Anúncios


sexta-feira, 9 de abril de 2010

JURID - Tortura. Artigo 1º, inciso II, da lei nº 9.455/97. [09/04/10] - Jurisprudência


Recurso em sentido estrito. Tortura. Artigo 1º, inciso II, da lei nº 9.455/97. Incompetência do juízo.
Conheça a Revista Forense Digital

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte - TJRN.

Processo: 2009.009631-4

Julgamento: 06/04/2010

Órgao Julgador: Câmara Criminal

Classe: Recurso em Sentido Estrito

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 2009.009631-4 - NATAL

RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO

RECORRIDA: MARIA DO SOCORRO SILVA DO NASCIMENTO

ADVOGADO: FRANCISCO AIRES PESSOA

RELATORA: DESEMBARGADORA JUDITE NUNES

EMENTA: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TORTURA. ARTIGO 1º, INCISO II, DA LEI Nº 9.455/97. INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO. DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO DE MAUS TRATOS CONTRA MENOR DE 14 ANOS (ARTIGO 136, parágrafo terceiro, DO CÓDIGO PENAL). IRRESIGNAÇÃO MINISTERIAL. MÃE QUE ESPANCA OS FILHOS REITERADAMENTE E COM EXAGERO, SEM FINALIDADE EDUCATIVA. COMPROVAÇÃO NOS AUTOS DO DOLO ESPECÍFICO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

Vistos, relatados e discutidos estes autos, deles sendo partes as inicialmente identificadas, ACORDAM, os Desembargadores que compõem a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, em Turma, à unanimidade de votos, dar provimento ao recurso em sentido estrito, para ter como competente para a espécie o MM. Juiz de Direito da 11ª Vara Criminal da Comarca de Natal, em dissonância ao parecer da Procuradoria de Justiça, tudo conforme o voto da relatora, que passa a integrar o acórdão.

RELATÓRIO

Narra a exordial acusatória que, entre os dias 23 e 24 do mês de novembro de 2005, MARIA DO SOCORRO SILVA DO NASCIMENTO submeteu sua filha MARIA RAQUEL DA SILVA a intenso sofrimento físico, decorrente de espancamento com um pedaço de madeira, o que resultou nas lesões descritas no laudo de exame de corpo e delito (corte na cabeça, escoriações, olho arroxeado com pequena hemorragia e boca com ferimentos), restando denunciada pela prática de tortura (artigo 1º, inciso II, da Lei nº 9.455/97).

Entretanto, o juízo da 11ª Vara Criminal, competente para processar a prática de tortura, entendeu tratar-se a espécie de crime de maus tratos cometido contra menor de 14 (catorze) anos (artigo 136, parágrafo terceiro, do Código Penal), declarando-se, assim, incompetente para julgar a causa, motivo pelo qual se irresignou o parquet, interpondo o presente recurso em sentido estrito, fundamentado no inciso II do artigo 581 do Código de Processo Penal, objetivando o reconhecimento da competência do juízo da 11ª Vara Criminal para o processo e julgamento do feito.

Intimada para oferecer contra-razões, a defesa quedou-se inerte, conforme atesta certidão de fls. 241.

Em sede de juízo de retratação, o magistrado a quo manteve a decisão em todos os seus termos (fls. 243).

Em seu parecer de estilo, a 3ª Procuradora de Justiça, Drª Tereza Cristina Cabral Vasconcelos Gurgel, opinou pelo conhecimento e improvimento do recurso em sentido estrito, uma vez entender que não restou configurada a figura típica descrita no artigo 1º, inciso II, da Lei de Tortura.

É o que importa relatar.

VOTO

Presentes os pressupostos de admissibilidade recursal, conheço do recurso.

Entretanto, data maxima venia, do entendimento da Procuradoria de Justiça, entendo que merece prosperar a irresignação ministerial, uma vez que se encontram reunidos, in casu, todos os elementos que configuram a prática do crime de tortura, tipificado no artigo 1º, inciso II, da Lei nº 9.455/97, na modalidade conhecida como "tortura castigo". Senão, veja-se:

O artigo 1º, inciso II, da Lei nº 9.455/97, dispõe:

Art. 1º Constitui crime de tortura:

(...)

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena - reclusão, de dois a oito anos.

Assim, pelo que consta no dispositivo legal transcrito, o delito de tortura, para a sua caracterização, exige a presença do elemento subjetivo específico consistente na vontade livre e consciente de causar grande sofrimento físico ou mental na vítima, seja por prazer, sadismo, ódio ou qualquer outro motivo repugnante. Por outro lado, o crime de maus tratos previsto no artigo 136 do Código Penal implica em expor a vítima à situação de risco de vida ou de saúde abusando dos meios de coerção e disciplina.

Dispõe o artigo 136 do Código Penal:

"Maus tratos

Art. 136. Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina.

Pena - detenção, de dois meses a um ano, ou multa." (Grifos acrescidos).

Da análise do arcabouço probatório erigido nos autos, em momento algum restou demonstrado que os espancamentos, constantemente impingidos pela ré na vítima e seus irmãos, tinham caráter educativo ou disciplinar. Por outro lado, a ora recorrida batia nos filhos reiteradamente, com mangueira, pedaços de madeira e objetos diversos, chegando a quebrar a clavícula de seu filho Joelson Moisés da Silva, como se vê dos depoimentos adiante transcritos:

Joelson Moisés da Silva (fls. 12): "Que, sua mãe bate nele declarante e nos irmãos há muito tempo; que, não sabe dizer desde quando vem sendo espancado pela mãe, porém sabe que é há bastante tempo; Que, sua genitora bate de pau, de chinelo, de tapa e de corda; Que, certa vez, sua mãe bateu com um pau no seu ombro e quebrou a clavícula (...); Que, sua mãe tranca a casa e deixa 'eu e meus irmãos sozinhos de tarde e de noite'. Que sua irmã RAQUEL foi espancada de pau pela mãe; Que é mentira que RAQUEL caiu do berço; que tem medo de sua genitora; Que, ontem sua mãe lhe bateu com força."

Josafá Moisés da Silva (fls. 10): "Que, quando seus filhos eram bebês MARIA DO SOCORRO tratava bem de seus filhos, à medida em que foram crescendo, porém, ela mudou de comportamento, bate nas crianças de pau, de murro, de tapa, de corda e de mangueira; (...) Que, seus filhos sempre lhe reclamam que apanham de pau; que certa vez, MARIA DO SOCORRO bateu com um pau na clavícula de JOELSON e chegou a quebrar (...) Que, MARIA DO SOCORRO deixa os filhos trancados em casa, sai e somente retorna tarde da noite; Que as crianças ficam passando fome (...)".

Outrossim, o Laudo de Exame de Corpo de Delito (fls. 151/162) revela que as lesões sofridas pela criança não foram todas provocadas no mesmo dia, o que evidencia a contumácia com que a recorrida espancava seus filhos. E tamanha brutalidade no tratamento das crianças aponta para a possibilidade de configuração do crime de tortura, visto que aquela subjugou, mediante violência, criança sobre a qual tem autoridade, causando-lhe grave sofrimento físico e mental.

Registre-se, por ser de todo pertinente, que, em nenhum momento a ora recorrida argumentou que bateu na criança para fins de educá-la ou discipliná-la, nem demonstrou arrependimento ou preocupação com o excesso; pelo contrário, negou sistematicamente a autoria das lesões sofridas pela vítima, criando hipóteses mirabolantes de que a mesma havia caído do berço e, posteriormente, que uma estante havia caído em cima da criança. E a sua atitude tentando esquivar-se da responsabilidade criminal demonstra a consciência da ilicitude de sua conduta e do mal que provocou na vítima.

Estes são os ensinamentos de Guilherme de Souza Nucci ao comentar o artigo 1º, inciso II, da Lei de Tortura ("Leis Penais e Processuais Comentadas". 4ªed. São Paulo: RT. 2009. p. 1127):

"21. Castigo pessoal ou medida de caráter preventivo: essa forma é a denominada "tortura castigo", visando a aplicação de medida repressiva ou preventiva. É natural que o sofrimento deva ser ilícito, pois há formas de aflição legalizadas, como a prisão em regime fechado. Outro exemplo é o espancamento de crianças pequenas, realizado por pais ou outros responsáveis por sua guarda. Conferir: TJAC: 'Comete crime de tortura quem, por meio de espancamento, provoca lesões que levem à morte menor de um ano e três meses de idade' (Ap. 00.001022-7, Plácido de Castro, Câmara Criminal, rel. Eliezer Scherrer, 02.08.202, v.u.)."

Continua o referido autor:

"23. Elemento subjetivo: é o dolo, possuindo elemento subjetivo do tipo específico, que é o de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Note-se que não se trata de submeter alguém a uma situação de mero mal-trato, mas sim, ir além disso, atingindo uma forma de ferir com prazer ou outro sentimento igualmente reles para o contexto. Não existe a forma culposa."

Sobre a distinção entre o crime previsto no artigo 1º, inciso II, da Lei nº 9.455/97 e o tipificado no artigo 136, parágrafo terceiro, do Código Penal, ensina o Ministro Gilson Dipp, no corpo do voto do Recurso Especial nº 610.395/SC:

"Percebe-se, pela tipificação dos delitos, a existência de algumas diferenças estruturais entre os mesmos. A maior delas reside no dolo específico de cada conduta.

A figura do inc. II do artigo 1º, da Lei nº 9.455/97 implica na existência de um dolo orientado para a causação de intenso sofrimento físico ou moral, com o fim de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Ou seja, o objetivo da conduta daquele que detém a guarda, o poder ou a autoridade sobre a vítima é, justamente, de forma livre e consciente, causar sofrimento de ordem física ou moral, como forma de castigo ou prevenção. Já o tipo do artigo 136 do Código Penal - mais abrangente do que o anterior - se aperfeiçoa com a simples exposição a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, em razão de excesso nos meios de correção ou disciplina. Portanto, enquanto na hipótese de maus-tratos, a finalidade da conduta é a repreensão de uma indisciplina, na tortura o propósito é causar o padecimento da vítima. Indispensável, pois, para configuração da segunda figura do crime de tortura, a prova cabal da intenção deliberada de causar o sofrimento físico ou moral, desvinculada do objetivo de educação."

(STJ, 5ª Turma, Julgado em 25/05/2004).

No mesmo sentido os seguintes julgados do Superior Tribunal de Justiça:

"CRIMINAL. RESP. TORTURA QUALIFICADA POR MORTE. DESCLASSIFICAÇÃO PARA CRIME DE MAUS-TRATOS QUALIFICADO PELA MORTE PROMOVIDA PELO TRIBUNAL A QUO. REVISÃO DA DECISÃO. IMPOSSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA Nº 07/STJ. RECURSO NÃO-CONHECIDO.

I. A figura do inc. II do artigo 1º, da Lei nº 9.455/97 implica na existência de vontade livre e consciente do detentor da guarda, do poder ou da autoridade sobre a vítima de causar sofrimento de ordem física ou moral, como forma de castigo ou prevenção.

II. O tipo do artigo 136, do Código Penal, por sua vez, se aperfeiçoa com a simples exposição a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, em razão de excesso nos meios de correção ou disciplina.

III. Enquanto na hipótese de maus-tratos, a finalidade da conduta é a repreensão de uma indisciplina, na tortura, o propósito é causar o padecimento da vítima.

IV. Para a configuração da segunda figura do crime de tortura é indispensável a prova cabal da intenção deliberada de causar o sofrimento físico ou moral, desvinculada do objetivo de educação.

V. Evidenciado ter o Tribunal a quo desclassificado a conduta de tortura para a de maus tratos por entender pela inexistência provas capazes a conduzir a certeza do propósito de causar sofrimento físico ou moral à vítima, inviável a desconstituição da decisão pela via do recurso especial. (...)".

(STJ, REsp 610.395/SC, Rel. Min. GILSON DIPP, 5ª T julgado em 25/05/2004, DJ 02/08/2004).

Pelo exposto, em dissonância ao opinamento ministerial, voto pelo conhecimento e provimento do recurso em sentido estrito, reconhecendo a competência da 11ª Vara Criminal da Comarca de Natal para conhecer e julgar o feito, determinando o encaminhamento dos autos ao juízo competente.

É como voto.

Natal, 06 de abril de 2010.

Desembargador ARMANDO DA COSTA FERREIRA
Presidente

Desembargadora JUDITE NUNES
Relatora

Dra. MARIA VÂNIA VILELA SILVA DE GARCIA MAIA
4ª Procuradora de Justiça




JURID - Tortura. Artigo 1º, inciso II, da lei nº 9.455/97. [09/04/10] - Jurisprudência

 



 

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário