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segunda-feira, 1 de março de 2010

JURID - Violência doméstica. Lesão corporal simples ou culposa [01/03/10] - Jurisprudência


Habeas corpus. Violência doméstica. Lesão corporal simples ou culposa praticada contra mulher no âmbito doméstico.

Superior Tribunal de Justiça -STJ

HABEAS CORPUS Nº 96.992 - DF (2007/0301158-9)

RELATORA: MINISTRA JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG)

IMPETRANTE: JOSE ALFREDO GAZE DE FRANÇA (ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA)

IMPETRADO: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS

PACIENTE: JOSÉ FRANCISCO DA SILVA NETO

EMENTA

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LESÃO CORPORAL SIMPLES OU CULPOSA PRATICADA CONTRA MULHER NO ÂMBITO DOMÉSTICO. PROTEÇÃO DA FAMÍLIA. PROIBIÇÃO DE APLICAÇÃO DA LEI 9.099/1995. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. ORDEM DENEGADA.

1. A família é a base da sociedade e tem a especial proteção do Estado; a assistência à família será feita na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (Inteligência do artigo 226 da Constituição da República).

2. As famílias que se erigem em meio à violência não possuem condições de ser base de apoio e desenvolvimento para os seus membros, os filhos daí advindos dificilmente terão condições de conviver sadiamente em sociedade, daí a preocupação do Estado em proteger especialmente essa instituição, criando mecanismos, como a Lei Maria da Penha, para tal desiderato.

3. Somente o procedimento da Lei 9.099/1995 exige representação da vítima no crime de lesão corporal leve e culposa para a propositura da ação penal.

4. Não se aplica aos crimes praticados contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar, a Lei 9.099/1995. (Artigo 41 da Lei 11.340/2006).

5. A lesão corporal praticada contra a mulher no âmbito doméstico é qualificada por força do artigo 129, § 9º do Código Penal e se disciplina segundo as diretrizes desse Estatuto Legal, sendo a ação penal pública incondicionada.

6. A nova redação do parágrafo 9º do artigo 129 do Código Penal, feita pelo artigo 44 da Lei 11.340/2006, impondo pena máxima de três anos a lesão corporal qualificada, praticada no âmbito familiar, proíbe a utilização do procedimento dos Juizados Especiais, afastando por mais um motivo, a exigência de representação da vítima.

7. Ordem denegada.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Paulo Gallotti, denegando a ordem de habeas corpus, e o voto da Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura concedendo-a, acordam os Ministros da SEXTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por maioria, denegar a ordem de habeas corpus nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.

Vencidos os Srs. Ministros Nilson Naves e Maria Thereza de Assis Moura, que a concediam.

Os Srs. Ministros Hamilton Carvalhido e Paulo Gallotti votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Não participou do julgamento o Sr. Ministro Og Fernandes.

Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Nilson Naves.

Brasília, 12 de agosto de 2008.(Data do Julgamento)

MINISTRA JANE SILVA
(DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG)
Relatora

HABEAS CORPUS Nº 96.992 - DF (2007/0301158-9)

RELATORA: MINISTRA JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG)

IMPETRANTE: JOSE ALFREDO GAZE DE FRANÇA (ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA)

IMPETRADO: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS

PACIENTE: JOSÉ FRANCISCO DA SILVA NETO

RELATÓRIO

A EXMA. SRA. MINISTRA JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG) (Relator):

Trata-se de habeas corpus, interposto por procurador legalmente habilitado, em favor do paciente JOSÉ FRANCISCO DA SILVA NETO - artigo 129, § 9º do Código Penal, violência doméstica - contra acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios que deu provimento ao recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público, determinando que a denúncia, antes rejeitada, fosse recebida contra o paciente pela conduta de lesões corporais leves contra a sua companheira.

Consta que em audiência, na presença da Juíza, do Promotor de Justiça e de seu Advogado, a vítima, companheira do paciente, não quis representar contra ele pelas lesões corporais leves que havia sofrido, dentre outros crimes dos quais também foi vítima, como dano e ameaça.

Diante desse fato, o Ministério Público insistiu no oferecimento da denúncia em relação à lesão corporal leve por entender que, após o advento da Lei 11.340/2006, tal delito, quando praticado no ambiente familiar, passou a ser de ação penal pública incondicionada.

A Juíza, mantendo entendimento diverso, rejeitou a inicial oferecida, preconizando que a Lei 11.340/2006 não modificou o regime condicionado da ação penal destinada à apuração dos crimes de lesão corporal leve e culposa.

Rejeitada a denúncia, o Ministério Público interpôs recurso em sentido estrito, o qual foi provido pelo Tribunal, determinando-se o recebimento da denúncia.

Daí o presente writ, em que se pretende o trancamento da ação penal.

Não foi formulado pedido de liminar.

As informações foram devidamente prestadas, fl. 28/30.

A Subprocuradoria-Geral da República opinou pela concessão da ordem.

É o relatório.

HABEAS CORPUS Nº 96.992 - DF (2007/0301158-9)

RELATORA: MINISTRA JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG)

IMPETRANTE: JOSE ALFREDO GAZE DE FRANÇA (ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA)

IMPETRADO: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS

PACIENTE: JOSÉ FRANCISCO DA SILVA NETO

VOTO

A EXMA. SRA. MINISTRA JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG) (Relator):

Analisei atentamente as razões da impetração, a documentação acostada, o parecer do Ministério Público Federal e entendo que a ordem não deve ser concedida.

Com a finalidade de demonstrar que se encontram satisfeitos os requisitos do artigo 41 e 43 do Código de Processo Penal, faz-se necessário um breve relato das alterações legislativas que me conduziram ao entendimento segundo o qual, hoje, em se tratando de lesões corporais leves e culposas, praticadas no âmbito familiar contra mulher, a ação é, necessariamente, pública incondicionada, vejamos:

Saliento, inicialmente, que procurei precedentes nesse Superior Tribunal de Justiça e não os encontrei, razão pela qual, as razões de meu entendimento foram extraídas da doutrina.

A conduta delitiva de lesões corporais, seja ela simples ou qualificada, é disciplinada pelo Código Penal.

Até 1995, as três modalidades de lesões corporais - leves, graves e gravíssimas - não dependiam de representação do ofendido, a ação penal correspondia à pública incondicionada e era disciplinada pelo Código Penal.

Por força do artigo 61 da Lei 9.099/1995, pelo quantitativo de pena máxima imposta, as lesões corporais simples e culposa passaram a ter o seu procedimento disciplinado pelos Juizados Especiais.

Assim, nas disposições finais da Lei 9.099/1995 o legislador disciplinou que:

Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas.

Diante disso, além dos crimes estabelecidos no Código Penal, por força do artigo 88 da Lei 9.099/1995, passou-se a exigir representação da vítima para a deflagração da ação penal, também para a lesão corporal leve e para a culposa.

Em 2004, a Lei 10.886 incluiu o parágrafo 9º no artigo 129 do Código Penal. Ao fazê-lo, introduziu uma figura de lesão corporal leve qualificada, especificamente relacionada à violência doméstica, vejamos:

Art. 129, §9º: Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade.

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano.

Referido artigo passou a disciplinar o que se tem comumente chamado de "violência doméstica". Termo que diz respeito à vida em família, usualmente na mesma casa, referente às ligações estabelecidas entre participantes de uma mesma vida familiar, podendo haver laços de parentesco ou não.

A intenção do legislador ao criar a nova figura típica, na realidade uma nova modalidade de lesão corporal leve qualificada, tendo em vista o novo montante de pena estabelecido, foi atingir os variados e, infelizmente, numerosos casos de lesões corporais praticados no recanto do lar, local em que deveria imperar a paz e convivência harmoniosa entre seus membros e, jamais, a agressão desenfreada que muitas vezes se apresenta, pondo em risco a estrutura familiar, base da sociedade.

Em 07 de agosto de 2006 foi publicada a esperada Lei 11.340, intitulada "Lei Maria da Penha", referido diploma legal procurou criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do artigo 226 da Constituição da República, procurando coibir de todas as formas a discriminação, prevenir e punir mais severamente a violência contra a mulher.

Com o intuito de dar cumprimento às finalidades a que se propôs, o artigo 41 da Lei 11.340/2006 disciplina que:

Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.

Também cuidou de aumentar a pena referente à lesão corporal qualificada prevista no parágrafo 9º do artigo 129 do Código Penal, referente à violência doméstica, para detenção de três meses a três anos, dentre a instituição de outros mecanismos tendentes a alcançar o escopo da novel legislação.

Não cabe aqui discutir se os métodos utilizados pelo legislador foram tecnicamente felizes, cabe aplicar à lei vigente ao caso concreto, tendo por alvo a certeza de que se procurou fazer cessar a violência que assola muitos lares brasileiros e põe em risco a saúde física e psíquica de seus membros, sobretudo das mulheres.

Diante do histórico aqui narrado surgiu uma dúvida; qual a espécie de ação penal deverá agora ser manejada no crime de lesão corporal leve qualificada, relacionada à violência doméstica? A reposta pode ser extraída de duas teorias:

A primeira delas, defendida por Damásio Evangelista de Jesus (Artigo científico publicado no sítio www.jusnavigandi.com.br) e Rogério Greco (Código Penal Comentado), preconiza que o crime de lesões corporais, quando se tratar de violência doméstica, decorrente de lesões leves ou culposas, continuará a ter ação penal pública condicionada à representação da vítima.

Os filiados a essa teoria argumentam que o artigo 16 da Lei 11.340/2006 admite que ainda existem crimes que exigem representação, mesmo quando praticados contra a mulher no âmbito doméstico, tanto que esse dispositivo disciplina por qual meio poderá a ofendida renunciar ao direito de representar contra o seu agressor. Sendo assim, a "Lei Maria da Penha" não teria tido a intenção de alterar o princípio do artigo 88 da Lei 9.099/1995, de que a ação penal por crime de lesão corporal leve é pública condicionada à representação. Teria apenas aumentado o preceito secundário do tipo do artigo 129, § 9º do Código Penal, continuando a ação a ser deflagrada apenas mediante representação da ofendida, eis que cabe a ela decidir se quer expor ou não a sua família à pessoas estranhas a esse meio.

A segunda teoria, a qual me filio, preconiza que com o advento da Lei 11.340/2006 o legislador quis propor mudanças que efetivamente pudessem contribuir para fazer cessar, ou, ao menos reduzir drasticamente, a triste violência que assola muitos dos lares brasileiros, uma violência velada que corrói as bases da sociedade pouco à pouco.

Acaso a Lei 11.340/2006, em relação à lesão corporal simples e culposa, tivesse contribuído apenas para aumentar o patamar máximo da pena do artigo 129, § 9º do Código Penal, não teria trazido qualquer inovação prática, eis que, raramente, se aplicam patamares de pena muito superiores ao mínimo cominado.

Penso que o intuito da legislação compromete-se mais com a realidade em que vivemos do que com simples questões de pena.

Há de se ressaltar que um dos princípios comezinhos de direito, no que tange à interpretação da norma, preconiza que ela não utiliza palavras inúteis.

Nesse diapasão, frisamos que o artigo 41 da Lei 11.340 diz claramente que não se aplica aos crimes praticados com violência doméstica, a Lei 9.099/1995.

Não disse a novel legislação que não se aplicam aos crimes praticados com violência doméstica apenas alguns mecanismos despenalizadores da lei dos juizados, como a transação e a suspensão condicional do processo. Acaso o quisesse, o legislador assim teria procedido. Não. Na "Lei Maria da Penha" resta claro que a Lei 9.099/1995 não se aplica por inteiro, isso porque, o escopo de uma e de outra legislação são totalmente opostos. Enquanto a Lei dos Juizados procura evitar o início do processo penal, que poderá culminar com a imposição de uma sanção ao agente do crime, a "Lei Maria da Penha" procura punir com maior rigor o agressor que age às escondidas nos lares, pondo em risco a saúde de sua própria família.

Se a Lei 9.099/1995 não pode ser aplicada, significa que seu artigo 188, que prevê a representação para a lesão corporal leve e culposa nos casos comuns, não pode, por corolário, ser aplicado a essas espécies delitivas quando estiverem relacionadas à violência doméstica. Foi, portanto, derrogado em relação à "Lei Maria da Penha".

Assim entendo porque a família é a instituição mais importante do Estado, é ela que lhe dá base e sustentáculo. Uma família desestruturada conduz, fatalmente, a um Estado desarticulado e frágil, tornando-o incapaz de resguardar a esfera pública e de assegurar aos indivíduos seus direitos constitucionalizados.

A Constituição da República em seu artigo 226 estabelece que a família é a base da sociedade e tem a especial proteção do Estado; o parágrafo 8º desse dispositivo assegura que a assistência à família será feita na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Também não descuida a Constituição, artigo 227, de atribuir à família, à sociedade e ao Estado a responsabilidade pelas crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, assegurando-lhes:

o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Por tais razões, não se pode falar em representação quando a lesão corporal culposa ou dolosa simples atinge a mulher, em casos de violência doméstica, familiar ou íntima.

O interesse maior é da sociedade; é a proteção de mulheres que ficam subjugadas pelo "poder" econômico do parceiro, de idosas e, sobretudo, das menores que, via de regra, são vítimas, ainda que de violência mental, desse tipo de situação. Por tal razão, a escolha não pertence à vítima, mas ao Ministério Público, órgão essencial à Justiça.

Têm esse posicionamento os seguintes juristas:

Luiz Flávio Gomes:

Nesses crime, portanto, cometidos pelo marido contra a mulher, pelo filho contra a mãe, pelo empregador contra a empregada doméstica etc., não se pode mais falar em representação, isto é, a ação penal transformou-se em pública incondicionada (o que conduz a instauração de inquérito policial, denúncia, devido processo, contraditório, provas, sentença, duplo grau de jurisdição etc.). Esse ponto, sendo desfavorável ao acusado não pode retroagir (isto é: não alcança os crimes ocorridos antes do dia 22.09.06). (GOMES, Luiz Flávio. Publicado no sítio www.jusnavigandi.com.br).

Guilherme de Souza Nucci:

Se alguma vantagem houve, está concentrada na ação penal, que passa a ser pública incondicionada, em nossa visão, retornando para a iniciativa do Ministério Público, sem depender da representação.

Isto porque o art. 88 da Lei 9.099/95 preceitua que dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves (prevista no caput do art. 129) e lesões culposas (constante do § 6º do mesmo artigo). Ora, a violência doméstica, embora lesão corporal, cuja descrição típica advém do caput, é forma qualificada da lesão, logo, não mais depende de representação da vítima. A mudança foi tímida e de pouca utilidade. (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, p. 585-586).

E Marcelo Lessa Bastos, em artigo intitulado Violência doméstica e familiar contra a mulher, no sentido de que:

não se aplicam, portanto, os institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95 em caso de violência doméstica e familiar contra a mulher. Deste modo, em se configurando a violência doméstica e familiar contra a mulher, qualquer que seja o crime e sua pena, não cabe transação penal nem suspensão condicional do processo nem composição civil dos danos extintiva de punibilidade, não se lavra termo circunstanciado (em caso de prisão em flagrante, deve ser lavrado auto de prisão em flagrante e, se for o caso, arbitrada fiança), deve ser instaurado inquérito policial (com a medida paralela prevista no art. 12, III, e §§ 1º e 2º da Lei nº 11.340/06), a denúncia deverá vir por escrito, o procedimento será o previsto no Código de Processo Penal... (publicado no sítio www.jusnavigandi.com.br).

Não se sabe, exatamente, se o maior endurecimento da legislação trará os efeitos desejados. Mas o certo é que, a favor do legislador trabalha a estatística a revelar que algo precisava ser feito. (Cf. SANCHES, Rogério. A lei Maria da Penha e a não aplicação dos institutos despenalizadores dos juizados especiais criminais. Jus Navigandi). Um dado, colhido no sítio da Fundação Perseu Abramo (www. fpabramo.gov.br), é bastante ilustrativo:

A projeção da taxa de espancamento (11%) para o universo investigado (61,5 milhões) indica que pelo menos 6,8 milhões, dentre as brasileiras vivas, já foram espancadas ao menos uma vez. Considerando-se que entre as que admitiram ter sido espancadas, 31% declararam que a última vez em que isso ocorreu foi no período dos 12 meses anteriores, projeta-se cerca de, no mínimo, 2,1 milhões de mulheres espancadas por ano no país (ou em 2001, pois não se sabe se estariam aumentando ou diminuindo), 175 mil/mês, 5,8 mil/dia, 243/hora ou 4/minuto - uma a cada 15 segundos.

Dessa forma, entendo que em nome da proteção da família, preconizada como essencial pela Constituição da República e, frente ao dispositivo da Lei 11.340/2006 que afasta expressamente a Lei 9.099/1995, os institutos despenalizadores e as medidas mais benéficas dessa última, não se aplicam à violência doméstica, independendo, portanto, de representação da vítima a propositura da ação penal pelo Ministério Público nos casos de lesão corporal leve ou culposa.

Ademais, até mesmo a nova redação do parágrafo 9º do artigo 129 do Código Penal, feita pelo artigo 44 da Lei 11.340/2006, impondo pena máxima de três anos à lesão corporal leve qualificada, praticada no âmbito familiar, proíbe a utilização do procedimento dos Juizados Especiais, afastando por mais um motivo, a exigência de representação da vítima.

Presentes, pois, as condições de procedibilidade da ação, compete ao Ministério Público, titular da ação penal, movê-la.

Posto isto, denego a ordem.

É como voto.

CERTIDÃO DE JULGAMENTO

SEXTA TURMA

Número Registro: 2007/0301158-9 HC 96992 / DF

MATÉRIA CRIMINAL

Número Origem: 20070110320122

EM MESA JULGADO: 29/04/2008

Relatora

Exma. Sra. Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG)

Presidente da Sessão

Exmo. Sr. Ministro NILSON NAVES

Subprocuradora-Geral da República

Exma. Sra. Dra. MARIA EMÍLIA CORREA DA COSTA

Secretário

Bel. ELISEU AUGUSTO NUNES DE SANTANA

AUTUAÇÃO

IMPETRANTE: JOSE ALFREDO GAZE DE FRANÇA (ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA)

IMPETRADO: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS

PACIENTE: JOSÉ FRANCISCO DA SILVA NETO

ASSUNTO: Penal - Crimes contra a Pessoa (art.121 a 154) - Crimes contra a vida - Lesão Corporal ( art. 129 ) - Violência Doméstica

CERTIDÃO

Certifico que a egrégia SEXTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

"Após o voto da Sra. Ministra Relatora denegando a ordem, pediu vista o Sr. Ministro Nilson Naves. Aguardam os Srs. Ministros Hamilton Carvalhido, Paulo Gallotti e Maria Thereza de Assis Moura."

Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Nilson Naves.

Brasília, 29 de abril de 2008

ELISEU AUGUSTO NUNES DE SANTANA
Secretário

HABEAS CORPUS Nº 96.992 - DF (2007/0301158-9)

VOTO-VISTA

O EXMO. SR. MINISTRO NILSON NAVES: Cuida-se da figura típica "violência doméstica" (Cód. Penal, art. 129, § 9º). Foi em audiência que a vítima se expressou contrariamente a que a ação tivesse seqüência, e foi lá que se rejeitou a denúncia, mas o Tribunal de Justiça - recurso em sentido estrito - estatuiu o seguinte resumidamente:

"A meu sentir, o legislador, ao inserir o artigo 41 na Lei nº 11.340/06, preocupou-se com o efeito despenalizador no âmbito das relações domésticas, à medida que se faz evidente a pressão, quiçá, coação pela renúncia ou desistência da representação pela vítima, no caso, apenas a mulher.

Todavia, vale ressaltar que a aludida lei prevê, em seu artigo 16, a possibilidade da 'renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público'.

A meu ver, assim, há de se observar em que situação ocorreu a retratação, ou seja, se esta ocorreu de forma espontânea. Portanto, na dúvida, a mencionada renúncia não deve ser reconhecida.

.................................................................................................................

Verifico, pois, ser incabível, à hipótese, o recuo da vítima, diante de sua fragilidade emocional, instabilidade das situações por ela experimentadas no ambiente doméstico e, ainda, a dependência econômica e financeira do cônjuge ou companheiro.

.................................................................................................................

Frente às razões supra, dou provimento ao recurso ministerial para cassar a r. decisão de fls. 18/19 do apenso nº 2007.01.1.006946-7 e determinar o recebimento da denúncia de fls. 17/18 do aludido apenso e seu aditamento acostado às fls. 23/25 nos presentes autos."

Todavia a questão há de ser por nós resolvida sob aspecto pouco diferente do do acórdão. Pergunto: em casos tais, dependerá de representação a ação penal? Em nosso ambiente, a ilustre Relatora concluiu, caso não esteja eu em erro, que, se a Lei nº 11.340/06 expressamente repeliu a Lei nº 9.099/95 ("aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995", art. 41), independe, "portanto, de representação da vítima a propositura da ação penal pelo Ministério Público nos casos de lesão corporal leve ou culposa".

Sucede, porém, que, na mesma Lei nº 11.340, admite-se representação e se admite seja ela renunciada, é o que estatui o art. 16, repitamo-lo, portanto: "Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público."

Quero, com isso, entender que, se não se apagou de todo a representação, admite-se, admito-o eu, data venia, se invoque ainda o art. 88 da Lei nº 9.099, segundo o qual, "além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas".

Acho, perdoem a minha petulância, mais salutar admitir-se, em casos que tais, a representação, isto é, que a ação penal dependa de representação da ofendida (também a renúncia, é claro). Há situações e situações, há as do receio, do medo, etc., mas há as que se resolvem doutro modo - voltando atrás, por exemplo. Sabemos, sabem mais do que eu, que o uso dos denominados meios coercitivos há de ser visto de modo subsidiário: tal venho falando em meus votos, a saber, "a pena só pode ser cominada quando for impossível obter esse fim através de outras medidas menos gravosas" (Roxin). Entre outros, de minha relatoria, o REsp-663.912, de 2005, e o HC-87.644, de 2007.

Peço vênia a tão majestoso voto, de autoria de tão ilustre Relatora, para conceder a ordem, recuperando, então, a primitiva decisão.

CERTIDÃO DE JULGAMENTO

SEXTA TURMA

Número Registro: 2007/0301158-9 HC 96992 / DF

MATÉRIA CRIMINAL

Número Origem: 20070110320122

EM MESA JULGADO: 20/05/2008

Relatora
Exma. Sra. Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG)

Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro NILSON NAVES

Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. MOACIR MENDES SOUZA

Secretário
Bel. ELISEU AUGUSTO NUNES DE SANTANA

AUTUAÇÃO

IMPETRANTE: JOSE ALFREDO GAZE DE FRANÇA (ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA)

IMPETRADO: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS

PACIENTE: JOSÉ FRANCISCO DA SILVA NETO

ASSUNTO: Penal - Crimes contra a Pessoa (art.121 a 154) - Crimes contra a vida - Lesão Corporal ( art. 129 ) - Violência Doméstica

CERTIDÃO

Certifico que a egrégia SEXTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

"Prosseguindo no julgamento após o voto-vista do Sr. Ministro Nilson Naves concedendo a ordem, pediu vista o Sr. Ministro Hamilton Carvalhido. Aguardam o Sr. Ministro Paulo Gallotti e a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura."

Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Nilson Naves.

Brasília, 20 de maio de 2008

ELISEU AUGUSTO NUNES DE SANTANA
Secretário

HABEAS CORPUS Nº 96.992 - DF (2007/0301158-9)

VOTO-VISTA

O EXMO. SR. MINISTRO HAMILTON CARVALHIDO: Senhor Presidente, habeas corpus contra a Primeira Turma do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios que, provendo o recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público, recebeu a denúncia ofertada em desfavor de José Francisco da Silva Neto, pela prática do delito tipificado no artigo 129, parágrafo 9º, do Código Penal.

A falta de condição de procedibilidade, eis que a vítima manifestou desistência nos termos da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), antes do recebimento da denúncia, dá motivação ao writ.

A ilustre Ministra Relatora, Jane Silva, denegou a ordem.

O Ministro Nilson Naves, após pedido de vista, concedeu a ordem, para restabelecer a decisão do Juízo da causa que rejeitou a denúncia.

Pedi vista dos autos, para melhor examinar a questão.

A questão é a da natureza da ação penal nos crimes de lesões corporais leves ou culposas, praticadas contra a mulher no âmbito das relações domésticas.

Denego a ordem impetrada.

A Lei nº 11.340/2006, sem prejuízo da aplicação subsidiária do Código de Processo Penal, cuidou expressamente do inquérito policial, da ação penal e da atuação do Ministério Público, fazendo dispensável a representação para a instauração da investigação policial, indispensável à sua renúncia ou retratação a audiência judicial especialmente designada para esta finalidade, antes do recebimento da denúncia; e obrigatória a intervenção do Ministério Público, quando não for parte, nas causas cíveis e criminais decorrentes da violência doméstica e familiar contra a mulher.

Veja-se, para a certeza das coisas, a letra dos artigos 12, 16 e 25:

"Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:

I - ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada;

(...)" (nossos os grifos).

"Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público." (nossos os grifos).

"Art. 25. O Ministério Público intervirá, quando não for parte, nas causas cíveis e criminais decorrentes da violência doméstica e familiar contra a mulher." (nossos os grifos).

Relativamente ao crime de lesão corporal, especialmente dela tratam os artigos 7º, inciso I, como forma de violência doméstica e familiar contra a mulher, e 44, para aumentar a pena do artigo 129, parágrafo 9º, do Código Penal, de 1 (um) para 3 (três) anos de detenção, ambos da Lei nº 11.340/06, verbis:

"Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;

(...)"

"Art. 44. O art. 129 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar com as seguintes alterações:

'Art. 129. (...)

§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.

(...)"

A vigência da lei de criminalização derivada, que criou a forma qualificada do crime de lesão corporal leve, inserta no parágrafo 9º do artigo 129 do Código Penal, número 10.886/04, tanto quanto a Lei nº 11.340/06, são de vigência posterior à lei que dispôs sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e deu outras providências, entre as quais fazer da ação penal pública condicionada os crimes de lesão corporal leve e lesão culposa.

Não há, assim, falar em representação como condição da ação penal relativa ao crime de lesão corporal leve qualificada, por estranha forma qualificada do delito ao suporte fático do artigo 88 da Lei nº 9.099/95, restando excluída, por conseqüência, a aplicação do brocardo "não distingua o intérprete o que a lei não distinguiu".

Em outras palavras, a contrario sensu, é defeso ao intérprete fazer gênero o que é espécie.

A regência, pois, da ação penal da forma qualificada dos parágrafos 9º e 10 do artigo 129 do Código Penal é a do artigo 100, parágrafo 1º, do mesmo diploma legal, verbis:

"§ 9º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:

(...)

§ 10. Nos casos previstos nos §§ 1º a 3º deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no § 9º deste artigo, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço)."

"Art. 100 - A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido.

§ 1º - A ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça."

É caso, pois, de ação penal pública incondicionada o do artigo 129, parágrafo 9º, do Código Penal, forma de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Como anotou a Ministra Jane Silva, em seu voto de Relatora:

"(...) A intensão do legislador ao criar a nova figura típica, na realidade uma nova modalidade de lesão corporal leve qualificada, tendo em vista o novo montante de pena estabelecido, foi atingir os variados e, infelizmente, numerosos casos de lesões corporais praticados no recanto do lar, local em que deveria imperar a paz e convivência harmoniosa entre seus membros e, jamais, a agressão desenfreada que muitas vezes se apresenta, pondo em risco a estrutura familiar, base da sociedade.

(...)"

Pelo exposto, acompanho a ilustre Ministra Relatora, para denegar a ordem.

É O VOTO.

CERTIDÃO DE JULGAMENTO

SEXTA TURMA

Número Registro: 2007/0301158-9 HC 96992 / DF

MATÉRIA CRIMINAL

Número Origem: 20070110320122

EM MESA JULGADO: 10/06/2008

Relatora
Exma. Sra. Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG)

Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro NILSON NAVES

Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. .

Secretário
Bel. ELISEU AUGUSTO NUNES DE SANTANA

AUTUAÇÃO

IMPETRANTE: JOSE ALFREDO GAZE DE FRANÇA (ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA)

IMPETRADO: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS

PACIENTE: JOSÉ FRANCISCO DA SILVA NETO

ASSUNTO: Penal - Crimes contra a Pessoa (art.121 a 154) - Crimes contra a vida - Lesão Corporal ( art. 129 ) - Violência Doméstica

CERTIDÃO

Certifico que a egrégia SEXTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

"Prosseguindo no julgamento após o voto-vista do Sr. Ministro Hamilton Carvalhido denegando a ordem, pediu vista o Sr. Ministro Paulo Gallotti. Aguarda a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura."

Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Nilson Naves.

Brasília, 10 de junho de 2008

ELISEU AUGUSTO NUNES DE SANTANA
Secretário

HABEAS CORPUS Nº 96.992 - DF (2007/0301158-9)

VOTO-VISTA

O SENHOR MINISTRO PAULO GALLOTTI: Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de José Francisco da Silva Neto, apontando-se como autoridade coatora o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios.

Extrai-se dos autos que, em audiência decorrente da prática de crime praticado contra mulher no âmbito doméstico ou familiar, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, "em que pese o desejo externado pela vítima no sentido de não dar prosseguimento ao feito", entendendo tratar-se de delito de ação penal pública incondicionada, ofereceu denúncia dando o paciente como incurso no art. 129, § 9º, do Código Penal, opinando pelo arquivamento do feito no tocante à ameaça, além de observar que a injúria e o dano são delitos a serem apurados por meio de ação penal privada.

A magistrada de primeiro grau rejeitou a peça acusatória, com fundamento no art. 43, III, do Código de Processo Penal, observando que "a Lei 11.340/2006 não modificou o regime condicionado da ação penal destinada à apuração dos crimes de lesão corporal leve e culposa", fl. 10.

Inconformado, o parquet estadual interpôs recurso em sentido estrito, que foi provido pelo Tribunal de origem para "cassar a r. decisão de fls. 18/19 do Apenso nº 2007.01.1.006946-7 e determinar o recebimento da denúncia de fls. 17/18 do aludido apenso e seu aditamento acostado às fls. 23/25 nos presentes autos", fls. 12/21.

Daí o presente writ, em que se pretende o trancamento da ação penal por falta de condição de procedibilidade, vale dizer, a representação da ofendida.

A Desembargadora convocada Jane Silva, relatora do feito, denega a ordem, sendo acompanhada pelo Ministro Hamilton Carvalhido, votando de forma diversa o Ministro Nilson Naves, que a concede.

Para melhor exame, pedi vista dos autos.

A questão posta em debate diz com saber se, com o advento da Lei nº 11.340/2006, a chamada Lei Maria da Penha, o crime de lesão corporal qualificada, previsto no art. 129, § 9º, do Código Penal, cometido contra mulher no âmbito doméstico ou familiar, é apurado mediante ação penal pública incondicionada ou condicionada à representação da vítima.

O tema é controvertido e conta com respeitáveis fundamentos em ambos os sentidos.

Filio-me, contudo, à corrente que proclama tratar-se de delito de ação penal pública incondicionada.

Com efeito, até 1995, a apuração do crime de lesão corporal leve, por falta de expressa disposição legal em contrário, nos termos do art. 100, § 1º, do Código Penal, procedia-se mediante ação penal pública incondicionada.

A Lei nº 9.099, de 25 de setembro de 1995, no entanto, ao criar os Juizados Especiais, dispôs, em seu art. 88, que "dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas", delitos esses previstos no artigo 129, caput e § 6º, do Código Penal, considerados como infrações penais de menor potencial ofensivo, a teor do art. 61 daquele diploma, com pena máxima de 1 ano de detenção.

Em 17 de junho de 2004, foi publicada a Lei nº 10.886, que criou a figura da lesão corporal leve qualificada, quando for o delito cometido "contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade", cominando-lhe pena de 6 meses a 1 ano de detenção, ainda infração penal de menor potencial ofensivo.

A Lei Maria da Penha, no art. 44, mantendo a redação do art. 129, § 9º, do Código Penal, estipulou a pena de 3 meses a 3 anos de detenção, deixando o crime de lesão corporal qualificada, assim, de ser infração penal de menor potencial ofensivo, excluído, portanto, da abrangência da Lei nº 9.099/1995 e, como conseqüência, voltando a ser de ação penal pública incondicionada.

Além disso, a Lei Maria da Penha determina, expressamente, no art. 41, que "aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995", afastando, em todos os seus termos, a incidência do diploma de regência dos Juizados Especiais, inclusive para aqueles delitos cuja sanção máxima não ultrapasse 2 anos.

Assim, seja pela exacerbação da pena prevista para o crime de lesão corporal qualificada, seja pela expressa menção à inaplicabilidade da Lei nº 9.099/1995, sem qualquer restrição, penso que esse delito, praticado contra mulher no âmbito familiar, voltou a ser processado mediante ação penal pública incondicionada.

É de ação penal pública condicionada à representação, dentre as lesões corporais, apenas a lesão corporal leve simples, vale dizer, sem a qualificadora do § 9º.

No âmbito de abrangência da Lei nº 11.340/2006, contudo, outros delitos continuam dependendo de representação, tais como a ameaça, os crimes contra a honra, na hipótese do art. 145, parágrafo único, do Código Penal, e os crimes contra os costumes, quando aplicável o art. 225, § 2, do mesmo diploma legal.

Em razão disso e apenas para esses outros delitos, a meu ver, há previsão no art. 12, I, da referida Lei Maria da Penha, para que a autoridade policial tome a representação a termo e, no art. 16, para que a renúncia seja feita perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

Não me parece correto afirmar que, em uma interpretação sistemática do novo diploma legal, fique evidenciada sua intenção de apenas vedar a aplicação dos institutos despenalizadores previstos para os delitos de apuração perante os Juizados Especiais.

A própria lei indica diretrizes para sua exegese, ao estabelecer, no art. 4º, que "na interpretação desta lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar".

E sob um enfoque sociológico, é inegável reconhecer que grande parte das mulheres vítimas de violência doméstica, especialmente aquelas de classes econômicas menos favorecidas, quando levam seus casos ao conhecimento das chamadas "autoridades", acabam por ser coagidas a se retratar, sofrendo intimidação de todos os tipos por parte dos infratores, inclusive físicas, morais, psicológicas, financeiras etc.

Casos há, por certo, em que as mulheres retratam-se por livre e espontânea vontade, dada a reconciliação da família. Mas no confronto entre os dois cenários, deve prevalecer o que melhor atenda ao interesse social, isto é, que efetivamente contribua para a preservação da integridade física da mulher, historicamente vítima de violência doméstica e tida como elo mais fraco na relação conjugal e familiar.

Esse, aliás, o motivo que levou à criação da legislação de proteção, considerada uma importante conquista dos direitos humanos das mulheres, amparada no art. 226, § 8, da Constituição Federal, na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e em outros tratados internacionais.

A prescindibilidade da representação da vítima, de outra parte, não impede a reconciliação da família. Muito refleti sobre os argumentos de que o processo criminal poderia prejudicar a restauração da paz no lar, de que poderia se converter em um mal maior para a própria mulher, de que é mais benéfico a ela ter um instrumento de barganha para negociar com o agressor, de que há muito vem sido tolhida sua liberdade de escolha e de que o Estado deve intervir nas relações individuais de forma mínima.

Não me convenceram, todavia.

O princípio da intervenção mínima deve ser observado em situações de normalidade. Situações extremas exigem medidas rigorosas e maior intervenção estatal. Se o quadro fático é de alto índice de violência contra a mulher no âmbito familiar, sem que ela, sozinha, consiga enfrentá-la, cabe ao Estado desenvolver políticas que visem a garantir os seus direitos, o que certamente se teve em vista com a edição do diploma em exame.

O argumento de que não se deve retirar da mulher o poder de decisão sobre a situação de violência em sua família, com todo o respeito aos que pensam de modo diverso, termina por não solucionar o grave problema, mantendo a possibilidade de serem vítimas de inaceitável coação na busca de impunidade, circunstância que acaba por estimular a reiteração criminosa.

Se for possível restabelecer a paz no âmbito familiar, melhor, e que isso realmente se concretize. Mas o agressor deve estar consciente de que responderá a um processo criminal e será punido se reconhecida sua culpabilidade.

Embora haja expressa vedação legal à aplicação dos institutos despenalizadores previstos na Lei nº 9.099/1995, a condenação não implicará necessariamente em privação da liberdade, dada a possibilidade de ser o agente beneficiado com a substituição da reprimenda corporal por medidas restritivas de direitos, com exceção das que possuam exclusivo conteúdo econômico, ou com a suspensão condicional da pena, a teor dos artigos 44 e 77 do Código Penal.

O que não se pode é admitir que a Lei Maria da Penha, criada para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, seja interpretada de forma a beneficiar o agressor. Ou que se torne letra morta.

Assim, penso que o crime de lesão corporal qualificada, imputado ao paciente, prescinde de representação da vítima, motivo porque o acórdão que determinou o recebimento da denúncia não lhe está a causar qualquer constrangimento ilegal.

Diante do exposto, acompanhando a relatora, denego o habeas corpus.

É como voto.

HABEAS CORPUS Nº 96.992 - DF (2007/0301158-9)

VOTO-VENCIDO

MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA:

A questão fulcral discutida na presente impetração cingiu-se à definição de qual a natureza da ação penal no crime de lesão corporal praticado mediante violência doméstica, previsto no art. 129, § 9.º, do Código Penal.

A ordem restou denegada, acolhendo-se o posicionamento esposado pela relatora, eminente Desembargadora convocada Jane Silva.

Entendeu a douta relatora que, pela interpretação do art. 41 da Lei 11.340/06, que veda a aplicação da Lei 9.099/95 para os casos de violência doméstica praticada contra mulher, não mais incidiria a disposição do art. 88 Lei dos Juizados Especiais, norma esta que tornou o crime de lesão corporal leve dependente de representação.

Salientou, ainda, que:

"A intenção do legislador ao criar a nova figura típica, na realidade uma nova modalidade de lesão corporal leve qualificada, tendo em vista o novo montante de pena estabelecido, foi atingir os variados e, infelizmente, numerosos casos de lesões corporais praticados no recanto do lar, local em que deveria imperar a paz e convivência harmoniosa entre seus membros e, jamais, a agressão desenfreada que muitas vezes se apresenta, pondo em risco a estrutura familiar, base da sociedade".

Pediu vista, então, o proficiente Ministro Nilson Naves. Pelo seu voto, inaugurando a divergência, a ordem deveria ser concedida, restabelecendo-se a decisão de primeiro grau, vazada nos seguintes termos:

Compreendo que a Lei 11.340/2006 não modificou o regime condicionado da ação penal destinado a apuração dos crimes de lesão corporal leve e culposa. Ao instituir que a Lei 9.099/95 não se aplicaria aos episódios de violência doméstica, à evidência, referiu-se o espírito da lei à vedação dos benefícios da citada lei, não incluindo, na vedação, a natureza condicionada da ação penal relativa aos referidos crimes de lesão corporal leve e culposa. (fl. 10).

Na sequência, foi apresentado o voto do insigne Ministro Hamilton Carvalhido, que também denegou a ordem, mas, fê-lo com a tônica nem tanto no art. 41 da Lei Maria da Penha, mas tendo em conta que, à luz da estrutura do § 9.º do artigo 129 do Código, teria sido criado um tipo derivado. A partir daí, concluiu que a lesão corporal do § 9.º não seria leve, excluindo-se tout court qualquer necessidade de representação, escapando, portanto, do universo cuidado pelo art. 88 da Lei 9.099/95.

Após, veio a lume o, não menos brilhante, voto do preclaro Ministro Paulo Gallotti, que também denegou a ordem.

Seguiu-se, por fim, o voto desta Ministra, alinhando-se com a divergência, concedendo a ordem, remanescendo, todavia, vencida. Assim procedi alicerçando meu raciocínio nos seguintes argumentos.

O art. 41 da Lei 11.343/06 assim estatui:

Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.

Segundo penso, tal dispositivo não pode ser interpretado de maneira insulada, mas, antes, deve ser compreendido de maneira sistemática, mormente tendo em linha de consideração o contido no art. 16 da mesma lei:

Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

Com a devida vênia da ilustrada maioria, que se alicerça em igualmente respeitável entendimento doutrinário, penso que restringir o espectro de atuação do art. 16 da Lei Maria da Penha para os delitos de ameaça, contra a honra e contra a liberdade sexual, excluindo-se tão-apenas o delito de violência doméstica é conferir exegese inapropriada.

Depois de muito meditar sobre o tema, acredito que a mens legis do art. 41 da Lei Maria da Penha - exclusão da aplicação Lei 9.099/95 - refere-se exclusivamente ao procedimento sumaríssimo e aos mecanismos despenalizadores. O art. 88 da Lei dos Juizados, em verdade, não está conectado de forma imanente à introdução do nolo contendere no nosso sistema processual penal. A modificação da disciplina da ação penal do art. 129 do Código Penal poderia muito bem ter sido viabilizada por meio de outra norma, meramente modificadora do Codex.

Vem em abono ao entendimento ora formulado o ensinamento de GERALDO PRADO:

Embora de início tenha me inclinado, com muita resistência, a adotar a tese de que o crime de lesão corporal dolosa leve, em caso de violência doméstica e familiar contra a mulher, tenha voltado a ser de ação penal pública incondicionada, mudei de idéia (tenho, pois, de me retratar!).

As teses de política criminal, assentadas no objetivo de pacificação social em mãos da vítima, não me seduzem, tampouco têm o poder jurídico e prevalecer sobre a Constituição da República, que atribui ao Legislativo o monopólio de traçar as linhas gerais de política criminal, valendo-se da lei.

A melhor solução de política criminal estaria em atribuir ao Ministério Público, no âmbito da ação penal pública, espaço de atuação que luz da lei permitisse explorar o caráter restaurativo de determinadas intenções ou mesmo abrir mão do exercício da própria ação penal quando este exercício viesse a ser considerado excessivo ou inadequado à tutela dos interesses da vítima.

Não foi essa a escolha, e o confronto doutrinário entre opções político criminais cede diante da legalidade constitucional.

No caso da lesão corporal dolosa leve, todavia, não há como se interpretar literalmente o artigo 41 da Lei Maria da Penha. Menos porque o crime está definido no Código Penal e a Lei dos Juizados Especiais Criminais tenha sido empregada tão-somente como meio de modificar a disciplina geral da matéria, no Código Penal.

(...)

Com efeito, a mudança introduzida em nosso ordenamento, no que toca ao crime de lesões corporais leves, incorporou a experiência cotidiana de anos de aplicação do Código Penal, com freqüente invocação de princípios de bagatela e de difusa ausência de interesse, em âmbito de política criminal, a justificar o emprego da sanção penal. (Comentários à lei de violência doméstica e familiar contra a mulher. Org. Adriana Ramos de Mello. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 86).

Em idêntica direção, colhem-se as lições de MARIA BERENICE DIAS:

Não há como pretender que prossiga a ação penal depois de o juiz ter obtido a reconciliação do casal ou ter homologado a separação com definição de alimentos, partilha de bens e guarda de filhos e visitas.

A possibilidade de trancamento do inquérito policial em muito facilitará a composição dos conflitos envolvendo as questões de Direito das Famílias, que são bem mais relevantes do que a imposição de uma pena criminal ao agressor. A possibilidade de dispor da representação revela formas através das quais as mulheres podem exercer poder na relação com os companheiros.

Há um argumento que precisa ser considerado. A vítima tem enorme dificuldade de denunciar um ente amado com quem convive, que é o pai de seus filhos e provê o sustento da família. Quando consegue chegar a uma delegacia para registrar a ocorrência, vai buscar auxílio para que a paz volte a reinar na sua casa. Não tem o desejo de se separar e nem quer que seu cônjuge ou companheiro seja preso, só quer que ele pare de agredi-Ia. A denúncia na delegacia e a busca de apoio do Poder Judiciário são os recursos encontrados pelas mulheres para fazer cessar períodos de agressão contínua. A condenação criminal, na grande maioria dos casos, não é a intenção da vítima. Ora, se a mulher souber que necessariamente ele será processado, havendo a possibilidade de ser levado para a cadeia, é capaz de desistir. Tal irá inibir a denúncia e a violência doméstica continuará envolta em silêncio e medo. Legislações muito rígidas desestimulam as mulheres agredidas a denunciarem seus agressores e registrarem suas queixas. Sempre que o companheiro ou esposo é o único provedor da família, o medo de sua prisão e condenação a uma pena privativa de liberdade acaba por contribuir para a impunidade

Ao interpretar-se uma lei mister atentar à sua matriz, que revela a intenção do legislador. É preciso compreender seus motivos, as necessidades que o orientaram e os princípios que o inspiraram. Como diz Damásio de Jesus para a compreensão do significado da norma é necessário indagar a sua finalidade: a "ratio legis". E inexiste dúvida quanto a intenção da lei de ser favorável à mulher e não ao seu agressor.

Há um derradeiro argumento que põe por terra todas as tentativas de transformar a lesão corporal leve em delito de ação pública incondicionada. O Projeto de Lei 4.559/2004, que deu origem à Lei Maria da Penha, trazia o procedimento na fase policial e o processo judicial e de modo expresso afirmava (art. 30): Nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, a ação penal será pública condicionada à representação. No Senado é que houve a exclusão do procedimento minuciosamente detalhado, que constava da versão originária do projeto. De roldão foi excluído o dispositivo que colocaria uma pá de cal em toda a discussão que acabou surgindo.

De qualquer modo, mesmo admitindo-se a renúncia à representação, as demais benesses da Lei dos Juizados Especiais não são aplicáveis à violência doméstica. Não há possibilidade de composição de danos ou aplicação imediata de pena não privativa de liberdade (Lei 9.099/95, art. 72). Não mais cabe ao Ministério Público propor transação penal com aplicação imediata de pena restritiva de direito ou multa (Lei 9.099/1995, art. 76). Também é descabida a suspensão condicional do processo (Lei 9.099/1995, art. 89) ou a aplicação de pena restritiva de direito de conteúdo econômico. Aliás, foi para dar ênfase a esta vedação que a Lei Maria da Penha acabou por afirmar (art. 17): "É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique no pagamento isolado de multa". (A Lei Maria da Penha na justiça. São Paulo: Ed. RT, 2007, p. 124-125).

Registre-se, por fim, o escólio de PEDRO RUI DA FONTOURA PORTO:

(...) sem sombra de dúvidas, se a exigência de representação é de fato uma medida despenalizadora, não menos certo é que deixar esta decisão no poder da vítima, que pode então utilizá-Ia como instrumento de barganha para uma justa reparação de danos civis, atende a dois objetivos: punir o sujeito ativo e beneficiar direta e imediatamente a própria vítima. Com efeito, é importante lembrar que o poder de representar pressupõe o de conciliar, de sorte que, mantida a representação, assegura-se também a conciliação e, nesse caso, o potencial de barganha da vítima, normalmente fragilizada e suscetível a acordos que lhe pudessem ser prejudiciais, é fortalecido pela faculdade de decidir acerca da deflagração do processo penal e pela inexistência de outras medidas despenalizadoras posteriores que poderiam ser ainda mais vantajosas ao varão agressor.

(...)

De início, o fato de o legislador ter retirado do texto original a literal referência à ação penal pública incondicionada tem uma explicação muito lógica: o texto tal como elaborado seria totalmente prejudicial à vítima mulher. Veja-se que o texto vertido no art. 30 do projeto original condicionava à representação, toda e qualquer violência doméstica e familiar contra a mulher. Destarte, considerando a amplitude dos arts. 5° e 7° da Lei 11.340/06, até mesmo delitos sexuais com violência real, tentativas de homicídio, extorsões, lesões graves, tortura, todos ficariam condicionados à representação, já que o dispositivo não fazia qualquer distinção. Por aí se vê que andou bem o legislador em retirar logo do texto um dispositivo tão nefasto. Diferente, é claro, quando se trata de lesões leves, traduzidas muitas vezes em algumas escoriações e equimoses.

Por outra, o fato de tratar-se a violência doméstica contra a mulher de um atentado contra os direitos humanos, conforme estatui o art. 6° da LMP, também não impõe a conclusão de que se trate de um bem indisponível. É pacífico que a integridade física é disponível, salvo quando ameace significativamente a própria vida humana ou indique insanidade mental, tanto que cirurgias eletivas, inclusive plásticas, tatuagens, participação em esportes radicais, artes marciais, são considerados exercício regular de um direito.

Ademais, há muitos outros direitos, normalmente classificados como direitos fundamentais, que também são disponíveis: a propriedade e a liberdade são exemplos disso. Veja-se que os próprios autores citados tecem críticas ao art. 6° da LMP, asseverando sua desnecessidade, visto que qualquer violência contra a pessoa representa um atentado contra os direitos humanos.

(...)

Concluindo, estamos em que a razão mais crucial e elevada para a admissão da representação, nos casos de lesões leves praticadas com violência doméstica contra a mulher, reside no caráter personalíssimo do fato, que recomenda, por ressalva à intimidade da própria vítima e ao seu livre-arbítrio, prevaleça sua vontade. Nesse sentido, não há como ignorar as preciosas considerações de Maria Lúcia Karan, a seguir transcritas:

Quando se insiste em acusar da prática de um crime e ameaçar com uma pena o parceiro da mulher, contra sua vontade, está se subtraindo dela, formalmente ofendida, seu direito e seu anseio a livremente se relacionar com aquele parceiro por ela escolhido. Isto significa negar-lhe o direito à liberdade de que é titular, para tratá-la como coisa fosse, submetida à vontade de agentes do Estado que, inferiorizando-a e vitimizando-a, pretendem saber o que seria melhor para ela, pretendendo punir o homem com quem ela quer relacionar e sua escolha há de ser respeitada, pouco importando se o escolhido é ou não um 'agressor' - ou que, pelo menos, não deseja que seja punido". (Violência doméstica e familiar contra a mulher. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 48-53).

Por outra volta, acredito não se tratar o parágrafo nono do art. 129 do Código Penal de verdadeira qualificadora. Esta modalidade de circunstância, a par de assinalar maior culpabilidade do agente ou um plus de afetação do bem jurídico, apresenta um preceito secundário próprio com mais rigorosas bandas punitivas. Ora, cotejando-se o tipo fundamental com a denominada violência doméstica nota-se, de pronto, que a pena mínima continua a mesma da lesão corporal simples, conferindo-se apenas maior liberdade ao magistrado, podendo ele vir a superar o limite máximo de um ano de detenção previsto no caput.

A meu juízo, pela interpretação conjugada dos dispositivos insertos no art. 129 do Código Penal, mormente pelo contido nos parágrafo 10, a lesão corporal descrita no parágrafo nono é simples:

Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:

Pena - detenção, de três meses a um ano.

Lesão corporal de natureza grave

§ 1º Se resulta:

I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias;

II - perigo de vida;

III - debilidade permanente de membro, sentido ou função;

IV - aceleração de parto:

Pena - reclusão, de um a cinco anos.

§ 2° Se resulta:

I - Incapacidade permanente para o trabalho;

II - enfermidade incuravel;

III - perda ou inutilização do membro, sentido ou função;

IV - deformidade permanente;

V - aborto:

Pena - reclusão, de dois a oito anos.

Lesão corporal seguida de morte

§ 3° Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quís o resultado, nem assumiu o risco de produzí-lo:

Pena - reclusão, de quatro a doze anos.

Diminuição de pena

§ 4° Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

Substituição da pena

§ 5° O juiz, não sendo graves as lesões, pode ainda substituir a pena de detenção pela de multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis:

I - se ocorre qualquer das hipóteses do parágrafo anterior;

II - se as lesões são recíprocas.

Lesão corporal culposa

§ 6° Se a lesão é culposa: (Vide Lei nº 4.611, de 1965)

Pena - detenção, de dois meses a um ano.

Aumento de pena

§ 7º - Aumenta-se a pena de um terço, se ocorrer qualquer das hipóteses do art. 121, § 4º. (Redação dada pela Lei nº 8.069, de 1990)

§ 8º Aplica-se igualmente à lesão culposa o disposto no § 5º do artigo 121. (Incluído pela Lei nº 6.416, de 24.5.1977)

Violência Doméstica (Incluído pela Lei nº 10.886, de 2004)

§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006)

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006)

§ 10. Nos casos previstos nos §§ 1o a 3o deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no § 9o deste artigo, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço). (Incluído pela Lei nº 10.886, de 2004)

§ 11. Na hipótese do § 9o deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência. (Incluído pela Lei nº 11.340, de 2006).

Em remate, à luz das particularidades da sociedade, que bem conforma o direito que visa regular justamente este mesmo agrupamento humano e, atendo-me ao princípio constitucional da proporcionalidade, em prestígio à autonomia da vontade da mulher e aos critérios hermenêuticos, mormente o sistemático, entendo com razão o impetrante.

Ante o exposto, com todas as vênias do entendimento externado pela culta maioria, concedo a ordem para, reconhecendo a falta de condição de procedibilidade, anular o processo ab initio.

É como voto.

CERTIDÃO DE JULGAMENTO

SEXTA TURMA

Número Registro: 2007/0301158-9 HC 96992 / DF

MATÉRIA CRIMINAL

Número Origem: 20070110320122

EM MESA JULGADO: 12/08/2008

Relatora
Exma. Sra. Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG)

Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro NILSON NAVES

Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. BRASILINO PEREIRA DOS SANTOS

Secretário
Bel. ELISEU AUGUSTO NUNES DE SANTANA

AUTUAÇÃO

IMPETRANTE: JOSE ALFREDO GAZE DE FRANÇA (ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA)

IMPETRADO: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS

PACIENTE: JOSÉ FRANCISCO DA SILVA NETO

ASSUNTO: Penal - Crimes contra a Pessoa (art.121 a 154) - Crimes contra a vida - Lesão Corporal ( art. 129 ) - Violência Doméstica

CERTIDÃO

Certifico que a egrégia SEXTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

"Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Paulo Gallotti, denegando a ordem de habeas corpus, e o voto da Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura concedendo-a, a Turma, por maioria, denegou a ordem de habeas corpus nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Vencidos os Srs. Ministros Nilson Naves e Maria Thereza de Assis Moura, que a concediam."

Os Srs. Ministros Hamilton Carvalhido e Paulo Gallotti votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Não participou do julgamento o Sr. Ministro Og Fernandes.

Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Nilson Naves.

Brasília, 12 de agosto de 2008

ELISEU AUGUSTO NUNES DE SANTANA
Secretário

Documento: 776741 Inteiro Teor do Acórdão - DJ: 23/03/2009





JURID - Violência doméstica. Lesão corporal simples ou culposa [01/03/10] - Jurisprudência

 



 

 

 

 

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