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segunda-feira, 13 de julho de 2009

JURID - Júri. Homicídio qualificado tentado e disparo de arma. [13/07/09] - Jurisprudência


Júri. Homicídio qualificado tentado e disparo de arma de fogo em via pública. Recurso da defesa.

Tribunal de Justiça de Mato Grosso - TJMT.

SEGUNDA CÂMARA CRIMINAL

APELAÇÃO Nº 3790/2009 - CLASSE CNJ - 417 - COMARCA DE VÁRZEA GRANDE

APELANTE: FRANK AURÉLIO BRANDÃO

APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO

Número do Protocolo: 3790/2009

Data de Julgamento: 17-6-2009

EMENTA

APELAÇÃO CRIMINAL - JÚRI - HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO E DISPARO DE ARMA DE FOGO EM VIA PÚBLICA - RECURSO DA DEFESA - ALEGADA DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS - DESCLASSIFICAÇÃO PARA DISPARO DE ARMA DE FOGO EM VIA PÚBLICA OU RECONHECIMENTO DA DESISTÊNCIA VOLUNTÁRIA E EXCLUSÃO DA QUALIFICADORA DE EXECUÇÃO PARA ASSEGURAR A IMPUNIDADE DE OUTRO CRIME - IMPOSSIBILIDADE - DOLO NÃO AFASTADO - ANIMUS NECANDI EVIDENCIADO - DESISTÊNCIA VOLUNTÁRIA EXPLICITAMENTE AFASTADA PELO RECONHECIMENTO DA TENTATIVA - QUALIFICADORA EVIDENCIADA COMO MOTIVO DETERMINANTE DO CRIME - CONVICÇÃO ÍNTIMA DOS JURADOS NA VALORAÇÃO DA PROVA - VEREDICTO POPULAR COM SUPORTE NOS AUTOS - COMPETÊNCIA EXCLUSIVA - PRINCÍPIO DA SOBERANIA DOS VEREDITOS - DOSIMETRIA - PENAS-BASES - EXISTÊNCIA DE CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DESFAVORÁVEIS SUFICIENTES A EXASPERAÇÃO NO PATAMAR AFERIDO PELA MAGISTRADA - PRESENÇA DE DISCRICIONARIEDADE JURIDICAMENTE VINCULADA - RECURSO IMPROVIDO.

Os princípios que regem o Tribunal do Júri permitem aos Jurados apreciar os fatos, segundo a sua livre convicção, de capa a capa, não podendo sequer ser quesitados sobre a suficiência da prova, pois, se as provas não forem suficientes o fato imputado deve ser negado.

Existindo prova a sustentar a versão acolhida pelo Conselho de Sentença, não há como cassar a decisão.

A desclassificação para disparo de arma de fogo em via pública exige prova inequívoca da ausência do animus necandi.

Ao reconhecimento da qualificadora da execução do homicídio para assegurar a impunidade de outro crime, não releva a sua exeqüibilidade, e sim o ânimo subjetivo do agente, como motivo determinante do crime.

Presente discricionariedade juridicamente vinculada na análise das circunstâncias judiciais, mantém-se a dosimetria imposta pelo Magistrado.

APELANTE: FRANK AURÉLIO BRANDÃO

APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO

R E L A T Ó R I O

EXMO. SR. DR. CARLOS ROBERTO C. PINHEIRO

Egrégia Câmara:

Frank Aurélio Brandão apela da r. decisão do Conselho de Sentença da Comarca de Várzea Grande, que o condenou por infração ao art. 121, § 2º, V cc art. 14, II, do Código Penal e art. 15 cc art. 20, da Lei nº 10.826/03, sendo-lhe imposta a pena final de 8 anos e 1 mês de reclusão, além de 22 dias-multa (fls. 286/289).

Por sua laboriosa Defesa, em breve síntese, aduz manifestamente contrária à prova dos autos, a decisão que acolheu a tese de homicídio qualificado tentado, uma vez que não tinha intenção, nem assumiu o risco de matar a vítima Norberto Roque Pereira, ponderando que do contexto fático não exsurge o animus necandi. Noutro viés, carregado ao reconhecimento da desistência voluntária, sustenta ausente qualquer circunstância capaz de impedir o resultado morte, pois ainda possuía sete munições em sua pistola e bastava sair do veículo e deflagrá-las, contudo desistiu da suposta intenção de matar a vítima. Diz ainda, contrário à prova dos autos o reconhecimento da forma qualificada em face do crime como meio para assegurar a impunidade do crime anterior, já que estava em local público e qualquer pessoa ali presente poderia telefonar para a polícia. Por fim, referente à dosimetria, diz injustificável a exasperação das penas-bases, pois o apelante é primário e cuida-se de crimes tentados, pleiteando aplicadas em seus mínimos. Adiante, invitando o inciso IX, do art. 93, da Constituição Federal, questiona o mérito da decisão do Júri atinente a caracterização do dolo frente à prova; qual a modalidade de tentativa configurada na hipótese, além da justificativa fundamentada para a não-incidência da desistência voluntária e ainda, o fundamento para a manutenção da qualificadora do art. 121, § 2º, V, do CP, indagando a competência para o caso de supressão desta em grau de recurso. Requer, com tais argumentos, a anulação da decisão do Conselho de Sentença para que o recorrente seja submetido a novo julgamento, ou, acaso improvido, a fixação das penas-bases no mínimo legal (fls. 330/345).

Em contra-razões, o nobre Dr. Promotor de Justiça destacou, em síntese, que a tese acolhida pelo Conselho de Sentença possui amparo na prova coligida, asseverando que a vítima somente não morreu porque logrou em se esconder atrás do veículo.

Além disso, não se depreende da situação fática que a desistência, se realmente operada, tenha sido voluntária, pois, várias pessoas estavam no local, o que levou o recorrente a empreender fuga visando garantir a impunidade. No mais, concluiu justa a dosimetria das penas aplicadas, requerendo o improvimento do recurso (fls. 347/354).

O ilustre Procurador de Justiça, Dr. Leonir Colombo, em seu bem elaborado parecer, após remessa à soberania dos veredictos e detida análise da prova coligida, inclusive com transcrição de testemunhos e escólios jurisprudenciais, concluiu que a versão acolhida pelo Colegiado a quo foi aquela que se encontra consentânea com as provas constantes dos autos, não havendo como subsistir a tese de desclassificação do delito de homicídio qualificado, em razão da ausência de dolo ou da desistência voluntária, nada obstante tenha sido proferido um único disparo de arma de fogo em direção à vítima.

Igualmente, quanto à qualificadora prevista no inciso V, do § 2º, do art. 121, do Código Penal, afirmou bem delineada nos autos, não se mostrando totalmente divorciada das provas carreadas aos autos, porquanto das declarações da vítima e dos testemunhos, extrai-se que, de fato, o disparo efetuado contra Norberto Roque Pereira Lemes, se deu tão-somente, porque acreditou o recorrente que ele estava ligando para a polícia a fim de comunicar a ocorrência do delito perpetrado momentos antes. Por fim, acentuou correta a dosimetria das penas, opinando pelo desprovimento do recurso, porquanto o julgamento não se aperfeiçoou contrário à prova dos autos (fls. 374/383).

É o relatório.

P A R E C E R (ORAL)

A SRA. DRA. KÁTIA MARIA AGUILERA RÍSPOLI

Ratifico o parecer escrito.

VOTO

EXMO. SR. DR. CARLOS ROBERTO C. PINHEIRO (RELATOR)

Egrégia Câmara:

Extrai-se dos autos, que o recorrente foi denunciado no art. 121, § 2º, II e IV (vítima Wilma) cc art. 14, II do CP e art. 121, § 2º, V cc art. 14, II, do CP (vítima Norberto), porque, aos 2-9-2007, por volta das 3h30min, na Av. Couto Magalhães, Centro de Várzea Grande, defronte ao estabelecimento PAMPULHA SHOW BAR, utilizando-se de uma pistola .40, disparou contra WILMA MARTINS BRANDÃO, não atingindo o alvo. Na continuidade adentrou no seu veículo e ao visualizar NORBERTO ROQUE PEREIRA LEMES falando ao celular, perguntou-lhe "para quem estava telefonando", decerto acreditando que estava acionando a polícia e, no desiderato de garantir sua impunidade, efetuou disparos contra esta vítima, que não a atingiram porque se escondeu atrás de um veículo GM PRISMA, perfurado por dois projéteis.

Houve, na formação da culpa, profusa prova testemunhal e apresentação de teses contrapostas nas alegações finais, sobrevindo decisão de pronúncia. Ao final, em plenário, a Defesa sustentou a tese de desclassificação dos dois crimes e afastamento das qualificadoras, e o Ministério Público foi no sentido da condenação quanto ao homicídio tentado contra a segunda vítima Norberto Roque Pereira Lemes (fls. 178/189, 191/197, 215/219 e 291/293).

Os jurados acolheram a tese defensiva desclassificatória com relação à primeira vítima e reconheceram o homicídio qualificado, na forma tentada, em face da segunda vítima (fls. 284/285).

A competência do Conselho de Sentença para análise do meritum causae no julgamento dos crimes afetos ao Tribunal de Júri é de índole constitucional e infra-constitucional (CF - art. 5º, XXXVIII, "c" e CPP - art. 593,III, "d") e, por evidente, a valoração da prova contém-se nessa competência, com exclusividade.

Ou seja, a escolha da prova está no âmbito da soberania, de maneira que sequer podem os Jurados ser quesitados sobre a suficiência da prova, pois que, se as provas não forem suficientes o fato imputado deve ser negado.

A questão é principiológica e vai definida na didática doutrina de Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto (in Crimes Dolosos Contra a Vida e Seu Procedimento Especial, Podium, 2004, pág. 56), ao discorrer sobre os princípios que regem o Júri, verbis:

"O primeiro deles, que trata da plenitude de defesa, significa dizer que, nos processos de Júri, mais que a ampla defesa, exigida em todo e qualquer processo criminal (art. 5º, LV, da CF), vigora a plenitude de defesa. De tal forma que no Júri não apenas a defesa técnica, relativa aos aspectos jurídicos do fato, pode ser produzida. Mais que isso, dada às peculiaridades do processo e ao fato de que são leigos os juízes, permite-se a utilização de argumentação não jurídica, com referência a questões sociológicas, religiosas, morais, etc. Ou seja, argumentos que, normalmente, não seriam considerados fosse o julgamento proferido por um juiz togado, no Júri ganham especial relevância, podendo ser explorados à exaustão. Esse, aliás, é um dos pontos positivos salientados pelos defensores da instituição, pois o Júri propicia um julgamento que vai além da frieza da lei e da tecnicidade do processo, na medida que os jurados, inclusive, não podem fundamentar suas decisões e julgam conforme suas consciências, não ficando adstritos à severidade da prova dos autos."

Sobre o terceiro princípio, o da soberania dos veredictos, os citados autores destacaram que verbis:

"Por ele, somente os jurados podem decidir pela procedência ou não da imputação. Ou, na precisa lição de José Frederico Marques, a soberania deve ser entendida como a "impossibilidade de os juízes togados se substituírem aos jurados na decisão da causa" (ob. cit. pág. 58).

Na irretocável lição de Miguel Reale, os princípios jurídicos "são verdades fundantes de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da práxis."

Assim, uma vez mantida a instituição do Júri, devem os princípios que a regem ser respeitados, admitindo-se aos Jurados apreciar os fatos, segundo a sua livre convicção, de capa a capa.

A diferença verificada na votação do QUARTO QUESITO, afeta ao início da execução, pelo apelante, de um crime de homicídio, não consumado verbis: "em virtude da vítima ter conseguido se esconder atrás de um carro estacionado no local" (4 SIM x 3 NÃO) não evidencia perplexidade, nem infere dúvida sobre a vontade dos jurados, cujas decisões são tomadas por maioria. O mesmo vale para o reconhecimento da qualificadora configurada na prática do crime para assegurar a impunidade de outro crime (4 SIM x 3 NÃO).

Portanto, na conformidade do art. 593, III alínea "d" e seu § 3º, do Código de Processo Penal, cumpre unicamente aferir se há, nos autos, prova suficiente a sustentar a decisão dos jurados, o que passo a examinar:

A materialidade delitiva comprova-se pelo Auto de Prisão em Flagrante Delito, Auto de Exibição e Apreensão, Boletim de Ocorrência Simplificado e Laudos Periciais da arma apreendida, do local dos fatos e do veículo GM/PRISMA atingido por um dos disparos.

Quanto à autoria, ao ser ouvido pela autoridade policial o apelante disse que tinha ingerido muita bebida alcoólica e não se lembrava de nada. Igualmente, na formação da culpa, não relatou, nem justificou o segundo fato a ele atribuído, merecendo anotação, todavia, a asserção de que verbis:

" (...) houve uma discussão rápida com minha esposa e nisto chegou um sargento, inclusive chegou em direção a minha esposa e agiu com agressividade, empurrou, separando "mas para cima de mim, ele não veio"; minha esposa chegou a cair no chão" sic (fls. 110).

Em plenário, o apelante afirmou recordar dos fatos como aconteceram, após um ano de prisão, lendo o processo e conversando com sua esposa. Disse que não conhecia anteriormente a vítima Norberto, admitindo ter efetuado um disparo para cima após a discussão com a esposa, e um segundo disparo, explicitando verbis:

"mas eu não sei se foi pra cima ou de lado; que eu não lembro se eu desci do carro ou se parei o veículo; que depois eu sai com o veículo; que logo mais à frente eu passei num quebra-molas ou em uma mureta; que eu parei em uma rua já bem escura" (fls. 275/276).

Por seu turno, NORBERTO ROQUE LEMES, vítima, declarou que verbis:

" estava saindo da boate Pampulha quando eu me deparei com um casal discutindo; que o declarante não estava em serviço; que de repente, o homem se dirigiu ao carro dele que estava estacionado no pátio do posto, na frente da porta de saída de boate (...) a uma distância de uns dez metros da porta de saída da boate; que o rapaz pegou uma pistola que estava no interior do carro dele (...) que ele veio de lá com a pistola na mão, empunhada, e apontando para a mulher dele; que em seguida efetuou um disparo; que nessa hora ele estava a uma distância de seis a sete metros da mulher; que o disparo foi feito na direção dela, eu só não sei se foi para baixo ou pra cima porque nessa hora eu apressei o passo; que eu saí na direção da avenida Couto Magalhães pelo pátio do posto; que o acusado entrou no carro dele, fez o balão no pátio e quando eu estava saindo ele parou o carro na Couto Magalhães, na minha frente; que o Adão, proprietário da boate, saiu comigo e me perguntou o que estava acontecendo; que eu peguei o telefone pra ligar pro batalhão; que o acusado parou na minha frente, me apontou a pistola e me perguntou pra quem eu estava ligando; que eu estava distante uns dois metros de um carro Prisma; que na hora que eu vi ele estava apontando a pistola para mim eu corri e me escondi atrás do Prisma; que aí o acusado efetuou o disparo; que o disparo atingiu o veículo no qual eu estava escondido e em seguida ele saiu (...) que outras pessoas também ligaram para a polícia (...) que depois que o acusado saiu o declarante olhou aonde foi que ao tiro parou no carro Prisma e pode dizer que a bala parou "na altura da minha cabeça"; que o declarante pode afirmar que se a bala tivesse atravessado a parede do carro tinha atingido a cabeça do declarante; que verificando a fotografia de p. 252, o declarante pode afirmar que se escondeu abaixado próximo da tampa do tanque de combustível do carro, ou melhor, próximo da porta traseira (...) que se o acusado continuasse atirando, de dentro do veículo como ele estava, eu seria obrigado a permanecer escondido onde estava porque se eu saísse dali seria fatalmente atingido; que se o acusado saísse do veículo eu teria que correr dali (...) que o depoente pode dizer que correu pra se esconder, atrás da parte mais resistente do veículo; que pode afirmar que estava escondido justamente na altura do local onde saiu a bala que atravessou o veículo." (fls. 277/279)

Seguramente, as declarações da vítima inferem ter o recorrente apontado a arma e atirado contra ela, motivado pelo fato dela estar usando o telefone, momento em que acionava a Polícia Militar.

A verificação, na prática, entre a ocorrência do dolo voltado à eliminação da vítima para admitir-se, simplesmente, o ânimo de efetuar disparo de arma de fogo em via pública, como perseguido no recurso, não há de ser extraída das declarações do próprio recorrente, e sim, das circunstâncias.

Como destacado pela Defesa, o apelante recebeu treinamento e sabia manejar a arma utilizada, não subsistindo dúvidas de que o disparo foi a curta distância, cerca de quatro metros, exatamente na direção da vítima, a qual afirmou que a bala teria parado na altura da sua cabeça.

Porém, na verdade, a "bala" não parou.

A perícia efetuada no automóvel GM/PRISMA informa que o projétil transfixou o veículo, constando a existência de uma perfuração de saída, localizada no pára-lama posterior direito do veículo, evidenciando a fotografia de fls. 252 que o projétil só não atingiu a vítima por fortuna, uma vez que ela verbis:

"se escondeu abaixado próximo da tampa do tanque de combustível do carro, ou melhor, próximo da porta traseira."

Assim apreendidos os fatos, com a necessária certeza de que o disparo efetuado por pessoa hábil e a curta distância foi direcionado à vítima, por sua vez oculta atrás de um veículo, onde assim permaneceu mesmo após o disparo que quase lhe atingiu, emerge configurada a forma tentada, porquanto, nas circunstâncias, era dado ao recorrente acreditar que atingira a vítima.

A hipótese é de tentativa perfeita, bem definida por ROGÉRIO GRECO (in Código Penal Comentado, Impetus, 2009, pág. 40), verbis:

"Fala-se em tentativa perfeita, acabada, ou crime falho, quando o agente esgota, segundo o seu entendimento, todos os meios que tinha ao seu alcance a fim de alcançar a consumação da infração penal, que somente não ocorre por circunstâncias alheias à sua vontade."

Sendo mais específico, trata-se, no pressuposto fático, de tentativa perfeita branca ou incruenta, que no dizer de FERNANDO CAPEZ, é aquela na qual o agente realiza a conduta integralmente, sem, contudo, conseguir ferir a vítima, como é exemplo errar o disparo efetuado.

Reiterando: a prova, como posta nos autos, autoriza concluir que o apelante acreditou ter atingido a vítima com um único disparo, e por isso se afastou do local, de modo que o fato dele não ter efetuado mais disparos contra a vítima não configura a desistência voluntária.

Fosse diferente, e.g., vale salientar, restaria a tentativa imperfeita, como defendeu o Ministério Público nas contra-razões, ao anotar que verbis:

"não se depreende da situação fática que a desistência, se realmente operada, tenha sido voluntária, porquanto várias pessoas estavam no local, o que levou o recorrente a empreender fuga visando garantir a impunidade." (fls. 351).

Diante de tal contexto fático, não há concluir ausente o animus necandi, e sim, ao contrário, que tinha o apelante, de fato, intenção de matar a vítima, ou, no mínimo, que assumiu o risco de produzir esse resultado, pois efetuou um disparo direcionado à vítima, só não alcançando o seu intento porque ela se escondeu, fazendo com que ele errasse o alvo.

Sobre a finalidade específica do delito do art. 15, da Lei nº 10.826/2003, calha percuciente escólio de GUILHERME DE SOUZA NUCCI (Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, RT, 2007, pág. 86), verbis:

"se o agente possuir, como fim específico a prática de qualquer delito de dano, desaparece a figura do art. 15, remanescendo somente a outra relativa a essa finalidade. Exemplo: o autor dá um disparo na direção de X, que está em plena via pública, pretendendo matá-lo. Responderá, apenas, por tentativa de homicídio (se não conseguir o seu desiderato) ou homicídio consumado (caso o ofendido perca a vida). O tipo se auto-proclama subsidiário e concentra essa subsidiariedade na finalidade especifica do agente. É natural que, dando disparo de arma de fogo em lugar habitado, sem a finalidade de atingir alguém, embora tal situação ocorra, é preciso cautela."

A finalidade específica do disparo vai bem traduzida nas palavras da testemunha ocular ADÃO HILDEBRANDO ARAÚJO, referido pela vítima como Adão proprietário da boate, verbis:

"(...) vi uma pessoa com uma arma na mão entre os carros; que eu desci, encontrei um colega da infância e ele me disse que tinha um rapaz com uma arma e atirou na direção da boate; que esse tiro acertou numa coluna da boate "uns sessenta centímetros do chão"; que o rapaz que atirou estava uma distância aproximadamente de quinze metros dessa coluna; que eu pedi pra um colega ligar para a polícia porque ele estava com celular, que é o Roque; que nessa hora o rapaz que estava com a arma, entrou no carro e fez o contorno do posto; que nos saímos ali próximo da sorveteria e coincidiu dele parar na nossa frente; que o acusado perguntou: "você está ligando prá polícia, vagabundo"; que em seguida ele levantou a arma de dentro do carro "acompanhou o Roque, porque o Roque tentou se esquivar e atirou" que havia uma distância aproximadamente de quatro metros entre o acusado e a vítima" sic (fls. 145).

Fácil perceber, que o recorrente decidiu atirar contra a vítima quando lhe pareceu que ela pretendia ligar para polícia, levantou a arma e acompanhou o movimento da vítima, atirando exatamente onde ela se encontrava tentando se proteger, conforme consta alhures.

Em conclusão: embora o recorrente alegue a vontade dirigida a efetuar disparo sem a finalidade de atingir alguém, não socorrem provas seguras nos autos nesse sentido, senão a tese defensiva, que por sua vez não se ajusta sequer ao relato do próprio apelante, já que se evidenciou proposital o disparo que efetuou.

Presentes, pois, circunstâncias indicativas, na hipótese mais favorável, de dolo eventual, não afastadas por qualquer elemento nos autos, já que no inescondível intento de atingir a vítima, o recorrente atirou contra ela mesmo oculta atrás de um veículo, quiçá conhecendo a lesividade da arma, capaz de transfixar o automóvel, como aconteceu. Sobre a tentativa e o dolo eventual, NUCCI (in Código Penal Comentado, RT, 2006, pág. 164, anota verbis:

"É perfeitamente admissível a coexistência da tentativa com o dolo eventual, embora seja de difícil comprovação no caso concreto. É a precisa lição de Nélson Hungria: "se o agente aquiesce no advento do resultado específico do crime, previsto como possível, é claro que este entra na órbita de sua volição: logo, se, por circunstâncias fortuitas, tal resultado não ocorre, é inegável que o agente deve responder por tentativa". E arremata, quanto à dificuldade probatória: " a dificuldade de prova não pode influir na conceituação da tentativa" (...) Leciona nesse sentido, Welzel: "Na tentativa o tipo objetivo não está completo. Ao contrário, o tipo subjetivo deve dar-se integralmente, e por certo do mesmo modo como tem que aparecer no delito consumado. Se, por isso, para a consumação é suficiente o dolo eventual, então também é suficiente para a tentativa"

Nesse sentido, mutatis mutandis, sobre a compatibilidade entre o dolo eventual e a tentativa, o entendimento do C. Superior Tribunal de Justiça, sufragado no RHC 6.797/RJ, 5ª Turma, DJ 16-2-1998 p. 114, Rel. pelo e. Min. Edson Vidigal, verbis:

"PENAL - PROCESSUAL - INÉPCIA DA DENUNCIA - AUSÊNCIA DE SUPORTE PROBATORIO PARA A AÇÃO PENAL - CRIME COMETIDO COM DOLO EVENTUAL - POSSIBILIDADE DA FORMA TENTADA - 'HABEAS CORPUS' - RECURSO.

1. NÃO HA QUE SE DIZER INEPTA A DENUNCIA QUE PREENCHE TODOS OS REQUISITOS IMPOSTOS PELO CPP, ART. 41.

2. A AUSENCIA DE SUPORTE PROBATORIO PARA A AÇÃO PENAL NÃO PODE SER VERIFICADA NA ESTREITA VIA DO 'HABEAS CORPUS'; SÓ APOS O REGULAR CURSO DA INSTRUÇÃO CRIMINAL PODERA SE CHEGAR A CONCLUSÃO SOBRE SUA EFETIVA PARTICIPAÇÃO.

3. ADMISSIVEL A FORMA TENTADA DO CRIME COMETIDO COM DOLO EVENTUAL, JA QUE PLENAMENTE EQUIPARADO AO DOLO DIRETO; INEGAVEL QUE ARRISCAR-SE CONSCIENTEMENTE A PRODUZIR UM EVENTO EQUIVALE TANTO QUANTO QUERE-LO.

4. RECURSO CONHECIDO MAS NÃO PROVIDO."

Conseqüentemente, tipificada e reconhecida a tentativa de homicídio, as teses de desclassificação e desistência voluntária ficam implicitamente respondidas no quesito relativo à tentativa. Doutro modo, se os Jurados tivessem respondido negativamente à tentativa, aí sim vingaria a tese desclassificatória e a responsabilização pelos atos já praticados.

Igualmente, não emerge dúvida quanto ao reconhecimento pelos jurados da qualificadora do inciso V do § 2° do art. 121 do CP, haja vista que os jurados responderam positivamente ao 5º QUESITO, assim redigido, verbis: " O crime foi cometido para garantir a impunidade de outro crime, já que a vítima estava telefonando para a polícia?" e, efetivamente, as declarações nos autos apontam em tal sentido.

FERNANDO CAPEZ (in Curso de Direito Penal, Saraiva, vol. 2, 2004, pág. 58), discorrendo sobre as qualificadoras do inciso V, do art. 121, do Código Penal, pontua que verbis:

"Constituem qualificadoras subjetivas, na medida em que dizem respeito aos motivos determinantes do crime. Trata-se de motivações torpes. Torpe é o motivo moralmente reprovável, abjeto, desprezível, vil, que demonstra a depravação espiritual do sujeito e suscita a aversão ou repugnância geral. Em tese, essas qualificadoras deveriam ser enquadradas no inciso relativo ao motivo torpe, contudo preferiu o legislador enquadrá-las como conexão teleológica ou conseqüencial."

No caso dos autos, a conexão conseqüencial é inequívoca no sentido da prática do crime para assegurar a impunidade do crime anterior, assim entendido o ato de furtar-se ao acionamento da polícia e natural prisão em flagrante, sendo certo que o recorrente já havia notado a presença da vítima por ocasião da discussão com sua esposa, quando a vítima, segundo afirmou, verbis: "agiu com agressividade, empurrou, separando."

A possibilidade de outras pessoas também acionarem a polícia, como de fato aconteceu, não tem a conseqüência que lhe tributa a operosa Defesa, porque interessa ao reconhecimento da qualificadora não a sua exeqüibilidade, e sim, o ânimo subjetivo como motivo determinante do crime.

Portanto, perfeitamente caracterizado o delito e a qualificadora.

Assim, optando os jurados por uma das versões possíveis e com referendo no conjunto probatório, não pode ser tachada de manifestamente contrária à prova dos autos a decisão do Conselho de Sentença que reconheceu a prática de tentativa de homicídio.

Quanto à dosimetria das penas, reproduzo, para melhor compreensão do tema, os fundamentos adotados pela Magistrada na fixação das penas-bases, verbis:

"Atenta ao princípio constitucional da individualização da pena, considero que o acusado Frank Aurélio agiu com culpabilidade acentuada. Era exigível dele, naquelas circunstâncias, em um local de divertimento, na companhia da esposa e familiares, uma conduta inteiramente diversa. Embriagou-se e contrariado com o cuidado da esposa, que não queria que pegasse a direção do veículo automotor, para que não colocasse em risco a vida própria e de terceiras pessoas, foi até o referido veículo, apossou-se da pistola - seu instrumento de trabalho, com a qual deveria proteger as fronteiras e as pessoas deste estado - efetuou disparos. Considero que a vítima Norberto não teve qualquer conduta outra que provocasse a reação do acusado, a não ser o cumprimento de seu dever que seria acionar a guarnição policial em serviço, para conter o acusado, após ter efetuado o primeiro disparo" sic (fls. 287/288).

Diversamente a sustentado pela Defesa, a tentativa não interfere na fixação da pena-base, incidindo apenas na última fase de aplicação de pena, nem a primariedade garante ao acusado a pena mínima, se desfavoráveis as circunstâncias judiciais, como é o caso, em que foram aquilatadas desfavoráveis, notadamente, a culpabilidade e as circunstâncias do crime e neutro o comportamento da vítima.

A pena para o crime de homicídio qualificado pode variar de 18 anos, que corresponde à diferença entre a pena mínima (12 anos) e a pena máxima (30 anos). Assim, no pressuposto fático, presente discricionariedade juridicamente vinculada para, de um quantum de 18 anos, afastar de apenas 1 ano a pena-base do mínimo legal, não há como acolher o recurso defensivo.

O mesmo se passa com relação a pena-base aplicada ao delito do art. 15, da Lei nº 10.826/2003, com idêntica fundamentação, na qual a pena foi exasperada em apenas seis meses acima do mínimo, sendo, ademais, inafastável a causa de aumento do art. 20, da Lei Especial, corretamente aplicada.

Em conseqüência, e de acordo com o parecer, nego provimento ao recurso interposto por Frank Aurélio Brandão.

É como voto.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em epígrafe, a SEGUNDA CÂMARA CRIMINAL do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, sob a Presidência do DES. GÉRSON FERREIRA PAES, por meio da Câmara Julgadora, composta pelo DR. CARLOS ROBERTO C. PINHEIRO (Relator), DES. GÉRSON FERREIRA PAES (Revisor) e DES. LUIZ FERREIRA DA SILVA (Vogal convocado), proferiu a seguinte decisão: POR UNANIMIDADE, NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO, NOS TERMOS DO VOTO DO RELATOR. DECISÃO DE ACORDO COM O PARECER.

Cuiabá, 17 de junho de 2009.

DESEMBARGADOR GÉRSON FERREIRA PAES - PRESIDENTE DA SEGUNDA CÂMARA CRIMINAL

DOUTOR CARLOS ROBERTO C. PINHEIRO - RELATOR

PROCURADOR DE JUSTIÇA

Publicado em 26.06.2009




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