Exame de ordem: uma análise de sua constitucionalidade e legalidade embasada em critérios objetivos
Elaborado em 01/2011.
1. INTRODUÇÃO
Nunca o Exame de Ordem foi tão criticado. Ou, na verdade, sempre foi, mas tomou proporções nacionais dessa magnitude depois da unificação nacional da prova. Os argumentos contra a aprovação em Exame de Ordem para exercício da advocacia são das mais variadas, e às vezes chegam a ser engraçadas, se não fossem, é claro, lamentáveis: há quem alega ser o exame inconstitucional; há que sustenta haver infringência ao direito fundamental à isonomia, já que é a única profissão que depende de prévia avaliação para seu exercício; afirmam alguns que o Ministério da Educação é quem possui competência para avaliar se o formando possui qualificação para vida profissional; alguns chegam à barbárie de falar que a dificuldade da prova decorre de um lobby para reserva de mercado da classe.
Recentemente, ganhou grande repercussão a decisão do magistrado federal Vladimir Souza Carvalho que, em sede de Agravo de Instrumento interposto contra decisão proferida em Mandado de Segurança, admitiu a inscrição nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), sem a necessidade de submissão ao Exame de Ordem, dada a inconstitucionalidade da exigência estabelecida no art. 8º, inciso IV, da Lei 8906/94. Poucos dias após sua publicação, a eficácia da decisão foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal.
Também recentemente, o Juízo da 4ª Vara Federal do Ceará (Fortaleza) determinou uma nova correção naquele estado-membro da prova prático-profissional do Exame de Ordem 2010-2, aplicado pela Fundação Getúlio Vargas, beneficiando com a recorreção da prova todos os bacharéis do Ceará reprovados nessa fase do Exame e atendia ação civil pública proposta pelo Ministério Público, que pretendia ainda a recorreção de todas as provas em nível nacional, o que foi negado pelo juiz. Poucos dias depois, o presidente do Tribunal Regional Federal (TRF) da 5ª Região, juiz federal Luiz Alberto Gurgel de Faria, deferiu, em 18.01.2011, pedido do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e da Seccional da OAB no Ceará, suspendendo a aludida liminar.
Em 11 de dezembro de 2009, os Ministros do Supremo Tribunal Federal reconheceram a repercussão geral do RE 603.583, que questiona a obrigatoriedade do Exame da OAB para que os bacharéis possam exercer a advocacia, estando aludido recurso extraordinário ainda pendente de julgamento.
Enfim, os argumentos contrários ao fustigado exame da OAB são os mais variados e a relevância acadêmica deste artigo gira em torno da seguinte indagação: o Exame de Ordem é constitucional e legal? É o que, em breves palavras, pretende-se responder.
Antes, contudo, destaca-se que não será objeto de apreciação neste artigo critérios subjetivos quanto ao Exame de Ordem, como por exemplo, sua pertinência e relevância como fator de proteção à cidadania diante dos maus profissionais, reservando-se o presente a uma análise objetiva, pautada nos preceitos constitucionais, legais e infralegais.
2. O BACHARELADO EM DIREITO E A ADVOCACIA
Há quem sustente a ideia de que o Bacharel em Direito é o único graduado que, depois de formado, não está habilitado para exercer uma profissão. Isso não é totalmente uma verdade.
Inicialmente, é importante destacar que o curso de bacharelado em Direito não é sinônimo de curso de "advocacia", ou seja, que ao concluir a graduação, o profissional estará pronto para exercer o mister de advogado. Ao revés, o bacharel em Direito pode seguir as mais variadas carreiras: advocacia, magistratura, docência, membro do parquet, delegado de polícia etc.
Da mesma forma que o aspirante à magistratura deve se submeter aos concursos dos tribunais para função de juiz substituto, o aspirante à advocacia deve se submeter ao Exame de Ordem para habilitação no exercício da advocacia. Isso porque o curso de bacharelado em Direito não forma o indivíduo para o exercício da advocacia, mas sim para uma infinidade de carreiras que exijam conhecimentos jurídicos.
No Brasil, com a ordem constitucional de 1988, a função de advogado não é pré-requisito para exercício de outras atividades jurídicas, como é o caso dos EUA, por exemplo, onde o promotor de justiça é um advogado eleito pela comunidade para representá-la judicialmente em ações penais, ou seja, que tenha a sociedade como vítima de delitos. Da mesma forma, o magistrado americano que em regra é nomeado dentre advogados que atendam a alguns requisitos legais. Aliás, o costume dos americanos diverge do nosso, ao passo que não apenas os advogados fazem parte da American Bar Association (entidade americana equivalente à OAB), mas também os magistrados são a ela filiados.
No Brasil, se submete ao Exame de Ordem o bacharel em direito que pretenda exercer a função de advogado, da mesma forma, por exemplo, que o aspirante à magistratura se submete aos concursos para juiz substituto dos Tribunais e o aspirante à carreira de delegado da Polícia Civil se submete aos concursos das Polícias Civis dos estados.
No início desse capítulo, disse que não é totalmente verdade que o bacharel em Direito não possui uma "profissão". Isso porque, para exercício da docência, não é requisito que o bacharel em Direito seja advogado ou titular de qualquer outra carreira jurídica. Logo, o portador de diploma em Direito poderá exercer a atividade de docente, desde que, evidentemente, atenda os requisitos dos editais e das universidades para ingresso no magistério.
3. A ADVOCACIA NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA E NA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL
A advocacia é a única profissão privada que a Constituição da República regulamenta de forma específica, enaltecendo a importância desse ofício. A advocacia está incluída no rol de "funções essenciais à justiça", juntamente com o Ministério Público, Advocacia-Geral da União e Defensoria Pública.
O art. 133 da Constituição prevê que o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, observados os limites da lei.
Desse texto constitucional, abstrai-se que o exercício da advocacia é mais que o exercício de uma profissão, é um múnus público, pois presentes dois princípios: indispensabilidade do advogado, que não é absoluta, pois há casos em que o patrocínio da causa por advogado é dispensada, como na impetração de habeas corpus e juizados especiais cujo valor da causa não ultrapasse vinte salários mínimos; e a imunidade do advogado, que também não é irrestrita, devendo obedecer aos limites definidos em lei e restringir, como prerrogativa, às manifestações durante o exercício da atividade profissional do advogado.
Um dos questionamentos levantados contra o Exame de Ordem é que fere o princípio da isonomia, já que a advocacia é a única profissão que exige prévio exame como requisito à habilitação para exercício da função.
Ora, a própria Constituição tratou a advocacia de forma diferente das demais profissões, classificando-a como um múnus público e atribuindo a ela prerrogativas inerentes às funções de Estado. Logo, não há como falar em isonomia, quando a própria Constituição estabelece as diferenças entre a advocacia e as demais profissões.
Nem se olvide dizer que o Exame de Ordem é inconstitucional, tendo por fundamento a premissa de que a Constituição autoriza o livre o exercício de qualquer profissão.
Sabe-se que a constitucionalidade é medida pela compatibilidade vertical da legislação ou ato normativo do Poder Público com o texto constitucional. A Constituição assegura em seu artigo 5º, inciso XIII, a liberdade de exercício de qualquer profissão, ofício ou trabalho, desde que atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. Destaca-se a parte final de tal dispositivo, que atribuiu à lei o poder de restringir a liberdade de profissão garantida pela Constituição.
Assim, a liberdade de exercício da profissão não é irrestrita, encontrando limite no que a lei estabelecer, tratando-se de norma de eficácia contida (na classificação de José Afonso da Silva), já que enquanto não sobrevier a legislação ordinária regulamentando ou restringido a norma de eficácia contida, esta terá eficácia plena e total, somente sendo restringida (norma de eficácia restringível na classificação de Michel Temer), quando regulamentada pela norma infraconstitucional.
De tal modo, uma conhecida limitação imposta pela lei ao exercício de uma profissão é o Exame de Ordem em relação ao exercício da advocacia, previsto no artigo 8º, inciso IV, da Lei 8906/1994.
Observe-se que não há inconstitucionalidade. A Constituição da República atribuiu à lei a competência para restringir o exercício das profissões, ou seja, o poder constituinte originário atribuiu ao poder constituído o poder-dever de regulamentar uma profissão delimitando o seu exercício.
Atento fielmente ao prescrito na Constituição como garantia fundamental, o legislador entendeu por bem que o exercício da advocacia, dentre outros requisitos, depende de prévia habilitação em Exame de Ordem (art. 8º, inciso IV, da Lei 8906/1994), delegando à OAB a competência exclusiva para regulamentar esse exame (art. 8º, parágrafo primeiro, da Lei 8906/1994). Há, pois, plena compatibilidade vertical entre as normas infraconstitucionais e a Constituição da República, sendo, portanto, constitucionais.
Nesse mesmo ínterim, cai por terra a tese de que o Ministério da Educação é quem compete verificar a qualidade do ensino jurídico no Brasil, e não a OAB, já que tal premissa distorce a realidade de competências do Estado brasileiro.
De fato, compete ao Ministério da Educação fiscalizar a qualidade do ensino superior no território nacional, o que faz por meio do ENADE e por visita de suas comissões de avaliações, suspendendo, inclusive, a autorização das instituições de ensino superior que não atinjam as exigências mínimas para oferta do curso jurídico, poder esse não atribuído à Ordem dos Advogados do Brasil.
Aliás, tanto não é competência da OAB fiscalizar a qualidade do ensino jurídico, que aqueles que se formam nos cursos de graduação em Direito recebem o diploma sem que a OAB nisso interfira, ou seja, o grau de bacharel em Direito é outorgado unicamente pelasinstituições de ensino superior.
O que algumas pessoas menos informadas fazem é misturar competências: a OAB não afere nem fiscaliza a qualidade do ensino jurídico no país, competência essa do MEC; a ela tão somente compete promover a seleção dos advogados por meio do Exame de Ordem, dentre, é claro, outros requisitos.
O art. 44 da Lei 8906/1994 classificou a OAB como serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, a quem compete, segundo o inciso II do mesmo dispositivo legal, "promover, com exclusividade, a representação, a defesa, a seleção e a disciplina dos advogados em toda a República Federativa do Brasil."
A OAB não tem por função precípua a fiscalizaçãoda qualidade do ensino jurídico, ainda que por meio do exame a qualidade acabe de certa forma sendo aferido; a ela compete, com exclusividade, a representação, defesa, disciplina, e o mais importante, a seleção dos advogados do Brasil.
Atribuir à OAB a competência para seleção de seus inscritos é uma de suas finalidades institucionais, não fazendo a lei outra coisa senão lhe conferir exatamente a competência para aferir a qualificação dopostulante ao título de advogado, mas jamais, a qualificação do grau de bacharel em Direito, que compete exclusivamente ao MEC e às instituições de ensino superior. E quando a lei estabelece que tal exigência (seleção dos advogados e regulamentação e aplicação do Exame de Ordem) será exercida pela OAB com exclusividade, certamente não está sopesando o diploma expedido por instituição de ensino superior como documento adequado a substituir-lhe nesse encargo.
Por fim, quanto ao fato de a OAB regulamentar o Exame de Ordem, sendo que alguns atribuem a suposta dificuldade da prova a uma possível reserva de mercado da classe, parece tal argumento de extrema fragilidade.
A OAB, como serviço público, está vinculada aos princípios que regem a administração, mormente a estrita legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade. Pelo primeiro, decorre o fato que a atuação da OAB deve estar friamente pautada na lei. Ora, a lei delegou à OAB a competência de regulamentar o Exame de Ordem, que o fará por meio de provimento.
Dando fiel cumprimento à lei (atenta aos ditames da estrita legalidade), a OAB, por meio do Provimento n. 136 de 10 de novembro de 2009, regulamentou o Exame de Ordem, fixando a forma e composição das provas, as matérias que será objeto de avaliação, o valor das provas e a forma em que as notas serão distribuídas, as notas mínimas de aprovação e os critérios de avaliação no exame, a periodicidade em que o exame será aplicado, sigilo na identidade do examinando etc.
Destarte, não apenas a OAB deu fiel cumprimento à delegação que lhe feita pela Lei 8906/1994, como atendeu também aos preceitos de impessoalidade (garantiu o anonimato do examinando por parte do corretor da prova), moralidade (ao estabelecer critérios objetivos prévios ao exame, tais como matéria que será examinada, forma de correção e distribuição das notas da prova etc.) e publicidade, dando-lhe a devida divulgação a todos os indivíduos interessados.
Tendo a OAB pautado a realização do Exame de Ordem no que determina a Constituição e a legislação infraconstitucional, não há que se falar em ilegalidade ou inconstitucionalidade, quem dirá em reserva de mercado.
Ademais, como todo bacharel em Direito deve ter conhecimento, num Estado Democrático e Constitucional de Direito, os legisladores não fazem as leis em seu nome, nem mesmo o constituinte assim o faz quanto à constituição: tais normas jurídicas são feitas por nós cidadãos, por meio de representantes por nós eleitos, não havendo, pois, que se falar em reserva de mercado ou ilegalidade/inconstitucionalidade por parte da OAB, quando ela atua nos precisos termos fixados pelasnormas jurídicas (regras e princípios) que você leitor deste artigo, e eu criamos.
4. CONCLUSÃO
Por meio deste artigo, é possível concluir que sob o aspecto objetivo, tendo como paradigma de análise e estudo a Constituição da República, as leis e as normas infra legais, o Exame de Ordem é plenamente admitido pelo ordenamento jurídico vigente (regras e princípios), não havendo como se cogitar eventual inconstitucionalidade ou ilegalidade de tal requisito para habilitação do candidato ao exercício da advocacia.
5. BIBLIOGRAFIA
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 14 ed. São Paulo: Saraiva. 2010.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6 ed. São Paulo. Malheiros. 2003.
TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 15 ed. São Paulo: Malheiros. 1999.
Legislação pesquisada no site da Presidência da República: www.planalto.gov.br.
Thiago Henrique Carnavale
Advogado inscrito na OAB/PR sob n. 54.197. Atualmente exerce a função de Assessor de Juiz de Direito do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Bacharel em Direito pela Universidade Norte do Paraná. Especialista em Direito do Estado pela Universidade Estadual de Londrina. Professor de Direito Constitucional da Faculdade Norte Novo de Apucarana - FACNOPAR.
Veja todos os artigos publicados pelo autorFale com o autor
Como citar este texto: NBR 6023:2002 ABNT
CARNAVALE, Thiago Henrique. Exame de ordem: uma análise de sua constitucionalidade e legalidade embasada em critérios objetivos. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2760, 21 jan. 2011. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/18324>. Acesso em: 21 jan. 2011.
Assuntos relacionados: Exame de ordem | Ordem dos Advogados do Brasil | Advocacia (Direito Constitucional) | Direito Constitucional
Nenhum comentário:
Postar um comentário