, in Revista de Interesse Público, ano 2, nº 6, abril/junho 2000, p. 32), posição igualmente defendida em substancioso trabalho escrito por João Agnaldo Donizeti Gandini e Diana Paola da Silva Salomão (A Responsabilidade Civil do Estado por Conduta Omissiva, RDA 232/199), tudo porque "... o comportamento omissivo do Estado deve ser considerado como causa do dano, e não simples condição deste, como entende a corrente doutrinária subjetivista, anteriormente citada. Portanto, o parágrafo 6º do artigo 37 da Constituição Federal contempla, além da responsabilidade por atos comissivos, aquela decorrente da conduta omissiva."

De acordo com a melhor doutrina pátria, só deve ser responsabilizado civilmente o Estado, leia-se aqui administração direta e indireta, quando ficar caracterizado a existência do dano e do nexo causal.

A respeito do presente tema tratado, recorro aos ensinamentos de Washington de Barros Monteiro: "A Constituição Federal alargou, pois, consideravelmente, o conceito de responsabilidade civil, de modo a abranger aspectos concretos que o direito anterior não conhecia, ou não levava em conta para conceder indenização. Presentemente, para que o Estado responda civilmente, basta a existência do dano e do nexo causal com o ato do funcionário, ainda que lícito, ainda que regular. A idéia de causalidade do ato veio substituir o da culpabilidade do agente. Por outras palavras, é o acolhimento da teoria do risco integral, iterativamente consagrado pela jurisprudência." (Monteiro, Washington de Barros, Curso de Direito Civil, volume I, 28ªed., 1989, editora Saraiva- SP).

A teoria que fundamenta a responsabilidade civil do Estado, conforme pacífica doutrina nacional, é a do risco administrativo, consagrada pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 37, 6º, cujo fundamento é o próprio princípio da isonomia, no sentido já de muito esclarecido por Amaro Cavalcanti, no seu Responsabilidade Civil do Estado, t. XI, para quem "... assim como a igualdade dos direitos, assim também a igualdade dos encargos é hoje fundamental no direito constitucional dos povos civilizados. Portanto, dado que um indivíduo seja lesado nos seus direitos, como condição ou necessidade do bem comum, segue-se que os efeitos da lesão, ou os encargos de sua reparação, devem ser igualmente repartidos por toda a coletividade, isto é, satisfeitos pelo Estado, a fim de que, por este modo, se restabeleça o equilíbrio da justiça cumulativa: 'Quod omnes tangit ab omnibus debet supportari'.".

Também Paul Duez, citado por Aguiar Dias, em Da Responsabilidade Civil, vol II, 9ª ed. p. 605, para quem "Todo prejuízo anormal, excepcional, exorbitante pela sua natureza ou por sua importância, os incômodos e sacrifícios correntes exigidos pela vida em sociedade e pela manutenção pacífica dessa sociedade, devem ser considerados como violação da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos."

Em recente decisão, o Supremo Tribunal Federal assim delineou a aplicação da teoria, no direito pátrio:

"REC.EXTR. N. 1096415-2. Rel. Min. Celso de Mello. DJ 02-08-96, p. 25785

RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO PODER PÚBLICO - PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL.

- A teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros desde a Carta Política de 1946, confere fundamento doutrinário à responsabilidade civil objetiva do Poder Público pelos danos a que os agente públicos houverem dado causa, por ação ou por omissão. Essa concepção teórica, que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, faz emergir, da mera ocorrência de ato lesivo causado à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais ou de demonstração de falta do serviço público.

- Os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o eventus damni e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva, imputável a agente do Poder Público, que tenha, nessa condição funcional, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do comportamento funcional (RTJ 140/636) e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal (RTJ 55/503 - RTJ 71/99 - RTJ 91/377 - RTJ 99/1155 - RTJ 131/417).

- O princípio da responsabilidade objetiva não se reveste de caráter absoluto, eis que admite o abrandamento e, até mesmo, a exclusão da própria responsabilidade civil do Estado, nas hipóteses excepcionais configuradoras de situações liberatórias - como o caso fortuito e a força maior - ou evidenciadoras de ocorrência de culpa atribuível à própria vítima (RDA 137/233 - RTJ 55/50)."

Diante da transcrição supra, pode-se observar que, além da existência do dano sofrido pela vítima é preciso que haja ainda a existência de um liame entre a fatalidade e a ação ou omissão do agente estatal, evidenciando o nexo causal.

Para resolver a questão do nexo de causalidade, vale evoluir quanto à teoria da culpa anônima que, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, (Curso de Direito Administrativo, 7ª ed. p. 561), se traduz em que, "Com efeito, se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele o autor do dano. E se não foi o autor, só cabe responsabilizá-lo caso esteja obrigado a impedir o dano. Isto é: só faz sentido responsabilizá-lo se descumpriu dever legal que lhe impunha obstar o evento lesivo." E aqui é de valer-se da expressão obrigação de impedir o dano, ou seja, para não tornar o Estado verdadeiro segurador universal, é preciso que bem se compreenda a dimensão do chamado risco criado.

Em trabalho publicado no Boletim de Direito Administrativo de janeiro de 2004, Vicente Greco Filho remete a Claus Roxin e sua teoria de imputação do fato para que se ponha limites à teoria da causalidade, eis que esta levaria ao infinito, para concluir "... que se o Estado gera um risco, ou um particular gera um risco, responde mesmo na hipótese de caso fortuito ou caso de força maior, porque quem gera um risco gera a seu favor, gera no seu interesse, então tem de responder pelas conseqüências..." assumindo, então, postura coincidente com a de Roxin quando entende derivar a responsabilidade da causalidade adequada.

Para o caso, ainda que superada a eventual responsabilidade unicamente em decorrência do ato atribuído aos servidores da CELESC, quando se estaria diante de responsabilidade objetiva em decorrência do ato atribuído à administração, a adequação da causalidade encontra-se na falta anônima do serviço público, eis que evidentemente se espera que o aparato da União, pela sua Agência Reguladora (ANEEL), e do Estado de Santa Catarina, pela sua distribuidora (CELESC), se destine ao bom desempenho dos serviços prestados ou ainda do regular exercício do poder de polícia, de modo que devem os órgãos prestar o serviço essencial de energia elétrica conforme as regras legais e contratuais então vigentes, valendo aqui destacar o trabalho de Mário Moacyr Porto (Revista CEJERN, 1995. vol 2, p 10/11), quando diz que "... A verdade é que muito antes da vigente Constituição e em razão dos trabalhos doutrinários dos eminentes juristas PEDRO LESSA, PHILADELFO AZEVEDO, ALIOMAR BALEEIRO, JOSÉ DE AGUIAR DIAS, AMARO CAVALCANTI e outros, entendeu-se como verdade jurídica de quilate válido que, na responsabilidade civil do Estado, há de vingar o entendimento que se apóia na noção da publicística desta responsabilidade e as pessoas jurídicas de direito público são responsáveis sempre que se constata uma falta anônima no serviço público, isto é, o serviço não funciona, o serviço funciona mal, ou o serviço funciona com tardança, na fórmula de DUEZ."

Conforme José de Aguiar Dias, em seu Da Responsabilidade Civil, vol. II, 9ª ed. p. 565, "A teoria da falta do serviço público, elaborada na França pelo Conselho de Estado como concepção autônoma, se caracteriza, segundo o insigne Paul Duez, pelos seguintes pontos essenciais: 1º A responsabilidade do serviço público é uma responsabilidade primária. A administração não é declarada responsável em conseqüência do jogo dos dados preponente-preposto, patrão-empregado, etc, mas absorve a penalidade do agente, que se torna simples peça na empresa administrativa, em cujo corpo se funde. 2º A falta do serviço público não depende da falta do agente. É suficiente estabelecer a má condição do serviço, o funcionamento defeituoso, a que se possa atribuir o dano. Aplicação típica desse critério é uma célebre decisão do Conselho de Estado, tomada a 3 de fevereiro de 1911... 3º É preciso, entretanto, notar que o que dá lugar à responsabilidade é a falta, não o fato do serviço. Distinção útil, no sentido de que a teoria não pode ser assimilada à doutrina do risco. 4º Nem todo defeito do serviço acarreta a responsabilidade: requer-se, para que esta se aperfeiçoe, o caráter de defectibilidade, cuja apreciação varia segundo o serviço, o lugar, as circunstâncias."

Continuando as preciosas lições, Aguiar Dias esclarece que "Na culpa administrativa, portanto, decorrendo a responsabilidade da falta anônima do serviço público e não cogitando de culpa do funcionário, é sem utilidade a distinção entre culpa pessoal e culpa profissional... De três ordens são os fatos identificáveis como faltas do serviço público, conforme resultem: do mau funcionamento do serviço, do não funcionamento do serviço, do tardio funcionamento do serviço. Na primeira categoria estão os atos positivos culposos da administração. Na segunda, os fatos conseqüentes à inação administrativa, quando o serviço estava obrigado a agir, embora a inércia não constitua rigorosamente uma ilegalidade. Na terceira, as conseqüências da lentidão administrativa. A propósito desta espécie de faltas do serviço público proferiu o Supremo Tribunal Federal importante julgado" (idem p. 66), valendo esclarecer que o julgado referido, conforme a nota de rodapé, referiu-se ao julgado publicado no Diário da Justiça em 02/02/43, tratando de "... mercadoria que veio a inutilizar-se em virtude do seu tardio desembaraço na Alfândega..." certo que para o autor, "... para que daí surja a obrigação de ressarcir, é preciso, além da prova do dano e do ato ilícito, o nexo de causalidade entre um e outro. Como alegasse a parte, no caso, que o dano fora causado por agentes aduaneiros, devia, o que não fez, dar prova da falta que lhes atribuía.", o que, evidentemente, não invalidou a aplicação correta da responsabilidade objetiva do Estado, na modalidade culpa anônima.

Preciso que se faça então a necessária distinção entre os fundamentos de responsabilidade da ANEEL e da CELESC.

Na presente ação é imprescindível anotar que a ANEEL está sendo demandada, entre outros fundamentos, em razão de danos que teriam decorrido da ausência dos serviços de fiscalização, inclusive decorrentes do contrato de concessão que celebrou, ou seja, em decorrência do poder de polícia, consistente na restrição de direitos ou interesses em favor da coletividade, que, no Brasil, merece interpretação autêntica, a partir do artigo 78 do Código Tributário Nacional, segundo o qual:

"Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder."

Trata-se da atuação da administração sobre os bens, direitos e atividades, cujo principal atributo é a discricionariedade, consistente na livre escolha da oportunidade e conveniência de seu exercício, e a auto-executoriedade, consistente na execução direta de suas decisões, por seus próprios meios, sem intervenção do Judiciário, valendo ainda referir-se à coercibilidade para dar a tônica da sua importância e rigorismo.

O parágrafo único do artigo 78 é ilustrativo quando requer o regular exercício do poder de polícia, por isso que o mesmo deve ser proporcional, com adequação dos meios em relação aos fins, além de razoável, sendo que, para a doutrina, é preciso ainda que, em face da gravidade de que se reveste, seja necessário (ante ameaças reais) e eficaz (adequação da medida), para o que invoco os estudos publicados na RDA 27/1, por Caio Tácito, e na RT 721/339 por Álvaro Lazzarini, ambos referindo-se aos limites da atuação estatal no exercício deste poder.

Se é segura a aplicação da doutrina da responsabilidade objetiva na modalidade culpa anônima em relação ao serviço público, também o é em se tratando de poder de polícia, por isso que, conforme Aguiar Dias, op. cit. p. 598 e 603, o "poder de polícia não nos parece, de forma nenhuma, licença para o arbítrio. É pura emanação da função administrativa. Pode, às vezes, traduzir-se em atos de emergência, mas a legitimidade e não a violência deve ser o seu substratum... A doutrina do abuso de direito deve ter cabida em face do desvio ou excesso no chamado poder de polícia, que comporta, para a administração, a faculdade de estabelecer injunções, proibições, autorizações, recusas e exceções"

Quanto à imputação da responsabilidade atribuída à CELESC, vê-se que são outros os fundamentos, já que se parte da responsabilidade em razão dos serviços realizados pelos seus funcionários, quando a responsabilidade é objetiva sob a modalidade risco administrativo, e ainda em razão da ausência de planejamento, já que não tem a distribuidora poder de polícia, quando se invoca a teoria da culpa anônima.

Em se tratando de um contrato de concessão, não se pode olvidar que, uma vez já conceituado o serviço adequado a partir do contido no art. 6º, § 1º, da Lei 8.987/95, donde se infere o requisito da atualidade na prestação, cuidou o art. 6º, § 2º, da mesma Lei de dizer que: "A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria de expansão do serviço."

Ainda, o art. 7º, § único e art. 25, § 1º, ambos do CDC, consagram a responsabilidade objetiva solidária de todos os agentes da cadeia de fornecimento de energia elétrica pelos danos causados, certo que o art. 20 tratou dos vícios de qualidade no fornecimento de serviços, considerando vício os relativos à segurança e qualidade do serviço, quando prestado de modo ineficiente ou com interrupções.

Certo é que, a partir de todos estes postulados ora fixados, conforme anotou a Academia Brasileira de Direito Constitucional em trabalho realizado pelo Grupo de Estudo em Direito Constitucional Econômico, sob orientação do Prof. Ubirajara Custódio Filho, "sob a ótica do Direito do Consumidor, verifica-se que a responsabilização poderá ser contratual e extracontratual, e em ambas as hipóteses é objetiva, nos termos do art. 22 do CDC. Contratualmente, as distribuidoras de energia elétrica responderão em virtude da falta de continuidade da prestação do serviço público de energia, direito este garantido ao usuário/consumidor. A responsabilização extracontratual abrangerá toda a cadeia de fornecedores, nos termos dos arts. 7º, § único e 25, § 1º do CDC, de forma solidária, abarcando as empresas estatais ou privadas geradoras, as empresas do segmento de transmissão e os agentes comercializadores."

Finalmente, para concluir sobre esse quadro jurídico quanto às responsabilidades da concessionária e agência reguladora em relação aos fatos em exame, cumpre mencionar trecho do trabalho de Edmir Netto de Araújo, no artigo "A Aparente Autonomia das Agências Reguladoras", in Agências Reguladoras, vários autores, ed. Atlas, 2002, onde conclui o autor que "Mesmo assim, essa definição de regras operacionais e tecnicamente discricionárias não pode contrariar normas legais e inovar na ordem jurídica legal-formal. Com efeito, até autores que sabidamente apóiam em maior grau o exercício da função regulatória ressaltam essa função essencialmente operacional do processo de regulação e a necessidade da observância dos parâmetros legais. Realmente, em recente episódio (crise energética), ficou a impressão de que essa autonomia técnica operacional no processo de concessão não teria funcionado a contento, o que nos leva a meditar também sobre o aspecto da responsabilidade civil, por danos e prejuízos decorrentes das concessões/permissões/autorizações de serviço público. É claro que a responsabilidade civil das prestadoras de serviços públicos é objetiva, pois assim o determina o art. 37, § 6º, da Constituição Federal, mas qual seria a posição das agências reguladoras, que se colocam exatamente entre o Poder Público e o concedente e as concessionárias/ permissionárias/autorizatária? Se, como a doutrina predominante aponta com precisão, no caso das concessões, permissões e autorizações de serviço público, a lei transfere às agências reguladoras as atribuições do Poder Público concedente nessa matéria, e se a responsabilidade do Estado em relação à delegação de tais serviços e mesmo concernente às entidades que cria para desempenhar serviços públicos é subsidiária, como tem reconhecido a jurisprudência, uma vez que o serviço público é assumido pelas concessionárias/permissionárias/autorizatárias em seu próprio nome, por sua conta e risco, no interesse geral, parece lógico que, no caso da execução dos serviços, a responsabilidade civil dos prejuízos causados deva ser direta e objetiva das prestadoras do serviço e subsidiária das agências ou do próprio Poder concedente. No entanto, se falhas ou ilegalidades se verificarem na própria regulação (fiscalização, normatização, controle, gerenciamento, etc.), que venham a indiretamente causar prejuízo ao administrado em geral e ao usuário do serviço em especial, a responsabilidade da agência reguladora poderá ser solidária à da prestadora, conforme o caso, até mesmo direta." (grifei)

O trecho acima destacado bem demonstra a natureza da responsabilidade da distribuidora e também da agência reguladora, tudo a partir dos fundamentos da inicial, viabilizando a competência desta Justiça Especializada e pugnando pela apreciação dos postulados dessa responsabilidade objetiva solidária entre as ora rés.

Neste contexto, residindo agora nas provas coligidas aos autos, de se anotar que a presente ação civil pública está ricamente instruída pelos autores, que a propuseram após a instauração do inquérito civil nº 01/2003 (fls. 127 e seguintes), com exaustiva apuração de todos os fatos descritos na inicial, como ressai da mais breve leitura da petição inicial de ação civil pública, por isso que extremamente criteriosa a ação, valendo acrescentar que, além das provas documentais, há farta prova digital produzida.

O contrato de concessão nº 56/99 encontra-se em fls. 472/488, e, já na sua cláusula 4ª, assim dispõe:

CLÁUSULA QUARTA - EXPANSÃO E AMPLIAÇÃO DOS SISTEMAS ELÉTRICOS.

A concessionária obriga-se a prover o atendimento da atual demanda dos serviços concedidos e também implantar novas instalações, bem como ampliar e modificar as existentes, de modo a garantir o atendimento da futura demanda de seu mercado de energia.

Subcláusula Única - As novas instalações, as ampliações e as modificações das instalações existentes, dos sistemas de distribuição e de transmissão de âmbito próprio da CONCESSIONÁRIA, deverão obedecer os procedimentos legais específicos e as normas do PODER CONCEDENTE e da ANEEL e incorporar-se-ão à respectiva concessão, regulando-se pelas disposições deste Contrato e pelas normas legais e regulamentares da prestação de serviço público de energia elétrica.

O Relatório de Fiscalização da Aneel, RF - CELESC - 02/2003 - SFE, que ocupa as fls. 189/203 e foi elaborado após os fatos da inicial, por sua vez, concluiu que: "Na avaliação da ocorrência de 29 de outubro de 2003, constatou-se que a Celesc tinha conhecimento prévio da fragilidade do sistema de transmissão de 138 KV para atendimento à ilha de Santa Catarina tanto que estavam previstas obras de fechamento do anel de 138 Kv dentro da ilha, bem como de um novo suprimento. A fiscalização constatou que a interrupção no fornecimento de energia elétrica à ilha de Santa Catarina ocorreu devido a não observância, por parte dos técnicos da Celesc, das normas e procedimentos da empresa para este tipo de manutenção e, em decorrência disto, ocorreu a explosão e a danificação dos cabos de 138 KV que atendem a Ilha. É importante também destacar que, a empresa não possuía um plano de emergência para atendimento, à Ilha de Santa Catarina, no caso de perda de qualquer uma das linhas de 138 KV, apesar de ter conhecimento prévio que haveria corte de carga de até a 120 MW nesta situação." (fls. 202/203)

Neste relatório, que se dedicou aprofundadamente sobre as questões técnicas (fls. 190/195), constatou-se que o cronograma de obras esteve sempre em atraso pela concessionária, valendo, especificamente para o caso, reproduzir a conclusão da ANEEL, segundo a qual "Na ação de fiscalização realizada em dezembro de 2002 na Celesc, em resposta ao ofício nº 512/2002-SFE-Aneel, de 18 de novembro de 2002, que solicitava da empresa a apresentação dos pontos críticos e obras previstas, a empresa informou que não considerava o atendimento a Ilha de Santa Catarina um ponto crítico e os demais já haviam sido diagnosticados e as soluções estão sendo implantadas." (fls. 193), com o que a conclusão é uma só: a necessidade da obra era conhecida pela CELESC e pela ANEEL e, apesar da existência da cláusula quarta, nem a concessionária a observou e nem a agência reguladora a obrigou cumprir, com o que resta evidente a responsabilidade solidária das rés.

Aqui cabe ainda breve referência aos relatórios de fiscalização dos anos imediatamente anteriores (RF CELESC 03/2002 - fls. 204/224, RAF - fls. 225/250), que confirmam a conclusão do parágrafo imediatamente anterior.

O relatório da ANEEL, então, além de evidenciar o defeito na prestação dos serviços da concessionária, ainda é evidência da própria omissão da agência quanto ao cumprimento da cláusula quarta, pelo que nenhuma razão pôde ser deduzida para o não controle da omissão da concessionária.

O Relatório de Investigação e Análise de Acidente de Trabalho "Apagão", realizado pelo Setor de Segurança e Saúde do Trabalhador da DRT/SC, órgão do Ministério do Trabalho e Emprego - MTE (fls. 157/178), concluiu, basicamente entre as fls. 167/170: "o ocorrido não foi um fato eventual, de causas fortuitas, mas sim um fato de causas diversas, conforme identificadas e especificadas anteriormente. Ou seja, foram identificados os seguintes tipos de fatores causais: 1) do ambiente; 2) da tarefa; 3) da organização e gerenciamento - das atividades, de pessoal, de materiais, da empresa; 4) do material - máquinas, ferramentas, equipamentos, matérias-primas; 5) do indivíduo; 6) de manutenção." (fls. 170)

A partir do contrato de concessão 56/99, verifica-se que a subcláusula 1º da cláusula 2º e a cláusula 5ª, XIII, foram desrespeitadas, valendo reproduzi-las:

Subcláusula Primeira - A CONCESSIONÁRIA obriga-se a adotar, na prestação do serviço de distribuição de energia elétrica, tecnologia adequada e a empregar materiais, equipamentos, instalações e métodos operativos que, atendidas as normas técnicas brasileiras, garantam níveis de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia no atendimento e modicidade nas tarifas...

Cláusula Quinta - Além de outras obrigações decorrentes da lei e das normas regulamentares específicas, constituem encargos da CONCESSIONÁRIA, inerentes à concessão regulada por este Contrato: ...

XIII - realizar programas de treinamento do seu pessoal, visando ao constante aperfeiçoamento do mesmo para a adequada prestação do serviço de distribuição concedido."

Ora, como apontam os autores lesadas tais cláusulas, bastaria apenas o mencionado relatório da DRT/SC, pelo seu setor especializado, para se ter frontalmente descumpridos ambas as cláusulas mencionadas, fazendo exsurgir também a responsabilidade de ambas as rés, eis que basta a leitura dos relatórios da ANEEL, já citados, para concluir-se sobre a inexplicável tolerância quanto ao cumprimento de tais cláusulas, causas diretas do evento.

A própria ré CELESC, cumprindo a legislação específica, forneceu os relatórios de acidente de trabalho (fls. 299/303) e comunicações de acidente de trabalho (fls. 345/350), sobrevindo, em fls. 1975/1976, o Relatório elaborado por Comissão Especial, instituída pela Resolução da Presidência da CELESC nº 752, de 03/11/03, que consiste num libelo da auto-imputação da responsabilidade pelo evento, eis que demonstra a falha na prestação dos serviços públicos, confirmando a responsabilidade pelo evento.

O Corpo de Bombeiros de Florianópolis produziu o Laudo de Investigação de Incêndio 007/CAT/CCB/2003 (fls. 254/275), concluindo que "De acordo com as investigações realizadas com os depoimentos apresentados, com a correlação dos elementos obtidos e, ainda, excluindo as demais causas, os Peritos de Incêndio concluem que o incêndio ocorrido por volta de 13:14h do dia 29 de outubro de 2003, na Ponte Colombo Machado Sales, ligação ilha-continente da capital do Estado de Santa Catarina, teve como CAUSA, ação humana indireta (o agente ígneo que determinou o surgimento do incêndio foi a chama do maçarico utilizado nos serviços de manutenção na galeria da ponte) e como SUB CAUSA a ignição de um volume de gás, de procedência não identificada, concentrado na região da galeria onde estavam sendo realizados os serviços de manutenção.", conclusões complementadas pelas informações de fls. 444/447.

As complementações de fls. 444/447 são imprecisas no que respeita ao esclarecimento quanto a não identificação sobre a procedência da concentração de gás, pois conclui que "c) a hipótese da origem do volume de gás ter sido procedente do recipiente de GLP foi descartada em função do que consta das declarações prestadas pelos funcionários da empresa; d) Embora descartada, tal hipótese possa passar a figurar, ao lado da já indicada, como uma também causa provável, seria preciso que os funcionários da empresa admitissem, formal e expressamente, que houve um vazamento de gás, fato que não poderia ter passado despercebido, pois a relação de causa e efeito que teria se instalado seria imediatamente percebida. e) Diante do exposto, não há como manter o equipamento de GLP como uma das hipóteses prováveis da procedência do volume de gás, por não haver onde, tecnicamente, sustentar tal afirmação... g) As declarações que os funcionários prestaram por escrito, foram adotadas como a expressão final da vontade e da verdade dos mesmos, prevalecendo sobre as declarações que deram aos Bombeiros que lhes prestaram os primeiros atendimentos no local da ocorrência, quando um deles, segundo o depoente, teria declarado que 'achava que houve um algum problema com a válvula', tendo ainda um outro dito que 'o liquinho explodiu'; h) se tais constatações são contradições, entendemos que devam ser investigadas por outras instituições, pois fogem da alçada do Corpo de Bombeiros. Conforme já dissemos, não faz parte da nossa doutrina de investigação de incêndios, fazer acareações, investigar pessoas." (fls. 445/446).

A rigor, tais conclusões representam a confissão expressa da incapacidade daquela corporação militar em identificar, tecnicamente, a causa do acúmulo de gás, certo que preferiu fiar-se nos depoimentos prestados pelos funcionários da CELESC perante o próprio Corpo de Bombeiros (fls. 261/267), relegando a um segundo plano todos os demais aspectos técnicos, e, sobretudo, os depoimentos 257/260, prestados por seus próprios membros a partir das constatações feitas "no calor do momento do resgate dos funcionários" por estes, e que bem esclarecem a explosão de um "liquinho" manuseado pelos funcionários quando da operação, conforme disseram os funcionários CELESC resgatados no mar, repita-se, "no calor do momento".

As referências ao uso do liquinho ou botijão de GLP são repetidas à exaustão ao longo dos inúmeros documentos e depoimentos juntados aos autos, valendo referir que, no âmbito do inquérito civil público, um funcionário que esteve na operação chegou a afirmar categoricamente que "a empresa CELESC informa que o uso do liquinho é um procedimento antigo. Que o próprio depoente já presenciou o uso por várias vezes" (fls. 134), referências existentes em fls. 143, 149, 150, 259, 304, 307, 386 e 394 , e pela própria CELESC, em fls. 120/121, quando diz que "o acidente ocorreu com um butijão de gás (5 Kg) que estava sendo utilizado para construção da emenda termo-contrátil, provocando incêndio imediato no ambiente da galeria...", o que repete no seu relatório de fls. 1975/1976, item 7, sendo de se atentar para as fotos de fls. 173, que mostram o próprio botijão após o incêndio, e o fato de a imprensa escrita, já no dia imediatamente seguinte, divulgar a versão da explosão de um liquinho (fls. 1957).

Como todos os elementos apontam para a explosão do botijão utilizado para alimentar o maçarico, não é possível, nesta fase, partir de qualquer tese diversa.

Importante ressaltar a importância de que se reveste o laudo de incêndio do Corpo de Bombeiros de Florianópolis, com verdadeiro foro de palavra oficial do Estado, não se podendo, contudo, propagar a tão frágil inconclusão, eis que se estaria diante do perigo de propagar-se uma versão oficial extremamente débil, de que a "SUB CAUSA a ignição de um volume de gás, de procedência não identificada...", em episódio semelhante ao escrito por Gabriel García Márquez no seu "Cem Anos de Solidão, Biblioteca Folha, 2003, p. 282", quando, após o episódio do massacre de 3000 trabalhadores na estação de Macondo presenciado por José Arcádio Segundo, o único sobrevivente, "a versão oficial, mil vezes repetida e repisada em todo o país por quanto meio de divulgação o governo encontrou ao seu alcance, terminou por se impor: não houve mortos..."

Ora, havendo o botijão com GLP, cuja foto encontra-se em fls. 173, evidencia-se que o gás que propagou o fogo originou-se deste artefato.

Quanto às proporções do evento, como dizem os autores na inicial, é impossível quantificá-los.

A própria Prefeitura Municipal de Florianópolis chegou mesmo expedir o Decreto nº 2067/2003 para o fim de decretar o estado de emergência no Município, tudo a partir da consideração de que "os serviços atingidos, os danos provocados, bem como, os prejuízos causados são de grande monta e incalculáveis colocando em risco a população do Município de Florianópolis." (fls. 153)

A audição da gravação de toda a programação da rádio local Guararema durante o evento bem demonstra a angústia, incerteza, insegurança e, sobretudo, decepção da população desta cidade, ilustrando também os inúmeros danos sofridos pelos cidadãos consumidores, alguns sem obter fornecimento da própria água.

As notícias de imprensa (fls. 1908/1961), além dos inúmeros pedidos de indenização e autuações para inutilização de mercadorias perecíveis (fls. 611/1875), conseguem traçar um breve, e ainda comportado, quadro dos prejuízos sofridos pela população da parte insular da cidade de Florianópolis em decorrência do evento, comprovando-se ainda que apenas uma pequena parcela de consumidores, do Grupo "A", obteve indenização (fls. 1894/1907), o que, ao mesmo tempo que é prova da existência de danos, também é indiciário de que a própria distribuidora assumiu a responsabilidade pela indenização de tais danos.

Quanto aos consumidores do Grupo "B", a concessionária limitou-se a apresentar documento padrão sustentando a existência de caso fortuito para o que chamou de "desconfortante" e "lamentável" interrupção, a qual foi imprevisível e inevitável.

Neste ponto o relatório elaborado pelo Engenheiro Eletricista Carlos Roberto Gallo (fls. 586/598), a pedido dos autores e no bojo do inquérito civil público nº 01/2003, é expressivo em demonstrar o prévio conhecimento e a total evitabilidade técnica quanto ao evento.

Quanto às causas de exclusão da responsabilidade pública, embora o desacerto da doutrina quanto à definição dos institutos, adoto a tese de que, para o caso fortuito, a imprevisibilidade é requisito fundamental, ao passo que, para a força maior, a inevitabilidade é a marca de distinção, certo que, para o caso, nem de caso fortuito nem de força maior se pode cogitar, pois os relatórios até aqui transcritos demonstram, de modo insofismável, que o risco na produção do evento era amplamente conhecido pela distribuidora e, nos últimos anos, também pela ANEEL.

Mesmo que se tratasse de evento da natureza, e apenas para argumentar, valem aqui as lições de João Agnaldo Donizeti Gandini e Diana Paola da Silva Salomão (A Responsabilidade Civil do Estado por Conduta Omissiva, RDA 232/199), quanto às hipóteses de exclusão da responsabilidade, amoldada ao presente caso, quando dizem que é "importante ressaltar que se o Estado deixar de realizar ato ou obra considerada indispensável e sobrevier fenômeno natural que cause danos a particulares pela falta daquele ato ou obra, portanto conduta omissa, o Poder Público será o responsável pela reparação de tais prejuízos, visto que neste caso estará presente o nexo de causalidade entre o ato omissivo e o dano. Desta forma, a causa do dano não é o fato de força maior, mas o desleixo do Estado em, sendo possível prever tal fenômeno e suas conseqüências, nada ter feito para evitá-las."

Finalmente, como já se demonstrou, os serviços públicos cujo fornecimento foram interrompidos em razão dos atos e omissões acima demonstrados são devidamente remunerados, estando os consumidores na boa-fé e justa expectativa quanto à fiel execução dos contratos de concessão, o que abrange a sua correta prestação, inclusive nos trabalhos de manutenção, e ainda a efetivação tempestiva dos investimentos prometidos no referido contrato de concessão, tudo sob a fiscalização da ANEEL, por isso que é cabível invocar-se o ex-ministro Francisco Campos (Tarifas de Serviços Públicos, in Direito Administrativo, vol. I, Ed. Freitas Bastos, 1958, p. 70/71, quando disse: "O Poder Público não é um poder irresponsável e arbitrário; ele se vincula e se limita pelos seus próprios atos. Não pode se reservar o privilégio, que se resume na mais cínica das prerrogativas que se arrogava o poder absoluto, de surpreender a boa-fé dos que confiam na sua palavra ou nas suas promessas, violando aquela ou anulando essas, depois de haver conseguido, por causa de uma ou de outras, as prestações cuja execução havia sido feita na fé, fundamental não só ao comércio jurídico, como à convivência moral, de que a ninguém é lícito retirar a palavra empenhada ou desfazer a promessa mediante a qual obteve vantagem de outrem ou lhe causou ou infligiu sacrifício.", havendo doutrina sustentando até mesmo a responsabilidade por dano moral coletivo (confira A Reparação do Dano Moral. Limongi França, RT 631/29.

Nesta quadra não se perde de vista que o serviço público está "protegido contra os seus agentes mesmo."(Ruy Cirne Lima. Princípios de Direito Administrativo Brasileiro. Livraria do Globo, 1939, p. 70)

Tais advertências dos estudiosos do serviço público, realizadas há tanto tempo, não podem ser olvidadas.

6. AGÊNCIAS REGULADORAS. PODER NORMATIVO. CONTROLE.

Localizada a natureza jurídica das agências reguladoras, que traduzem o fenômeno da descentralização dos serviços públicos por meio de autarquias especiais, a quem cabe o exercício do poder de polícia sobre todas as atividades desempenhadas no setor específico, cabe enfrentar o problema quanto à extensão do seu poder normativo e os limites do controle judicial sobre tal poder.

Verifica-se que os autores pugnam pela reversão da multa imposta pela ANEEL à CELESC, e ora destinada à ELETROBRÁS, a fim de que a reversão ocorra em favor dos consumidores de Florianópolis, ou, sucessivamente, aos consumidores do Estado de Santa Catarina, pois a reversão é fundamentada no inciso IV do art. 6º da Resolução 318, de 06/10/98 e art. 1º da Resolução Normativa 46, de 10/03/04, que deu nova redação ao art. 1º da Resolução Normativa nº 459, de 05/09/03, apontando a inconstitucionalidade formal na afronta direta aos artigos 2º, 5º, II e 84, IV, da Constituição Federal; e apontando ainda a inconstitucionalidade material do art. 1º da Resolução nº 459/03, alterado pelo art. 1º da Resolução Normativa nº 46/04, já referidas, uma vez que, na destinação dos valores arrecadados a título de multa, tais Resoluções discriminam inconstitucionalmente os consumidores brasileiros, afrontando o artigo 5º da Constituição Federal, além de ferir a razoabilidade e a proporcionalidade, conforme artigo 5º LIV da Constituição Federal.

Para o deslinde do caso em comento, interessa-nos, em especial, a análise da Lei nº 9.427/96, que instituiu a Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, após o que se deterá sobre as resoluções mencionadas, ora juntadas em fls. 1876/1893 e 1960/1963.

A Lei nº 9.427/96 estipulou, no art. 2º, a finalidade da agência e, no seu artigo 3º os princípios que marcam a verdadeira competência da ANEEL, como demonstro:

"Art. 2º. A Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL tem por finalidade regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal (...)

Art. 3º. Além das incumbências prescritas nos art. 29 e 30 da Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, aplicáveis aos serviços de energia elétrica, compete especialmente à ANEEL:

I - implementar as políticas e diretrizes do governo federal para a exploração da energia elétrica e o aproveitamento dos potenciais hidráulicos, expedindo os atos regulamentares necessários ao cumprimento das normas estabelecidas pela Lei nº 9.074, de 7 de julho de 1995;

II - promover as licitações destinadas à contratação de concessionários de serviço público para produção, transmissão e distribuição de energia elétrica e para outorga de concessão para aproveitamento de potenciais hidráulicos;

III - definir o aproveitamento ótimo de que tratava os §§ 2º e 3º do art. 5º da Lei nº 9.074, de 7 de julho de 1995;

IV - celebrar e gerir contratos de concessão ou de permissão de serviços públicos de energia elétrica, de concessão de uso de bem público, expedir as autorizações, bem como fiscalizar, diretamente ou mediante convênios com órgãos estaduais, as concessões e a prestação dos serviços de energia elétrica;

V - dirimir, no âmbito administrativo, as divergências entre concessionárias, permissionárias, autorizadas, produtores independentes e autorpodutores, bem como entre esses agentes e seus consumidores"

Complementando o quadro normativo, o Decreto 2.335/98 cuidou de especificar sobre a incumbência da ANEEL pela regulação do setor, levando em conta as necessidades dos consumidores e o pleno acesso aos serviços de energia elétrica (art. 3º, II), pelo que se depreende a competência da ANEEL para elaborar e editar normas e regulamentos relativos à prestação e exploração dos serviços de energia elétrica, estabelecer padrões e normas técnicas de sua prestação.

A partir de tais competências a ANEEL passou a editar inúmeras Resoluções, sendo de se destacar a Resolução nº 24, de 27/01/00 (fls. 1876/1893), que aprovou os critérios técnicos relativos à continuidade na prestação dos serviços de energia elétrica às unidades consumidoras.

A edição da referida Resolução visa adequar a prestação à legislação vigente, sem qualquer alteração do seu conteúdo, com o que a sujeição dos serviços de energia elétrica às Leis 8.987/95 e 9.074/95 permaneceu.

Também a Resolução nº 459/03, alterada pela Resolução 46/04, (fls. 1960/1963, e que cuidou da destinação das multas aplicadas pela ANEEL às distribuidoras, não importou em contrariar Lei.

Relativamente à função reguladora das agências reguladoras, discorre Maria Sylvia Zanella Di Pietro (in Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas, 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, pp. 156, 157 e 158) que "O aspecto mais controvertido das agências reguladoras, no direito brasileiro, é o que diz respeito aos limites de sua função reguladora. Nas três agências referidas (ANEEL, Anatel e ANP, a função reguladora está sendo outorgada de forma muito semelhante à que é delegada às agências reguladoras do direito norte-americano; por outras palavras, a elas está sendo dado o poder de ditar normas com a mesma força de lei e com base em parâmetros, conceitos indeterminados, standards nela contidos. A primeira indagação diz respeito aos fundamentos jurídico-constitucionais para a delegação de função normativa às agências. As duas únicas agências que estão previstas na Constituição são a Anatel e a ANP, com referência à expressão "órgão regulador" contida nos arts. 21, XI, e 177, § 2º, III. As demais não têm previsão constitucional, o que significa que a delegação está sendo feita pela lei instituidora da agência. Por isso mesmo, a função normativa que exerce não pode, sob pena de inconstitucionalidade, ser maior do que a exercida por qualquer outro órgão administrativo ou entidade da administração indireta. Elas nem podem regular qualquer matéria, no sentido previsto para as agências norte-americanas, nem podem regulamentar leis, porque essa competência é privativa do chefe do Poder Executivo e, se pudesse ser delegada, essa delegação teria que ser feita pela autoridade que detém o poder regulamentar e não pelo legislador. As únicas normas que podem estabelecer têm que produzir efeitos internos apenas, dirigidos à própria agência, ou podem dizer respeito às normas que se contêm no edital de licitações, sempre baseadas em leis e regulamentos prévios. Com relação à Anatel e à ANP, pode-se reconhecer sua função reguladora, porque se trata de entidades previstas na Constituição como órgãos reguladores. Ocorre que não há qualquer definição de órgão regulador ou dos parâmetros a serem observados pelo legislador; os dispositivos constitucionais remetem a disciplina à lei. Será que isto significa que os órgãos reguladores podem estabelecer normas com a mesma força de lei? Ou podem exercer o poder regulamentar semelhante ao que é exercido pelo chefe do Poder Executivo? Como nunca existiram no Brasil entes com a denominação de órgão regulador ou agência reguladora, tem-se que entender que a expressão foi utilizada no sentido em que é usualmente empregada no direito estrangeiro, mais especificamente no direito norte-americano. Não se pode entender que esses órgãos exerçam função legislativa propriamente dita, com possibilidade de inovar na ordem jurídica, pois isso contrariaria o princípio da separação de poderes e a norma inserida entre os direitos fundamentais, no art. 5º, II, da Constituição, segundo a qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. (...) Repita-se, contudo, que a função reguladora só tem validade constitucional para as agências previstas na Constituição. Para as demais, ela não existe nos termos em que foi definida."

A discussão quanto ao alcance do Poder Regulamentar é, já bastante antiga.

Ao tempo da Constituição Federal de 1967, ante seu artigo 83, II, que cuidava do poder regulamentar, já se tornava importante a doutrina que buscava "distinguir a delegação de poderes ao Executivo, para fazer leis, com a delegação de poderes para apreciar fatos e determinar o estado de coisas, de que dependem, nos termos estatuídos pela própria lei, para a sua eficácia, mesmo quando age com discrição na verificação desses fatos." (Ruy Cirne Lima. Princípios Gerais de Direito Administrativo, vol. I, Forense, 1969), por isso que se firmou o entendimento de que, quanto aos órgãos disciplinares ou reguladores da economia, a regulamentação não seria exercida pelo Chefe do Executivo, mas pelos órgãos de direção da entidade ou pessoa criada pela Lei (Poder Regulamentar. RDP 12/86), sendo tais questões definitivamente superadas na ordem atual pelo conteúdo do artigo 25 do ADCT.

A partir da Constituição Federal de 1988 a doutrina e jurisprudência curvaram-se à máxima efetividade do princípio da legalidade e rechaçaram qualquer anomalia tendente a manchar o princípio democrático, historicamente tão caro a qualquer nação, motivo pelo qual, invocando-se o artigo 5º, II, da Constituição, passou-se a inadmitir os chamados decretos autônomos, assim como os autorizados ou delegados.

A fim de evitar-se o que se tem chamado de "déficit democrático", passou-se a entender que toda obrigação só pode ter uma fonte: a Lei.

Assim, diante de qualquer restrição a direito deverá ter uma Lei democraticamente votada.

Este é o princípio.

A partir da necessidade de permitir-se uma movimentação mais favorecida, sobretudo da atividade econômica, e a partir das Emendas Constitucionais promulgadas desde 1995, cogita-se da existência de agências reguladoras, com poder regulamentar, cujos limites ainda não estão suficientemente tratados em doutrina e jurisprudência.

São inúmeros os trabalhos publicados no Brasil que tocam diretamente no assunto (Agências Reguladoras - Arnoldo Wald e Luíza Rangel de Moraes, RIL 141/143; Da Competência das Agências Reguladoras para Intervir na Mudança de Controle das Empresas Concessionárias - Arnoldo Wald, BDA out/2003, p. 781; Agências Reguladoras e Suas Características - Mauro Roberto Gomes de Mattos, RDA 218/71; Agências Reguladoras da Administração - Caio Tácito, RDA 221/1; O Poder Regulamentar dos Órgãos Reguladores - Pedro Dutra, RDA 221/239; Reflexões Sobre a Função Reguladora das Agências Estatais - Renata Porto Adri de Rosa, RDA 226/243; O Poder Normativos dos Entes Reguladores e a Participação dos Cidadãos nesta Atividade. Serviços Públicos e Direitos Fundamentais: Os Desafios da Regulação na Experiência Brasileira - Romeu Felipe Bacellar Filho; Agências Reguladoras e Agências Executivas - Alexandre Santos de Aragão; Agências Reguladoras - Joaquim B. Barbosa Gomes; Agências Reguladoras. Constituição, Transformações do Estado e Legitimidade Democrática - Luís Roberto Barroso; Poder Regulamentar da Administração Pública - Bruno Brodbekier, RDA 233/141; O Controle Judicial da Atividade das Agências Reguladoras - Sebastião Botto de Barros Tojal; A Autonomia das Agências Reguladoras e a Estabilidade de seus Dirigentes - José Alberto Bucheb, RDA 232/83; Que é Administração Pública? A Questão das Agências Reguladoras - Maria Garcia, BDA março/2002, p. 169; Observações Sobre Agências Reguladoras de Serviço Público - Antônio Carlos Cintra do Amaral, RDA 231/1; A Independência da Função Reguladora e os Entes Reguladores Independentes. Breve Visão Comparada - Francisco Roberto Machado, Revista Ajufe nº 61, p. 155; além de livros específicos, valendo referir ao livro Agências Reguladoras, trabalho organizado por Alexandre Moraes, ed. Atlas, 2002).

Todos os autores marcam a tendência observada no direito brasileiro de se conferir poder regulador.

Alguns distinguem o poder regulador, inclusive, do poder regulamentar, eis que se invoca a delegação para exercer poder normativo pelo próprio Congresso, como faz Alexandre Moraes no trabalho já citado, ao que se opõe para marcar que permanece válido, no nosso sistema, a indelegabilidade de funções entre poderes e, ainda que se admita a delegação do poder regulador, a delegação tem que ter parâmetros na própria lei que delega (STF RE 264289/CE)

Para outra parcela de autores, trata-se do fenômeno da deslegalização, ou seja, a retirada pelo próprio legislador de certas matérias do domínio da lei para atribuí-las à disciplina das agências, igualmente descabida ante o princípio da legalidade.

Todos os autores, de outro lado, registram que há um chamado "déficit democrático", já que a importação do modelo americano não é confortável ao modelo constitucional brasileiro, e aqui, cito o trabalho de Joaquim Gomes, citado, onde diz o articulista que "Nossas agências configuram, portanto, uma importação de um conceito, de um formato e de um modo específico de estruturação do Estado. Faltam-lhes, contudo, e isso poderá lhes ser fatal no curso de seu amadurecimento institucional, um maior rigor na delimitação de seus poderes e na compatibilização destes com os princípios constitucionais, um controle efetivo pelo Senado do processo de designação dos seus dirigentes, um controle mais eficaz de suas atuações pelo Judiciário e pelos órgãos especializados do Congresso e, por fim, uma maior preocupação com o estabelecimento, em seu benefício, de um mínimo lastro democrático, de sorte a evitar que elas se convertam em instrumento de dominação de uma determinada tendência político-ideológica." (op. cit.)

A importação referida pelo Ministro Joaquim Barbosa Gomes se dá em relação ao direito americano, sendo que aqui invoco a citação de Jorge Luis Salomoni (Aporte para uma Discusión Sobre la Titularidad Estatal de los Servicios Públicos, op. cit. p. 841), quando diz que já "... en 1934, un autor señalaba, respecto de la aplicación de las public utilities del derecho norteamericano, que: 'Nuestra jurisprudência no debe suplantar, por via indirecta, el patrimonio jurídico de nuestro pueblo, aislando las soluciones de la jurisprudencia extranjera de sua base social y económica. Considerarlas aplicables a los problemas que respecto de los servicios públicos puedan plantearse en la Argentina, en nombre de la similitud de las instituciones políticas, resultaría tan absurdo como considerar el common law norteamericano como supletorio de nuestro derecho privado, o acudir al Fuero Juzgo como antecedente histórico de derecho norteamericano'. Lamentablemente no se lo escuchó.", esclarecendo ainda a enorme importância da experiência jurídica Argentina uma vez que "Na Argentina, tal como no Brasil, o surgimento das 'agências' ou dos entes reguladores autônomos teve como ponto inicial o processo de privatização, ou de desestatização. Nesse sentido leciona Jorge Garcia Sarmiento ao destacar que 'el proceso de privatizaciones iniciado em 1989 ha incluído, con el objeto de regular y controlar las actividades privatizadas, la creación de los ahora denominados entes reguladores. Estos entes se han inspirado en las agencias y comisiones del derecho norteamericano, y como aquéllas, se dintinguen por concentrar funciones normativas, jurisdiccionales y administrativas, con pretensiones de neutralidad e independencia del Poder político junto a la especialización técnica' ." (Francisco de Queiroz Bezerra Cavalcanti, in Revista Ajufe nº 61/155)

Fato é que, embora inspirado no direito norteamericano, as agências reguladoras são autarquias, ainda que especiais e marcadas por maior autonomia, logo, são órgãos administrativos integralmente sujeitas ao regime jurídico administrativo, por isso que Juan Carlos Cassagne ensina que "como es sabido, autarquía no significa independencia. La entidad autárquica se halla vinculada a la administración central por el control de tutela que se encauza procesalmente a través del recurso de alzada. Esto es una importante diferencia de regímen jurídico entre nuestros entes regulatorios y las agencias regulatorias del derecho norteamericano cuyo grado de independencia es mayor, a raíz de que sus actos no se hallan sujetos a la revisión por parte del Poder Ejecutivo." (Derecho Administrativo. Tomo II, 5ª ed. Buenos Aires, 1996, Abeledo Perrot, p. 493), e, como entes da administração pública, sujeitas não apenas ao princípio da legalidade em seus atos, normativos ou não, mas ainda ao princípio da legalidade pública, inscrita no art. 37 da Constituição Federal, de maior projeção do que o mero princípio da legalidade do art. 5º, II, da CF.

Ora, se todos marcam a incompatibilidade do transplante em face do princípio da legalidade, este valor maior não pode ceder ante as possíveis "vantagens" do modelo mais descentralizado.

Se há vantagens e obstáculos constitucionais à implantação do modelo, que se o faça sem burla à Constituição (ver Francisco Queiroz Bezerra Cavalcanti, Juiz Federal, in Revista Ajufe nº 61/155)

Tal discussão começa a ser travada no seio do Judiciário com maior rigor, como ocorreu no julgamento da AMS nº 2000.02.01.061431-6/RJ (TRF 2ª Região, publicado no DJU de 13/03/2002 e na RTRF 2ª Região, vol. 10, nº 34, p. 206), em caso envolvendo limites impostos por Portaria da ANP, donde concluiu-se que:

"- Nos termos do art. 170, § único, da Carta Magna de 1988, somente a lei pode estabelecer casos nos quais as restrições podem ser impostas ao desempenho de atividade econômica. Inexiste, então, lei a emprestar fundamento à portaria cuja aplicação é impugnada pela impetrante.

- As restrições impostas à TRRs de aquisição de produtos derivados de petróleo somente das distribuidoras da mesma unidade da federação, previstas nas portarias atacadas, não encontram amparo legal, considerando-se que a Constituição da República vigente não recepcionou o Decreto-Lei nº 395/38, no qual se amparam.

- O assunto guerreado na presente trata justamente da observância das fronteiras da legalidade e da razoabilidade, vez que a redação das citadas portarias parece realmente querer criar uma reserva de mercado, em afronta às diversas garantias insculpidas no texto constitucional, dispondo, ainda, sobre matéria que depende de lei que expressamente trate do assunto.

- Denegar a segurança seria o caso de manter privilégio incompatível com o regime de livre concorrência, consagrado pelo art. 170, inciso IV, da atual Constituição."

O mesmo Tribunal voltou a enfrentar a questão ao decidir o Agravo nº 2002.02.01.040545-1/RJ, relatado pela Des. Vera Lúcia Lima, conforme publicado na RTRF 2ª Região nº 39, p. 40, seguiu por orientação diversa, uma vez que entendeu que "A ANP, ao editar portarias para a regulamentação do Setor de Abastecimento Nacional de Combustíveis, retira seu fundamento de validade da Lei nº 9.478/97 e da Carta Magna...", sendo que tal precedente não se poderia invocar para o caso, já que a ANEEL não é agência prevista na Constituição Federal, diversamente do que ocorre com a ANP, daí porque parcela da doutrina tem sustentado que só no casos das "agências constitucionais" permaneceria íntegro e válido o poder de inovar a ordem jurídica, posicionamento que rechaço.

O STJ, por sua vez, no julgamento do MS 4578/98, DJU de 18-12-98. Rel. Min. Humberto Barros, permitiu que o ato normativo expedido por Ministério inovasse a ordem jurídica.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro (in Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, p. 61), faz as seguintes observações acerca dos limites impostos pela lei ao poder normativo da Administração Pública: "segundo a lição de Miguel Reale (1980:12-14), pode-se dividir os atos normativos em originários e derivados. 'Originários se dizem os emanados de um órgão estatal em virtude de competência própria outorgada imediata e diretamente pela Constituição, para edição de regras instituidoras de direito novo'; compreende os atos emanados do Legislativo. Já os atos normativos derivados têm por objetivo a 'explicitação ou especificação de um conteúdo normativo preexistente, visando à sua execução no plano da praxis; o ato normativo derivado, por excelência, é o regulamento. Acrescenta o mesmo autor que 'os atos legislativos não diferem dos regulamentos ou de certas sentenças por sua natureza normativa, mas, sim, pela originariedade com que instauram situações jurídicas novas, pondo o direito e, ao mesmo tempo, os limites de sua vigência e eficácia, ao passo que os demais atos normativos explicitam ou complementam as leis, sem ultrapassar os horizontes da legalidade'. Insere-se, portanto, o poder regulamentar como uma das formas pelas quais se expressa a função normativa do Poder Executivo. Pode ser definido como o que cabe ao Chefe do Poder Executivo da União, dos Estados e dos Municípios, de editar normas complementares à lei, para sua fiel execução. (...) Em todas essas hipóteses, o ato normativo não pode contrariar a lei, nem criar direitos, impor obrigações, proibições, penalidades que nela não estejam previstos, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade (arts. 5º, II, e 37, caput, da Constituição)"

Tais lições são preciosas para reforçar que o poder normativo ou regulador atribuído às agências reguladoras não poderão inovar a Lei, criando direitos, posição consagrada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADIN 1668-50/DF, quando disse a Corte que: "quanto aos inc. IV e X do art. 19, sem redução de texto, dar-lhes interpretação conforme à CF, com o objetivo de fixar exegese segundo a qual a competência da ANATEL para expedir normas subordina-se aos preceitos legais e regulamentares que regem a outorga, prestação e fruição dos serviços de telecomunicações no regime público e no regime privado...", entendimento repetido pela Corte no julgamento da ADIN 2095/RS.

A Resolução nº 459/03, com alterações da Resolução nº 46/04, ambas da ANEEL, por haverem inovado a ordem jurídica, em primeira vista, criando, modificando e extinguindo direitos e obrigações, independentemente de lei, padeceriam do vício da inconstitucionalidade, uma vez que de encontro ao princípio da legalidade.

Porém, bem ponderada a questão, perante a função reguladora e as amplas competências do art. 3º da Lei 9.427/96, certo que cabe à agência, mediante avaliação discricionária, nos limites da norma jurídica e sem olvidar os princípios constitucionais que norteiam sua atuação, estabelecer as condições em que a atividade será exercida, desempenhando seu poder de polícia em sua máxima dimensão, com todas as limitações a este poder e todas as responsabilidades oriundas do seu exercício, não se antevê a propalada inconstitucionalidade.

Não há, ao menos nesta fase, elementos suficientes para afastar o caráter técnico de tais atos normativos, de modo que substituir a decisão discricionária no sentido de destinar os recursos oriundos das multas aplicadas pela agência em favor do "Programa de Universalização do Acesso à Energia Elétrica em Áreas Rurais" pela decisão de destiná-los aos investimentos a serem realizados no setor em favor da população de Florianópolis ou, alternativamente, da população do Estado de Santa Catarina configura uma ilegalidade, eis que nada mais seria do que substituir a discricionariedade do administrador pela do Judiciário.

Não se pode perder de vista que toda competência discricionária tem como limites mais visíveis a observância da finalidade, da eficiência, da razoabilidade, além da competência e forma, resguardando-se o mérito administrativo no que respeita ao verdadeiro e legítimo espaço para dizer da conveniência e oportunidade, não podendo o Judiciário imiscuir-se em funções que não lhe pertencem, consistindo esse o verdadeiro limite do controle do Judiciário.

Quanto à lesão ao princípio da razoabilidade, que, na lição de Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo Brasileiro, 25. ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 86) "(...) Sem dúvida, pode ser chamado de princípio da proibição de excesso, que, em última análise, objetiva aferir a compatibilidade entre os meios e os fins, de modo a evitar restrições desnecessárias ou abusivas por parte da Administração Pública, com lesão aos direitos fundamentais.", aqui, igualmente, não se antevê de modo seguro qual o excesso na edição dos atos normativos, ressaltando que tal destinação obedece a critérios técnicos cujo alcance, até esta fase, não se esclarece.

É evidente que tais atos normativos são passíveis de controle judicial, podendo o Juiz anulá-los por ilegalidade ou ilegitimidade.

O que não pode é o Judiciário determinar a prática de um ato discricionário, isso já em razão separação de poderes, princípio constitucionalmente acatado no artigo 2ª da Constituição Federal, conforme decidiu o STJ no RESP 169.876/SP, BDA 01/99, p. 48, relatado pelo também potiguar José Augusto Delgado, estudioso da obra de Seabra Fagundes.

De outro lado, também é defeso ao Judiciário deixar de apreciar medidas administrativas sob o fundamento de que elas provêm do poder discricionário do agente público.

Deve o Judiciário ponderar se a atuação do agente público, além de estar esteada na lei, é eficiente e razoável para o perfeito aprazimento da finalidade para a qual se propõe. Compete-lhe a verificação, portanto, da execução fiel dos princípios constitucionais expressos e implícitos nas práticas administrativas. Enfim, deve ser verificado se, no caso sub judice, a Administração cumpriu sua obrigação jurídica de adequada gestão quando da edição dos combatidos atos normativos.

É essencial que o administrador tenha a exata noção do poder discricionário.

Ensina Bartolomè Fiorini, citado por Hely Lopes Meirelles, que "a discricionariedade é a faculdade que adquire a Administração para assegurar em forma eficaz os meios realizadores do fim a que se propõe o Poder Público. A discricionariedade - prossegue o mesmo autor - adquire relevância jurídica quando a Administração quer custodiar em forma justa os interesses públicos entregues à sua tutela. É, então, a ferramenta jurídica que a ciência do Direito entrega ao administrador para que realize a gestão dos interesses sociais respondendo às necessidades de cada momento. Não é um instrumento legal que se concede ao administrador para fazer o que imponha o seu capricho; nem tampouco para criar normas de caráter legislativo; menos ainda para que intervenha ante uma contenda normativa, como acontece com a jurisdição. É, unicamente, uma autorização limitada a um fim determinado, para que o Poder Público aprecie as condições presentes quando administre o interesse social especificado pela norma legislativa. É uma forma de atuar da Administração Pública para poder realizar uma reta administração dos diversificados interesses da coletividade." (Direito Administrativo Brasileiro. 17ª ed. p. 151), prosseguindo Meirelles, para concluir que, "Por isso mesmo, quando se justifica a competência discricionária, a faculdade discricionária, o poder discricionário da Administração, não se está justificando qualquer ação arbitrária, realizada ao arrepio da lei. A atividade discricionária não dispensa a lei, nem se exerce sem ela, senão com observância e sujeição a ela." (op. cit.)

Como já demonstrado, a partir das Resoluções da ANEEL não é fácil perceber a utilização degenerada do poder regulamentar ou normativo, seja por inconstitucionalidade na inovação da ordem jurídica, seja pela razoabilidade das decisões nela contidas, com o que as restrições advindas exclusivamente destes instrumentos não se podem acoimar de inconstitucionais em primeira vista, valendo aqui dizer que não trouxeram os autores qualquer elemento de prova apto a amparar sua conclusão quanto ao abuso no exercício do poder discricionário, já que é preciso superar o mero exercício do poder regulamentar para agora adentrar-se no próprio exercício do poder discricionário da administração.

Finalmente, anote-se que a multa encontra-se em fase de discussão administrativa, pendente de decisão definitiva, impossibilitando, também por este fundamento, a antecipação requerida.

7) CONTROLE JUDICIAL E LIMITES DO CONTROLE.

Já marcada a responsabilidade solidária entre as rés, com fundamento no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, a natureza e extensão do controle judicial quanto aos atos e omissões apontadas na inicial devem ser precisadas.

Todo ato administrativo se sujeita ao princípio da legalidade.

Ocorre que a correta interpretação do princípio, já de longe era dada por Seabra Fagundes, quando ensinava que "Todas as atividades da Administração Pública são limitadas pela subordinação à ordem jurídica, ou seja, à legalidade. O procedimento administrativo não tem existência jurídica se lhe falta, como fonte primária, um texto de lei. Mas não basta que tenha sempre por fonte a lei. É preciso, ainda, que se exerça segundo a orientação dela e dentro dos limites nela traçados. Só assim o procedimento da Administração é legítimo. Qualquer medida que tome o Poder Administrativo, em face de determinada situação individual, sem preceito de lei que a autorize, ou excedendo o âmbito de permissão da lei, será injurídica." (O Controle dos Atos Administrativos Pelo Judiciário. 6ª ed. 1984, p. 80). Também neste norte a lição da Prof. Lúcia Valle Figueiredo, ao ensinar que "... o princípio da legalidade é bem mais amplo do que a mera sujeição do administrador à lei, pois abriga, necessariamente, a submissão também ao Direito, ao ordenamento jurídico, às normas e princípios constitucionais. Assim, há de se procurar solver a hipótese de a norma ser omissa ou, eventualmente, faltante." (Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. p. 40).

Em recente julgado, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, ao cuidar de matéria previdenciária deixou ementado que:

"A Administração Pública deve observar o Direito, nele compreendido, entre outros, além da legalidade, in casu, devem também ser obedecidos os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e interesse público..." (AMS nº 2001.70.00.023079-6/PR. Rel. Des. Federal Tadaaqui Hirose, julgado em 17/12/2002. in RTRF 4ª Região, nº 47, p. 320)

É nesse contexto que "A competência discricionária não se exerce acima ou além da lei, senão como toda e qualquer atividade executória, com sujeição a ela." (Relator Seabra Fagundes. Julgado TJRN, RDA 14/54), por isso que "Erro é considerar-se o ato discricionário imune à apreciação judicial, pois só a Justiça poderá dizer da legalidade da invocada discricionariedade e dos limites de opção do agente administrativo... o Judiciário não poderá substituir a Administração em pronunciamentos que lhe são privativos, mas dizer se ela agiu com observância da lei, dentro de sua competência, é função específica da Justiça Comum, e por isso mesmo poderá ser exercida em relação a qualquer ato do Poder Público, ainda que praticado no uso da faculdade discricionária... quaisquer que sejam a procedência, a natureza e o objeto do ato, desde que traga em si a possibilidade de lesão a direito individual ou ao patrimônio público, ficará sujeito a apreciação judicial exatamente para que a Justiça diga se foi ou não praticado com fidelidade à lei e se ofendeu direitos do indivíduo ou interesses da coletividade" (Hely Lopes Meirelles, in op. cit. p. 104 e 192), assim também Odete Medauar, ao recordar que, desde Seabra Fagundes, Victor Nunes Leal e Caio Tácito, que se superou o controle da competência e forma do ato administrativo, "para adentrar nos motivos e fins, como integrantes da legalidade e não da discricionariedade e mérito." (op. cit. p. 417), seguida por Celso Antônio Bandeira de Mello, que diz: "Nada há de surpreendente, então, em que o controle judicial dos atos administrativos, ainda que praticados em nome de alguma discrição, se estenda necessária e insuperavelmente à investigação dos motivos, da finalidade e da causa do ato. Nenhum empeço existe a tal proceder, pois é meio - e, de resto, fundamental - pelo qual se pode garantir o atendimento da lei, a afirmação do direito." (Curso de Direito Administrativo, 10ª edição, p. 600).

A esta altura se torna indispensável buscar no mestre Seabra Fagundes o alcance do controle do ato administrativo discricionário.

É deste jurista a afirmação segundo a qual "Ao Poder Judiciário é vedado apreciar, no exercício do controle jurisdicional, o mérito dos atos administrativos. Cabe-lhe examiná-los, tão-somente, sob o prisma da legalidade. Este é o limite do controle, quanto à extensão." (in op. cit. p. 126), desenvolvendo seu raciocínio ao dizer que "Ao Judiciário não se submetem os interesses que o ato administrativo contrarie, mas apenas os direitos individuais, acaso feridos por ele..." (p. 128), cuidando, adiante, de conceituar o mérito do ato administrativo como aquele "que se relaciona com a intimidade do ato administrativo, concerne ao seu valor intrínseco, à sua valorização sob critérios comparativos. Ao ângulo do merecimento, não se diz que o ato é ilegal ou legal, senão que é ou não é o que devia ser, que é bom ou mau, que é pior ou melhor que outro. E por isto é que os administrativistas o conceituam, uniformemente, como o aspecto do ato administrativo, relativo á conveniência, à oportunidade, à utilidade intrínseca do ato, à sua justiça, à fidelidade aos princípios da boa gestão, à obtenção dos desígnios genéricos e específicos, inspiradores da atividade estatal..." (op. cit. p. 131).

Tornada clara a viabilidade de controle do ato administrativo discricionário, resguardado o seu mérito, repito fundamento acima já citado, invocando acórdão relatado pelo Ministro José Delgado, estudioso da obra de Seabra Fagundes, "Não se pode perder de vista que toda competência discricionária tem como limites mais visíveis a observância da finalidade, além da competência e forma, resguardando-se o mérito administrativo no que respeita ao verdadeiro e legítimo espaço para dizer da conveniência e oportunidade, não podendo o Judiciário imiscuir-se em funções que não lhe pertencem. O que não pode é o Judiciário determinar a prática de um ato discricionário, isso já em razão separação de poderes, princípio constitucionalmente acatado no artigo 2ª da Constituição Federal, conforme decidiu o STJ no RESP 169.876/SP, BDA 01/99, p. 48, relatado pelo também potiguar José Augusto Delgado, estudioso da obra de Seabra Fagundes."

O presente caso traz aspecto importantíssimo quanto à configuração do ato administrativo discricionário no que respeita às opções da distribuidora e da agência reguladora quanto ao modo de cumprirem o contrato de concessão, pois se é certo que o legislador pode conferir discricionariedade maior ou menor quanto ao momento da prática do ato, quanto a praticá-lo ou não o administrador, quanto à forma, finalidade e mesmo motivo do ato, um dos modos mais usuais de conferir esta competência apresenta-se com o uso de conceitos jurídicos indeterminados, ou, por ser impossível ao legislador prever todas as situações de atuação, a fim de viabilizar a atuação administrativa mais próxima do ótimo, não se utiliza conceitos rígidos, mas sim vagos, fluidos, por isso que permite imprecisão, ou, no dizer de Celso Bandeira de Mello "ou não descreve antecipadamente a situação em vista da qual será suscitado o comportamento administrativo... ou a situação é descrita por palavras que recobrem conceitos vagos, dotados de certa imprecisão e por isso mesmo irredutíveis à objetividade total... ou, independentemente de haver previsão da situação (contemplada mediante conceito preciso ou impreciso), a norma confere no próprio mandamento uma liberdade decisória, que envolve exame de conveniência, de oportunidade, ao invés de um dever de praticar um ato específico." (in op. cit. p. 269). Assim também o advogado catarinense Marcelo Harger, para quem "A forma mais comum de atribuição da discricionariedade é a utilização pelo legislador de conceitos jurídicos indeterminados..." (in A Discricionariedade e os Conceitos Jurídicos Indeterminados - RT 756/11).

O dever legal assumido pelas rés, emergente também do contrato de concessão 56/99, dizem respeito basicamente à prestação do serviço público, que, segundo os ensinamentos de Manoel de Oliveira Franco Sobrinho (in O Controle da Moralidade Administrativa, ed. Saraiva, 1974, p. 129 e seg.), não trata de "... uma noção abstrata, mas sim concreta, material, positiva, de cujas evidências socorrem-se as diferentes correntes doutrinárias...", daí que "Entre o poder fazer e o não dever fazer, fixa-se o princípio da moralidade. Desta sorte entendido o pensamento, é correta a doutrina ao exigir que as faculdades discricionárias sejam exercidas dentro do seu objeto legal para que atinjam o seu fim, isto é, o fim concreto de pública Administração.", esclarecendo ainda sobre a fonte contratual de tais obrigações, uma vez que "Com maiores motivos, em virtude do contrato administrativo, por parte da Administração, aceite-se como um ato moral ou de procedimento moral administrativo... quando um ato perde a sua força obrigatória, inclusive nos contratos, violenta a sua principal fonte que está na teoria das obrigações, pois a possível diferença dos contratos administrativos dos privados reside não nas partes em especial, mas nos efeitos e no seu mecanismo de formação."

De outro lado, para o caso concreto, ainda que se considerasse as informações prestadas pela CELESC em fls. 1974/1992 justificadoras das omissões apontadas em relação à ré, embora o conteúdo do documento detenha-se, basicamente, sobre o acidente, certo é que se há motivação para o ato, cabe contrastá-la aos fatos.

Ora, se o administrador deduz os motivos que orientaram seu atuar administrativo, é evidente que cabe o controle e que se vincula o administrador aos motivos declinados, eis que aqui é possível investigar-se a legalidade do ato, sempre resguardando-se seu mérito.

Ensina Seabra Fagundes, após várias considerações, "afigura-se-nos possível reafirmar que o exame dos motivos do ato administrativo é matéria de legalidade. Se um dos elementos essencialmente integrantes do ato (vinculado) é o motivo, se sem ele esse não existe, o constatar a falta de razão prevista em lei, como imprescindível à prática do ato, significa reconhecer a sua desconformidade com a norma legal, ou seja, a carência nele de um dos elementos que a lei supõe devam integrá-lo. No exemplo figurado de demissão de funcionário público, não dirá a sentença que o ato foi bom ou foi mau, que os motivos foram justos ou injustos (o que seria apreciar ao ângulo do merecimento), mas que houve ou não houve motivo." (Controle dos Atos Administrativos. p. 132). E, adiante, "O Judiciário é chamado para dizer se há ou não algo ilícito, capaz de originar reparação. Como saber se o ato foi ou não lícito, sem apreciar os motivos que o determinaram, nem apreciar os elementos colhidos? (RF 78:49)... Só haverá exame do mérito se se quisesse discutir o acerto do ato pelo bom uso da competência, em face das necessidades coletivas..." (op. cit. p. 134/135)

Assim também o Supremo Tribunal Federal, ao deixar marcado que:

"A legalidade do ato administrativo, cujo controle cabe ao Poder Judiciário, compreende não só a competência para a prática do ato e de suas formalidade extrínsecas, como também os seus requisitos substanciais, os seus motivos, os seus pressupostos de direito e de fato, desde que tais elementos sejam definidos em lei como vinculadores do ato administrativo." (RDA 42/227)

Tudo porque se antevê na motivação, e na teoria dos motivos determinantes, a pedra de toque para que o controle da discricionariedade dos atos administrativos, pois é por seu meio que será possível verificar a razoabilidade, a congruência lógica entre ato emanado e seu motivo (pressuposto de fato), e boa-fé da Administração, além de ser um direito do próprio administrado, hoje marcado no art. 93, X, da Constituição Federal.

Sob essa ótica e, repito, desde que consideradas tais informações como os fundamentos da distribuidora, se anota de imediato o total cabimento das omissões que se imputa, tudo porque não se esforça a distribuidora, no mínimo, em justificar porque não investiu na construção da segunda linha de distribuição para a parte insular da linha, descumprindo frontalmente o contrato de concessão que celebrou.

Quanto à CELESC, a partir dos postulados de responsabilidade pública já fixados, residindo no farto arcabouço de provas juntados, restou evidente que o serviço de manutenção nas linhas de distribuição funcionou mal e foi a causa direta do evento que causou os danos referidos na inicial, não cabendo admitir que tais fatos decorreram de "acidente" lamentável, como quer fazer crer a CELESC, não sendo casual, como já se demonstrou, o nome de "acidente administrativo" que se atribui também ao mesmo fenômeno de causalidade no âmbito da culpa anônima, conforme já se discorreu.

Mas se extrai da inicial, ainda, outra espécie de responsabilização, agora abrangendo as duas rés, e que diz com a omissão das mesmas, já que apontam os autores "a renitente ausência de interligação da subestação Ilha Centro com a subestação Trindade para o fechamento do sistema em anel pode ocasionar nova interrupção de grande parte do fornecimento de energia elétrica..." (fls. 89), certo que essa omissão foi também considerada causa do evento.

Neste ponto se ingressa na tormentosa questão quanto aos limites do controle judicial, tudo a fim de que não se invada o mérito administrativo ou o conteúdo político das ações dos órgãos públicos, notadamente as rés, que, no fornecimento do serviço de energia para o Estado de Santa Catarina, a todo instante estão deparadas com opções políticas, no mais das vezes técnicas, ressaindo daqui a importância da agência reguladora, pelo que é necessário bem definir, no caso concreto, sobre a obrigação das rés em implementar as medidas que, inequivocamente, até o presente momento, não estão implementadas, permanecendo, salvo melhor juízo, os mesmos riscos a partir da subsistência dos mesmos fatores que ensejaram e oportunizaram o famigerado evento de blecaute na parte insular da Ilha de Santa Catarina.

O primeiro ponto a esclarecer é exatamente a viabilidade do controle.

Sobre o tema não se pode deixar de partir do trabalho de Germana de Oliveira Moraes (Controle Jurisdicional da Administração Pública. Ed. Dialética, S. Paulo, 1999), que, já no intróito de seu trabalho, marca os modernos limites de controle ao expor que a "Como idéia central e conclusiva deste estudo, sustenta-se que, no Direito Brasileiro, os princípios do direito à inafastabilidade da tutela jurisdicional e da separação de poderes são compatíveis entre si, pois quando da atividade administrativa não vinculada da Administração Pública desdobrável em discricionariedade e valoração administrativa dos conceitos verdadeiramente indeterminados resultar lesão ou ameaça a Direito, é sempre cabível o controle jurisdicional, seja à luz do princípio da legalidade (art. 37, caput, da Constituição Federal Brasileira), seja em decorrência dos demais princípios constitucionais da Administração Pública, de publicidade, de impessoalidade, moralidade e eficiência da (art. 37, caput, da Constituição Federal Brasileira), do princípio constitucional da igualdade (art. 5º, inciso II, da Constituição Federal Brasileira) e dos princípios gerais de Direito da razoabilidade e da proporcionalidade, para o fim de invalidar o ato lesivo ou ameaçador de direito e, em certas situações mais raras, ir-se ao ponto extremo de determinar a substituição de seu conteúdo por outro indicado judicialmente." (op. cit. p. 11) para, após, identificar com propriedade o problema ora em comento, ao dizer que "a impossibilidade de o julgador renovar os juízos de prognose do agente administrativo, durante a valoração dos conceitos indeterminados e, de ponderação, durante o exercício da discricionariedade, para fins de construir nova decisão, quando do Direito não é possível se inferir outra objetivamente, constitui o ponto de equilíbro que resguarda a autonomia da Administração, pois continuará competindo a ela, após a remoção do ato impugnado judicialmente, reeditá-lo, ainda que sempre adstrita às limitações jurídicas contrastáveis jurisdicionalmente." (op. cit. p. 104)

Na busca desse ponto de equilíbrio entre a imperativa sujeição ao controle judicial e o resguardo das legítimas opções políticas ou discricionárias, conclui que "O Poder Judiciário, quando revê os atos administrativos não vinculados, poderá invalidá-los, mas não poderá, via de regra, determinar sua substituição por outro..", conclui que "Entretanto, em certas situações excepcionais, a depender das circunstâncias de cada caso concreto e do modo de vulneração aos princípios constitucionais da Administração, é possível ao Juiz inferir, da realidade e da ordem jurídica, qual a única decisão comportável pelo Direito para solucionar o caso... Somente em casos excepcionais, como, por exemplo, sucede na aplicação do princípio da igualdade, de natureza material, quando se equipara um caso a outros idênticos, têm a virtualidade de apontar qual solução o órgão administrativo deva adotar no caso concreto." (op. cit. p. 156).

Estas preciosas lições devem ser, atualmente, ainda mais reavivadas e efetivadas, sobretudo ante as novas funções que passam a ser exercidas pelas agências reguladoras, cujo império da técnica, leia-se discricionariedade técnica, sobre a política, impõe às agências iniciativas de alto grau de indeterminação, sempre controláveis pelo Judiciário, todavia, eis que, em face do chamado "déficit democrático" apontado pela doutrina quanto ao seu poder normativo, há autores (ver Sebastião Botto de Barros Tojal. Controle Judicial da Atividade Normativa das Agências Reguladoras, in Agências Reguladoras, vários autores, Ed. Atlas, 2002) que defendem a tese de que é pelo controle judicial que se compensa o referido déficit., formulando uma "nova" teoria de revisão dos atos regulatórios, para o que postula que se "avance sobre os limites do controle de constitucionalidade da lei e dos atos do Poder Público para alcançar o conteúdo desses mesmos dispositivos...", credenciando-se o Judiciário, então, a "adentrar a apreciação da atividade-fim das agências reguladoras para que se restabeleça o equilíbrio democrático. Explica-se. Como anteriormente exposto, as agências reguladoras foram instituídas em um contexto de reforma estatal, em que o Estado deixou de explorar diretamente a atividade econômica e a prestação de serviços públicos, para assumir um papel regulador e gerenciador... desse modo, será possível ao Poder Judiciário investigar se as metas e diretrizes das agências reguladoras e protetivas dos direitos dos administrados estão sendo implementadas com a edição desses atos administrativos de regulação. Caberá, então, ao juiz determinar a imediata correção dos desvios daqueles atos que se tiverem desbordado da atividade-fim da regulação." (op. cit. p. 168/169)

Esta nova função do Estado nos países com sistema europeu de controle e que adotaram o modelo das agências, fortemente influenciado pelo sistema da common law, ainda está carecendo de evolução doutrinária e jurisprudencial.

No Brasil, o que ocorre, em larga medida e a partir da recentíssima experiência na adoção de tais novas funções no direito brasileiro,
é a mesma imprecisão, certo que, até o momento, a teoria aqui desenvolvida sempre residiu no controle do poder de polícia, pelo que vale a pena avançar sobre o tema.


Na Argentina, país que experimentou recentemente alto grau de privatização, com a criação de entes de regulação tal como no Brasil, e os implementou antes do Brasil, grandes juristas têm se debruçado sobre o tema, sendo de se destacar os estudos do Professor Juan Carlos Cassagne, que tem advertido que "subsisten los poderes de los tribunales judiciales para penetrar en el juzgamiento de la discrecionalidad cuando los órganos administrativos se apartan del círculo o bloque de discrecionalidad e incurren en el vicio de irrazonabilidad o arbitrariedad, pues va de suyo que, en tales casos, no se habría elegido entre dos o más posibilidades igualmente justas - ya fuera que el defecto aparezca en forma ostensible o manifiesta o que requiera de alguna investigación de hecho." (Fragmentos de Derecho Administrativo. Ed. Hammurabi, 2003, p. 109), daí que "hay que partir del hecho de que la libertad de escoger uma alternativa entre varias posibilidades igualmente justas no configura independencia sino uma actividad que se desarrolla dentro del marco del ordenamiento jurídico (y, por ende, limitado por los princípios generales del derecho y las normas positivas que reglamentas los requisitos de los actos administrativos, entre los que corresponde ubicar al control sobre los supuestos de hecho)."

Neste sentido também Augustín Gordillo, in Tratado de Derecho Administrativo, considerando IV-29,5. Fundación de Derecho Administrativo, 5ª edición. Buenos Aires.

Releva notar que o citado autor enfrentou a chamada discricionariedade técnica, largamente adotada na doutrina italiana, afastando-a para o controle no sistema argentino, que, tal como no Brasil, adota o princípio da jurisdição única, isto porque trata a discricionariedade técnica de construção que visa, unicamente, isentar da revisão judicial determinadas decisões "técnicas", que nada mais são do que decisões discricionárias, daí porque, como "...la técnica solo puede subordinarse a la elección de um método, sistema o procedimiento científico (ya que el juicio no traduce discrecionalidad), creemos que asiste razón a quienes sostienen que no existe tal discrecionalidad técnica.", para o que valeu-se o autor da própria doutrina italiana, uma vez que cita Fiorini, que em seu Derecho Administrativo, t. I, p. 274 e seg., o qual afirma que "La apreciación discrecional está en función del fin; no hay discrecionalidad técnica sino apreciación técnica y toda apreciación es producto de la razonabilidad. Aqui se repetia el mismo error de antes entre acto discrecional y apreciación discrecional."

No Brasil, basta citar o valioso trabalho de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (in Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas, 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, pp. 156, 157 e 158) "não há fundamento para a reserva de uma discricionariedade técnica para as agências. Embora se reconheça aos órgãos administrativos, em função de sua especialidade, a possibilidade de estabelecer normas sobre aspectos técnicos da matéria que lhes é afeta, não se pode, a priori, excluir esses aspectos do controle judicial. Na medida em que se reconhece, sem qualquer controvérsia, a possibilidade do Judiciário examinar matéria de fato, por mais técnica que seja (e o faz, em regra, com a ajuda de peritos), e na medida em que é perfeitamente possível o abuso de poder, o arbítrio, o erro, o dolo, a culpa, no estabelecimento de critérios técnicos, também não se pode deixar de reconhecer que a chamada discricionariedade técnica pode causar lesão ou ameaça de lesão e, portanto, ensejar correção judicial. Aliás, tenho entendido que, entre os conceitos jurídicos indeterminados contidos na lei, os conceitos técnicos são precisamente os que menos geram discricionariedade, pelo simples fato de que a indeterminação pode desaparecer com a manifestação de órgão técnico (cf. Di Pietro, 1991:92). No direito brasileiro, os peritos são considerados auxiliares da Justiça e, com sua manifestação, o Judiciário pode transformar em determinado um conceito que, na lei, aparece como indeterminado. Se a definição feita por ato administrativo for incorreta e causar dano ou ameaça de dano, pode ela ser invalidada pelo Judiciário."

Tal construção doutrinária tem encontrado eco nas Cortes Superiores Argentinas, como se vê do voto do Ministro da Corte, Dr. Enrique Petrarcchi, que, no julgamento do caso Fernández, Raúl c. P.E.N., julgado em 12/07/1999, disse que "... dado que a los jueces no les compete pronunciarse sobre el mayor o menor grado de acierto, error, mérito, o conveniencia de las decisiones adoptadas por la autoridad administrativa dentro del ámbito de discreción que le acuerdan las leyes, excepto que ellas se traduzcan en actos abusivos o arbitrários... en la especie sólo cabe al tribunal examinar si los motivos de eficiência... son o no razonables." (Colección de Análisis Jurisprudencial. Tomás Hutchinson. Ed. La Ley, 2003)

O caso líder, na Argentina, conforme propagado, é o caso "Angel Estrada y Cia. S.A s/Resol. 71/96 - Secretaría de Energía y Puertos", publicado no ED 187/982 e seguintes, proveniente da Sala 1 da Cámara Nacional de Apelaciones em lo Contencioso Administrativo Federal, onde se requereu indenização em razão de danos sofridos por reiterados cortes no fornecimento de energia elétrica em localidade da Província de Buenos Aires durante o final de 1993 e o início de 1994.

Há recente precedente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no julgamento do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 2004.04.014570-3/SC, relatado pelo Des. Federal Edgard Lippmann (publicado na RTRF 4ª Região 53/200), que decidiu:

Ação Civil Pública. Duplicação de rodovia federal. Intervenção do Poder Judiciário na Administração Pública. Possibilidade antecipação de tutela.

A moderna jurisprudência admite a intervenção do Poder Judiciário na Administração Pública, viabilizando a antecipação de tutela para determinar a execução de obra relativa à duplicação de rodovia federal, ante a responsabilidade civil do Estado sobre mortes e mutilações decorrentes de acidentes de trânsito havidos na rodovia de sua competência.

De tal precedente se extrai que se buscou preservar a própria vida humana, pois do voto do relator colho que "milhares de vítimas que tombaram no exercício de suas atividades profissionais ou de lazer..." daí porque "... se do confronto entre a alegada 'discricionariedade' estatal como direito e a garantia individual ou coletiva, especialmente quando colidir com os fundamentos da República, v.g., cidadania e dignidade da pessoa humana, há que preponderar, sem dúvida alguma, o critério interpretativo que prestigie estes últimos."

No Brasil, é de se considerar as inúmeras decisões judiciais que comandam ao Estado o fornecimento de medicamentos, e o fazem a partir da própria natureza fundamental do direito à saúde (art. 196 CF) e à própria vida.

Como já dito, também o fornecimento de energia elétrica atualmente consiste sim em direito fundamental, configurando parte do núcleo do mínimo existencial, eis que põe em risco o gozo de todos inúmeros outros direitos fundamentais e sociais, bastando dizer que a saúde da população de Florianópolis esteve sob séria ameaça, motivo pelo qual o Estado deve prestá-lo de modo contínuo.

Ainda que princípios constitucionais programáticos, tais como os inscritos nos artigos 1º e 3º da Constituição Federal, que, por si sós, não gozam da marca da auto-aplicabilidade, certo que norma constitucional programática tem efeito certo de impedir que outro diploma a contrarie na sua inspiração, (J.J. Gomes Canotilho, in Direito Constitucional, livraria Almedina, 2ª edição, p. 1.053; e Luís Roberto Barroso, in O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas, 2ª edição, ed. Renovar, p. 296), trata-se de dar projeção e eficácia a tais normas.

Ensina J.J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª ed. 1998, p. 1.054), que "... a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê... princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reonheça a maior eficácia aos direitos fundamentais)." (op. cit. p. 1.097), consistindo nisso o que o autor chama de "princípio da máxima efectividade"

Continua o autor para explicar, quanto ao princípio da salvaguarda do núcleo essencial da norma constitucional, que "a idéia fundamental deste requisito é aparentemente simples: exige um núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias que não pode, em caso algum, ser violado. Mesmo nos casos em que o legislador está constitucionalmente autorizado a editar normas restritivas, ele permanece vinculado à salvaguarda do núcleo essencial dos direitos ou direitos restringidos." (op. cit. p. 418)

Não é mais possível que, dentro desta ótica, se privilegie os assim chamados deveres negativos do Estado (de não lesar direitos fundamentais, em regra individuais) em detrimento dos deveres positivos do Estado (de implementar os direitos fundamentais, em regra sociais), embora se compreenda que as razões deduzidas para o persistente descumprimento e falta de efetividade dos direitos sociais ainda seja a própria falta de capacidade econômica do Estado. Com esse mesmo entendimento Luigi Ferrajoli, jurista da escola garantista, anota que "Nenhuma maioria, nem sequer a unanimidade, pode legitimamente decidir a violação de um direito de liberdade ou não decidir a satisfação de um direito social." (op. cit. p. 98), com o que, ante o status dos direitos ora em apreciação, não se antevê o óbice da "reserva do possível".

Fixe-se que o Supremo Tribunal Federal, em recente decisão, decidiu que:

"ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA 'RESERVA DO POSSÍVEL'. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO 'MÍNIMO EXISTENCIAL'. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO). (Informativo STF nº 345)

Colhe-se do voto do relator, Ministro Celso de Mello, que "É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário - e nas desta Suprema Corte, em especial - a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (José Carlos Vieira de Andrade, 'Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976', p. 207. Almedina Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático...", afastando ainda o óbice da chamada "reserva do possível" a partir da invocação do trabalho de Ana Paula Barcellos (A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais), que diz que "A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível."

Ora, ficou evidenciado que os réus deixaram de iniciar a construção de obra básica para a garantia do serviço de fornecimento de energia elétrica, marcando a doutrina que "à Agência Reguladora compete a permanente tarefa de fiscalizar a implementação das técnicas gerenciais modernas, com o objetivo de que o concessionário preste serviço público com eficiência, qualidade e preços competitivos. Para isso, o Estado deverá criar e manter condições favoráveis ao desenvolvimento econômico (infraestrutura), defendendo o mercado e as liberdades econômicas das pessoas vinculadas à prestação dos serviços públicos." (Mauro Roberto Gomes de Mattos, Agências Reguladoras e suas Características, RDA 218/71), e mais, ficou evidenciado também que tal omissão foi a principal causa dos eventos.

De fato, se é certo que houve falha nos serviços da CELESC ao fazer o serviço de manutenção, consistente na emenda termocontrátil nos cabos de condução de média tensão (13,8 Kv), ficou demonstrado de modo ainda mais evidente que os danos produzidos tiveram como principal causa a omissão de ambas as rés em implementar as obras cuja construção ora se requer a partir do pedido formulado nos itens 5.2 e seguintes da inicial.

O incêndio na galeria jamais teria propiciado os danos que se experimentou não fosse a omissão reiterada da rés em construir as obras essenciais para a manutenção dos serviços, motivo pelo qual, a partir das obrigações legais em manter a continuidade dos serviços, além das obrigações contratuais, emergentes sobretudo da já transcrita cláusula quarta do contrato de concessão nº 56/99, identifica-se no art. 37 § 6º da Constituição Federal os fundamentos para responsabilização de ambas as rés.


CONCLUSÕES:

1) O serviço público consistente no fornecimento de energia elétrica é serviço essencial e requer prestação contínua;

2) O direito à prestação de tais serviços é de natureza coletiva, protegíveis por ação civil pública, cuja titularidade é do Ministério Público;

3) A competência para o processamento da ação civil pública é da Justiça Federal de Florianópolis em razão dos fundamentos de responsabilidade da ANEEL, autarquia federal;

4) O serviço de distribuição de energia elétrica em Santa Catarina é prestado mediante contrato de concessão em favor da CELESC, por delegação atual da ANEEL e sob sua fiscalização, com obrigações legais e contratuais de ambos os entes pelo seu fornecimento;

5) A responsabilidade da distribuidora de energia elétrica é objetiva, aplicando-se as regras do Código de Defesa do Consumidor em razão da remuneração direta. A responsabilidade da agência reguladora também é objetiva, com fundamento no art. 37, § 6º, da CF. Para ambas as responsabilidades, de natureza solidária, aplica-se a teoria da culpa anônima ou do acidente administrativo, ao menos quanto às omissões que lhe foram imputadas. Provados os danos e o nexo de causalidade entre os danos e as ações, e principalmente omissões das rés, emerge a responsabilidade civil de ambas, afastada a ocorrência de caso fortuito ou força maior.

6) No direito brasileiro os poderes conferidos às agências reguladoras não podem inovar a ordem jurídica, cabendo-lhe, todavia, amplo espectro de discricionariedade, ínsito ao exercício do seu preponderante poder de polícia, o qual é passível de controle judicial em face dos seus limites, não se demonstrando liminarmente o desvio no exercício desse poder, seja por inconstitucionalidade, seja por irrazoabilidade;

7) O exercício da discricionariedade administrativa é passível de controle judicial, a partir de sua motivação. No exercício de tal controle da discricionariedade administrativa cabe determinar ao poder público obrigações de fazer, o que se evidencia ante os direitos fundamentais que caracterizem o "mínimo existencial", tal como o direito ao serviço de fornecimento de energia elétrica.

Ante tais conclusões, recordando que a Lei 7.347/85 prevê o cabimento de liminar quanto aos relevantes direitos por ela protegíveis, conforme artigo 12, é de se deferir os pedidos formulados em antecipação de tutela.

Assim, fixados os parâmetros jurídicos e fáticos do caso, verifica-se que há amparo para a concessão da maior parte dos pedidos de antecipação de tutela, exceto em relação aos pedidos de condenação na obrigação de instalar sistema de monitoramento e controle do acesso às galerias, por falta de obrigação legal ou contratual, e ainda em relação à pretendida condenação da ANEEL na obrigação de fazer, consistente em promover a destinação do valor emergente da aplicação da multa proveniente do Auto de infração nº 001/2004 em benefício dos consumidores de Florianópolis, como já fundamentado, merecendo ainda contenção os pedidos no que respeita à imposição de multa pelo descumprimento.


DECISÃO:

Presentes os requisitos legais, na forma da fundamentação, DEFIRO PARCIALMENTE A ANTECIPAÇÃO DE TUTELA, determinando:

a) a condenação da CELESC a indenizar os consumidores da ilha de Florianópolis enquadrados no "Grupo B", mediante aplicação da fórmula DIC, nos termos da Resolução 24/00 ANEEL (fls. 1876/1893), e mediante compensação nas duas próximas faturas de energia elétrica, sob pena da imposição de multa de R$ 500.000,00 pelo descumprimento, ou, ainda, multa de R$ 1.000,00 por cada consumidor que, comprovadamente, não for indenizado;

b) a condenação da CELESC, como requerem os autores e com redução apenas nos valores de multa, na obrigação de apresentar, "em até 30 (trinta) dias contados da intimação, de cronograma de obras e providências necessárias à construção da subestação Mauro Ramos e a interligação da subestação Ilha-Centro (conectada à subestação Palhoça - que fica no continente) com a subestação Trindade (igualmente conectada à subestação de Palhoça), ou seja, fechamento em rede do sistema, sob pena de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por atraso; com a conclusão das obras e início de operação tanto da subestação Mauro Ramos como da subestação Ilha-Centro coma subestação Trindade, ou seja, fechamento em rede do sistema, no prazo de até 2 (dois) anos contados da intimação do deferimento da medida, sob pena de multa mensal de R$ 100.000,00 (cem mil reais) por atraso", obrigações que emergem do próprio contrato de concessão, como concluíram a ANEEL no seu relatório (fls. 188/296) e o laudo do Engenheiro Carlos Gallo (fls. 586/598), tendo tal opção técnica se apresentado como a adequada para o caso, condenando-se também a ANEEL na obrigação de fiscalizar a implementação de tais obras, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00.

c) a condenação da CELESC na obrigação de apresentar, em até sessenta dias contados da intimação, cronograma de realização de cursos de treinamento e capacitação para aperfeiçoamento de pessoal, sob pena de multa de R$ 1.000,00, além de condenar a ANEEL a fiscalizar o cumprimento desta providência, sob pena de multa diária de R$ 500,00.

d) a condenação da CELESC na obrigação de apresentar, em até sessenta dias contados da intimação, plano de emergência para o enfrentamento de situações similares ao evento da inicial, sob pela de multa de R$ 5.000,00, além de condenar a ANEEL a fiscalizar o cumprimento desta providência, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00.

e) a condenação da CELESC na obrigação de promover, em até sessenta dias contados da intimação, contratação do seguro das linhas de distribuição para a parte insular da Ilha de Florianópolis, como prevê a cláusula quinta, IV do contrato de concessão, sob pena de multa diária de R$ 10.000,00, condenando-se a ANEEL a fiscalizar a implementação do seguro, sob pena de multa diária de R$ 2.000,00.

A eventual execução das multas deverá ocorrer nestes autos."

Após todas as considerações, resta, ao tempo de emissão da decisão definitiva, extrair as conseqüências quanto às preliminares, bem como a avaliação das demais provas coligidas e enfrentamento do tema do dano moral coletivo.

Quanto às preliminares, como fundamentado, marca-se a competência da Justiça Federal de Santa Catarina pelo Juízo de Florianópolis, bem como a viabilidade do controle judicial nos limites já explicitados e, finalmente, a declaração da legitimidade ativa do Ministério Público Federal, com a exclusão do litisconsorte ativo, Ministério Público Estadual.

No mérito, relevante remarcar que a presente ação civil pública situa-se dentre os feitos melhor amparados pelo Ministério Público neste Estado, certo que o evento, pela sua original grandeza, importou inúmeras instâncias de investigação oficial, nenhuma relegada a segundo plano. Todas, provas tendentes a demonstrar a correção de todas as alegações fáticas da inicial, já reconhecidas, inclusive, na oportunidade da decisão de antecipação de tutela.

Os depoimentos prestados em Juízo pelos Sr. Álvaro Maus, Tenente-Coronel do Corpo de Bombeiros Militar de Santa Catarina (fls. 2748/2749); Vanderlei Vanderlino Vidal, Major do Corpo de Bombeiros Militar de Santa Catarina (fls. 2750/2751), que também tiveram participação no laudo elaborado anteriormente por essa força, apesar de conjecturarem sobre a origem do incêndio, foram esclarecedores quanto à presença do "liquinho" no local e de que a realização dos "... serviços efetuados pelos funcionários da Celesc, sob o ponto de vista do risco de incêndio, eram incorretos."

O Sr. Fiscal do Trabalho, Geraldo Mollick Brandão, tendo atuado no local, também prestou esclarecedor depoimento (fls. 2752), ratificando as conclusões daquele órgão no que respeita às inapropriadas condições de realização do serviço, seja quanto ao planejamento, seja quanto à própria execução.

O Auditor Fiscal do Trabalho Rui Camillo Ruas Filho (fls. 2754/2755) esclareceu sobre a inadequação dos serviços sob o ponto de vista das normas técnicas relativas à segurança do trabalho, especificamente no que pertine às NR's 10 e 23 da Portaria 3.214/78, tendo o evento, inclusive, gerado notificação à empresa ré.

Os senhores funcionários da CELESC, João Terba dos Santos, Jacques Westphalen Naschenweng, Evaldo Rocha Floriano e Sidney Vasques (fls. 2756/2763) todos envolvidos no evento, ratificando os depoimentos antes prestados perante o Ministério Público, bem esclareceram sobre a natureza e execução dos serviços, corroborando a versão apresentada em inicial.

Finalmente, o Sr. Janio Antônio Búrigo, engenheiro-chefe da divisão de subestações, pouco esclareceu sobre os fatos, limitando-se a mencionar as posteriores ações da Celesc, que foram todas no sentido da correção das inúmeras irregularidades anunciadas em inicial.

Os agentes da ANEEL, Sr. Paulo Luciano de Carvalho (fls. 2783/2784) e José Jurhosa Júnior (fls. 2785) apenas puderam esclarecer sobre as autuações promovidas pela Agência em face da concessionária ré.

Para a natureza do caso em tela, evidentemente que a prova é técnica, e esta, como sobejamente demonstrado, milita em favor da cabal demonstração dos fatos tal como narrados pelo Ministério Público em inicial, com o que evidenciadas estão as falhas de ambas as rés, nos termos em que se cuidou na decisão de antecipação de tutela.

Vale a pena remeter ao trabalho de Álvaro Lazzarini (Consumidor de Serviços Públicos - Dever de Indenizá-lo Enquanto Cidadão, in RT 774/126), além de Carlos Augusto Ramos Kirchner (O Consumidor de Energia Elétrica Segundo o Código de Defesa do Consumidor, Rev. ITE, 41/396) e Mirna Cianci (A Responsabilidade do Estado e o Ônus da Prova no Código de Defesa do Consumidor sob o Enfoque da Teoria do Risco Administrativo, RT 789/94), todos a corroborar as conclusões da liminar, e, especificamente em relação à ANEEL, citar o trabalho de Rodrigo Santos Neves (Responsabilidade Civil das Agências Reguladoras, RT 803/729), igualmente a marcar o fenômeno da responsabilidade por omissão do ente, na vertente da teoria da culpa anônima, claramente incidente no caso ante a reiterada omissão fiscalizatória da Agência, que não logrou êxito em impôr o cumprimento das cláusulas do contrato de concessão celebrado, especialmente a que se refere ao cronograma para a Ilha de Santa Catarina e a evidência de que a Agência havia muito tinha ciência dos constantes atrasos.

Último ponto relacionado ao mérito diz respeito ao cabimento ou não do dano moral coletivo.

Cuida-se de tema ainda candente, provocando a meditação de seus inúmeros aspectos por juristas nacionais e estrangeiros, pois, para alguns, cuidar-se-ia de mais um passo rumo à integral reparação na longa evolução da história da indenização do dano moral.

Não há qualquer dúvida de que, no Brasil, indeniza-se o dano moral puro.

Indenizável o dano moral puro, conforme art. 5º, V e X, da Constituição Federal, pelo que descabido discutir-se seu cabimento, pois, como adverte o Prof. Caio Mário da Silva Pereira: "... Agora, pela palavra mais firme e mais alta da norma constitucional, tornou-se princípio de natureza cogente o que estabelece a reparação por dano moral em o nosso Direito. Obrigatório para o legislador e para o juiz."

Ao lado do fundamento constitucional, para o caso vale ainda reproduzir a Lei 8.080/90, que, em seu art. 6º, VI, dispõe:

"Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos."

A jurisprudência, de há muito, mesmo anteriormente à Constituição Federal de 1988, reconhecia a indenização do dano puramente moral, valendo mencionar a expressão da mais alta Corte no RE 109.233-5 (RT 614/236).

O direito à honra, que serve de supedâneo para o pedido indenizatório, constitui "direito da personalidade", assim definido por Carlos Alberto Bittar: "em nosso entender, pois, os direitos da personalidade devem ser compreendidos como: a) os próprios da pessoa em si (ou originários), existentes por sua natureza, como ente humano, com o nascimento; b) e os referentes às suas projeções para o mundo exterior (a pessoa como ente moral e social, em seu relacionamento com a sociedade)."

Em se tratando de indenização por ato ilícito, tratando do dano moral, hipótese em que as repercussões do ato ilícito são as mais variáveis possíveis, é a casuística que deve guiar o aplicador da Lei ao reconhecer a presença ou não do dano moral.

Procedente a argumentação de Adriano de Cupis, em (Os Direitos da Personalidade, Lisboa, Livraria Moraes Ed., 1961, p. 112), segundo o qual "... a honra, entendida como valor íntimo moral do homem, constitui um bem intensamente precioso, exaltado por poetas e pensadores, proclamado como o mais importante da vida. Mas mesmo sob o aspecto dos mencionados reflexos - aqueles pelos quais se interessa o direito - apresenta uma importância enorme. De fato, a boa fama da pessoa constitui o pressuposto indispensável para que ela possa progredir no meio social e conquistar um lugar adequado; e, por sua vez, o sentimento, ou consciência, da própria dignidade pessoal representa uma fonte de elevada satisfação espiritual. Importante registrar, nesse contexto, que a honra comporta dois espectros diversos: a honra subjetiva, ou seja, o sentimento pessoal de estima, ou a consciência da própria dignidade e a honra objetiva, isto é, a reputação que a pessoa goza no meio em que vive." (grifos meus).

Assim, certo que não se trata de responsabilizar apenas pelo dano moral reflexo, mas também pelo dano moral puro.

Avançando, é cediço também que o dano moral alcança a pessoa jurídica, tal como dispõe a Súmula 227 do Supremo Tribunal Federal:

"Súmula 227. A pessoa jurídica pode sofrer dano moral."

Sobre o dano moral da pessoa jurídica, com efeito, afirma Yussef Said Cahali, em "Dano Moral": "Na realidade, a pessoa jurídica, embora não seja titular de honra subjetiva que se caracteriza pela dignidade, decoro e auto-estima, exclusiva do ser humano, é detentora de honra objetiva, fazendo jus à indenização por dano moral sempre que o seu bom nome, reputação ou imagem forem atingidos no meio comercial por algum ato ilícito (protesto indevido de duplicata). Ademais, após a Constituição de 1988, a noção de dano moral não mais se restringe ao pretium doloris, abrangendo também qualquer ataque ao nome ou imagem da pessoa física ou jurídica, com vistas a resguardar a sua credibilidade e respeitabilidade."

A pessoa jurídica é titular da honra objetiva, sendo muito relevante observar que se cuida, efetivamente, da consagração de que o dano moral ultrapassa o direito personalíssimo, exclusivo da pessoa humana, para comportar também a reparação pelo dano à honra objetiva dessa pessoa coletiva, tida no Brasil por ficção jurídica ou realidade técnica e que, qualquer que seja sua concepção, seguramente ultrapassa a pessoa natural ou física que a constitui e com ela não se confunde, aliás, nos exatos termos do que dispunha o tradicional artigo 20 do Código Civil de 1916.

A indicação de que o dano moral pode ser reparado em favor de uma "coletividade", ainda que "personalizada", constituiu indubitavelmente mais um passo em favor da ampla reparação dos danos morais, inclusive porque não se põe em questão se tal pessoa jurídica ficcional está constituída sob o manto da affectio societatis ou sob outra forma societária que lhe prescinda, evidenciando mais uma vez que é a honra objetiva dessa pessoa coletiva, traduzida no resguardo da credibilidade e respeitabilidade, que o direito protege.

O passo seguinte seria, sem dúvida, a demonstração de que também uma coletividade não personalizada, porém titular de direitos, seria passível de ser indenizada dos danos morais coletivos.

No estudo do tema, alguns autores são insistentemente citados, daí que parto de Carlos Alberto Bittar Filho (Do Dano Moral Coletivo no Atual Contexto Jurídico Brasileiro, in RDC 12/44, e Pode a Coletividade Sofrer Dano Moral? in Rep. IOB de Jurisprudência, 1ª quinz. De agosto de 1996, 15/96, p. 271), que, inclusive, no primeiro trabalho nos brinda com a lição segundo a qual "... com supedâneo, assim, em todos os argumentos levantados, chega-se à conclusão de que o dano moral coletivo é a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos. Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerado, foi agredido de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico: quer isso dizer, em última instância, que se feriu a própria cultura, em seu aspecto material. Tal como se dá na seara do dano moral individual, aqui também não há que se cogitar de prova da culpa, devendo-se responsabilizar o agente pelo simples fato da violação (damnum in re ipsa)."; avançando ainda para os estudos de José Rubens Morato Leite, Marcelo Dantas e Daniele Fernandes (O Dano Moral Ambiental e sua Reparação, in Revista de Direito Ambiental, nº 4/60); R. Limongi França (Reparação do Dano Moral, RT 631/29); André de Carvalho Ramos (A Ação Civil Pública e o Dano Moral Coletivo, in RDC 25/80); Arion Sayão Romita (Dano Moral Coletivo, in Revista Juris Plenum, nº 21); Adriano Celestino Ribeiro Barros (Dano Moral Coletivo e os Direitos Metaindividuais sob o Prisma do Direito Constitucional, in RDCI 68/10); Morgana Braz de Siqueira Corrêa (Dano Moral Coletivo e os Serviços de Transporte de Passageiros, in RDPRIV 38/177); Mariana de Cássia Araújo (A Reparabilidade do Dano Moral Transindividual, in Revista Jurídica 378/77); e Leandro Martins Zanitelli e Gustavo Brum (Dano Moral Coletivo: Uma Análise Econômica, Revista Ajuris 114/169).

Curioso notar que os autores, quase à unanimidade, não negam que pode haver projeção coletiva dos danos tipicamente morais, certo que o Superior Tribunal de Justiça, em caso líder, consistente no RESP nº 598.281, decidiu, por maioria:

"PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANO AMBIENTAL. DANO MORAL COLETIVO. NECESSÁRIA VINCULAÇÃO DO DANO MORAL À NOÇÃO DE DOR, DE SOFRIMENTO PSÍQUICO, DE CARÁTER INDIVIDUAL. INCOMPATIBILIDADE COM A NOÇÃO DE TRANSINDIVIDUALIDADE (INDETERMINABILIDADE DO SUJEITO PASSIVO E INDIVISIBILIDADE DA OFENSA E DA REPARAÇÃO."

Tal precedente está a merecer meticuloso estudo, pois tratou de hipótese que versava a indenização por "dano moral ambiental", daí que o direito matriz era, indubitavelmente, direito difuso, conforme o art. 225 da Constituição Federal, e não coletivo, como é o caso e nos termos retro, em que já exaustivamente exposta a natureza do direito ora em lide.

Tanto isso é verdade que o voto condutor, do Ministro Zavascki, no ponto fundamental de seu voto, assim escreveu: "O dano ambiental ou ecológico pode, em tese, acarretar também dano moral - como, por exemplo, na hipótese de destruição de árvore plantada por antepassado de determinado indivíduo, para quem a planta teria, por essa razão, grande valor afetivo. Todavia, a vítima do dano moral é, necessariamente, uma pessoa. Não parece ser compatível com o dano moral a idéia de 'transindividualidade' (= indeterminabilidade do sujeito passivo e da indivisibilidade da ofensa e da reparação) da lesão. É que o dano moral envolve, necessariamente, dor, sentimento, lesão psíquica, afetando 'a parte sensitiva do ser humano, como a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas" (Clayton Reis, Os Novos Rumos da Indenização do Dano Moral, Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 236)..."

Acertada a decisão, pois parece evidente que não se pode identificar, ainda que longinquamente, danos morais a sujeitos indeterminados, daí porque é lícito dizer que inexiste "dano moral difuso ou transindividual", sendo evidente que, a prevalecer o contrário, certo que em qualquer teoria jurídica se identifica que a violação à norma é violação reflexa a todos, do que o maior exemplo é o do crime quando se cuida de ação penal pública, toda a população deveria ser indenizada pela violação naquilo que feriu-lhe valores ou sentimentos éticos juridicamente protegidos.

Nunca se cogitou seriamente dessa hipótese.

Muito diferente, todavia, quando se está a cogitar de "dano moral coletivo", pois aqui, diferente do que ocorre na defesa de direito transindividual, como antes já anotei ao citar a doutrina de Alcides Munhoz da Cunha: "... haverá determinação dos sujeitos sempre que os interesses digam respeito especificamente a grupo, classe ou categoria de pessoas que podem ser identificadas, através de dados jurídicos."

Foi com base nestas lições, agregadas àquelas de Teori Albino Zavascki que atrás deixei marcado: "Feitas estas considerações doutrinárias sobre o conceito legal de direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, protegíveis por ação civil pública, ao que se poderiam acrescentar as distinções realizadas por Galeno Lacerda (op. cit.) e pela Juíza do TRF 4ª Região, Dr. Luíza Dias Cassales (Revista Ajufe, nº 48, p. 40), pode-se afirmar que, no caso dos autos, tem o Ministério Público legitimação para a defesa dos interesses dos consumidores dos serviços de energia elétrica na cidade de Florianópolis, pois age na defesa de direito coletivo, visto que, com origem comum, a incidência da norma atinge, de modo absolutamente igual, todo aquele que demonstrar ser titular de uma das 135.432 unidades consumidoras atingidas pela interrupção."

Vale ainda uma última reflexão, pois se é certo que a pessoa jurídica pode reivindicar direitos morais, que no meu entendimento referem-se à honra objetiva e suplantam à figura do indivíduo para admitir dano moral a uma coletividade, os autos demonstram que os consumidores de determinado grupo, predominantemente pessoas jurídicas, que já tiveram a indenização pelos danos materiais por fórmula própria, poderiam também, em tese, requerer os danos morais, nos exatos termos da Súmula 227 do Supremo Tribunal Federal.

Contraditoriamente, havendo outros consumidores do mesmo produtor, de energia elétrica, titulares de direito tipicamente coletivo, a prevalecer a tese do descabimento do dano moral coletivo, além de se verem injustamente privados da indenização dos danos materiais, ainda seriam aleijados dos danos morais coletivos, em tese não passíveis de serem conferidos às pessoas jurídicas prejudicadas individualmente.

Finalmente, remeto aos inúmeros trabalhos já citados, que merecem profundo estudo dos demais operadores, para reconhecer a existência de "dano moral coletivo", como no caso, ao tempo em que se rechaça reparação por "dano moral transindividual ou difuso".

A propósito, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região teve a oportunidade de decidir, na AC 2003.71.01.001937/RS, rel. Vânia Hack de Almeida, DJU de 30/08/06, p. 472, no seguinte sentido:

"AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OFENSAS CONTRA COMUNIDADE INDÍGENA. DANO MORAL COLETIVO. MAJORAÇÃO.

1. Tendo restado demonstrados a discriminação e o preconceito praticados pelos réus contra o grupo indígena Kaigang, é devida a indenização por dano moral.

2. O dano moral coletivo tem lugar nas hipóteses em que existe um ato ilícito que, tomado individualmente, tem pouca relevância para cada pessoa, mas, frente à coletividade, assume proporções que afrontam o senso comum.

3. Indenização por danos morais majorada para R$ 20.000,00, a ser suportada de forma solidária por ambos os réus desta ação."

Reconhecido o dano moral coletivo, não se pode desconsiderar as consistentes provas da angústia coletiva que assolou a população de Florianópolis em razão do evento causado pelos réus, projetando-se, evidentemente, de modo especial nos usuários dos serviços e titulares de cada uma das 135.432 unidades consumidoras diretamente atingidas, ainda assim restando fixá-lo, para o que a doutrina e jurisprudência, fixando certos parâmetros, tem confiado no prudente arbítrio judicial.

Quando for indispensável arbitrar o dano moral, no ilícito absoluto, há que se buscar um critério de razoabilidade, como exigiu a 4ª Turma do STJ em caso de indevida devolução de cheque por insuficiência de fundos (4ª Turma do STJ, REsp nº 53.729-0-MA, 23.10.95, Rel. Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO, EJSTJ, 6/76.). Mais uma vez é judiciosa a palavra de CAIO MÁRIO: "A vítima de uma lesão a algum daqueles direitos sem cunho patrimonial efetivo, mas ofendida em um bem jurídico que em certos casos pode ser mesmo mais valioso do que os integrantes do seu patrimônio, deve receber uma soma que lhe compense a dor ou o sofrimento, a ser arbitrada pelo juiz, atendendo às circunstâncias de cada caso, e tendo em vista as posses do ofensor e a situação pessoal do ofendido. Nem tão grande que se converta em fonte de enriquecimento, nem tão pequena que se torne inexpressiva." (CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, Responsabilidade civil, nº 49, pág. 67, Rio de Janeiro, 1989.)

Também Wilson Mello da Silva diz: "reparar em verdade, o dano moral, seria assim buscar, de certo modo, a melhor maneira de contrabalançar, por um meio qualquer, que não pela via direta do dinheiro, a sensação dolorosa infligida à vítima, ensejando-lhe uma sensação outra de contentamento e euforia, neutralizadora da dor, da angústia e do trauma moral (RF 331/62)."

Com tais balizamentos, citando-se ainda, por oportuno, trabalho do Prof. Galeno Lacerda, em RT 728/94, cito ainda Jaques Bushatsky, no artigo retrocitado: "... No que pertine à controvertida aferição do dano moral, alguns parâmetros tem sido propostos na doutrina e acolhidos na jurisprudência, baseados em diplomas legais esparsos. Estuda-se então o grau de culpa do causador, a concorrência da vítima, o patrimônio dos envolvidos, o proveito decorrente do ato, o custo da opção alternativa. Tomando-se por norte tais parâmetros, tem-se presente que a indenização por dano moral deve ser significativamente agravada, quando ocorra conduta dolosa do suposto credor, a costumeiramente total e absoluta falta de participação do lesado na produção do efeito danoso e a privilegiadíssima situação patrimonial que costumam gozar as entidades com fácil acesso a tais serviços de crédito, a evidente economia decorrente de tais expedientes se comparados com os custos decorrentes da busca legítima de seus direitos creditórios. E é exatamente nesse diapasão que se impõe assinalar que a indenização do dano moral deve ser de tal sorte a desestimular novas condutas reprováveis, a exemplo do que se dá nos direitos norte-americano e inglês, que denomina essa prática de punitive ou exemplary damages."

Os critérios enumerados à consideração do juiz no momento do arbitramento do dano moral não são apenas os citados, havendo outros, podendo ainda cada caso apresentar a concorrência de alguns e ausência de outros.

Aqui, constata-se que os consumidores de energia elétrica na porção insular da Ilha de Santa Catarina, em Florianópolis, experimentaram prolongada cessação do fornecimento da energia por ato da empresa concessionária CELESC, evento que também decorreu das omissões da agência ANEEL, tudo como fundamentado e exaustivamente demonstrado pelo Ministério Público, privados então de serviço essencial que projetaram inúmeros prejuízos, de ordem material e coletiva, e que, amparando-se nas notícias dos meios de comunicação, especialmente as revelações da gravação juntada aos autos, expôs especialmente essa coletividade a enorme angústia.

Sem citações, a jurisprudência predominante têm fixado indenizações por danos morais, individualmente considerados, em número de salários-mínimos, entre 10 e 200, aumentando ou reduzindo a condenação conforme os critérios de arbitramento referidos, que se têm procurado uniformizar.

No presente caso, considerando os aspectos mencionados, arbitro a indenização por dano moral em 5.000.000,00 (cinco milhões de reais), a serem suportados pelos réus na proporção de 20% pela Agência Reguladora e 80% pela Empresa Concessionária, o qual, nos termos da inicial, não será destinado ao Fundo Federal de que cogita o artigo 13 da Lei 7.347/85, mas reverterá, necessariamente, a cada titular das 135.432 unidades consumidoras ainda existentes, sob a forma de devolução em fatura, inclusive quanto à condenação da ANEEL, tudo sob a fiscalização do Ministério Público Federal.

Vale notar que, no que respeita às obrigações de fazer, demonstrou-se a implementação, que não se pode assegurar integral, dos Projetos reivindicados em inicial, daí que mantém-se as condenações também nas obrigações de fazer.


III - DISPOSITIVO

Ante o exposto, acato parcialmente as liminares, excluindo do feito o Ministério Público do Estado de Santa Catarina, como fundamentado e, no mérito CONFIRMO A LIMINAR e JULGO PROCEDENTE A AÇÃO para determinar:

a) a condenação da CELESC a indenizar os consumidores da ilha de Florianópolis enquadrados no "Grupo B", mediante aplicação da fórmula DIC, nos termos da Resolução 24/00 ANEEL (fls. 1876/1893), e mediante compensação nas duas próximas faturas de energia elétrica, sob pena da imposição de multa de R$ 500.000,00 pelo descumprimento, ou, ainda, multa de R$ 1.000,00 por cada consumidor que, comprovadamente, não for indenizado;

b) a condenação da CELESC, como requerem os autores e com redução apenas nos valores de multa, na obrigação de apresentar, "em até 30 (trinta) dias contados da intimação, de cronograma de obras e providências necessárias à construção da subestação Mauro Ramos e a interligação da subestação Ilha-Centro (conectada à subestação Palhoça - que fica no continente) com a subestação Trindade (igualmente conectada à subestação de Palhoça), ou seja, fechamento em rede do sistema, sob pena de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por atraso; com a conclusão das obras e início de operação tanto da subestação Mauro Ramos como da subestação Ilha-Centro coma subestação Trindade, ou seja, fechamento em rede do sistema, no prazo de até 2 (dois) anos contados da intimação do deferimento da medida, sob pena de multa mensal de R$ 100.000,00 (cem mil reais) por atraso", obrigações que emergem do próprio contrato de concessão, como concluíram a ANEEL no seu relatório (fls. 188/296) e o laudo do Engenheiro Carlos Gallo (fls. 586/598), tendo tal opção técnica se apresentado como a adequada para o caso, condenando-se também a ANEEL na obrigação de fiscalizar a implementação de tais obras, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00.

c) a condenação da CELESC na obrigação de apresentar, em até sessenta dias contados da intimação, cronograma de realização de cursos de treinamento e capacitação para aperfeiçoamento de pessoal, sob pena de multa de R$ 1.000,00, além de condenar a ANEEL a fiscalizar o cumprimento desta providência, sob pena de multa diária de R$ 500,00.

d) a condenação da CELESC na obrigação de apresentar, em até sessenta dias contados da intimação, plano de emergência para o enfrentamento de situações similares ao evento da inicial, sob pela de multa de R$ 5.000,00, além de condenar a ANEEL a fiscalizar o cumprimento desta providência, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00.

e) a condenação da CELESC na obrigação de promover, em até sessenta dias contados da intimação, contratação do seguro das linhas de distribuição para a parte insular da Ilha de Florianópolis, como prevê a cláusula quinta, IV do contrato de concessão, sob pena de multa diária de R$ 10.000,00, condenando-se a ANEEL a fiscalizar a implementação do seguro, sob pena de multa diária de R$ 2.000,00.

f) a condenação da CELESC e da ANEEL em danos morais coletivos, arbitrados em 5.000.000,00 (cinco milhões de reais), a serem suportados pelos réus na proporção de 20% pela Agência Reguladora e 80% pela Empresa Concessionária, a ser revertido em favor de cada titular das 135.432 unidades consumidoras à época e ainda existentes, sob a forma de devolução em fatura, mesmo quanto ao montante devido pela ANEEL, por quantas competências forem necessárias, excluídas eventuais condenações individuais em danos morais.

Custas ex lege.

Condeno os réus em honorários, os quais fixo em 10% sobre o valor atribuído à ação, devidamente atualizado, pro rata.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Florianópolis, 08 de abril de 2010.


CLÁUDIO ROBERTO DA SILVA
Juiz Federal Substituto




JURID - ACP: Celesc e Aneel [04/05/10] - Jurisprudência

 



 

 

 

 

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