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quinta-feira, 20 de maio de 2010

JURID - Direito processual penal. Apelação criminal. Descaminho. [20/05/10] - Jurisprudência


Direito processual penal. Apelação criminal. Descaminho. Não configurada hipótese de absolvição sumária.

Tribunal Regional Federal - TRF2ªR

APELACAO CRIMINAL 2009.50.01.002151-5

RELATOR: DESEMBARGADOR FEDERAL ANDRÉ FONTES

APELANTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL

APELADO: SHIRO FRANCISCO ANDO

ADVOGADO: JOSMAR DE SOUZA PAGOTTO E OUTROS

ORIGEM: 1ª VARA FEDERAL CRIMINAL DE VITÓRIA/ES (200950010021515)

EMENTA

DIREITO PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. DESCAMINHO. NÃO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA.

I - O dolo eventual constitui elemento subjetivo apto à configuração do tipo penal descrito no art. 334 do Código Penal.

II - A absolvição precoce, sem a regular instrução probatória, constitui cerceamento da atividade acusatória, além de equivaler ao julgamento antecipado da lide, descabido no âmbito do processo penal.

III- Apelação provida.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados os presentes autos, em que são partes as acima indicadas, acordam os Membros da 2ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, à unanimidade, dar provimento ao recurso nos termos do voto do Relator, que fica fazendo parte integrante deste julgado. Votaram ainda os Desembargadores Messod Azulay Neto e Liliane Roriz. O Procurador Regional da República, Rogério Nascimento, presentou o Ministério Público no parecer e na sessão de julgamento.

Rio de Janeiro, 11 de maio 2010. (data do julgamento)

ANDRÉ FONTES
Relator
Desembargador do TRF - 2ª Região

RELATÓRIO

Em 19.02.2009 foi oferecida denúncia contra SHIRO FRANCISCO ANDO, na qual foi imputada a conduta tipificada no art. 334, § 1º, "c" e'd', Código Penal, sob a alegação de que o réu, proprietário de estabelecimento localizado em Vila Velha-ES, era responsável por 21 (vinte e uma) máquinas "caça-níquel", mercadorias de procedência estrangeira de introdução clandestina no território nacional, que eram utilizadas em proveito próprio, no exercício de atividade comercial, desacompanhada de documentação legal.

Folha de Antecedentes Criminais da ré à fl. 13.

Denúncia recebida em 24.03.2009, conforme decisão de fls.07-08.

Presentes os pressupostos autorizadores a audiência de suspensão condicional do processo foi, então, designada para o dia 29.09.2009, conforme certidão de fl. 14.

O MM. Juiz da 1ª Vara Federal da Seção Judiciária do Espírito Santo, Dr. Daniel de Carvalho Guimarães, em sentença de fls. 31-33, houve por bem julgar improcedente o pedido contido na denúncia, para absolver o réu SHIRO FRANCISCO ANDO da imputação relativa ao crime previsto no art. 334, § 1º, "c e "d", do Estatuto Repressivo, com fundamento no art. 386, III, do Código de Processo Penal.

Entendeu o magistrado sentenciante que a conduta é atípica, nos seguintes termos:

"A denúncia imputa ao acusado a prática de condutas cujo dolo exige a ciência de que a mercadoria é estrangeira e de que a sua importação é proibida por norma infralegal, tendo siso proveniente, portanto, de importação fraudulenta ou introdução clandestina em território nacional.

Sequer o Auto de Infração e Termo de Apreensão e Guarda Fiscal é conclusivo acerca da origem das máquinas, tendo consignado na discriminação das mercadorias 'País de Origem/País de Procedência - A designar'.

Na verdade, a certeza da fiscalização aduaneira quanto à procedência das máquinas ou se deus componentes eletrônicos restou demonstrada em elaborado Relatório fiscal, que discorre em minúcias acerca da proibição da exploração de jogos de azar e da importação das máquinas ou peças correspondentes.

Pelo teor de tal relatório, nota-se que, na verdade, a vedação se dirige à importação dos componentes ('chip' eletrônico e/ou acessórios respectivos) essenciais ao funcionamento das máquinas eletrônicas programadas. Vale frisar: a proibição da importação das máquinas só faz sentido porque as mesmas estão equipadas com um 'chip' (ou peça similar) apto a propiciar o desenvolvimento da atividade ilícita, qual seja, a exploração de jogos de azar.

Cuida-se de ciência obviamente inalcançável pelo homem médio, a despeito da opinião externada em relatórios de fiscalização, segundo os quais há 'notório conhecimento de que o Brasil não produz placas-mãe ou os componentes eletrônicos essenciais para o funcionamento de tais máquinas'. A rigor, este magistrado revela sua particular ignorância a esse propósito, jamais tendo sabido de fato assim tão notório.

E, se a procedência daqueles componentes é insuscetível de percepção pelos Auditores Fiscais da Receita Federal, servidores de experiência recorrente na fiscalização de atividades relacionadas ao comércio exterior, com muito mais razão haverá de ser para o réu.

Na esfera penal, é inviável supor que o acusado detivesse esse conhecimento.

Esclareço: não se questiona a ciência do agente sobre a proibição concernente a jogos de azar, de fato notória e, possivelmente, objeto de processo por contravenção penal perante a Justiça Estadual. O que está em pauta é a ciência acerca da origem estrangeira dos objetos apreendidos, eis que se trata de elemento constitutivo do tipo penal imputado no presente feito (CP, art. 334, § 1º, 'c' e 'd').

Para a efetiva caracterização da conduta típica, seria necessária a demonstração de que o réu, dono do bar onde as máquinas foram encontradas, soubesse da procedência estrangeira das mercadorias e da proibição de sua importação, e mesmo assim as recebesse, mantivesse em depósito ou utilizasse, tal como descrito na denúncia.

Portanto, configurado está o erro de tipo. Se o agente desconhece que a mercadoria é estrangeira, não se pode cogitar da prática dolosa de qualquer das condutas denunciadas, ainda que demonstrada a falta de documentação legal que acompanhasse as máquinas. Isso porque o dolo é abrangente e requer a ciência plena dos elementos descritos na figura típica.

Considerando que o erro de tipo exclui o dolo e que as condutas criminosas imputadas não podem ser praticadas a título culposo, concluo pela atipicidade a conduta de (sic) RÉU, impondo-se sua absolvição, nos termos do art. 386, III, do Código de Processo Penal.

(...)"

O MINISTÉRIO PÚBLICO interpôs apelação às fls. 35-39, em cujas razões requer a reforma da sentença, a fim de que, ao final, a ré seja condenada às penas do art. 334, § 1º, 'c' e 'd', do Código Penal. Para tanto, alega que: (i) o pronunciamento do magistrado sentenciante no sentido da ausência de dolo deu-se em momento processual prematuro, tendo em vista que somente após a devida instrução, e, portanto, a partir de uma suficiente colheita de provas, é que se faz possível a sua rigorosa aferição, de modo que o entendimento constante na decisão recorrida não levou em conta parâmetros ainda pendentes de elucidação; (ii) a internalização da mercadoria, sem a apresentação de qualquer documento aduaneiro, e, consequentemente, sem o pagamento dos tributos incidentes na importação, por si só já é suficiente a caracterizar o dolo; (iii) o exame dos autos evidencia que o apelado teve a intenção de adquirir máquinas "caça-níquel" com o objetivo de explorar o negócio do jogo ilegal, e, naquela ocasião, assumiu o risco consciente de possuir mercadoria estrangeira desacompanhada de documentação; (iv) se por um lado não resta configurado o dolo direto do apelado na conduta de descaminho, os elementos probatórios indicam a presença do dolo sob a modalidade eventual, que, sem qualquer dúvida, preenche o elemento subjetivo do tipo, pois, o que se percebe é o interesse ativo de adquirir certas máquinas, sem atenção específica quanto à origem de suas peças internas, mas com o grande risco de adquirir mercadoria estrangeira sem documentação legal.

O réu apresentou contrarrazões às fls. 44-58.

Às fls. 66-75, o Procurador Regional da República, Dr. Rogério Soares do Nascimento, opinou pelo provimento do recurso, para que o feito prossiga com a regular instrução probatória.

É o relatório.

À revisão, nos termos regimentais.

Em 29-03-2010

ANDRÉ FONTES
Relator

Desembargador do TRF - 2ª Região

VOTO

I - O dolo eventual constitui elemento subjetivo apto à configuração do tipo penal descrito no art. 334 do Código Penal.

II - A absolvição precoce, sem a regular instrução probatória, constitui cerceamento da atividade acusatória, além de equivaler ao julgamento antecipado da lide, descabido no âmbito do processo penal.

Insurge-se o MINISTÉRIO PÚBLICO contra sentença proferida pelo Juízo da 1ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Espírito Santo, que julgou improcedente o pedido contido na denúncia, para absolver a ré da imputação relativa ao crime previsto no art. 334, § 1º,"c" e'd', do Código Penal.

A sentença merece reforma.

Inicialmente, cumpre consignar que é sabido e consabido que a exploração de máquinas "caça-níquel" é vedada pelo ordenamento jurídico brasileiro, porquanto configura prática de jogo de azar, passível de enquadramento nos seguintes tipos: (i) contravenção penal prevista no art. 50 da do Decreto-Lei nº 3.688-41; (ii) contravenção penal do art. 45 do Decreto-Lei n.º 6.259-44; ou (iii) crime contra a economia popular capitulado no art. 2º, IX, da Lei n.º 1.521-51.

Sobre a ilicitude da referida prática, é remansosa a jurisprudência de nossos Tribunais, como bem ilustra o aresto da Corte Superior abaixo transcrito, verbis:

"PENAL. RECURSO ESPECIAL. APREENSÃO DE MÁQUINAS "CAÇA-NÍQUEIS". MANDADO DE SEGURANÇA. CONCESSÃO. REEXAME NECESSÁRIO. CONFIRMAÇÃO. ART. 50 DA LCP. VIGÊNCIA. COSTUME. REVOGAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE NO DIREITO PENAL. PRINCÍPIOS DA ISONOMIA E DA LIBERDADE. NÃO-FUNDAMENTAÇÃO PARA CONDUTAS ILÍCITAS. RECURSOS PROVIDOS.

1. O ordenamento jurídico penal brasileiro não permite revogação de lei pelo costume.

2. "Evidencia-se o risco de grave lesão à ordem social e à ordem jurídica conquanto a exploração de jogo de azar mediante máquinas de "caça-níqueis", definida no art. 50 da Lei de Contravenções Penais já foi reconhecida como atividade ilícita por inúmeras decisões desta Corte, dentre as quais destaca-se o REsp 474.365/SP, Quinta Turma, Rel. Min. GILSON DIPP, DJ 5/8/03; ROMS 15.593/MG, Primeira Turma, DJ 2/6/03 e ROMS 13.965/MG, Primeira Turma, DJ 9/9/02, ambos da relatoria do Min. JOSÉ DELGADO". (AgRg no AgRg na STA 69/ES, Rel. Min. EDSON VIDIGAL, Corte Especial, DJ 6/12/04)

3. Os direitos fundamentais da isonomia e da liberdade consagrados na Constituição Federal não podem servir de esteio às condutas ilícitas, não importando a condição social do agente infrator.

4. Recursos providos para reformar o acórdão e cassar a segurança

anteriormente concedida.

(REsp nº 745954 - RS, Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, 5ª Turma, DJe 14.09.2009)"

A razão da proibição de tal prática, em apertada síntese, reside no fato de que as ditas máquinas contêm componentes eletrônicos, os quais, uma vez manipulados, podem alterar a forma aleatória dos resultados do "jogo", garantindo, assim, a obtenção de vantagem ilícita pelo explorador em detrimento dos usuários. Trata-se de componentes que não são fabricados no Brasil, o que faz presumir a sua procedência estrangeira, daí porque a imputação relativa ao crime previsto no art. 334 do Código Penal.

Não se pode negar que tais minúcias não são de conhecimento do homem médio, como bem destacou o MM. Juiz a quo na sentença de fls. 31-33. Entretanto, é de conhecimento de boa parte da população brasileira a proibição que recai sobre a exploração de máquinas caça-níquel, conforme demonstrado acima, vedação essa amplamente divulgada na imprensa nacional e motivo de várias operações das Polícias Civil e Federal.

A partir disso, é correto afirmar que o comerciante que mantém em seu estabelecimento maquinaria dessa natureza, sem qualquer documentação fiscal, se não age com o intuito deliberado de explorar tal jogo, no mínimo assume o risco praticar a conduta ilícita. É o que acontece com o apelado, que, se não agiu com dolo direto, ao manter as máquinas "caça-níquel" em funcionamento nas dependências de seu estabelecimento comercial, agiu, sem sombra de dúvida, com dolo eventual, elemento subjetivo apto e suficiente à configuração do tipo penal descrito no art. 334 do Código Penal.

Sobre a admissão do dolo eventual para efeito de configuração do crime de descaminho, assim decidiu o Tribunal Regional Federal da 5ª Região, como se infere do julgado abaixo transcrito, verbis:

"PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME DE DESCAMINHO. MÁQUINAS "CAÇA-NÍQUEIS". MANDADO DE BUSCA E APREENSÃO. ERRO MATERIAL. LEGALIDADE. PRESENÇA DE DOLO EVENTUAL. I. Apelação do réu contra sentença que o condenou pela prática do crime de descaminho, previsto no art. 334, PARÁGRAFO1º, c e d do Código Penal. Caso em que o réu, dono de casa lotérica, adquiriu 09 (nove) máquinas "caça-níqueis" cujos componentes internos têm fabricação estrangeira, sem que haja documentação legal sobre a regularidade de sua internalização em território nacional. II. O erro material no mandado de busca e apreensão das máquinas, que mencionou Oficial de Justiça e não a Polícia Federal, é irrelevante e não retira a legalidade da execução. Além disso, a medida foi determinada em sede de Ação Civil Pública, sendo o inquérito criminal uma decorrência não vinculada ao referido processo. III. Ocorre dolo eventual na prática do crime de descaminho quando o agente adquire mercadoria de intermediário sem o interesse imediato de burlar o Fisco ou as regras alfandegárias, mas assume o risco consciente de produzir a conduta ilícita e admite suas conseqüências. Precedente do TRF/4ª Região: ACR nº 96040199838/RS, Segunda Turma, Rel. Jardim de Camargo, DJ 18/08/1999, p. 612. IV. O crime de descaminho resta configurado com o dolo genérico, não sendo exigível o dolo específico de iludir o Fisco. Precedente do TRF/5ª Região: ACR nº 2672/CE, Terceira Turma, Rel. Élio Wanderley de Siqueira Filho (convocado), DJ 10/09/2004, p. 798. V. Apelação improvida.

(ACR nº 4626, autos nº 200481000161951, Relatora Desembargadora Federal Margarida Cantarelli, 4ª Turma, DJ 13.10.2006, p. 1105)

Por outro lado, a prematura absolvição do réu, sem a devida instrução criminal, oportunidade em que o Ministério Público poderia fazer prova do elemento subjetivo do tipo, constitui verdadeiro cerceamento da atividade acusatória, além de afrontar o princípio do devido processo legal. E mais: a prolação precoce de sentença de improcedência, não sendo o caso de absolvição sumária e sem a observância da instrução criminal, equivale ao julgamento antecipado da lide, absolutamente incabível no âmbito do processo penal e que, especialmente no caso dos autos, não se deve admitir, por ofensa ao princípio in dubio pro societate.

Cumpre assinalar, ainda, que, uma vez não afastadas, de plano, a materialidade e autorias delitivas, como in casu, o pronunciamento sobre o mérito da causa deve se dar após a regular instrução probatória, realizada sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, pois é a partir dela que o julgador passa a dispor de elementos concretos e suficientes à formação de sua convicção, tudo isso na busca da verdade real, razão de ser do processo penal.

Em caso análogo, assim decidiu também o Tribunal Regional Federal da 5ª Região; veja-se:

"PENAL. PROCESSUAL PENAL. ESTELIONATO. ABSOLVIÇÃO PROFERIDA NO ATO DE INTERROGATÓRIO. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. IMPOSSIBILIDADE. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, DO CONTRADITÓRIO, DA AMPLA DEFESA E DA BUSCA DA VERDADE REAL. SENTENÇA QUE MERECE REFORMA. RECURSO PROVIDO. - Não pode o juízo de primeiro grau, sob o pálio de haver constatado, no ato de interrogatório, ausência de dolo na conduta do apelado, julgar antecipadamente a lide e proferir sentença absolutória. - Tal absolvição, além de prematura, confronta os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Ademais, inviável o julgamento antecipado da lide em processo penal, onde se busca a verdade material, e não a formal, como no processo civil. - Sentença absolutória que merece reforma. - Remessa dos autos ao juízo de origem para que sigam o trâmite processual de onde foi interrompido. - Apelo do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL provido.

(TRF 5ª Região, ACR nº 2829, autos nº 200185000038358, Relator Desembargador Federal Cesar Carvalho, 1ª Turma, DJ 07.04.2006, p.1132)"

Do exposto, dou provimento ao recurso, para reformar a sentença absolutória, determinando-se retorno dos autos à vara de origem, para regular prosseguimento do feito, observada a instrução probatória.

É o voto.

Em 11-05 - 2010.

ANDRÉ FONTES
Relator
Desembargador do TRF 2ª Região




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