Embargos infringentes. Apelação cível. Fornecimento de medicação para o tratamento de câncer de mama.
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul - TJRS
PUBLICAÇÃO: Diário de Justiça do dia 24/05/2010
EMBARGOS INFRINGENTES. Apelação CÍVEL. FORNECIMENTO DE MEDICAÇÃO PARA O TRATAMENTO DE CÂNCER DE MAMA. DEVER DO MUNICÍPIO.
Preliminares:
- Falta de interesse processual: a embargada demonstrou haver, em princípio, a necessidade de postular na via judicial a medicação para o tratamento de câncer de mama, comprovando a indisponibilidade do fornecimento da medicação pelo SUS.
- Impossibilidade jurídica do pedido: há tutela específica conferida pelos arts. 6º e 196 da Constituição Federal às ações e serviços destinados à saúde pública. Inexistência de vedação legal expressa ao pedido formulado.
- Nulidade do acórdão: o Colegiado, ao afastar a preliminar de ilegitimidade passiva do Município, adentrou o mérito para julgar procedente a demanda, utilizando a faculdade que lhe confere o § 3º do art. 515 do CPC, motivo pelo qual inexiste o error in procedendo invocado.
- Violação à Súmula Vinculante nº 10 do STF: o Colegiado não afastou a incidência de dispositivo legal, sequer do disposto na Lei nº 8.080/90, mas lhe emprestou interpretação conforme para assegurar o direito maior que é a proteção à saúde, previsto nos arts. 6º e 196 da Constituição Federal.
- A vedação à antecipação de tutela contra a Fazenda Pública (Lei nº 9.494/97) não é aplicável quando a cognição exauriente antes da concessão da tutela põe em perigo a vida ou a integridade física da parte e, conseqüentemente, coloca em risco a própria efetividade da jurisdição.
- Possibilidade de cumprimento da sentença anteriormente ao trânsito em julgado: em se tratando de obrigação de fazer, a execução da medida deve dar-se pelo disposto no art. 461 do CPC, cuja finalidade é a obtenção da tutela específica da obrigação, e não pelo art. 730 do CPC, que cuida das hipóteses de execução por quantia certa contra devedor solvente.
- Chamamento ao processo. A responsabilidade solidária entre os Municípios e os Estados-membros pelo fornecimento gratuito de medicamentos a doentes decorre do próprio texto constitucional (artigos 23, II, e 196 da Constituição Federal), e não impõe o deferimento do pedido de chamamento ao processo, cabendo à parte o direito de escolher contra quem pretende propor a demanda. Precedentes do STJ e desta Corte Estadual.
Preliminares afastadas.
Mérito:
- Dever do Estado, de forma ampla, de fornecer medicamento. Aos entes da Federação cabe o dever de fornecer gratuitamente tratamento médico a pacientes necessitados (artigos 6º e 196 da Constituição Federal).
- A responsabilidade solidária entre a União, os Estados-Membros e os Municípios pelo fornecimento gratuito de tratamento a doentes necessitados decorre de texto constitucional (CF, art. 23, inc. II e art. 196).
- Descabe a alegação de que a medicação postulada não consta nas listas de medicamentos essenciais para fins de cumprimento do dever constitucional da tutela da saúde. Até prova em contrário, o medicamento receitado ao paciente por seu médico é o que melhor atende ao tratamento da patologia que lhe acomete. Precedente do Superior Tribunal de Justiça.
- O Município deve disponibilizar não só os medicamentos, mas todo o tratamento necessário aos portadores de neoplasias malignas através de órgãos específicos, os Centros de Alta Complexidade em Oncologia - CACON's -, conforme determina a Portaria nº 3.535/98 do Ministério da Saúde.
- Na espécie, os CACON's cadastrados no Município de Pelotas não vêm fornecendo o medicamento Herceptin, necessário à continuidade do tratamento, o que somente vem sendo possível mediante determinação de bloqueio de valores, motivo pelo qual prevalece a obrigação do ente público em fornecer a medicação. Precedente desta Corte.
- Inexistência de afronta ao princípio da reserva do possível, que na casuística não pode servir de condicionante ao direito constitucional à saúde, uma vez que não há prova da ausência de disponibilidade financeira do ente público, bem como razoável a pretensão deduzida, considerando a necessidade de a parte embargada ter acesso à medicação.
- Não infringência ao princípio da independência entre os Poderes, posto que a autoridade judiciária tem o poder-dever de reparar uma lesão a direito (artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal).
- A Lei n° 8.666/93 autoriza a dispensa da licitação "nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares..." (art. 24, inc. IV).
- Honorários advocatícios: recurso conhecido no ponto, consoante jurisprudência do STJ. Montante fixado em desfavor do Município de acordo com a eqüidade imposta no art. 20, § 3º, do Código de Processo Civil.
AFASTARAM AS PRELIMINARES E DESACOLHERAM OS EMBARGOS INFRINGENTES, POR MAIORIA.
Embargos Infringentes - Nº 70031420664
Segundo Grupo Cível - Comarca de Pelotas
EMBARGANTE: MUNICÍPIO DE PELOTAS
EMBARGADA: CELESTE DE SOUZA ANTUNES
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes do Segundo Grupo Cível do Tribunal de Justiça do Estado, por maioria, em afastar as preliminares e desacolher os embargos infringentes, vencido o Des. Alexandre Mussoi Moreira.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além da signatária, os eminentes Senhores Des. João Carlos Branco Cardoso (Presidente), Des. Nelson Antonio Monteiro Pacheco, Des. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, Des. Alexandre Mussoi Moreira, Des. Rogério Gesta Leal, Desa. Agathe Elsa Schmidt da Silva e Des. Ricardo Moreira Lins Pastl.
Porto Alegre, 14 de maio de 2010.
DES.ª MATILDE CHABAR MAIA,
Relatora.
RELATÓRIO
Des.ª Matilde Chabar Maia (RELATORA)
O MUNICÍPIO DE PELOTAS interpõe recurso de embargos infringentes do acórdão (fls. 147-154v) proferido nos autos da apelação cível nº 70027154079, que por maioria julgou procedente demanda que lhe move CELESTE DE SOUZA ANTUNES, postulando o fornecimento do medicamento Herceptin, para o tratamento do câncer de mama.
Com base no voto minoritário do eminente Desembargador Alexandre Mussoi Moreira, refere, em suas razões (fls. 177-198), preliminarmente, que a decisão é nula por ter violado o princípio do devido processo legal, já que não foi oportunizada dilação probatória em primeiro grau, sendo em grau de recurso reformada a sentença para julgar procedente a demanda.
Alega que o Colegiado afrontou a Súmula Vinculante nº 10, uma vez que para fins de determinação de fornecimento de medicação afastou o regramento do SUS editado nos termos da Constituição Federal, violando a cláusula de reserva de plenário.
Argumenta que não poderia ter sido antecipada a tutela pois para tanto há vedação legal expressa ao art. 1º, § 3º, e art. 2º, da Lei nº 8.437/92. Salienta que a sentença somente poderia produzir efeitos após a confirmação pela Instância Superior, pois se trata de provimento de natureza cautelar que esgota o objeto da demanda.
Ressalta que o Supremo Tribunal Federal nos autos da ADC nº 4 suspendeu com eficácia ex nunc e com efeito vinculante a prolação de qualquer decisão antecipatória de tutela contra a Fazenda Pública que tenha por pressuposto a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do art. 1º da Lei nº 9.494/97.
Aduz, no mérito, que não há verossimilhança do pedido, pois o medicamento Herceptin não consta das listas de atenção básica do Município, existindo tratamento especializado facultado junto ao Hospital da FAU, cadastrada junto SUS como mantenedora de serviço de alta complexidade no tratamento do câncer.
Assevera que inexiste propósito protelatório da defesa, pois a pretensão não encontra respaldo no regramento do SUS, bem como a Portaria nº 2.475/06 do Ministério da Saúde, que organiza o sistema de saúde conforme o disposto no art. 200 da Constituição Federal e Lei nº 8.080/90.
Refere que a lei processual veda a concessão de tutela antecipada quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado, caso dos autos, em que a autora postula medicamento de alto custo, o que posteriormente não poderá ser ressarcido aos cofres públicos.
Salienta que a execução provisória não se aplica contra a Fazenda Pública, já que o rito previsto no art. 730 do CPC não contempla tal hipótese, prevalecendo o regime de precatórios, constante do art. 100 da Constituição Federal.
Argumenta que embora o Sistema Único de Saúde preveja o atendimento de forma universal, igualitário e integral a todo o cidadão, há uma repartição de competências que deve ser respeitada no âmbito administrativo, o que impede que a parte possa buscar a tutela em face de qualquer ente federado de forma indistinta.
Alega ser flagrante a ilegitimidade passiva do Município, devendo ao menos ser chamada a União ao processo nos termos do art. 77, III, do CPC, a fim de que a demanda seja direcionada à pessoa jurídica de direito público que realmente detém competência para o fornecimento do medicamento.
Aduz que o atendimento indiscriminado pelo Município acarreta o desequilíbrio do sistema de saúde municipal, que conta com recursos limitados para o atendimento da população.
Afirma haver falta de interesse processual, pois o Hospital da FAU fornece todo o tratamento necessário ao tratamento do câncer.
Refere haver impossibilidade jurídica do pedido já que o Herceptin não consta da lista de medicamentos de atenção básica.
Aduz haver afronta ao princípio da separação entre os poderes, como dispõe o art. 2º da Constituição Federal, bem como o procedimento licitatório regido pela Lei nº 8.666/93.
Argumenta não haver recusa do Município no atendimento, havendo somente direcionamento do paciente conforme o regramento estabelecido pelo SUS, já que o Hospital da FAU fornece tratamento integral para pacientes com câncer.
Afirma que há violação ao princípio da reserva do possível, pois não foi observada a prioridade do tratamento frente a outras demandas na área da saúde, bem como em face do repasse indiscriminado de recursos a entidade privada.
No tocante aos honorários advocatícios, sustenta que o valor arbitrado em R$ 400,00 é excessivo, merecendo minoração, para que atenda às diretrizes do art. 20, §§ 3º e 4º, do CPC.
Requer o provimento do recurso.
Em contra-razões (fls. 209-215), a autora sustenta que a decisão não merece ser reformada, já que atende ao princípio da dignidade da pessoa humana bem como aos arts. 1º, 5º, 6º e 196 da Constituição Federal.
Aduz ter havido preclusão do direito de o Município postular a produção de provas, pois não foi requerida no momento oportuno.
Salienta que a urgência do tratamento resta bem demonstrada nos autos, uma vez que há risco de morte caso não seja mantido o tratamento.
Afirma que não prospera a preliminar de ilegitimidade passiva porque todos os entes públicos são solidariamente responsáveis pelo fornecimento do tratamento postulado.
Relativamente ao princípio da reserva do possível, salienta que não há comprovação da insuficiência de recursos, impedindo que o Município forneça o tratamento.
Quanto ao arbitramento da verba honorária, refere ter sido fixada em montante razoável, atendendo ao que dispõe o art. 20, § 4º, do CPC, não merecendo minoração.
Requer o improvimento do recurso.
Recebido o recurso, foram homologadas as contas relativas ao alvará de fl. 201, bem como deferida a expedição de novo alvará, nos termos do requerimento de fl. 203 (fl. 216).
Os autos foram encaminhados ao Ministério Público, que em parecer de lavra do Dr. Miguel Bandeira Pereira, Procurador de Justiça, opina pelo parcial conhecimento do recurso e rejeitadas as preliminares arguidas, no mérito, pelo desacolhimento dos embargos (fls. 226-229).
O Município interpôs recurso de agravo interno da decisão de fl. 216 (fls. 232-238), alegando ter havido cerceamento de defesa por não ter sido intimado da prestação de contas, bem assim impossibilidade jurídica do bloqueio de valores, já que há vedação legal expressa na Lei nº 9.494/97, e ausente a verossimilhança do pedido. Sustenta ainda a ilegitimidade passiva do Município. Requer a concessão de efeito suspensivo, bem como a prestação de caução pela parte autora para a hipótese de manutenção da tutela.
Os autos foram encaminhados ao e. Desembargador Alexandre Mussoi Moreira para fins de análise do recurso de Agravo Interno interposto pelo Município (fl. 240).
Autuado o recurso como agravo (fl. 247), foi negado provimento ao recurso, em sessão da Quarta Câmara Cível de 18 de novembro de 2009 (fls. 255-257).
Os autos vieram a mim conclusos, face ao trânsito em julgado do recurso de agravo (fl. 270).
Foi deferida a expedição de novo alvará para a aquisição da dose necessária à continuidade do tratamento pela autora (fl. 272-v).
Foram solicitadas informações pelo juízo relativamente à efetivação do bloqueio de valores nas contas do Município, que foram prestadas à fl. 278-v.
Vieram conclusos os autos para julgamento.
É o relatório.
VOTOS
Des.ª Matilde Chabar Maia (RELATORA)
Eminentes colegas.
A autora propôs demanda em face do Município de Pelotas postulando o fornecimento gratuito do medicamento denominado Herceptin, 18 doses, para o tratamento de câncer de mama, alegando não ter condições de arcar com o custo da medicação com recursos próprios.
O processo foi extinto sem resolução de mérito na sentença com base no art. 267, VI, do CPC, pela ilegitimidade passiva do Município, ao argumento de que é da União a competência para fornecer o tratamento médico (fls. 63-65v).
A parte autora interpôs recurso de apelação (fls. 85-92) que foi provido, por maioria, para reformar a sentença, constando o seguinte dispositivo (fl. 154), verbis:
Assim, voto por dar provimento ao apelo para condenar o Município de Pelotas a fornecer à autora o tratamento prescrito conforme laudo médico acostado aos autos.
Invertidos os ônus sucumbenciais, condeno o demandado ao pagamento das custas processuais e em R$ 400,00 a título de honorários advocatícios.
Não merece prosperar, contudo, o recurso.
Inicialmente, afasto a preliminar de falta de interesse processual.
A autora demonstrou haver, em princípio, a necessidade de postular na via judicial a medicação para o tratamento de câncer de mama, alegando na inicial a indisponibilidade da medicação pelo SUS, não lhe restando, segundo alega, alternativa senão a postulação judicial.
Ademais, consta nos autos laudo dando conta de que o medicamento postulado não é fornecido pelo SUS através do CACON em que vem fazendo o tratamento (fl. 16), motivo pelo qual, diante de uma leitura inicial do pedido, há utilidade do provimento perseguido.
De outro lado, não há impossibilidade jurídica do pedido de fornecimento do medicamento Herceptin, especialmente em face da tutela conferida às ações e serviços destinados à saúde pública nos arts. 6º e 196 da Constituição Federal.
A impossibilidade jurídica do pedido refere-se à existência de uma vedação legal expressa ao pedido formulado, e não à ausência de uma previsão em concreto.
Assim leciona a jurisprudência:
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. USUCAPIÃO. POSSE EXERCIDA APENAS SOBRE PARTE DE IMÓVEL URBANO. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. EXTINÇÃO SEM JULGAMENTO DE MÉRITO. AFASTAMENTO. INEXISTÊNCIA DE VEDAÇÃO LEGAL À PRETENSÃO DA AUTORA. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. O processo de usucapião extraordinária foi extinto sem resolução de mérito por suposta impossibilidade jurídica do pedido, ao argumento de que a autora pretende usucapir área que, de fato, não possui. 2. No entanto, tal fundamento não revela qualquer vedação legal à aquisição do imóvel, consectariamente, à pretensão de usucapi-lo. Em realidade, se de posse ininterrupta e sem oposição não se trata - como exige o art. 550 do CC/16 -, cogitar-se-ia de improcedência do pedido e não de impossibilidade jurídica. 3. A possibilidade jurídica do pedido consiste na admissibilidade em abstrato da tutela pretendida, vale dizer, na ausência de vedação explícita no ordenamento jurídico para a concessão do provimento jurisdicional. 4. Com efeito, inexistindo vedação legal à pretensão da autora, não se há cogitar de falta de condições para o exercício do direito de ação. 5. Recurso especial provido.
(REsp 254.417/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 16/12/2008, DJe 02/02/2009) [grifou-se]
Deve também ser afastada a preliminar atinente à nulidade do acórdão por haver enfrentado o mérito da demanda.
A sentença proferida pelo julgador a quo, que extinguiu o feito sem resolução de mérito, foi reformada pelo Colegiado para afastar a prefacial de ilegitimidade passiva do Município, bem como para julgar procedente o feito, condenando-o ao fornecimento do tratamento médico.
O Colegiado, ao afastar a preliminar, adentrou o mérito da demanda, utilizando a faculdade que lhe confere o § 3º do art. 515 do CPC, motivo pelo qual inexiste o error in procedendo invocado. Vejamos:
Art. 515. A apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada.
[...]
§ 3o Nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito (art. 267), o tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causa versar questão exclusivamente de direito e estiver em condições de imediato julgamento. [grifou-se]
Na espécie, versando a causa questão que independe de produção de outras provas, como adiante se verá, estando madura para julgamento, não há cerceamento de defesa pelo enfrentamento imediato da lide. Não houve, ademais, prejuízo à defesa do Município que pôde apresentar resposta ao recurso no momento próprio (fls. 103-108), o que afasta a nulidade suscitada.
De outro lado, rejeito a prefacial de nulidade do acórdão por afronta à Súmula Vinculante nº 10 do STF.
Friso, de início, que o embargante não declina os dispositivos de lei ou o ato normativo que entende terem sido declarados inconstitucionais, o que prejudica sobremaneira a análise da alegação de inconstitucionalidade.
Dispõe referida Súmula que "Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte".
No aresto embargado prevaleceu o entendimento de que o Município é responsável pelo fornecimento da medicação de forma solidária com a União, com fulcro nos arts. 6º e 196 da Constituição Federal, aplicáveis por força dos seus arts. 23, II, e 30, VII, sendo absolutamente prioritária a proteção à vida conferida pela Carta Magna, independentemente da existência de órgão específico de tratamento para o câncer - CACONs.
O Colegiado não declarou a inconstitucionalidade de qualquer dispositivo legal, sequer implicitamente, pois para tal providência seria necessária a instauração do competente incidente de inconstitucionalidade junto ao Tribunal Pleno.
Todavia, mister ressaltar que a Lei Federal nº 8.080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências, não exclui a competência conferida pela Constituição Federal ao Município quanto às ações e serviços de saúde, mas ao contrário, lhe imputa expressamente tal responsabilidade, como se extrai do art. 4º da referida lei, verbis:
Art. 4º O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS). [grifou-se]
§ 1º Estão incluídas no disposto neste artigo as instituições públicas federais, estaduais e municipais de controle de qualidade, pesquisa e produção de insumos, medicamentos, inclusive de sangue e hemoderivados, e de equipamentos para saúde.
§ 2º A iniciativa privada poderá participar do Sistema Único de Saúde (SUS), em caráter complementar.
Assim, o que se verifica é que o Colegiado não afastou a incidência de qualquer dispositivo legal, mas lhe emprestou interpretação conforme para assegurar o direito maior que é a proteção à saúde, previsto nos arts. 6º e 196 da Constituição Federal.
Modo igual, afasto a alegação de violação à vedação legal para a antecipação de tutela contra a Fazenda Pública e consectários.
Não obstante a Lei nº 9.494/97, bem como o próprio Diploma Processual, no § 2º do art. 273, disponham acerca da vedação à concessão da antecipação de tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado, não se pode concluir que nunca será possível a concessão de tutela antecipada não passível de reversão, porque há casos concretos em que a lei mostra-se insuficiente à solução do litígio - por vezes injusta.
É certo que, no processo, ambos os litigantes têm direito fundamental à efetividade da jurisdição e, ao mesmo tempo, à segurança jurídica, esta última decorrência da aplicação do princípio do devido processo legal procedimental (art. 5º, inciso LIV, Constituição Federal).
No caso de ações ajuizadas contra a Fazenda Pública esta segurança jurídica é redobrada - v.g. quando a sentença é de procedência fica sujeita ao duplo grau de jurisdição, só produzindo efeitos depois de confirmada pelo Tribunal (CPC, art. 475) -, e isso se explica porque é o interesse público que está em jogo.
Porém, nas lides forenses não é difícil detectar hipóteses em que ocorre colidência entre o direito fundamental à efetividade da jurisdição e o direito fundamental à segurança jurídica.
A situação em apreço é prova desta colisão entre os direitos das partes litigantes.
Com efeito, na hipótese dos autos, não há como se proporcionar uma cognição exauriente antes da concessão da tutela sem pôr em perigo a saúde da embargada, e, conseqüentemente, sem colocar em risco o direito à efetividade da jurisdição.
Em casos como este, consideradas as circunstâncias da vida dos litigantes, é dever do Poder Judiciário fazer um juízo de harmonização entre os direitos fundamentais, sempre tendo por norte em seu julgamento a concretização dos princípios constitucionais.
Não se fala em negligenciar o direito fundamental de uma das partes litigantes em detrimento da outra, mas sim, de, no exercício de um juízo de proporcionalidade, encontrar a solução harmonizadora para o conflito de direitos.
O exercício de um juízo axiomático é imprescindível, uma vez que na solução da questão apresentada o juiz dá preponderância a um dos valores em colisão, conformando sua decisão com uma escala de valores que, a meu entender, está presente na Lex Legun.
Portanto, de um lado temos a tutela do direito à saúde, à dignidade, em suma, do direito à vida, e, de outro, a tutela ao patrimônio público.
Faço tais ponderações para que fiquem evidentes as razões de ordem constitucional que têm levado o Poder Judiciário a flexibilizar a vedação à concessão da antecipação de tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado, ainda que no pólo passivo da ação figure a Fazenda Pública.
Esta Corte de Justiça já enfrentou a questão em situações análogas:
PROCESSUAL CIVIL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. PROIBIÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. SUPREMACIA DO DIREITO À VIDA. 1. É VEDADO ANTECIPAR OS EFEITOS DO PEDIDO PERANTE A FAZENDA PÚBLICA, CONSOANTE O ART. 1º DA LEI N. 9494/97, PROCLAMADO CONSTITUCIONAL PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, E, PORTANTO, DE APLICAÇÃO OBRIGATÓRIA PELOS ÓRGÃOS JUDICIÁRIOS. NO ENTANTO, A CONTRAPOSIÇÃO ENTRE O DIREITO À VIDA E O DIREITO PATRIMONIAL DA FAZENDA PÚBLICA, TUTELADO NAQUELA FORMA, SE RESOLVE EM FAVOR DAQUELE, NOS TERMOS DO ART. 196 DA CF/88, ATRAVÉS DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE, POIS SE TRATA DE VALOR SUPREMO, ABSOLUTO E UNIVERSAL. IRRELEVÂNCIA DA IRREVERSIBILIDADE DA MEDIDA. EXISTÊNCIA DE NORMA LOCAL ASSEGURANDO SEMELHANTE PRESTAÇÃO (ART. 1º DA LEI N. 9908/93). EVENTUAL SACRIFÍCIO DA VIDA, EM NOME DE INTERRESSES PECUNIÁRIOS DA FAZENDA PÚBLICA, CONDUZIRIA O ÓRGÃO JUDICIÁRIO A CONTRARIAR O DIREITO E PRATICAR AQUELES MESMOS ERROS, RECORDADOS POR GUSTAV RADBRUCH, PELOS QUAIS OS JURISTAS ALEMÃES FORAM UNIVERSALMENTE CONDENADOS. 2. AGRAVO DE INSTRUMENTO PARCIALMENTE PROVIDO. (AGI nº 598379444, 4ª Câmara Cível - TJRGS, rel. Des. Araken de Assis).
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL. ANTECIPAÇÃO DA TUTELA. VEDAÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. PREVALÊNCIA DO DIREITO À VIDA E À SAÚDE AOS INTERESSES PECUNIÁRIOS DA FAZENDA PÚBLICA. INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS QUE PROÍBEM A ANTECIPAÇÃO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. DECISÃO DEFERITÓRIA DA TUTELA ANTECIPADA COM AMPARO NA LEI ESTADUAL N. 9908/93. RECURSO IMPROVIDO. (AGI nº 599.053.352, 3ª Câm. Cível do TJRGS, rel. Des. Augusto Otávio Stern).
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. FORNECIMENTOS DE MEDICAMENTOS. PACIENTE PORTADORA DA DOENÇA DENOMINADA 'LEUCOSE PRO LINFOCITICA DE CÉLULAS T', NECESSITANDO DE MEDICAMENTO ESPECIAL (NIPENT). PRETENSÃO AMPARADA PELA LEI ESTADUAL N. 9908/93, QUE REGULAMENTOU, EM NÍVEL ESTADUAL, AS NORMAS CONSTITUCIONAIS CONSTANTES DOS ARTIGOS 195, 196, 204 E 224 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL REFERENTES AO DIREITO À SAÚDE. A VEDAÇÃO DE CONCESSÃO DE LIMINARES CONTRA O PODER PÚBLICO, PREVISTA PELO ART. 1º, §3º, DA LEI N. 8437/92, NÃO É ABSOLUTA, ESPECIALMENTE QUANDO ESTÁ EM JOGO O PRÓPRIO DIREITO À VIDA OU À PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE FÍSICA DO PACIENTE, QUE, EVIDENTEMENTE, PREPONDERA SOBRE OS INTERESSES PATRIMONIAIS DO ESTADO. DECISÃO CONCESSIVA DA LIMINAR MANTIDA. AGRAVO DESPROVIDO. (AGI nº 599.407.764, 1ª Câm. Especial Cível do TJRGS, rel. Des. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino).
Ademais, mesmo em face do deferimento parcial da liminar na ADC n.º 4 pelo Supremo Tribunal Federal (1) , em que se debate a constitucionalidade do art. 1º da Lei n.º 9.494/97 (2) - c/c art. 1º da Lei n.º 8.437/92 (3) -, a inviabilidade de concessão de liminares em face do Poder Público vem sendo relativizada quando evidenciada a inutilidade do provimento, caso a medida seja concedida somente ao final, caso dos autos, consoante o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL CIVIL. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA EM FACE DA FAZENDA PÚBLICA. SENTENÇA QUE CONFIRMA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA.
RECURSO ESPECIAL PROVIDO PARA SE AFASTAR A APLICAÇÃO DO ART. 520, VII, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.
I - Consoante a jurisprudência deste Tribunal, é inviável, em regra, a antecipação de tutela em face da Fazenda Pública, conforme a decisão do Pretório Excelso acerca de liminar na ADC nº 04/DF, admitindo-a apenas em casos excepcionais, em que a necessidade premente do requerente tornaria imperiosa a concessão antecipada de tutela.
II - No caso, o agravante não logrou demonstrar a excepcionalidade que ensejaria a adoção da medida antecipatória, mesmo porque, normalmente, tal demonstração é inviável em sede de especial. O que se verifica é que, tendo a sentença confirmado a decisão de antecipação da tutela, aplicou-se o que disposto no inciso VII do art. 520 do Código de Processo Civil, o que, em última análise, significa admitir a tutela antecipada. Nesse contexto, a apelação interposta pelo Estado do Maranhão, agravado, deveria ter sido recebida nos efeitos devolutivo e suspensivo, por não incidir a regra do artigo citado.
III - Agravo regimental improvido.
(AgRg no REsp 816.028/MA, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 07.11.2006, DJ 14.12.2006 p. 283) [grifou-se]
É exatamente o caso dos autos, em que o diferimento da providencia cautelar poria em risco a saúde da embargada - que vem tratando quadro de câncer de mama, sabidamente grave -, e por conseqüência, a efetividade da própria jurisdição, o que autoriza, em tais casos, o deferimento da antecipação de tutela e conseqüente produção de efeitos.
De outra banda, os pressupostos necessários ao deferimento do pedido de antecipação de tutela previstos no art. 273 do CPC mantêm-se presentes, seja a verossimilhança do pedido, como adiante será melhor analisado, seja a urgência da medida, o que afasta o pedido de revogação do embargante.
Necessário frisar que em se tratando de obrigação de fazer, a execução da medida deve dar-se pelo disposto no art. 461 do CPC, cuja finalidade é a obtenção da tutela específica da obrigação, exatamente como pretendido pela embargada, e não pelo art. 730 do CPC, que cuida das hipóteses de execução por quantia certa contra devedor solvente, que não é o caso dos autos.
Vejamos:
APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. - A obrigação de entrega de medicamento segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça pode ser considerada de forma ampla como obrigação de fazer, não havendo inadequação do rito eleito pela demandante para o processamento da execução. Inteligência dos arts. 461, 461-A e 244 do Código de Processo Civil. - Trata-se de execução provisória da sentença que condenou o Estado ao fornecimento de medicamentos, não havendo notícia de que o Estado tenha disponibilizado o acesso à medicação de forma espontânea. Assim, possível o bloqueio de valores, por força do disposto no art. 461, § 5º, do Código de Processo Civil. - Ausência de exigüidade no prazo para o cumprimento da obrigação, bem como de afronta à Lei de Licitações (nº 8.666/93). NEGARAM PROVIMENTO À APELAÇÃO. (Apelação Cível Nº 70028819787, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Matilde Chabar Maia, Julgado em 09/07/2009)
Igualmente, é de ser repelida a preliminar de chamamento da União ao processo.
Entendo desnecessária tal modalidade de intervenção de terceiros, apesar da solidariedade que haja entre os entes federados em relação ao fornecimento de medicamentos.
A responsabilidade da União, Estados e Municípios é integral e conjunta, decorrendo diretamente do art. 23, II, da Magna Carta e do art. 241 da CERS/89. Assim, pode a parte autora escolher contra quem ajuizará a demanda.
Tratando-se de demanda que exige rápida solução, pois em discussão direito à vida e à saúde, pode o juiz indeferir o alargamento do pólo passivo com fulcro na regra constante do parágrafo único do art. 46 do CPC, que se apresenta como verdadeiro complemento do disposto no inciso II do art. 125, também do Código de Processo Civil.
Constam dos aludidos artigos de lei:
Art. 46. Duas ou mais pessoas podem litigar, no mesmo processo, em conjunto, ativo ou passivamente quando:
I - entre elas houver comunhão de direitos ou de obrigações relativamente à lide;
II - os direitos ou as obrigações derivarem do mesmo fundamento de fato ou de direito;
III - entre as causas houver conexão pelo objeto ou pela causa de pedir;
IV - ocorrer afinidade de questões por um ponto comum de fato ou de direito.
Parágrafo único. O juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa. O pedido de 2limitação interrompe o prazo para resposta, que recomeça da intimação da decisão.
Art. 125. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, competindo-lhe:
(...)
II - velar pela rápida solução do litígio;
Esta vem sendo a posição adotada pela Terceira Câmara Cível, que integro, como se infere dos seguintes julgados:
APELAÇÃO CÍVEL. ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. HONORÁRIOS DE ADVOGADO. CUSTAS PROCESSUAIS. Legitimidade Passiva e Responsabilidade Solidária: As ações e serviços públicos de saúde devem ser desenvolvidos de forma integrada, embora descentralizada, através de um Sistema Único (art. 198) do qual fazem parte a União, os Estados e os Municípios. Regime de responsabilidade solidária na gestão da saúde como um todo, inclusive no fornecimento de medicamentos e demais insumos dos quais depende a vida e a dignidade do administrado. Ilegitimidade que não se sustenta. Chamamento ao processo: Prevalente o interesse de uma rápida solução da lide, ante os direitos envolvidos na demanda, o que não ocorreria acaso acatado o pedido de chamamento ao processo. Hipótese legal que deve sofrer temperamentos ante as peculiaridades da causa. Direito à Saúde: Patente o dever de os entes públicos fornecerem, gratuitamente, medicamentos, insumos e demais serviços de saúde para o resguardo dos administrados, direito que tem sua matriz na Constituição Federal, tendo sido objeto de regulamentação na legislação infraconstitucional (arts. 196 e 198 da CF). Evidenciada a premente necessidade do tratamento, bem como a precariedade financeira do postulante, impõe-se o fornecimento dos insumos dos quais não pode a parte prescindir, amparando os direitos à vida, à saúde e, em última análise, a preservação da própria dignidade humana. (...) (Apelação Cível Nº 70026758789, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, Julgado em 13/11/2008) [grifei]
AGRAVO INTERNO. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. MUNICÍPIO DE CACHOEIRA DO SUL. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES PÚBLICOS. PESSOA PORTADORA DE OCLUSÃO E ESTENOSE DA ARTÉRIA CARÓTIDA (CID I65.2), CONFORME LAUDO MÉDICO TRAZIDO AOS AUTOS. Fornecimento de medicação a pessoa comprovadamente carente financeiramente é também de responsabilidade do Município, gestor local do Sistema Único de Saúde. Paciente acometida de Oclusão e Estenose da Artéria Carótida (Cid I65.2). A responsabilidade solidária dos entes públicos não obriga ao chamamento ao processo ou a denunciação à lide dos entes não demandados pela agravada. Questões orçamentárias ou financeiras que não devem embaraçar o pronto atendimento à vida e saúde, desde que não vislumbrado excesso no custo do atendimento para o ente público. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO POR MAIORIA. VENCIDO O VOGAL. (Agravo Nº 70025557679, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nelson Antônio Monteiro Pacheco, Julgado em 04/09/2008) [grifei]
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO (DIREITO À SAÚDE). AÇÃO ORDINÁRIA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. ILEGITIMIDADE PASSIVA AFASTADA. CHAMAMENTO AO PROCESSO. A promoção da saúde constitui-se em dever do Estado, em todas as suas esferas de Poder, caracterizando-se a solidariedade entre União, Estados e Municípios. Exegese dos arts. 5º, XXXV e 196, ambos da Constituição Federal. Chamamento ao processo desnecessário. Precedentes desta Corte. NEGADO PROVIMENTO À APELAÇÃO. (Apelação Cível Nº 70021303003, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rogério Gesta Leal, Julgado em 01/11/2007) [grifei]
Afasto, portanto, as preliminares, consignando que a relativa à ilegitimidade passiva confunde-se com o mérito e em conjunto com ele será analisada.
A autora foi é portadora de Neoplasia Maligna de Mama - CID C 50.4 (fl. 13), estando em tratamento quimioterápico com o medicamento Herceptin, postulando nesta demanda as 18 doses necessárias para tratamento.
Conforme prescrição médica (fl. 16), a requerente necessita fazer uso do medicamento de maneira ininterrupta, tendo a dose de ataque o custo de R$ 12.506,09 e as demais doses de manutenção custo unitário de R$ 9.426,09, consoante documento datado de 5 de dezembro de 2007 (fls. 14-15).
O Hospital da FAU - Fundação de Apoio Universitário, do Município de Pelotas, anexou à fl. 16, documento afirmando que a medicação Herceptin não possui cobertura pelo SUS, não tendo a embargada, dessa forma, como adquirir na via administrativa o medicamento.
Feitas tais considerações, cumpre afirmar que ao Poder Público cabe o dever de fornecer gratuitamente tratamento médico a pacientes necessitados, conforme estabelecem os artigos 6º e 196 da Constituição Federal.
A proteção à inviolabilidade do direito à vida - bem fundamental para o qual deve o Poder Público direcionar suas ações - deve prevalecer em relação a qualquer outro interesse estatal, já que sem ele os demais interesses socialmente reconhecidos não possuem o menor significado ou proveito.
A responsabilidade da União, Estados e Municípios é integral e conjunta, decorrendo diretamente do art. 23, II, da Magna Carta e do art. 241 da CERS/89. Assim, pode a parte autora escolher contra quem ajuizará a demanda.
Nesse sentido, precedentes do Segundo Grupo Cível, da Terceira e da Quarta Câmara Cível deste Tribunal:
EMBARGOS INFRINGENTES. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO (DIREITO À SAÚDE). AÇÃO ORDINÁRIA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. 1. A promoção da saúde constitui-se em dever do Estado, em todas as suas esferas de Poder, caracterizando-se a solidariedade entre União, Estados e Municípios, dispensando-se a prova do prévio esgotamento da via administrativa. Exegese dos arts. 5º, XXXV e 196, ambos da Constituição Federal. Precedentes desta Corte. 2. Comprovadas a enfermidade e a necessidade do medicamento, bem como a insuficiência financeira do postulante a arcar com tal despesa, sem prejuízo do próprio sustento, é de ser acolhida a pretensão. EMBARGOS INFRINGENTES ACOLHIDOS, POR MAIORIA. (Embargos Infringentes Nº 70023626625, Segundo Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rogério Gesta Leal, Julgado em 09/05/2008) [grifou-se]
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MUNICÍPIO DE SÃO LEOPOLDO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO À NECESSITADO. ART. 196 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ART. 1º DA LEI ESTADUAL Nº 9.908/93. SOLIDARIEDADE DOS ENTES FEDERATIVOS QUANTO AO DEVER DE PRESTAÇÃO DE SAÚDE AOS NECESSITADOS. A Carta Federal é expressa ao assegurar o direito à vida e o direito à saúde como garantias fundamentais, instituídas em norma de caráter imperativo, auto-aplicáveis, de acordo com a responsabilidade solidária dos entes federativos (art. 196 da CF/88). Assim, sendo normas asseguradoras de direitos que se sobrepõem a quaisquer outras, desnecessária a previsão orçamentária ou a licitação para a aquisição dos medicamentos pleiteados, sob pena de colocar-se em risco a saúde e a vida do demandante. ACOLHERAM OS EMBARGOS INFRINGENTES POR MAIORIA. (Embargos Infringentes Nº 70023626302, Segundo Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Vasco Della Giustina, Julgado em 09/05/2008) [grifou-se]
DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. FORNECIMENTO DE MEDICAÇÃO A PACIENTE PORTADORA DE DOENÇA DE 'ADDISON'. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES PÚBLICOS. SENTENÇA QUE CONDENOU O ESTADO EM SOLIDARIEDADE COM O MUNICÍPIO DE SANTIAGO QUE DEVE SER MANTIDA. 1. Responsabilidade solidária de todos os entes gestores do SUS em nível nacional, regional e municipal. Pretensão que pode ser deduzida contra qualquer deles. Fontes de custeio e questões orçamentárias e fiscais que não devem embaraçar o direito à saúde. Preliminar de ilegitimidade passiva afastada. 2. A autora, portadora de doença grave, necessita dos medicamentos para manutenção de sua vida e saúde, deve ter o tratamento custeado pelo Estado e o Município, uma vez que implementados os requisitos postos na legislação de regência. Superdireito à saúde que deve prevalecer sobre os princípios orçamentários e financeiros esgrimidos na defesa pelo ente público. Ausência de afronta aos princípios da independência e autonomia dos Poderes. APELAÇÃO IMPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70014512354, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nelson Antônio Monteiro Pacheco, Julgado em 08/06/2006) [grifei]
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO (FORNECIMENTO DE TRATAMENTO MÉDICO). AÇÃO ORDINÁRIA. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. 1. Verificando-se que a decisão hostilizada implica a realização de despesa pelo ente público, resta caracterizada a urgência prescrita no artigo 522, do CPC, inviabilizando a conversão do recurso em agravo retido. 2. A promoção da saúde constitui-se em dever do Estado, em todas as suas esferas de Poder, caracterizando-se a solidariedade entre União, Estados e Municípios, dispensando-se a prova do prévio esgotamento da via administrativa. Exegese dos arts. 5º, XXXV e 196, ambos da Constituição Federal. Precedentes desta Corte. 3. Demonstrada a necessidade do medicamento e a impossibilidade financeira do demandante para adquiri-lo, mostra-se possível a concessão da antecipação de tutela. PRELIMINAR CONTRA-RECURSAL REJEITADA. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70015349343, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rogério Gesta Leal, Julgado em 17/08/2006) [grifei]
APELAÇÃO CÍVEL - ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL - FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO - LEGITIMIDADE PASSIVA SOLIDÁRIA DE QUALQUER DOS ENTES FEDERATIVOS - DIREITO À SAÚDE GARANTIDO PELO ARTIGO 198 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - SUPREMACIA DO DIREITO À VIDA E À SAÚDE, TUTELADO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, SOBRE O DIREITO PATRIMONIAL DO ESTADO, DISPOSTO EM NORMA INFERIOR - AUSÊNCIA DE PRÉVIA DOTAÇÃO ORÇAMENTÁRIA QUE NÃO AFASTA A DETERMINAÇÃO LEGAL. Preliminar rejeitada. Apelo desprovido. (Apelação Cível Nº 70024168577, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Carlos Branco Cardoso, Julgado em 25/06/2008)
APELAÇÃO CÍVEL. CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO ORDINÁRIA C/C TUTELA ANTECIPADA. SAÚDE PÚBLICA. LESÕES INCAPACITANTE COM CONDROLISE E DESTRUIÇÃO DAS ARTICULAÇÕES. NECESSIDADE DE CIRURGIA. AUSÊNCIA DE URGÊNCIA. NECESSIDADE DE RIGOR E CUIDADO ABSOLUTOS NO GASTO DE DINHEIRO PÚBLICO. DEMANDA SOCIAL MAIOR QUE RECURSOS PÚBLICOS DISPONÍVEIS. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. IMPROVIMENTO EM GRAU RECURSAL. 1. Legitimidade Passiva ad Causam do Estado. A União, Estado e Município são solidariamente responsáveis pela prestação do direito à vida, que é obrigação do Estado, em abstrato, desimportando qual a esfera de poder estatal que a realiza. Desacolhimento. 2. Nas ações de fornecimento de medicamento, ante a necessidade de se congregar o princípio de resguardo à saúde com o princípio da reserva do possível (necessidade de previsão orçamentária do ente público), devem os demandantes comprovar a necessidade do medicamento como única solução para tratamento da moléstia acometida, bem como, nos casos de não manifesta urgência, da negativa do Estado em fornecer o remédio pleiteado, seja porque em falta no estoque de medicamentos, seja por não constar da lista oficial do Ministério da Saúde. 3. Destarte, não tendo o autor comprovado a urgência e a imprescindibilidade da realização da cirurgia, tenho que não prospera a pretensão de obtenção judicial do procedimento cirúrgico requerido. PRELIMINAR REJEITADA. APELAÇÃO NÃO PROVIDA. (Apelação Cível Nº 70019162619, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Wellington Pacheco Barros, Julgado em 14/11/2007) [grifou-se]
Na mesma senda, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO - AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO - FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS - RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERATIVOS - LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO.
1. Esta Corte em reiterados precedentes tem reconhecido a responsabilidade solidária dos entes federativos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios no que concerne à garantia do direito à saúde e à obrigação de fornecer medicamentos a pacientes portadores de doenças consideradas graves.
2. Agravo regimental não provido.
(AgRg no Ag 961.677/SC, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 20.05.2008, DJ 11.06.2008 p. 1) [grifou-se]
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ART. 105, III, "B". EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004. HONORÁRIOS DE ADVOGADO DEVIDOS PELO ESTADO À DEFENSORIA PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE. CONFUSÃO. ART. 1.049 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE - SUS. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERATIVOS.
1. Com o advento da Emenda Constitucional n. 45/2004, a hipótese de cabimento prevista na alínea "b" do permissivo constitucional passou a ser limitada à afronta de lei federal por ato de governo local, transferindo-se ao Supremo Tribunal Federal a competência para apreciar causas que tratam de afronta de lei local em face de lei federal.
2. O Estado não paga honorários advocatícios nas demandas em que a parte contrária for representada pela Defensoria Pública.
Precedentes.
3. Extingue-se a obrigação quando configurado o instituto da confusão (art. 318 do Código Civil atual).
4. Sendo o Sistema Único de Saúde (SUS) composto pela União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios, impõe-se o reconhecimento da responsabilidade solidária dos aludidos entes federativos, de modo que qualquer um deles tem legitimidade para figurar no pólo passivo das demandas que objetivam assegurar o acesso à medicação para pessoas desprovidas de recursos financeiros.
5. Recurso especial parcialmente provido.
(REsp 674.803/RJ, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA TURMA, julgado em 15.02.2007, DJ 06.03.2007 p. 251) [grifou-se]
Desse modo, não há como se restringir a responsabilidade do Município pelo fornecimento da medicação pleiteada, tal como já aduzido pelo voto condutor da decisão embargada (fls. 151-152v).
Não se pode olvidar que a enferma é idosa (fl. 8), demandando, por isso, especial atenção. Prova desta preocupação com as pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos é a Lei 10.741, de 01OUT03 (Estatuto do Idoso), que, em seu art. 15, § 2º, assim dispõe verbis:
Art. 15, § 2º. Incumbe ao Poder Público fornecer aos idosos, gratuitamente, medicamentos, especialmente os de uso continuado, assim como próteses, órteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação.
Ademais, mesmo que o medicamento Herceptin não esteja nas listas de medicamentos essenciais ou de atenção básica, elaboradas pelo Ministério da Saúde, a responsabilidade solidária impõe sejam envidados esforços para a completa prestação pretendida pela parte embargada, mesmo que para isso tenham o ente público que arcar com os custos que a demanda exige.
A previsão em lista prévia não pode impedir o fornecimento da medicação pleiteada, pois até prova em contrário, o medicamento receitado pelo médico da paciente é o que melhor atende às suas necessidades.
Nesse sentido:
RECURSO ESPECIAL. SUS. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. PACIENTE PORTADOR DO VÍRUS HIV. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. DEVER DO ESTADO.
1. Ação ordinária objetivando a condenação do Estado do Rio Grande do Sul e do Município de Porto Alegre ao fornecimento gratuito de medicamento não registrado no Brasil, mas que consta de receituário médico, necessário ao tratamento de paciente portador do vírus HIV.
2. O Sistema Único de Saúde - SUS visa a integralidade da assistência à saúde, seja individual ou coletiva, devendo atender aos que dela necessitem em qualquer grau de complexidade, de modo que, restando comprovado o acometimento do indivíduo ou de um grupo por determinada moléstia, necessitando de determinado medicamento para debelá-la, este deve ser fornecido, de modo a atender ao princípio maior, que é a garantia à vida digna.
3. Configurada a necessidade do recorrente de ver atendida a sua pretensão, posto legítima e constitucionalmente garantida, uma vez assegurado o direito à saúde e, em última instância, à vida. A saúde, como de sabença, é direito de todos e dever do Estado.
4. Precedentes desta Corte, entre eles, mutatis mutandis, o Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada nº 83/MG, Relator Ministro EDSON VIDIGAL, Corte Especial, DJ de 06.12.2004: "1. Consoante expressa determinação constitucional, é dever do Estado garantir, mediante a implantação de políticas sociais e econômicas, o acesso universal e igualitário à saúde, bem como os serviços e medidas necessários à sua promoção, proteção e recuperação (CF/88, art. 196). 2. O não preenchimento de mera formalidade - no caso, inclusão de medicamento em lista prévia - não pode, por si só, obstaculizar o fornecimento gratuito de medicação a portador de moléstia gravíssima, se comprovada a respectiva necessidade e receitada, aquela, por médico para tanto capacitado. Precedentes desta Corte. 3.Concedida tutela antecipada no sentido de, considerando a gravidade da doença enfocada, impor, ao Estado, apenas o cumprimento de obrigação que a própria Constituição Federal lhe reserva, não se evidencia plausível a alegação de que o cumprimento da decisão poderia inviabilizar a execução dos serviços públicos." 5. [...] (RE 271286 AgR/RS, Relator Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, DJ de 24.11.2000) 6. Recursos especiais desprovidos.
(REsp 684.646/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05.05.2005, DJ 30.05.2005 p. 247) [grifou-se]
Refiro também o seguinte precedente do Supremo Tribunal Federal, assentando o dever do Estado, de forma ampla, ao fornecimento de medicamentos a pacientes necessitados, bem como da tarefa inarredável do Poder Público em efetivar políticas públicas tendentes a garantir o acesso igualitário dos cidadãos às ações e serviços na área da saúde. Vejamos:
PACIENTES COM ESQUIZOFRENIA PARANÓIDE E DOENÇA MANÍACO-DEPRESSIVA CRÔNICA, COM EPISÓDIOS DE TENTATIVA DE SUICÍDIO - PESSOAS DESTITUÍDAS DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE - NECESSIDADE IMPERIOSA DE SE PRESERVAR, POR RAZÕES DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO, A INTEGRIDADE DESSE DIREITO ESSENCIAL - FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS INDISPENSÁVEIS EM FAVOR DE PESSOAS CARENTES - DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO (CF, ARTS. 5º, "CAPUT", E 196) - PRECEDENTES (STF) - ABUSO DO DIREITO DE RECORRER - IMPOSIÇÃO DE MULTA - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA, A PESSOAS CARENTES, DE MEDICAMENTOS ESSENCIAIS À PRESERVAÇÃO DE SUA VIDA E/OU DE SUA SAÚDE: UM DEVER CONSTITUCIONAL QUE O ESTADO NÃO PODE DEIXAR DE CUMPRIR. - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, "caput", e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF. MULTA E EXERCÍCIO ABUSIVO DO DIREITO DE RECORRER. - O abuso do direito de recorrer - por qualificar-se como prática incompatível com o postulado ético-jurídico da lealdade processual - constitui ato de litigância maliciosa repelido pelo ordenamento positivo, especialmente nos casos em que a parte interpõe recurso com intuito evidentemente protelatório, hipótese em que se legitima a imposição de multa. A multa a que se refere o art. 557, § 2º, do CPC possui função inibitória, pois visa a impedir o exercício abusivo do direito de recorrer e a obstar a indevida utilização do processo como instrumento de retardamento da solução jurisdicional do conflito de interesses. Precedentes. [RE-AgR 393175 / RS - RIO GRANDE DO SUL AG.REG.NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a): Min. CELSO DE MELLO Julgamento: 12/12/2006 Órgão Julgador: Segunda Turma Publicação DJ 02-02-2007]
Para os pacientes portadores de neoplasia maligna, o Estado disponibiliza não só os medicamentos, mas todo o tratamento necessário através de órgãos específicos, os Centros de Alta Complexidade em Oncologia - CACONs. Essa a determinação encontra-se contida na Portaria nº 3.535/98 do Ministério da Saúde, que estabelece critérios para cadastramento de centros de atendimento em oncologia.
Assim, os pacientes que necessitam de medicamentos para oncologia devem ser orientados e encaminhados aos CACON's, para que recebam tratamento especializado.
Diante de tais fatos, venho posicionando-me pelo afastamento das condenações do Estado, em demandas judiciais, ao fornecimento de medicamentos para o tratamento de neoplasias, já que disponibiliza todo o tratamento necessário através dos CACONs.
Todavia, em consulta realizada junto ao site do Instituto Nacional do Câncer - INCA (4) -, verifiquei que há dois Centros de Alta Complexidade em Oncologia localizados no Município de Pelotas (5) , os quais não fornecem a medicação necessária à continuidade do tratamento pelo SUS, como comprova o documento de fl. 16.
A informação é corroborada pelo Memorando nº 113/2008 acostado pelo próprio Município (fl. 35), segundo o qual o medicamento Herceptin não é fornecido pelo SUS, uma vez que não consta do protocolo do INCA e não faz parte das listas elaboradas pela Secretaria da Saúde e pela Portaria nº 2.475/2006 do Ministério da Saúde.
Diante desse contexto, tenho deva prosperar o pedido, mormente considerando o fato de que a embargada já obteve onze doses do medicamento postulado mediante antecipação de tutela e determinação judicial de bloqueio de valores nas contas do ente público (fls. 22-v e 38-v), bem como a liberação do numerário mediante liberação de alvarás (fls. 47, 73, 84, 97, 124, 138, 162, 174, 217, 252 e 272-v).
Nesse sentido:
APELAÇÃO CÍVEL. ILEGITIMIDADE PASSIVA DO ESTADO. NEOPLASIA MALIGNA. HERCEPTIN. ATRIBUIÇÃO DE CACON. A União, os Estados e os Municípios são solidariamente responsáveis pela prestação dos serviços de saúde, responsabilidade derivada do artigo 196 da Constituição Federal e do art. 1º da Lei Estadual n.º 9.908. Reconhecimento da legitimidade passiva do Estado. Patente o dever de os entes públicos fornecerem, gratuitamente, medicamentos, insumos e demais serviços de saúde para o resguardo dos administrados, direito que tem sua matriz na Constituição Federal, tendo sido objeto de regulamentação na legislação infraconstitucional (arts. 196 e 198 da CF). Evidenciada a premente necessidade do tratamento, bem como a precariedade financeira do postulante, impõe-se o fornecimento dos medicamentos dos quais não pode a parte prescindir, amparando os direitos à vida, à saúde e, em última análise, a preservação da própria dignidade humana. Precedentes do STJ e desta Câmara. SENTENÇA MODIFICADA. APELAÇÃO PROVIDA. (Apelação Cível Nº 70025582487, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, Julgado em 27/11/2008)
Quanto à alegação de afronta ao princípio da reserva do possível, não assiste razão ao Município.
Não há nos autos prova de que haja o comprometimento da verba destinada à saúde impedindo que o Município cumpra a determinação judicial, o que seria mister, já que a alegação é de inexiste dotação orçamentária suficiente para tanto.
De outro lado, resta inequívoca com a prova produzida nos autos a necessidade de a embargada ter acesso à medicação postulada, de modo que dentro de uma perspectiva de razoabilidade ostenta-se jurídica a determinação para que o ente público lhe alcance o fármaco, a fim de dar continuidade ao tratamento.
Nesse sentido, transcrevo o parecer do Ministério Público nos autos da apelação cível nº 70023568587, exarado pelo ilustre Procurador de Justiça, Dr. Eduardo Roth Dalcin, in verbis:
4. Da reserva do possível
A reserva do financeiramente possível invocada pelo apelante somente pode servir de condicionante à efetividade dos direitos sociais (6) desde que devidamente demonstrado nos autos o seu poder (ou falta) de disposição econômica e após efetuada uma análise casuística da pretensão judicializada acerca da razoabilidade do pedido deduzido pela autora frente à sociedade.
Quanto à primeira parte, bastaria ao recorrente trazer aos autos certidão expedida pelos Secretários da Saúde e da Fazenda demonstrando o valor anual da dotação orçamentária destinada à saúde pública, discriminando todas as suas rubricas, acompanhadas dos valores anuais gastos pelo Poder Executivo para atender as ordens judiciais relativas à prestação de medicamentos, internações hospitalares, tratamentos e atendimentos médicos e cirúrgicos.
Em relação à segunda afirmação, basta a análise da situação fática que sustenta a causa de pedir e o exame da prova judicializada.
Vale dizer que, mesmo existindo disponibilidade econômica por parte do Poder Público, tanto é possível a negativa do pedido quando desarrazoada a pretensão, como, ainda, se não existir disposição formulada pelo cidadão, especialmente porque poderá haver ofensa ao núcleo essencial da dignidade da pessoa humana, é viável o atendimento da prestação reclamada (7) .
No caso concreto, o recorrente não trouxe aos autos prova de ausência dessa disponibilidade financeira para atender o pedido e, mesmo que tivesse trazido, a hipótese encontraria fundamento na segunda fundamentação - a pretensão deduzida é razoável porque a requerente busca preservar a dignidade humana que é conseqüência da própria existência do homem.
Não procede, modo igual, o argumento trazido pelo embargante no sentido de que a determinação pelo Poder Judiciário para que o Ente Federativo forneça os medicamentos infringe o princípio da independência entre os Poderes, posto que a autoridade judiciária tem o poder-dever de reparar uma lesão a direito - artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal.
Ainda, a tese de que a Lei n° 8.666/93 obriga a Administração Pública a realizar processo de licitação para adquirir ou contratar qualquer serviço não merece acolhida, pois a Lei Federal n° 8.666/93 autoriza a dispensa da licitação "nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares..." (art. 24, inc. IV).
Por último, rejeito a preliminar de não conhecimento dos Embargos Infringentes no tocante à fixação da verba honorária, levantada pelo Ministério Público, considerando entendimento do e. STJ, Resp nº 904.840-RS, Rel. Min. Humberto Martins, j. 19ABR2007, entendendo pelo cabimento dos Embargos Infringentes tanto quanto à questão principal, quanto à secundária (divergência relativa à honorários advocatícios, juros, correção monetária), bem assim, precedente atinente ao tema deste e. Colegiado, Embargos Infringentes nº 70008456733, Rel. e. Des. Araken de Assis, julgado em 25JUL2007.
Todavia, quanto ao pedido de minoração da verba honorária fixada em R$ 400,00 (fl. 154), não merece acolhimento o recurso.
Em se tratando de demanda contra a Fazenda Pública exige-se adequação razoável a fim de não onerar demasiadamente o erário. No entanto, levando-se em consideração o valor da causa - R$ 172.749,62 -, bem como a ausência de audiências e de prova pericial, tenho que o arbitramento dos honorários advocatícios efetuado pelo juízo apresenta-se de acordo com os parâmetros dos §§ 3º e 4º do art. 20 do Código de Processo Civil, não devendo ser minorados.
Ante o exposto, afasto as preliminares e desacolho os embargos infringentes.
Des. Rogério Gesta Leal (REVISOR) - De acordo com o(a) Relator(a).
Desa. Agathe Elsa Schmidt da Silva
Acompanho a eminente Relatora, mantendo a posição por mim sustentada quando do julgamento do recurso de apelação.
Des. Alexandre Mussoi Moreira
Divirjo da eminente Relatora, para acolher os embargos infringentes, pois mantenho o posicionamento adotado no julgamento da apelação.
Des. Ricardo Moreira Lins Pastl
Ratificando o voto proferido quando do julgamento na Câmara Separada, acompanho a eminente Relatora, para também afastar as preliminares e desacolher os embargos infringentes.
Des. João Carlos Branco Cardoso (PRESIDENTE)
Acompanho a eminente Relatora, rogando vênia para não conhecer dos embargos relativamente à verba honorária. Venho decidindo no sentido do cabimento do manejo dos embargos infringentes, referentemente a dissenso no julgamento de capítulo acessório do julgado. Entretanto, no caso concreto, como vem destacado no parecer ministerial não houve divergência no julgado quanto à verba honorária.
Voto, pois, por conhecer em parte o recurso e, na parte conhecida desacolhê-los nos termos do voto da Relatora.
Des. Nelson Antonio Monteiro Pacheco - De acordo com o(a) Relator(a).
Des. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino - De acordo com o(a) Relator(a).
DES. JOÃO CARLOS BRANCO CARDOSO - Presidente - Embargos Infringentes nº 70031420664, Comarca de Pelotas: "AFASTARAM AS PRELIMINARES E DESACOLHERAM OS EMBARGOS INFRINGENTES, POR MAIORIA, VENCIDO O DES. ALEXANDRE."
LHF
Julgador(a) de 1º Grau: GERALDO ANASTACIO BRANDEBURSKI JUNIOR
--------------------------------------------------------------------------------
1 - "PARA SUSPENDER, C/EFICÁCIA EX NUNC E COM EFEITO VINCULANTE, ATÉ FINAL JULGAMENTO DA AÇÃO, A PROLAÇÃO DE QUALQUER DECISÃO SOBRE PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA, CONTRA A FAZENDA PÚBLICA, QUE TENHA POR PRESSUPOSTO A CONSTITUIÇÃO OU A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1º DA LEI Nº 9.494, DE 10/9/97, SUSTANDO, AINDA, COM A MESMA EFICÁCIA, OS EFEITOS FUTUROS DESSAS DECISÕES ANTECIPATÓRIAS DE TUTELA JÁ PROFERIDAS CONTRA A FAZENDA PÚBLICA". [Voltar]
2 - Art. 1º Aplica-se à tutela antecipada prevista nos arts. 273 e 461 do Código de Processo Civil o disposto nos arts. 5º e seu parágrafo único e 7º da Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964, no art. 1º e seu § 4º da Lei nº 5.021, de 9 de junho de 1966, e nos arts. 1º, 3º e 4º da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992. [Voltar]
3 - Art. 1° Não será cabível medida liminar contra atos do Poder Público, no procedimento cautelar ou em quaisquer outras ações de natureza cautelar ou preventiva, toda vez que providência semelhante não puder ser concedida em ações de mandado de segurança, em virtude de vedação legal. [Voltar]
4 - www.inca.gov.br. [Voltar]
5 - Hospital Escola da Universidade Federal de Pelotas/Fundação de Apoio Universitário e Hospital da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas. [Voltar]
6 - Ver GILMAR FERREIRA MENDES, INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO e PAULO GUSTAVO GONET BRANCO, in Hermenêutica Constitucional e Direitos fundamentais, pp. 203/205, Brasília Jurídica, 2000; J. J. GOMES CANOTILHO, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2ª ed., pp. 438/440, Almedina, Coimbra, Portugal, 1998. [Voltar]
7 - Ver INGO SARLET, in A eficácia dos Direitos fundamentais, pp. 259/261, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1998. [Voltar]
JURID - Apelação cível. Fornecimento de medicação. [27/05/10] - Jurisprudência
Nenhum comentário:
Postar um comentário