Anúncios


segunda-feira, 12 de abril de 2010

JURID - Princípio da insignificância. Identificação dos vetores. [12/04/10] - Jurisprudência


Princípio da insignificância. Identificação dos vetores cuja presença legitima o reconhecimento desse postulado.

Supremo Tribunal Federal - STF

Coordenadoria de Análise de Jurisprudência

DJe nº 27 Divulgação 11/02/2010 Publicação 12/02/2010

Ementário nº 2389 - 3

10/11/2009 SEGUNDA TURMA

HABEAS CORPUS 100.180 PARANÁ

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

PACTE.(S): RUDINEI PAULO ZANELLATO

IMPTE.(S): DEFENSORIA PúBLICA DA UNIÃO

PROC.(A/S)(ES): DEFENSOR PÚBLICO-GERAL DA UNIÃO

COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

EMENTA: PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL - DELITO DE DESCAMINHO (CP, ART. 334, "CAPUT", SEGUNDA PARTE) - TRIBUTOS ADUANEIROS SUPOSTAMENTE DEVIDOS NO VALOR DE R$ 873,99 - DOUTRINA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF - PEDIDO DEFERIDO.

O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL.

- O princípio da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina.

Tal postulado - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público.

O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: "DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR" .

O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade.

APLICABILIDADE DO PRINCIPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AO DELITO DE DESCAMINHO.

- O direito penal não se deve vau ar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor - por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social. Aplicabilidade do postulado da insignificância ao delito de descaminho (CP, art. 334), considerado, para tanto, o inexpressivo valor do tributo sobre comércio exterior supostamente não recolhido. Precedentes.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, sob a Presidência do Ministro Celso de Mello (RISTF, art. 37, II), na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em deferir o pedido de "habeas corpus", nos termos do voto do Relator. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, a Senhora Ministra Ellen Gracie e o Senhor Ministro Joaquim Barbosa.

Brasília, 10 de novembro de 2009.

CELSO DE MELLO - RELATOR

10/11/2009 SEGUNDA TURMA

HABEAS CORPUS 100.180 PARANÁ

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

PACTE.(S): RUDINEI PAULO ZANELLATO

IMPTE.(S): DEFENSORIA PúBLICA DA UNIÃO

PROC.(A/S)(ES): DEFENSOR PÚBLICO-GERAL DA UNIÃO

COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO - (Relator): A douta Procuradoria Geral da República, em parecer da lavra do ilustre Subprocurador-Geral da República, Dr. WAGNER GONÇALVES, ao opinar pela denegação da ordem de "habeas corpus", assim resumiu e apreciou a presente impetração (fls. 88/92):

'HABEAS CORPUS' DESCAMINHO. VALOR SONEGADO INFERIOR AO FIXADO NO ART. 20 DA LEI Nº 10. 522/02. PACIENTE QUE JÁ CONTA COM DUAS CONDENAÇÕES TRANSITADAS EM JULGADO PELO MESMO CRIME. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.

1. Essa Colenda Corte, em recentes julgados, tem entendido que o valor de dez mil reais deve ser considerado como parâmetro para aplicação do princípio da insignificância nos crimes de descaminho, conforme dispõe o art. 20 da Lei nº 11.033/04. Há de se conjugar tal entendimento com o que restou expresso pelo ilustre Min. Celso de Mello, no HC nº 84.412: '(a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada' (DJ 19.11.04).'

2. 'In casu', pesam contra o paciente duas condenações transitadas em julgado pela prática de delitos da mesma natureza, anteriores ao fato aqui tratado. Tal circunstância afasta a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância, pois é indicativa da prática reiterada do descaminho como verdadeiro meio de vida.

3. Parecer pela denegação da ordem.

EXCELENTÍSSIMO MINISTRO RELATOR

1. Trata-se de 'habeas corpus' impetrado contra acórdão proferido no Recurso Especial nº 992.758, que foi provido (fls. 45/49).

2. Os autos registram que o paciente foi condenado como incurso no art. 344 do Código Penal a um ano de reclusão, pena que foi substituída por uma restritiva de direito. A apelação da defesa foi provida por maioria pelo TRF/4ª Região, que absolveu o paciente (fl. 44), sendo interposto, na seqüência, recurso especial pelo 'Parquet', provido nestes termos (fl. 47)

'PENAL. RECURSO ESPECIAL. DESCAMINHO. DÉBITO FISCAL. ARTIGO 20, 'CAPUT', DA LEI Nº 10.522/2002. PATAMAR ESTABELECIDO PARA O AJUIZAMENTO DA AÇÃO DE EXECUÇÃO DA DÍVIDA ATIVA OU ARQUIVAMENTO SEM BAIXA NA DISTRIBUIÇÃO. ART. 18, § 1º, DA LEI Nº 10.522/2002. CANCELAMENTO DO CRÉDITO FISCAL. MATÉRIA IRRELEVANTE.

I - A lesividade da conduta, no delito de descaminho, deve ser tomada em relação ao valor do tributo incidente sobre as mercadorias apreendidas.

II - O art. 20, 'caput', da Lei nº 10.522/2002 se refere ao ajuizamento da ação de execução ou arquivamento sem baixa na distribuição, não acorrendo, pois, a extinção do crédito, dai não se poder invocar tal dispositivo normativo para regular o valor do débito caracterizados de matéria penalmente irrelevante.

III - 'In casu', o valor do tributo incidente sobre as mercadorias apreendidas é superior ao patamar estabelecido no dispositivo legal que determina a extinção dos créditos fiscais (art. 18, § 1º, da Lei nº 10.522/2002), logo, não se trata de hipótese de desinteresse penal específico.

Recurso provido.'

3. No presente 'babeas corpus', a Defensoria Pública da União afirma que o pequeno valor do tributo não pago justifica a aplicação do princípio da insignificância, devendo ser adotado o parâmetro previsto no art. 20 da Lei nº 11.033/2004. Pugna, em síntese, pelo trancamento da ação penal em virtude da atipicidade da conduta e da ausência de justa causa.

4. A liminar foi deferida às fls. 53/55.

É o relatório.

5. O pequeno valor do imposto devido e não pago, em determinadas situações, justifica o arquivamento do feito ante a aplicação do principio da insignificância. Após a Lei nº 9.469/97, convencionou-se que o referido principio deveria incidir nos casos em que o valor dos tributos não ultrapassasse mil reais. Posteriormente, com a edição da Lei nº 10.522/02, o valor utilizado pela Receita Federal para arquivamento das execuções fiscais foi estabelecido em dois mil e quinhentos reais. Todavia, a Lei nº 11.033/04 alterou tal regra, dispondo que serão arquivados, sem baixa na distribuição, os valores consolidados iguais ou inferiores a dez mil reais.

6. Diante de tantas alterações, não é estranho que tenham surgido controvérsias no tocante ao patamar a ser considerado para a aplicação do princípio. Essa Colenda Corte, em recentes julgados, terra entendido que o valor de dez mil reais deve ser considerado como parâmetro, como se observa nos seguintes precedentes (...).

'DIREITO PENAL. 'HABEAS CORPUS'. CRIME DE DESCAMINHO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE VALOR SONEGADO INFERIOR AO FIXADO NO ART. 20 DA LEI Nº 10.522/02. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ORNEM CONCEDIDA.

1. A questão de direito tratada neste 'writ', consoante a tese exposta pela impetrante na petição inicial, é a suposta atipicidade da conduta realizada pela paciente com base no princípio da insignificância. 2. No caso concreto, a paciente foi denunciada por transportar mercadorias de procedência estrangeira sena pagar quaisquer impostos, o que acarretou a sonegação de tributos no valor de R$ 1.715,99 (mil setecentos e quinze reais e noventa e nove centavos). 3. O art. 20 da Lei nº 10.522/02 determina o arquivamento das execuções fiscais, sem baixa na distribuição, quando os débitos inscritos como dívida ativa da União forem iguais ou inferiores a R$ 10.000, 00 (valor modificado pela Lei nº 11.033/04). 4. Esta Colenda Segunda Turma tem precedentes no sentido de que falta justa causa para a ação penal por crime de descaminho quando a quantia sonegada não ultrapassar o valor previsto no art. 20 da Lei nº 10.522/02. 5. Ante o exposto, concedo a ordem de 'habeas corpus.' (HC 96374, Rel. Min. Ellen Gracie, Dje-075, publicado em 24.04.2009)

'AÇÃO PENAL. Justa causa. Inexistência. Delito teórico de descaminho. Tributo devido estimado em pouco mais de mil reais. Valor inferior ao limite de dez mil reais estabelecido no art. 20 da Lei nº 10.522/02, com a redação da Lei nº 11.033/04. Crime de bagatela. Aplicação do principio da insignificância. Atipicidade reconhecida. Absolvição decretada. HC concedido para esse fim. Precedentes. Reputa-se atípico o comportamento de descaminho, quando o valor do tributo devido seja inferior ao limite previsto no art. 20 da Lei nº 10.522/2002, com a redação introduzida pela Lei nº 11.033/2004.' (HC 96976, Rel. Mín. Cezar Peluso, Dje-084, publicado em 09.05.2009)

7. É certo ponderar, todavia, que o mero padrão monetário não deve ser o único referencial para a aplicação do principio da insignificância, devendo ser igualmente considerados os vetores definidos por essa Corte no julgamento do HC nº 84.412, quais sejam: '(a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada' (DJ 19.11.04, Rel. Min. Celso de Mello).

8. No caso dos autos, o montante dos tributos não pagos pela paciente não superou dez mil reais, limitando-se a R$ 1.142,25, de acordo corri a denúncia (fls. 15/17).

9. Ocorre que, de acordo com o TRF/4ª Região, 'pesam em desfavor do acusado duas condenações transitadas em julgado, nas ações penais nº 1999.71.04.003446-0 (na qual foi apensado o proc. Nº 1999.71.04.003622-4) e 2003.71.04.018423-1, pela prática de delitos da mesma natureza, seguramente anteriores ao fato aqui versado' (fl. 35).

10. A existência de duas condenações contra o paciente pelo mesmo crime afasta a possibilidade de aplicação do principio da insignificância, pois indica a prática reiterada do descaminho como verdadeiro meio de vida.

11. O fato de o paciente ter dito que 'teria se obrigado a atuar nesse ramo por não conseguir outra atividade' (fl. 39), não justifica sua conduta. Como bem realçou o TRF/4ª Região, 'há outros meios a serem utilizados, não se admitindo o expediente fácil do ilícito para tal desiderato' (...) o acolhimento da referida pretensão, diante da crescente situação de pobreza que o país vivencia, ensejaria a legalização da prática de inúmeros crimes que assolam a sociedade brasileira, tais como furto, roubo e estelionato, o que não pode ser tolerado' (fl. 39).

12. Diante do exposto, o parecer é pela denegação da ordem." (grifei)

É o relatório.

VOTO

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO - (Relator): A presente impetração insurge-se contra decisão, que, emanada do E. Superior Tribunal de Justiça, encontra-se consubstanciada em acórdão assim ementado (fls. 47):

"PENAL . RECURSO ESPECIAL. DESCAMINHO. DEBITO FISCAL. ARTIGO 20, 'CAPUT', DA LEI Nº 10.522/2002. PATAMAR ESTABELECIDO PARA O AJUIZAMENTO DA AÇÃO DE EXECUÇÃO DA DÍVIDA ATIVA OU ARQUIVAMENTO .SEM BAIXA NA DISTRIBUIÇÃO. ART. 18, § 1º, DA LEI Nº 10.522/2002. CANCELAMENTO DO CREDITO FISCAL. MATÉRIA PENALMENTE IRRELEVANTE.

I - A lesividade da conduta, na delito de descaminho, deve ser tomada em relação ao valor do tributo incidente sobre as mercadorias apreendidas.

II - O art. 20, caput, da Lei nº 10.522/2002 se refere ao ajuizamento da ação de execução ou arquivamento sem baixa na distribuição, não ocorrendo, pois, a extinção do crédito, daí não se poder invocar tal dispositivo normativo para regular o valor do débito caracterizados de matéria penalmente irrelevante.

III - 'In casu', o valor do tributo incidente sobre as mercadorias apreendidas é superior ao patamar estabelecido no dispositivo legal que determina a extinção dos créditos fiscais (art. 18, § 1º, da Lei nº 10.522/2002), logo, não se trata de hipótese de desinteresse penal específico. Recurso provido." (Resp 992.758/PR, Rel. Min. FELIX FISCHER - grifei)

O principio da insignificância - como fator de descaracterização material da própria tipicidade penal - tem sido acolhido pelo magistério jurisprudencial desta Suprema Corte (HC 87.478/PA, Rel. Min. EROS GRAU - HC 88.393/RJ, Rel. Min. CEZAR PELUSO - HC 92.463/RS, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), como resulta claro de decisão que restou consubstanciada em acórdão assim ementado:

"PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL - DELITO DE FURTO - CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM DESEMPREGADO, COM APENAS 19 ANOS DE IDADE - `RES FURTIVA' NO VALOR DE R$ 25, 00 (EQUIVALENTE A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR) - DOUTRINA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF - PEDIDO DEFERIDO.

- O princípio da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina.

Tal postulado - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público em matéria penal.

Isso significa, pois, que o sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificarão quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade.

- O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor - por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social." (RTJ 192/963-964, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

O exame da presente impetração também evidencia a aplicabilidade, ao caso, do princípio da insignificância, pois os autos revelam que se trata de persecução penal instaurada pela suposta prática do delito de descaminho (CP, art. 334, "caput", segunda parte), em que os tributos aduaneiros que não teriam sido pagos, pelo paciente, equivaliam a "R$ 873,99 (oitocentos e setenta e três reais e noventa e nove centavos" (fls. 07).

Com efeito, esta Suprema Corte tem admitido a aplicabilidade, ao delito de descaminho, do postulado da insignificância:

III. Descaminho considerado Como 'exime de bagatela': aplicação do 'princípio da insignificância'.

Para a incidência do princípio da insignificância só se consideram aspectos objetivos, referentes à infração praticada, assim a mínima ofensividade da conduta do agente; a ausência de periculosidade social da ação; o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; a inexpressividade da lesão jurídica causada (HC 84.412, 2ª T., Celso de Mello, DJ 19.11.04).

A caracterização da infração penal como insignificante não abarca considerações de ordem subjetiva: ou o ato apontado como delituoso é insignificante, ou não é. E sendo, torna-se atípico, impondo-se o trancamento da ação penal por falta de justa causa (HC 77.003, 2ª T., Marco Aurélio, RTJ 178/310) .

IV. Concessão de 'habeas corpus' de ofício, para restabelecer a rejeição da denúncia."(AI 559.904-QO/RS, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE -grifei)

É importante assinalar, neste ponto, por necessário, que o princípio da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material, consoante assinala expressivo magistério doutrinário expendida na análise do tema em referência (FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, "Princípios Básicos de Direito Penal", p. 133/134, item nº 131, 5ª ed., 2002, Saraiva; CEZAR ROBERTO BITENCOURT, "Código Penal Comentado", p. 6, item n. 9, 2002, Saraiva; DAMÁSIO E. DE JESUS, "Direito Penal - Parte Geral", vol. 1/10, item nº 11, "h", 26ª ed., 2003, Saraiva; MAURÍCIO ANTONIO RIBEIRO LOPES, "Princípio da Insignificância no Direito Penal", p. 113/118, item nº 8.2, 2ª ed., 2000, RT, v.g.).

O princípio da insignificância - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) á inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público em matéria penal.

Isso significa, pois, que o sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificarão quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano - efetivo ou potencial - causado por comportamento impregnado de significativa lesividade.

Revela-se expressivo, a propósito do tema, o magistério de EDILSON POUGENOT BONFIM e de FERNANDO CAPEZ ("Direito Penal - Parte Geral", p. 121/122, item nº 2.1, 2004, Saraiva):

"Na verdade, o princípio da bagatela ou da insignificância (...) não tem previsão legal no direito brasileiro (...), sendo considerado, contudo, princípio auxiliar de determinação da tipicidade, sob a ótica da objetividade jurídica. Funda-se no brocardo civil 'minimis non curat praetor' e na conveniência da política criminal. Se a finalidade do tipo penal ê tutelar um bem jurídico quando a lesão, de tão insignificante, torna-se imperceptível, não será possível proceder a seu enquadramento típico, por absoluta falta de correspondência entre o fato narrado na lei e o comportamento iníquo realizado. Ë que, no tipo, somente estão descritos os comportamentos capazes de ofender o interesse tutelado pela norma. Por essa razão, os danos de nenhuma monta devem ser considerados atípicos. A tipicidade penal está a reclamar ofensa de certa gravidade exercida sobre os bens jurídicos, pois nem sempre ofensa mínima a um bem ou interesse juridicamente protegido é capaz de se incluir no requerimento reclamado pela tipicidade penal, o qual exige ofensa de alguma magnitude a esse mesmo bem jurídico." (grifei)

Na realidade, e considerados, de um lado, o princípio da intervenção penal mínima do Estado (que tem por destinatário o próprio legislador) e, de outro, o postulado da insignificância (que se dirige ao magistrado, enquanto aplicados da lei penal ao caso concreto), na precisa lição do eminente Professor RENÉ ARIEL DOTTI ("Curso de Direito Penal - Parte Geral", p. 68, item nº 51, 2ª ed., 2004, Forense), cumpre reconhecer que o direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor - por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, soja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social.

A questão pertinente à aplicabilidade do princípio da insignificância - quando se evidencia que o bem jurídico tutelado sofreu "ínfima afetação" (RENÉ ARIEL DOTTI, "Curso de Direito Penal - Parte Geral", p. 68, item nº 51, 2ª ed., 2004, Forense) - assim tem sido apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, cuja jurisprudência reconhece possível, nos delitos de bagatela, a incidência do postulado em causa (RTJ 192/963-964, Rel. Min. CELSO DE MELLO -(HC 84.687/MS, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.):

"ACIDENTE DE TRÂNSITO. LESÃO CORPORAL. EXPRESSIVIDADE DA LESÃO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CRIME NÃO CONFIGURADO.

Se a lesão corporal (pequena equimose.) decorrente de acidente de trânsito é de absoluta insignificância, como resulta dos elementos dos autos - e outra prova não seria possível fazer-se tempos depois -, há de impedir-se que se instaure ação penal (...)." (RTJ 129/187, Rel. Min. ALDIR PASSARINHO - grifei)

"Uma vez verificada a insignificância jurídica do ato apontado como delituoso, impõe-se o trancamento da ação penal, por falta de justa causa." (RTJ 178/310, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - grifei.)

'HABEAS CORPUS'. PENAL. MOEDA FALSA. FALSIFICAÇÃO GROSSEIRA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CONDUTA ATÍPICA. ORDEM CONCEDIDA


3. A apreensão de nota falsa com valor de cinco reais, em ateio a outras notas verdadeiras, nas circunstâncias fáticas da presente impetração, não cria lesão considerável ao bem jurídico tutelado, de maneira que a conduta do.paciente é atípica.

4. 'Habeas corpus' deferido, para trancar a ação penal em que o paciente figura como réu." (HC 83.526/CE, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA - grifei)

Cumpre também acentuar, por relevante, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem admitido, na matéria em questão, a inteira aplicabilidade do princípio da insignificância ao crime de descaminho (HC 92.740/PR, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA - RE 536.486/RS, Rel. Min. ELLEN GRACIE - RE 550.761/RS, Rel. Min. MENEZES DIREITO).

Impende referir, ainda, nesse mesmo sentido, recentes julgamentos proferidos pela Segunda Turma desta Suprema Corte (HC 100.023/RS, Rel. Min. CELSO DE MELLO HC 99.6Z0/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO):

"PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL - DELITO DE DESCAMINHO (CP, ART. 334, 'CAPUT', SEGUNDA PARTE) TRIBUTOS ADUANEIROS SUPOSTAMENTE DEVIDOS NO VALOR DE R$ 1.337, 50 - DOUTRINA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF - PEDIDO DEFERIDO.

O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL.

O princípio da insignificância que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção min.ima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina.

Tal postulado - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público.

O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: 'DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR'.

- O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se Justificam dó estritamente necessárias ã própria proteção das pessoas, da sociedade _e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade.

APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AO DELITO DE DESCAMINHO.

- O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor - por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social. Aplicabilidade do postulado da insignificância ao delito de descaminho (CP, art. 334), considerado, para tanto, _o inexpressivo valor do tributo sobre comércio exterior supostamente não recolhido. Precedentes." (HC 96.151/RS, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Vale mencionar que se fez incidir o postulado da insignificância em caso de descaminho no qual os tributos aduaneiros que não teriam sido pagos equivaliam a mais de R$ 5.000,00 (HC 92.438/PR, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA).

As considerações ora expostas levam-me a reconhecer, por isso mesmo, que os fundamentos em que se apóia a presente impetração põem em evidência questão impregnada do maior relevo jurídico, consistente na constatação, na espécie, da evidente ausência de justa causa, eis que as circunstâncias em torno do evento delituoso autorizam a aplicação, ao caso, do princípio da insignificância.

Sendo assim, pelas razões expostas, defiro o pedido de "habeas corpus", para determinar a extinção definitiva do procedimento penal que resultou na condenação imposta ao ora paciente {Ação Penal nº 2005.70.05.00261.0-0, que tramitou perante o Juíza Federal da 2ª Vara Federal de Cascavel/PR}, invalidando todos os atos processuais, desde a denúncia, inclusive, por ausência de tipicidade material da conduta que lhe foi imputada, considerado, para esse efeito, o princípio da insignificância.

É o meu voto.

SEGUNDA TURMA

EXTRATO DE ATA

HABEAS CORPUS 100.180

PROCED.: PARANÁ

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

PACTE.(S): RUDINEI PAULO ZANELLATO

IMPTE.(S): DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO

PROC.(A/S)(ES): DEFENSOR PÚBLICO-GERAL DA UNIÃO

COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Decisão: A Turma, por votação unânime, deferiu o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, a Senhora Ministra Ellen Gracie e o Senhor Ministro Joaquim Barbosa. Presidiu, este julgamento, o Senhor Ministro Celso de Mello. 2ª Turma, 10.11.2009.

Presidência do Senhor Ministro Celso de Mello. Presentes à sessão os Senhores Ministros Cezar Peluso e Eros Grau. Ausentes, justificadamente, a Senhora Ministra Ellen Gracie e o Senhor Ministro Joaquim Barbosa.

Subprocurador-Geral da República, Dr. Mário José Gisi.

Carlos Alberto Cantanhede
Coordenador

Documento assinado digitalmente conforme MP nº2.200-2/2001 de 24/08/2001, que institui a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil. O Documento pode ser acessado no endereço eletrônico http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o número 446554





JURID - Princípio da insignificância. Identificação dos vetores. [12/04/10] - Jurisprudência

 



 

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário