Confundido com assaltante é preso indevidamente e leva 8 mil do Distrito Federal.
Circunscrição: BRASÍLIA
Processo: 2006.01.1.107562-4
Vara: TERCEIRA VARA DA FAZENDA PÚBLICA DO DF
Processo: 2006.01.1.107562-4
Ação: INDENIZAÇÃO
Requerente: ALESSANDRO ARAÚJO SILVA
Requerido: DISTRITO FEDERAL
SENTENÇA
O autor, devidamente qualificado na inicial, afirma que em 02/03/2006 foi preso em flagrante pelo crime de roubo qualificado, Auto de Prisão em Flagrante nº 121/2006, lavrado pela autoridade policial da Segunda Delegacia de Polícia, o que redundou no seu recolhimento na carceragem do Departamento de Polícia Especializada do Distrito Federal. Sustenta que a autoridade policial laborou em equívoco quanto à lavratura do flagrante contra a sua pessoa, pois constou no Auto de Prisão em Flagrante que a vítima teria reconhecido os autuados, o que, contudo, não foi confirmado pela vítima na audiência de instrução realizada pelo Juízo da 8ª Vara Criminal de Brasília. Afirma que o Delegado de Polícia, em juízo, também afirmou que não houve procedimento formal de reconhecimento na Delegacia de Polícia. Sustenta que a falha da Polícia Civil também decorreu do fato de não se ter checado o álibi alegado pelo autor, que estava em seu local de trabalho antes da prisão, e de não se ter determinado novas investigações para tentar identificar o terceiro indivíduo envolvido no roubo, identificado pelos dois outros coautores como Tiago. Alega, ademais, que em 03/03/2006, sexta-feira, o MM. Juiz de Direito Plantonista concedeu-lhe o benefício da liberdade provisória, mas houve injustificada demora na sua liberação, eis que esta só ocorreu às 16 horas do dia 06/03/2006, em razão de não ter constado o número do inquérito policial no alvará de soltura do juízo plantonista. Aduz, por fim, que além de ter ficado na carceragem por setenta e duas horas, acabou sendo processado criminalmente em razão do Auto de Prisão em Flagrante que nunca deveria ter sido lavrado contra a sua pessoa, sofrendo dano moral e material decorrentes da prisão ilegal e da existência do processo criminal.
Invocando o art 37, § 6º, da Constituição Federal, o art. 954 do Código Civil de 2002 e juntando os documentos de fls. 26/301, pede o autor a condenação do réu a pagar-lhe quantia que indenize o dano material decorrente da contratação de advogado para a defesa no processo criminal, no valor de R$6.00,00 (seis mil reais), e que seja reparado o dano moral sofrido, mediante o pagamento de quantia no valor de R$50.000,00 (cinqüenta mil reais).
A decisão de fl. 303 concedeu ao autor a gratuidade de justiça.
Citado (fl. 308), o réu contestou às fls. 309 e seguintes. Alegou que não houve falha na atuação dos agentes estatais da persecução criminal, sustentando que, em face dos elementos colhidos no momento do flagrante, a autoridade policial não tinha outra alternativa senão lavrá-lo contra o autor. Ponderou que, se não existissem elementos indiciários de prova contra o autor, o Ministério Público não o teria denunciado. Sustentou que a absolvição do autor na esfera criminal não é suficiente para assegurar direito à indenização, pois a causa de pedir diz respeito à atuação dos órgãos da Polícia, e não restou demonstrada a existência de abuso de poder na prisão. Afirmou que a vítima, no processo criminal, apenas disse que tinha dúvidas em reconhecer o autor como um dos indivíduos que praticou o roubo, pois não teria visto o rosto do terceiro autor do crime. Sobre a demora em soltar o autor, afirmou que decorreu do fato de a decisão do juízo plantonista não identificar suficientemente quem seria a pessoa a ser solta, o que só foi possível realizar na segunda-feira imediatamente seguinte, mediante ofício encaminhado pela 8ª Vara Criminal de Brasília. Aduziu que não houve dano material, pois o autor poderia ter optado pela assistência judiciária gratuita. E, quanto ao dano moral, pelo princípio da eventualidade, afirmou que a reparação no montante de R$50.000,00 (cinqüenta mil reais) é excessiva. Juntou os documentos de fls. 321/330.
Réplica às fls. 333/344.
Nas audiências de instrução e julgamento, cujas atas encontram-se às fls. 393 e 413, foi colhido o depoimento pessoal do autor e foram ouvidas seis testemunhas (fls. 394/406 e 414/416).
Alegações finais das partes às fls. 422/427 e 428/439.
É o relatório. Passo ao julgamento.
Inicialmente, registro que a demora na prolação da sentença no presente processo deve-se, primeiramente, ao fato de que este não foi remetido à presente magistrada, vinculada pela colheita da prova oral, no momento da sua conclusão para sentença (fl. 445). E, a partir da conclusão realizada à fl. 446, mais recente e específica para esta magistrada, o tempo transcorrido para a prolação da sentença deveu-se à necessidade de priorizar a elaboração de sentenças nos processos da Meta 2 do Conselho Nacional de Justiça (distribuídos até 31/12/2005), bem como em processos de Varas de Família por onde esta magistrada passou, os quais envolviam questões de maior urgência.
Feitas essas considerações, passo à análise das questões necessárias ao julgamento.
Inicialmente, sustenta o autor que sua prisão foi ilegal porque foi baseada em Auto de Prisão em Flagrante lavrado com informação equivocada, já que nele constou que a vítima teria reconhecido os três indivíduos que foram presos na ocasião, quando na verdade a vítima disse, em juízo, que não houve reconhecimento formal na delegacia, e que apenas teria identificado de longe, na data da prisão, dois dos indivíduos autuados, deixando de reconhecer o autor.
O Auto de Prisão em Flagrante está juntado às folhas 38/50. Examinando-o, verifica-se que os três primeiros depoimentos que o integram, prestados pelos policiais militares que participaram da diligência que resultou na prisão em flagrante, atestam que os autuados teriam sido conduzidos à presença da vítima e esta os teria reconhecido como os autores do delito. Ocorre que o depoimento da vítima, que também instrui o Auto de Prisão em Flagrante (fls. 43/33), esclarece que ela, durante o roubo, não conseguiu ver direito o rosto do terceiro assaltante, e que, ao observar os indivíduos presos pela polícia na ocasião, reconheceu apenas o autuado Lúcio como o que segurava a arma e o autuado Diego como o assaltante de bigode, tendo "dúvidas em afirmar se Alessandro Araújo Silva era um dos autores do delito, pois, como já afirmou, não viu o seu rosto". Além disso, verifica-se que também constou no Auto de Prisão em Flagrante que os dois outros autuados, ao serem ouvidos pela autoridade policial, isentaram o autor de responsabilidade pela infração criminal, dizendo que o terceiro coautor do crime seria outra pessoa, chamada Tiago (fls. 47/50).
Ora, a alegação do autor de que o Auto de Prisão em Flagrante foi lavrado com erro, em razão de ter constado nos depoimentos dos policiais que a vítima teria reconhecido os autuados, não merece prosperar, posto que o Auto de Prisão em Flagrante deve ser analisado como um todo, abrangendo todos os depoimentos que o instruem, e não depoimentos isolados. E, sendo assim, é forçoso concluir, no caso em exame, que os depoimentos da vítima e dos demais autuados, examinados em conjunto com os depoimentos dos policiais, evidenciaram que o autor da presente demanda não fora reconhecido pela vítima, nem apontado pelos supostos comparsas como um dos coautores do crime.
A análise conjunta de todos os depoimentos que integraram o Auto de Prisão em Flagrante forneceu elementos seguros sobre o ocorrido, inexistindo o erro alegado pelo autor. No máximo, o que se poderia dizer é que os depoimentos dos policiais não foram redigidos de forma precisa na parte em que se referem ao reconhecimento feito pela vítima, mas isso não trouxe qualquer prejuízo ao autor, pois os demais depoimentos deixaram clara a ausência do reconhecimento. Tanto isso é verdade que o juízo plantonista, ao apreciar o pedido de liberdade provisória formulado pelo autor, tomou conhecimento de que a vítima não o havia reconhecido, e concluiu pela insuficiência de elementos para manter o autor preso durante o processo criminal.
Ainda sobre a mesma questão, sustenta o autor que houve erro na lavratura do Auto de Prisão em Flagrante, porque não houve reconhecimento formal pela vítima na Delegacia. Contudo, o que o Auto de Prisão em Flagrante registrou foi o reconhecimento informal feito na data da prisão, que normalmente se faz com a simples diligência de permitir que a vítima observe os suspeitos à distância, mas sem os requisitos exigidos no Código de Processo Penal Brasileiro no sentido de que os suspeitos sejam colocados ao lado de outros indivíduos com características físicas semelhantes para observação, em sala própria para o tipo de prova em questão.
Ora, esse reconhecimento informal, que costuma constar nos depoimentos que instruem os autos de prisão em flagrante e vários inquéritos policiais, é tido como um elemento indiciário de convicção válido para efeito de lavratura do auto ou para a conclusão do inquérito policial, e não se reconhece qualquer ilegalidade na prisão em flagrante em decorrência da realização de tal tipo diligência, até porque as situações de flagrante delito dependem de outros elementos para se configurarem, devidamente descritos no dispositivo legal pertinente do Código de Processo Penal Brasileiro, prescindindo, em muitos casos, do reconhecimento informal feito pela vítima.
Registre-se, ainda, que embora a vítima tenha dito, no processo criminal, que não houve reconhecimento na delegacia, pois os autuados teriam sido reconhecidos pela vítima de um outro assalto ocorrido anteriormente, em seguida admitiu que "o depoente viu apenas o elemento de cabeça raspada saindo da viatura da polícia e o reconheceu" (fl. 155). Assim, a vítima, no processo criminal, não negou categoricamente a realização do reconhecimento informal ao qual se aludiu acima. E, no depoimento prestado no presente processo (fls. 396/397), a vítima confirmou que realizou esse reconhecimento informal na Delegacia, observando de longe os três indivíduos presos na ocasião. Nesse sentido, o seguinte trecho do seu depoimento (fl. 396):
"que no próprio dia em que foi assaltado, o depoente tomou conhecimento de que os policiais militares acionados para diligenciarem em busca dos suspeitos haviam prendido três suspeitos; que uma viatura policial chegou à residência do depoente comunicando esse fato, e o depoentes foi imediatamente levado à 2ª DP; que, ao chegar no estacionamento da 2ª DP, o policial abriu o porta-malas da viatura, mostrou ao depoente alguns objetos que estavam dentro do porta-malas, alguns dentro de sacolas, e indagou se consistiam nos objetos subtraídos da residência do depoente; que o depoente reconheceu imediatamente os objetos como seus; que, ainda no pátio, o depoente observou quando três rapazes algemados foram retirados de uma outra viatura e levados para o interior da delegacia; que nesse momento o depoente percebeu que dois dos indivíduos com certeza eram os assaltantes, um deles era o careca e o outro era o que tinha um bigode fino e olhos claros;que o depoente não reconheceu o terceiro indivíduo;"
Como se vê, a vítima esclareceu que houve reconhecimento informal no dia da prisão dos suspeitos, de modo que as informações constantes no Auto de Prisão em Flagrante estão corretas, inexistindo o erro alegado pelo autor.
Quanto à alegação do autor de que a autoridade policial não tinha elementos para justificar a manutenção da sua prisão, já que não fora reconhecido pela vítima, nem apontado pelos outros dois suspeitos como coautor do delito, também não merece acolhimento. Nesse ponto, verifica-se que os depoimentos dos policiais militares que integram o Auto de Prisão em Flagrante referem que o autor e os dois outros suspeitos presos na ocasião estavam sentados no mesmo banco de um ônibus, lado a lado, próximos de algumas sacolas contendo os objetos que depois foram reconhecidos pela vítima como os que haviam sido subtraídos. Segundo os policiais, foi também encontrada uma arma de fogo próxima às sacolas. Assim, a ordem de prisão foi dada aos três indivíduos em razão de terem sido encontrados em situação indicativa de serem os autores do crime, logo após a sua ocorrência, haja vista o fato de estarem sentados lado a lado e próximos dos objetos subtraídos e da arma de fogo.
O art. 302, inciso IV, do Código de Processo Penal Brasileiro, considera em flagrante quem é encontrado, logo depois do crime, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser o autor da infração. Essa foi a situação que motivou a prisão do autor e dos dois outros suspeitos, haja vista o local onde estavam e as circunstâncias em que se encontravam no momento da abordagem policial. Assim, a prisão em flagrante do autor e dos dois outros suspeitos não foi motivada pelo reconhecimento informal feito pela vítima, sendo este absolutamente irrelevante para justificar a prisão do autor.
Registre-se que a vítima afirmou, tanto no momento da lavratura do Auto de Prisão em Flagrante, quanto no processo criminal, que não poderia reconhecer o terceiro assaltante, porque durante a execução do crime ele não mostrou o seu rosto. Ora, essa circunstância, no momento da lavratura do flagrante, explicou, para a autoridade policial, o fato de o autor Alessandro não ter sido reconhecido. Por fornecer coerência à situação de flagrância narrada pelos policiais militares que participaram da diligência que resultou na prisão, a ausência de reconhecimento do autor foi tida por irrelevante pela autoridade policial, o que é adequado nessa fase da persecução penal, já que nessa atividade o Estado não busca um juízo de certeza sobre os fatos, e sim a coleta de provas da materialidade do delito e de indícios de autoria que possam subsidiar futura ação penal.
A isenção de culpa constante nos depoimentos dos dois outros suspeitos que foram presos junto com o autor também foi considerada irrelevante pela autoridade policial, na tomada de decisão sobre a manutenção ou não da prisão do autor, posto que tal tipo de conduta é comum, e não raro decorre da mútua colaboração existente entre os infratores que agem em conjunto. Além disso, a própria autoridade policial esclareceu, no depoimento prestado no processo criminal, que os dois outros suspeitos que foram presos com o autor ouviram, antes de prestar seus depoimentos, que a vítima não havia conseguido identificar o terceiro autor do roubo, o que, na ótica da autoridade policial, pode ter incentivado a isenção de culpa ocorrida nos depoimentos.
Faz-se necessário analisar, ainda, as alegações do autor de que sua prisão foi ilegal porque a autoridade policial deixou de realizar diligências para confirmar o seu álibi, pois o autor informou estar no seu local de trabalho no momento da prática do crime, bem como porque a autoridade policial não determinou diligências para tentar identificar quem seria Tiago, o terceiro infrator indicado pelos dois outros suspeitos do crime.
A solução da questão passa pelo exame da natureza da atividade desenvolvida pelo Estado ao lavrar o auto de prisão em flagrante e elaborar as demais peças que, junto com ele, integram o inquérito policial, bem como pela verificação dos princípios que regem essa atividade. Sobre a questão, ensina Guilherme de Souza Nucci, na obra Código de Processo Penal Comentado, Ed. RT, 8ª Edição, págs 70/71:
"Origem e razão de ser do inquérito policial: (...) a denominação inquérito policial, no Brasil, surgiu com a edição da Lei 2.033, de 20 de setembro de 1871, regulamentado pelo Decreto 4.824, de 22 de novembro de 1871, encontrando-se no art. 42 daquela lei a seguinte definição: 'O inquérito policial consiste em todas as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices, devendo ser reduzido a instrumento escrito' (...). Sua finalidade é a investigação do crime e a descoberta do seu autor, com o fito de fornecer elementos para o titular da ação penal promovê-la em juízo (...). Esse objetivo de investigar e apontar o autor da infração sempre teve por base a segurança da ação da justiça e do próprio acusado, pois, fazendo-se uma instrução prévia, através do inquérito, reúne a polícia judiciária todas as provas preliminares que sejam suficientes para apontar, com relativa firmeza a ocorrência de um delito e o seu autor (...). pelo fato de ser apenas preparatório, possui características próprias tais como o sigilo, a falta de contrariedade da defesa, a consideração do indiciado como objeto da investigação e não como um sujeito de direitos (...), a impossibilidade de se argüir a suspeição da autoridade policial que o preside, a discricionariedade na colheita das provas, entre outras."
Mais adiante, na pág.73, o mesmo autor, ao tratar dos sistemas do processo penal, e afirmar que nosso sistema ainda é um misto do inquisitivo e do acusatório, esclarece que a atividade desenvolvida pela polícia judiciária, no inquérito policial, é eminentemente inquisitiva, razão pela qual prevalece o sigilo, a ausência de contraditório e de ampla defesa, a impossibilidade de suscitar a parcialidade da autoridade policial, dentre outros aspectos. É certo que algumas garantias são asseguradas constitucionalmente ao suspeito, mesmo nessa fase da atividade estatal, como o direito de ter sua prisão decretada apenas nas hipóteses legais, o direito de ter sua prisão comunicada à autoridade competente e a quem indicar, dentre outros, mas isso não significa que na fase do inquérito policial estejam presentes todas as garantias do devido processo legal, já que este só será integralmente respeitado na fase judicial da persecução penal.
Ora, se no inquérito policial - e o auto de prisão em flagrante é um documento que inicia um inquérito -, não há direito ao contraditório e à ampla defesa, sendo ainda discricionário o poder da autoridade policial para decidir sobre a realização ou não de determinada diligência ou prova, não há como considerar formalmente nula a prisão do autor e a conclusão do inquérito policial em seu desfavor, em razão da falta de diligências para verificar se o autor estava mesmo trabalhando no momento do crime ou para tentar identificar quem seria Tiago, o coautor indicado pelos dois outros suspeitos.
Faz-se necessário verificar, contudo, se a falta de realização dessas diligências tornaram ou não materialmente ilegal a prisão e a própria instauração do processo criminal em face do autor. Isso, porque todo poder discricionário, atribuído a qualquer autoridade, deve ser exercido com razoabilidade e proporcionalidade, sendo necessário avaliar, sob esse aspecto, se a atuação da autoridade policial foi adequada.
Nesse ponto, tenho que a decisão da autoridade policial, de concluir o inquérito policial em face do autor e dos demais suspeitos, sem realizar as diligências referidas acima, não constituiu atuação desprovida de razoabilidade.
Em relação ao suposto coautor Tiago, não havia qualquer circunstância que possibilitasse ou recomendasse novas diligências, já que o nome dado pelos dois outros suspeitos poderia ser falso, e a vítima sequer poderia ajudar na identificação da fisionomia do terceiro infrator. E, em relação ao álibi alegado pelo autor, mesmo que ele fosse confirmado por terceira pessoa, a autoridade policial não deixaria de ter elementos indiciários contra o autor, dadas as condições em que ele fora preso.
Assim, foi razoável a decisão da autoridade policial de deixar a apuração desse fato - o álibi - ao juiz criminal, posto que cabia a este, mesmo diante de um estado de dúvida, realizar um juízo de valor definitivo sobre a inocência ou a culpabilidade do acusado, aplicando, se necessário, o princípio in dubio pro reu. Com efeito, a função da autoridade policial, no inquérito, não é fazer esse juízo de valor, mas apenas apresentar ao órgão acusador - o Ministério Público -, os elementos indiciários colhidos contra os possíveis suspeitos. Assim, repita-se, a situa
ção de dúvida que a comprovação do álibi do autor poderia gerar na autoridade policial não lhe permitiria concluir de plano pela inocência do autor, evitar a conclusão do inquérito em seu desfavor e obstar o oferecimento de denúncia contra ele, porque sempre subsistiram os demais elementos relatados no flagrante.
Sobre essa questão, relevante ainda registrar que o Delegado de Polícia que lavrou o auto de prisão em flagrante, no depoimento prestado neste juízo, justificou de forma adequada a decisão tomada em relação à lavratura do auto contra o autor, bem como a conclusão do inquérito policial também em desfavor do autor, sem a realização das diligências que o autor reputava necessárias. Do depoimento, destaco o seguinte trecho: (fl. 399):
"indagado se em razão do depoimento do autor Alessandro na delegacia, teve dúvidas sobre a participação de Alessandro nos fatos, respondeu que o agente público, no exercício das funções, deve decidir pela manutenção ou não da prisão em flagrante não com base em um juízo de certeza, mas com base em indícios, e no caso o depoente julgou que havia indícios suficientes para a manutenção da prisão, tanto que o caso gerou denúncia e processo criminal em relação aos três (...); que durante o processamento do inquérito não houve nenhuma diligência com vistas à identificação do terceiro assaltante, porque a convicção do depoente, até hoje, é a de que esse terceiro é o autor Alessandro; que não houve nenhuma diligência no sentido de apurar se eram verdadeiras as afirmativas do autor Alessandro no sentido de que estava voltando do trabalho, (...), pois o CPP permite que o delegado acolha ou não os pedidos de diligências feitos pelos advogados dos indivíduos presos em flagrante e, no caso concreto, o depoente julgou desnecessárias essas diligências porque os indícios de participação no crime eram muito fortes."
Finalmente, resta analisar a alegação de falha estatal decorrente da excessiva demora na liberação do autor, após a concessão do benefício da liberdade provisória, eis que este foi concedido em 03/03/2006, sexta-feira, pelo juízo plantonista, mas o autor só foi posto em liberdade às 16 horas do dia 06/03/2006, segunda-feira.
Sobre essa questão, restou comprovado, no depoimento prestado às fls. 414/416 pelo então Diretor do Centro de Detenção Provisória, Dr. Waldemiro da Fonseca Filho, que existia um órgão no Centro de Detenção Provisória, chamado Núcleo de Arquivos e Prontuários, que funcionava em regime de plantão e que tinha entre suas atribuições a de solicitar esclarecimentos ao Poder Judiciário quando do recebimento de ordens de liberação de detentos com dados insuficientes. Segundo a testemunha, na hipótese de se constatar a ausência de dados, o servidor de plantão deveria comunicar o fato ao seu cheque imediato, cabendo a este entrar em contato com o Poder Judiciário para sanar a dúvida, providência que também é realizada nos finais de semana.
Ocorre que no documento de fls. 321/322 consta que o então chefe do Núcleo de Arquivos e Prontuários (identificado como tal pela testemunha de fls. 414/416) apurou que a ordem de liberação do autor chegou ao Centro de Detenção Provisória às 21h45 do dia 03/03/2006 (sexta-feira), tendo sido entregue ao referido órgão na pessoa da Agente Penitenciária Leny Prates Coelho. Consta ainda nesse documento que a decisão não continha dados sobre a filiação do interno, a data de nascimento ou o número do inquérito policial. Assim, registra o documento:
"a plantonista responsável pela soltura não tinha dados suficientes para o pronto cumprimento da ordem emanada, restando dúvidas quanto à certa liberação do interno naquele dia, então optou por constatar a real situação no primeiro dia útil forense, onde obteria as informações necessárias, o que se deu no dia 06/03/2006 (segunda-feira), conforme ofício nº 901/06, oriundo da 8ª Vara Criminal de Brasília..."
Ora, confrontando o depoimento testemunhal de fls. 414/416 com as informações que constam no documento de fls. 321/322, verifica-se que, embora o chefe do CDP tenha dito que o Núcleo de Arquivos e Prontuários do CDP funciona ininterruptamente, em regime de plantão, tendo como atribuição a realização de diligências, inclusive nos fins de semana, para sanar dúvidas a respeito de ordens judiciais de liberação de detentos, verifica-se que a decisão da agente pública responsável pelo caso do autor, de esperar até o primeiro dia útil do expediente forense para buscar as informações necessárias à soltura do autor, revelou atuação desidiosa do Estado, causando um período injustificado de manutenção do autor na prisão.
Com efeito, é fato notório que, na época dos fatos, o plantão judicial se realizava não apenas das 18h00 às 24h00, durante os dias da semana, mas também das 12h00 às 24h00 nos fins de semana e feriados. Em virtude dessa circunstância, era dever dos agentes públicos do Núcleo de Arquivos e Prontuários do CDP diligenciar junto ao plantão judiciário,
de onde havia emanado a ordem de liberação, para obter os dados necessários ao devido cumprimento da ordem judicial. Esse contato seria possível no dia seguinte ao da prolação da decisão que concedeu a liberdade provisória, ou seja, no sábado, dia 04 de março de 2006, sendo certo que o número do Auto de Prisão em Flagrante certamente era de conhecimento do juízo plantonista, eis que esse documento foi valorado na decisão que concedeu a liberdade provisória, de modo que ficou arquivado na documentação mantida pelos servidores encarregados do plantão judicial.
Considerando-se que a diligência tivesse sido feita logo no início do expediente do plantão judicial do sábado, às 12h00 do dia 04/04/2006, tem-se como razoável que a soltura do autor ocorreria na tarde do sábado. Contudo, ele permaneceu preso por mais dois dias inteiros, pois só foi solto na tarde da segunda-feira. Desse modo, o autor ficou cerca de 48 horas a mais na prisão de forma indevida.
Não se considera que houve excesso na prisão no período compreendido entre a noite do dia 03/03/2006 e a tarde do dia 04/03/2003 em face da afirmação, feita pela testemunha de fls. 414/416, no sentido de que as ordens de liberação só eram cumpridas pelo CDP até às 22h00, por razões de segurança para o próprio detento. E isso, porque consta que a ordem de liberação do autor só chegou ao CDP às 21h45, ou seja, praticamente sem condições de ser cumprida no mesmo dia.
De acordo com Rui Stoco, na obra Tratado de Responsabilidade Civil, 6ª Edição, Ed. RT, pág. 1.030, a prisão indevida, seja qual for, ainda que não se subsuma com perfeição à hipótese enunciada no art. 5º, inciso LXXV, da Constituição Federal de 1988, enseja reparação, pois constitui expressão da desídia e do comportamento açodado ou prepotente da autoridade, que se consubstancia em atuar culposo. A reparação por ofensa à liberdade pessoal está prevista também no caput do art. 954 do Código Civil de 2002, sendo certo que nem o Código Civil, nem a Constituição Federal, esgotam as possíveis hipóteses de prisão ilegal. Conclui o doutrinador:
"(...) há inúmeras hipóteses de prisão indevida por abuso de autoridade por parte da autoridade policial sem que a vítima venha a ser objeto de investigação ou de ação penal. Também nesses casos impõe-se a responsabilização do Estado, posto que o abuso do direito, como o abuso do poder, dão ensancha à reparação por parte do Estado, respondendo o servidor civil e penalmente e, ainda, no plano administrativo, para efeito de demissão.
Do que se infere que nem a Constituição nem a Lei Civil estabelecem hipóteses clausuladas de ofensa à liberdade pessoal."
No caso em exame, evidente que a falha dos órgãos estatais em providenciar a mais breve soltura do autor, em face da obtenção da liberdade provisória, configura prisão ilegal, posto que ninguém deve permanecer recolhido no cárcere por tempo superior ao devido. Crê-se, evidentemente, que não houve dolo por parte dos agentes públicos, dada a responsabilidade com que cumprem suas funções; mas a falta de diligências junto ao juízo plantonista, para permitir o mais breve cumprimento da ordem judicial de liberação, e o aguardo do primeiro dia de expediente forense, injustificadamente, revelam conduta inadequada.
Quanto à extensão do dano moral, embora as testemunhas arroladas pelo autor tenham detalhado seu sofrimento por ter sido preso, pela divulgação do crime e de sua foto na mídia, e por ter respondido ao processo, no caso em exame a reparação deve ater-se apenas às 48 horas a mais de permanência do autor da prisão, pois, conforme se expôs acima, a manutenção da prisão em flagrante, a lavratura do auto correspondente e a conclusão do inquérito em desfavor do autor, o que gerou o processo criminal, não configuraram a responsabilidade do Estado, eis que tais atos foram considerados lícitos.
Sobre a permanência por mais tempo na prisão, o depoimento pessoal do autor, associado às regras de experiência, revela que foi causa de intenso sofrimento, eis que gerou no autor sensação de grande humilhação. Evidentemente que esse sentimento ainda se faz presente mesmo depois de transcorrido algum tempo após o fato, revelando-se como um fato que permanece na memória involuntariamente, e que, muitas vezes, o ser humano quer esquecer. A privação da liberdade é de fato um ato que atinge a dignidade da pessoa humana de forma muito grave, gerando um dano moral intenso.
Sopesando esses elementos, e tendo em vista, ainda, que a indenização será suportada por toda a sociedade, pois será paga pelo Estado, tenho que é razoável a quantia de R$8.000,00 (oito mil reais), a título de reparação pelo dano moral sofrido. O valor pedido pelo autor na inicial é extremamente elevado, e importaria em enriquecimento ilícito, pois tal montante costuma ser fixado apenas em casos de dano à saúde que gerem deformidade permanente, em casos de morte de entes da família, por exemplo, em que o sofrimento é bem mais intenso.
Quanto ao dano material, consiste no valor dos honorários advocatícios do profissional que defendeu o autor no processo criminal. Entendo, contudo, que não há como condenar o réu a indenizar esse dano, pois se verificou, conforme fundamentação acima, que a prisão em si do autor e a instauração do processo criminal não configuraram atuação indevida do Estado, estando revestidas de legalidade.
Ante o exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTES os pedidos formulados na inicial, para condenar o réu a pagar ao autor, a título de reparação do dano moral, a quantia de R$8.000,00 (oito mil reais), acrescida de juros de mora à taxa legal, de 1% ao mês desde a data da citação (27/10/2006 - fl. 308) e atualizada monetariamente pelo INPC a partir da data da publicação (e não da prolação) da presente sentença. Julgo improcedente o pedido de indenização por dano material. Declaro resolvido o mérito, nos termos do art. 269, inciso I, do Código de Processo Civil Brasileiro.
Custas pelo réu, que é isento, inexistindo valores a serem reembolsados ao autor, posto que beneficiário da gratuidade de justiça. Condeno o réu a pagar ao autor honorários advocatícios que arbitro em 10% sobre o valor da condenação.
Sentença não sujeita ao reexame necessário (art. 475, § 2º, CPC).
Publique-se, registre-se e intimem-se.
Brasília, 10 de março de 2010.
PRISCILA FARIA DA SILVA
Juíza de Direito Substituta
JURID - Ação de Indenização [23/04/10] - Jurisprudência
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