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terça-feira, 13 de abril de 2010

JURID - Penal. Estelionato contra o INSS. Crime impossível. [13/04/10] - Jurisprudência


Penal. Estelionato contra o INSS. Crime impossível. Eficácia do meio e impropriedade do objeto. Princípio da consunção.
MBA Direito Comercial - Centro Hermes FGV

Tribunal Regional Federal - TRF2ªR

APELACAO CRIMINAL - 2004.51.07.000375-3

RELATOR: DESEMBARGADOR FEDERAL ABEL GOMES

APELANTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL

APELADO: ERENILDO DA SILVA BAIENSE

ADVOGADO: JOAO BATISTA DE AGUIAR LESSA

APELADO: ENEAS DA SILVA DAMACENO

ADVOGADO: SIDLEY FERNANDES PEREIRA

APELADO: DENAIR FRANCA DE OLIVEIRA

ADVOGADO: SIDLEY FERNANDES PEREIRA

ORIGEM: VARA ÚNICA DE ITABORAÍ (200451070003753)

EMENTA

PENAL. ESTELIONATO CONTRA O INSS. CRIME IMPOSSÍVEL. EFICÁCIA DO MEIO E IMPROPRIEDADE DO OBJETO. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. FALSIDADE IDEOLÓGICA E USO DE DOCUMENTO FALSO. ABSOLVIÇÃO MANTIDA.

I - Se a acusada reunia condições para obter benefício previdenciário, como a sentença dá por certo, procurar reforçar tal condição com a apresentação de documentos falsos não implica em pagamento de vantagem indevida em prejuízo alheio. Não se consubstancia tipicidade objetiva, haja vista que, por fazer jus ao benefício (a dita vantagem), não ocorreria prejuízo patrimonial alheio.

II - Os documentos falsos, nessas circunstâncias, avaliados segundo a tipicidade do crime de estelionato, seriam como um "tiro no cadáver", na medida em que viabilizariam o pagamento de vantagem que era devida, sem prejuízo para autarquia, o que jamais afligiria o tipo penal objetivo em questão. O meio até seria eficaz, mas o objeto não seria atingido por uso dele.

III - A jurisprudência do STJ consolidou entendimento específico sobre falso e estelionato, ao dizer na Súmula 17: quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido.

IV - Tratando-se de falsidade ideológica do art. 299, fato de menor gravidade em relação ao § 3º do art. 171 do CP, a absorção se impõem.

V - Se os documentos que não serviram para atingir o estelionato, por impropriedade do objeto, seriam capazes de prosseguir com outra potencialidade lesiva, não se pode prosseguir com sua punição autônoma.

VI - Recurso ministerial não provido.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, acordam os Membros da Primeira Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, por unanimidade, em negar provimento ao recurso, nos termos do Voto do Relator.

Rio de Janeiro, 10 de março de 2010 (data do julgamento).

ABEL GOMES
Desembargador Federal
Relator

RELATÓRIO

Trata-se de apelação interposta pelo Ministério Público Federal (fl. 226), em face da sentença de fls. 213/225, publicada em 16/03/2009 (fl. 225) e proferida pela Dra. MARIANA RODRIGUES KELLY E SOUSA, Juíza Federal Substituta da 1a. Vara Federal de Itaboraí/RJ, que julgou improcedente a pretensão punitiva do Estado, absolvendo GILBERTO SILVA, ERENILDO DA SILVA BAIENSE, DENAIR FRANÇA DE OLIVEIRA e ENÉAS DA SILVA DAMACENO, com fulcro no artigo 386, inciso VI, do CPP.

Os recorridos foram denunciados, às fls. 02/02-D, pela suposta prática do crime previsto no art. 171, § 3º c/c art. 29, ambos do CP, por recebimento de benefício previdenciário fraudulento, por parte de DENAIR, no período de setembro/1999 até julho/2003, mediante apresentação de declaração falsa subscrita por ERENILDO e contrato de parceria agrícola firmado por ENÉAS, documentos esses eivados de irregularidades.

A denúncia foi recebida em 03/12/2004 (fl. 98).

Em suas razões (fls. 227/231), o MPF sustentou que a absolvição do crime de estelionato qualificado não absorve a prática dos crimes de falsidade ideológica e de uso de documento falso, previstos nos artigos 299 e 304, ambos do CP. Ante ao evidente equívoco da tese jurídica esposada na r. sentença, ora guerreada, pugna pela condenação de ERENILDO DA SILVA BAIENSE (art. 299, por três vezes na forma do art. 71, ambos do CP), ENÉAS DA SILVA DAMACENO (art. 299, por duas vezes na forma do art. 71, ambos do CP) e DENAIR FRANÇA DE OLIVEIRA (304 c/c 299, por três vezes na forma do art. 71, todos do CP), contentando-se com a absolvição de GILBERTO, pedida, inclusive, nas alegações finais.

Contrarrazões ofertadas pelos acusados ENÉAS e DENAIR (fls. 235/238) e ERENILDO (fls. 265/268) pleiteando a manutenção da sentença, no que foram acompanhados pelo parecer ministerial, lançado pelo Procurador Regional da República, Dr. ROBERTO DOS SANTOS FERREIRA (fls. 272/276), o qual opinou igualmente pelo não provimento do recurso.

Observo, por fim, com fulcro no art. 251 do CPP, que a prescrição da pretensão punitiva pela pena em abstrato ocorrerá em 03/12/2016. Quanto à recorrida DENAIR, que já contava com mais de 70 anos de idade antes da prolação da sentença (fl. 02 do Relatório 468/03), a prescrição da pretensão punitiva pela pena em abstrato ocorrerá em 03/12/2010.

É o relatório.

À douta Revisão.

Rio de Janeiro, 13 de janeiro de 2010.

VOTO

1. Admissibilidade

Preenchidos os pressupostos de admissibilidade. Conheço do recurso.

2 Da impossibilidade do crime nas circunstâncias.

A sentença, ao avaliar a situação de fato trazida a julgamento, de acordo com as provas produzidas e os argumentos da própria acusação, deixou claro que acolheu como certo, que nos autos havia elementos a demonstrar que a acusada DENAIR de fato trabalhara na lavoura por tempo suficiente para se aposentar, embora não tivesse como estabelecer elo entre tal tempo e os locais e atividades precisas em que isso ocorreu. Vale dizer, a acusada faria jus ao benefício previdenciário, e por isso não seria ilícita a vantagem pretendida, ainda que, para "reforçar" tal direito se valesse de documentos irregulares, quiçá falsos.

A partir dessa análise, a sentença compreendeu que a acusada não teria dolo de praticar o crime do art. 171, § 3º do CP, porquanto não tinha dolo de obter vantagem ilícita em desfavor da autarquia previdenciária. Superado, portanto, o tipo penal do art. 171, § 3º, não subsistiria os falsos, que seriam as bases de sua prática.

De imediato, seria de se frisar que, se a acusada DENAIR conseguiu demonstrar nos autos da própria ação penal que faria jus ao benefício, a apresentação de qualquer documento irregular ou falso para, especificamente, obter o benefício, seria absolutamente irrelevante para o cometimento do crime, haja vista que sua apresentação ou não nada interferiria na concessão do benefício, diante do fato dela ter trabalhado, comprovadamente, durante grande tempo de sua vida na lavoura, como asseverou a sentença (fl. 219). Provavelmente o INSS verificaria a irregularidade dos documentos, os desconsideraria, mas acabaria aposentando a acusada de qualquer jeito, segundo a lógica contida na sentença.

A acusada teria, sim, consciência e vontade de usar os documentos irregulares para obter o benefício, o que é exatamente o dolo geral que o tipo do § 3º do art. 171 do CP prevê, porquanto nele não se identifica nenhum especial fim de agir (ou, para alguns, o anacrônico dolo específico). O que não se consubstanciaria, entretanto, seria a tipicidade objetiva, haja vista que, por fazer jus ao benefício (a dita vantagem), não ocorreria prejuízo patrimonial alheio.

Os documentos falsos, nessas circunstâncias, avaliados segundo a tipicidade do crime de estelionato, seriam como um "tiro no cadáver" (exemplo clássico dos livros de Direito Penal sobre impropriedade do objeto), na medida em que viabilizariam o pagamento de vantagem que era devida, sem prejuízo para autarquia, o que jamais afligiria o tipo penal objetivo em questão. Tudo, segundo a sentença. O meio (documentos eventualmente falsos), até seria eficaz, mas o objeto (vantagem indevida com prejuízo patrimonial alheio), não seria atingido por uso dele.

Nas circunstâncias avaliadas, portanto, o crime de estelionato seria mesmo impossível, ainda que a acusada soubesse da irregularidade dos documentos e mesmo assim quisesse utilizá-los para obter o benefício, dado que o objeto material do crime não configuraria vantagem ilícita.

3. A questão do concurso de normas

A questão que se impõe elucidar, na linha do recurso do MPF, é se, verificado o crime impossível de estelionato por impropriedade do objeto, persistiria a punição autônoma do uso do meio (em tese eficaz), consistente nos documentos utilizados para tal obtenção. No caso específico, se traz, na verdade, interessante questão: se impossível o crime fim (não por ineficácia absoluta do meio, mas impropriedade do objeto) é possível prosseguir na punição do crime meio?

O concurso de normas é matéria bastante complexa, havendo estudos e posições das mais variadas, uma delas que até mesmo procura reduzi-lo a uma só solução: regra da especialidade. Mas, admitindo-se, para efeitos de solução menos acadêmica e mais jurisdicional de um caso concreto trazido a julgamento, é preciso destacar que para haver consunção é preciso que ocorra a prática de dois fatos típicos, sendo um deles meio necessário ou fase normal de preparação de outro crime (mais grave).

No caso de estelionato mediante artifício constituído em documentos falsos, não é incomum que o agente, a fim de obter a vantagem ilícita, em prejuízo alheio, utilize falsidade documental, sendo esta, portanto, o meio hábil para que se possa ter êxito na empresa criminosa . A jurisprudência do STJ consolidou entendimento específico sobre falso e estelionato, ao dizer na Súmula 17: quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido.

No presente caso, tratando-se de falsidade ideológica do art. 299, tal fato é de menor gravidade (critério da pena cominada) em relação ao § 3º do art. 171 do CP, de modo que a absorção seria sempre possível, cabendo apenas verificar, no caso concreto e ainda segundo o que figurou no contraditório, no que ali foi debatido e provado, se os documentos que não serviram para atingir o estelionato, por impropriedade do objeto, seriam capazes de prosseguir com outra potencialidade lesiva, o que não se discutiu nem se acertou nos autos, caminhando, a instrução, isso sim, para a indicação de que não ostentavam mais potencialidade lesiva.

É bem verdade que se encontram julgados no sentido de que a absorção só prevalece nos casos de condenação com base nos dois fatos-delituosos (falso e estelionato), mas não quando ocorre a absolvição pelo segundo tão-somente:

"Se a sentença condenatória absolveu o apelante do crime de estelionato, por entender que, no caso, não tinha havido dano patrimonial, isso, por si só, já impediria que se examinasse a tese da absorção do falso pelo estelionato, o que só seria admissível se tivesse havido condenação por ambos em concurso formal ou em concurso material"

(STF - HC 69.970 - Rel. Moreira Alves - DJU, de 26.3.93, p. 5006)

Todavia, não se perca de vista que o concurso de normas não encontra base na teoria da pena, a ponto de permitir com ele se jogar para aplicá-lo ou não conforme o resultado da sentença. Ele se situa na teoria da lei penal, porquanto a averiguação científico-dogmática que se realiza leva em conta as leis que se aplicam ou não para decidir sobre o conteúdo de dois crimes quando da sua prática e ocorrência, e o que ela representa para os fins do Direito Penal. Vale dizer, quando se decide pela consunção de um fato por outro, isso já é feito quando da apreciação e classificação da conduta delituosa, e não apenas como instrumento de aplicação de pena.

4 - Do Mérito

Depreende-se da denúncia que a falsidade residia na confecção de documentos representados por dois contratos de Parceria Agrícola firmados entre DENAIR (lavradora) e ENÉAS (produtor rural), conforme fls. 14/15, bem como de uma Declaração de Exercício de Atividade Rural assinada por ERENILDO - presidente do sindicato dos trabalhadores rurais (fls. 25/26), objetivando comprovação para fins de concessão de benefício previdenciário.

No que se refere aos contratos de Parceria Agrícola pode-se constatar que realmente ENÉAS tinha plena convicção de que DENAIR ostentava a condição de trabalhadora rural, senão vejamos trecho de sua declaração em sede policial (fls. 85):

"Que a Sra. DENAIR trabalhou na roça em outras propriedades, mas não sabe informar o nome dos proprietários para quem DENAIR trabalhou; Que assinou contratos de parceria, por vontade própria, para ajudar a dona Denair, pois sabia que ela era trabalhadora rural e precisava do dinheiro da aposentadoria;"(grifei)

E ainda, conforme bem salientado na sentença recorrida, cujos fundamentos adoto como se meus fossem, "a experiência comum - calcada na observação do que ordinariamente acontece - tem demonstrado ser bastante usual que os trabalhadores rurais padeçam de diversas limitações culturais e sócio-econômicas que lhes restringe, por vezes, a capacidade de firmar juízo crítico quanto à irregularidade do preenchimento dos Contratos de Parceria, eis que acabam por firmar os referidos contratos, não com o fito de induzir a erro o INSS, mas sim com o escopo de cumprir exigências que lhes são impostas pelas normas previdenciárias."(grifei)

Nesse contexto, pode-se concluir que ENÉAS, a despeito de DENAIR efetivamente não ter trabalhado para ele, e acreditando no direito que a mesma possuía em relação à percepção do beneficio previdenciário em questão, visto que realmente teria trabalhado como lavradora para outros proprietários, ao declarar sua condição de trabalhadora rural, quis usar os documentos para que o benefício fosse concedido, mas tinha também certeza de que jamais causaria prejuízo ao INSS, haja vista que era devido.

No que se refere à Declaração de Exercício de Atividade Rural, verifico que na mesma encontra-se um rol de documentos, inclusive anexados aos autos, nos quais ERENILDO se baseou para compô-la. Dentre eles, certidão de casamento, declaração da Associação dos Moradores de Quizanga, ficha do posto de saúde local, contrato de parceria agrícola, título definitivo de propriedade, guia de Imposto Territorial Rural e ficha sindical, que se prestam a embasar a homologação da referida declaração feita por ele, na condição de presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de Cachoeira de Macacu/RJ.

E mais, esclarece ERENILDO em seu depoimento (fl. 74), "QUE, como a grande maioria dos contratos de parceria eram verbais, os contratos eram celebrados na época da aposentadoria, sendo certo, porém, que o sindicato só emitia a declaração de exercício de atividade rural mediante a presença de todas as partes do contrato com o fim de confirmar se eram verdadeiras as informações neles constantes, Que, porém, não pode precisar se foi isto que aconteceu com Denair França de Oliveira, em razão do grande número de sindicalizados;"

Destarte, a sentença está correta na avaliação de que as condutas se exauriram na busca do pagamento do benefício previdenciário, cuja concessão, ainda que amparada em documentos falsos como meio necessário, não seria, indevida sob a ótica do meritíssimo Juízo de origem, avaliação esta que não é objeto de recurso ministerial.

4 - Conclusão

Ante o exposto, nego provimento ao recurso.

É como voto.




JURID - Penal. Estelionato contra o INSS. Crime impossível. [13/04/10] - Jurisprudência

 



 

 

 

 

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